“FASCINAÇÃO”, 1909: UM RETRATO DO RACISMO MEDIADO PELA MODA NA OBRA DE PEDRO PERES RITA MORAIS DE ANDRADE1 Universidade Federal de Goiás,
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[email protected] Resumo: Este artigo apresenta uma análise da obra “Fascinação” de autoria de Pedro José Pinto Peres (Lisboa 1850-‐ Rio de Janeiro 1923) datado de 1909 com especial atenção à indumentária retratada. Os modos de vestir são um importante vetor cultural que refletem tensões sociais, algumas vezes escamoteadas pelos discursos predominantes em uma sociedade. No Brasil há um debate corrente acerca dos impactos causados pela condição pós-‐colonial, entre eles o da escravidão é um dos mais importantes. Procura-‐se agora desnaturalizar e superar a dada hegemonia eurocêntrica dos modelos sociais e culturais na vida cotidiana e na cultura material a ela associada. Nos estudos sobre indumentária, campo de pesquisa recente no país, é importante identificar a historicidade dos elementos culturais africanos que permanecem invisibilizados pela predominância de temas associados à moda europeia e norte-‐americana. A exclusão do rico patrimônio cultural da presença africana exclui uma parte fundamental da construção da cultura brasileira, por isso a urgência de inserir este tema na universidade. Palavras chave: Pedro Peres – Indumentária – Racismo – Cultura Visual -‐ História Social
Introdução A abolição da escravatura no Brasil é um marco importante na história nacional e mundial rumo aos ideais humanistas de construção das sociedades igualitárias e da superação de práticas de exploração humana. Sabe-‐se que apesar dos interesses sociais empregados na luta pela abolição da escravidão, outro interesse esteve coadunado, aquele destinado ao acúmulo de riquezas por nações e pequenos grupos mais ricos. Historiadores já identificaram a motivação dos interesses capitalistas como sendo motriz no processo que resultou na libertação de escravizados africanos e afro-‐brasileiros, negros, e a paulatina substituição desse trabalho não pago pelo do tipo assalariado. Mesmo assim, soma-‐se aos traumas da escravização e da libertação (que revelou-‐se descompromissada com a situação dos antigos escravizados) a continuidade das mentalidades racistas anteriores, que demoram a ser superadas e substituídas por modos menos discriminatórios de sociabilidade. 1
Professora do PPG em Arte e Cultura Visual e do Bacharelado em Design de Moda, UFG. Doutora em História Cultural (PUC/SP, 2008) com o tema da biografia cultural no estudo de tecidos e indumentária e Mestre em História dos Tecidos e da Indumentária (University of Southampton/UK, 2000). Realizou estágio de pós-‐doutoramento (PACC/UFRJ, 2013-‐2014) com o trabalho “Coleções de Indumentária em Museus no Brasil” resultando em levantamento inédito das tipologias e formação dessas coleções no país. Representante do Costume Commitee/ICOM desde 2011, liderou a organização no Brasil da primeira reunião do comitê com pesquisadores brasileiros (Rio de Janeiro, 2013) que resultou no aumento expressivo de associados ao comitê internacional. Autora de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros sobre história da indumentária brasileira e metodologia de investigação baseada em artefatos, foi editora da versão brasileira da revista Fashion Theory (2002-‐2005) e co-‐editou dois números especiais da mesma revista na versão original em inglês: Latin America Fashion Now (2014) e Brazilian Fashion (abril de 2016). Líder do Grupo de pesquisa INDUMENTA que investiga a indumentária no Brasil, sua patrimonialização, história e problemas atuais.
Contudo, quando substituída a forma escravocrata por outra mais liberal de economia e política no Brasil de finais do século XIX, os discursos em defesa da liberdade, da fraternidade e da igualdade estavam presentes em diferentes contextos sociais. Da flor de camélia, símbolo de libertação usada pela Princesa Isabel, aos levantes populares que eclodiram no país em defesa dos escravizados, a notícia da abolição foi e ainda é um aspecto central da história dos africanos, afrodescendentes no Brasil e, de fato, de todos os brasileiros. É apenas muito recentemente, especialmente no final do século XX, que os impactos sociais sofridos por pessoas traficadas e escravizadas e seus descendentes vem repercutindo como um tema de interesse das ciências sociais e das artes2.
Figura 1. Fascinação, 1909. Pedro Peres. Óleo sobre madeira, 35,7 X 31,2 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Fonte da reprodução: homepage da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-‐pt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=P&cd=2658. Acesso em: 05/05/2015.
Este artigo apresenta um estudo de caso, uma análise feita a partir da observação dos elementos visuais da obra “Fascinação” (Figura 1), datada de 1909 de autoria de Pedro Peres (Lisboa 1850 – Rio de Janeiro 1923)3 para refletir sobre a relação social discriminatória enunciada nas visualidades. A produção artística, mas também outras imagens produzidas no período imediatamente posterior à abolição da escravatura no Brasil, apresentam vestígios das mentalidades racistas e das distinções entre dominantes e dominados que 2
Recentes ações podem servir de exemplo da mobilização pelo debate acerca do tema. Uma delas é a exposição “Imprensa Negra Paulista” que aconteceu entre 24 de agosto e 11 de outubro de 2015 no Centro de Preservação Cultural da USP – Casa de Dona Yayá -‐ em São Paulo. Disponível em: http://www.usp.br/cpc/v1/php/wf08_informa.php. Acesso em: 01/10/2015.
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Para uma biografia do artista consultar a Enciclopédia Itaú Cultural o verbete “Pedro José Pinto Peres (Lisboa, Portugal 1850 -‐ Rio de Janeiro RJ 1923). Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa24503/pedro-‐peres. Acesso em: 20/08/2015.
permaneceram na sociedade brasileira apesar dos discursos liberais e abolicionistas de fins do século XIX4. Particular atenção neste artigo é dada à análise visual das vestimentas retratadas na obra que, acredita-‐se, acentua e revela a distinção social entre brancos e negros. Discute-‐se o vestuário e os modos de vestir (à moda ou fora dela) como marcadores da vida social que separam pobres de ricos, negros de brancos. A moda europeia era o modo de vestir dominante dos antigos colonizadores e das elites que foram sendo construídas no país e marcava visualmente e materialmente as diferenças sociais. Acredita-‐se que a indumentária seja um importante vetor da história cultural e social no Brasil que merece atenção de pesquisadores das artes e ciências sociais. As imagens de mulheres africanas que viveram no Brasil em decorrência de sua condição escrava ou de descendente de escravos é muito diversa das imagens de mulheres europeias e suas descendentes e mesmo de mulheres índias ou descendentes de indígenas que foram retratadas em gravuras, pinturas e fotografias do Brasil colônia ao Brasil Império e muito tempo depois. Essas imagens retratam mulheres negras, africanas e afro-‐brasileiras, vestidas de saias e blusas, enquanto que as mulheres brancas são geralmente retratadas com vestidos inteiriços, sem a divisão visual evidente entre blusa e saia. Esses modos distintivos de vestir parecem remontar às roupas camponesas da Europa e relacionaria mulheres escravizadas e/ou pobres à condição rural, notadamente defasada em relação à moda que as mulheres mais urbanizadas ou modernizadas na aparência, aquelas que vestem vestidos inteiros durante todo o século XIX. É possível que esses modos distintos de vestir tenham sido continuados no Brasil mesmo depois da proclamação da República. A permanência da saia e blusa como vestimentas características de mulheres afro-‐brasileiras é ainda notável no Brasil atual, o que parece indicar uma proximidade ao modo de vestir do século XIX, apesar das mudanças sociais ocorridas na historia recente do país5. Pouco tem sido estudado a respeito da indumentária no Brasil, particularmente o que as crianças vestem e vestiram. Um estudo feito a partir da análise de imagens, a exemplo do que foi realizado sobre a obra “Redenção de Cã” do artista Modesto Brocos y Gomes [1852-‐1936] (Capel et al., 2012), demonstra como as visualidades revelam a complexa transformação social em progresso e serve como modelo para análises sobre indumentária a partir da cultura visual. Visando compreender como a indumentária pode revelar traços das diferenças sociais marcadas pelo racismo, segue uma análise da obra “Fascinação” (1909). O método utilizado para analisar a imagem é baseado na proposta de Heloísa Capel (n.d.) para professores utilizarem em suas aulas de história. De acordo com a proposta de análise de imagem, a autora sugere as seguintes etapas de trabalho: Observação Inicial e Escrita de Percepção; Anotação de questões–problema a partir das observações feitas inicialmente; Investigação das questões–problema a partir das questões elaboradas; Exame de Elementos de Produção da Imagem; Análise de Dados de Circulação e Recepção da Imagem e Diálogo com Outras Obras. Esta última etapa auxilia o pesquisador a situar a produção e circulação da imagem. A Indumentária em Pedro Peres Pouco foi escrito a respeito da indumentária que africanos e afro-‐brasileiros vestiram no longo período de colonização europeia no Brasil e no período pós-‐colonial seguido pela independência e abolição da escravidão no país. João Braga e Luís André do Prado (2011) narram a história da moda brasileira 4
A presença da população negra nas cidades e a diversidade de discursos foi tema de discussão do simpósio “Negros nas Cidades Brasileiras 1890-‐1950” de 24 a 26 de agosto de 2015 no Centro Universitário Maria Antônia/USP, em São Paulo. Disponível em: www.usp.br/cpc. Acesso em: 20/08/2015.
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Sobre este tema ver número especial da revista Fashion Theory (no prelo): Andrade, Rita; Root, Regina (eds). 2016. Brazilian Fashion, an special issue of Fashion Theory – the jornal of Dress, body and culture. Vol. 20.2. February.
considerando que houve uma importante influência africana na constituição cultural da nação, mas não destacam as profundas diferenças entre os modos de vestir de escravos e libertos ou ex-‐escravos pobres e a população mais rica. Essas diferenças são brevemente tratadas por Marcos Hill (2012) em seu estudo sobre a presença de “mulatos” na cultura visual brasileira, marcadamente na história da arte. Este autor buscou nos marcos da cultura brasileira, como as obras de Debret do século XIX e os textos de Mario de Andrade no século XX, vestígios de uma configuração cultural mestiça e as relacionou à produção artística do longo período entre o século XVII e o século XX. Contudo, ainda não vemos a indumentária destacada como elemento relevante ao estudo das visualidades. Um dos raros estudos sobre a indumentária de escravos é o de Julita Scarano (2002) que pesquisou o cotidiano de escravos em Minas Gerais do século XVIII e observou que as vestimentas são um importante aspecto para a construção da história social e cultural do Brasil. A autora acredita que a escassez de fontes relativas à indumentária, inclusive as próprias roupas, contribui para a ausência de estudos especializados sobre o tema. Acredito que estudos relativos à indumentária e os modos de vestir a partir de análise de imagens e artefatos possam contribuir para discutir racismo e desigualdade social no período tratado, muitas vezes atenuadas pelos discursos nacionalistas e abolucionistas. Como observaram Ana Paula Benachio et al. (2014, p.4), sobre uma outra obra de Peres : “N’A Primeira Libertação de Pedro Peres, os homens negros não são meros complementos à cena: eles têm um papel relevante, mas ainda assim não são personagens completamente construídos e individualizados. No nosso entender, trata-‐se mais de uma alegoria, uma representação da liberdade e de um mundo que ainda estaria por vir.” Este mundo “por vir” está também representado de modo singelo em outras obras do artista. Em “Fascinação”, 1909, Pedro Peres retratou em óleo sobre madeira (35,7 x 31,2cm) uma cena íntima que tem duas figuras centrais: uma criança negra e uma boneca branca. Notáveis são as diferenças entre as meninas retratadas, o símbolo da boneca – imaculada, perfeita, arrumada – em contraste com a menina mal vestida. O período parece ser o contemporâneo do pintor no momento que executa a obra, dada as características visuais retratadas, como o estilo arquitetônico, o mobiliário e as roupas. A boneca está sentada sobre uma cadeira de madeira com assento estofado e encosto coberto por uma espécie de xale com franjas. De cabelos loiros e pele branca, aparenta ter sido fabricada em porcelana ou madeira e assemelha-‐se bastante às feições humanas de uma criança. Traja vestido de cor azul e renda branca de saia drapejada e blusa com jabô, de mangas longas e decote careca com gola, todas características de vestidos de alta moda francesa do século XIX, como podemos notar nas imagens (Figuras 2 e 3). Visualmente o tecido aparenta ser seda, dado o brilho e as nuances de tons de azuis retratados. Ela calça sapatos que aparentam ser couro marrom de tom caramelo. Veste ainda um chapéu azul com ornamentos, possivelmente plumas e babados de renda, o que não é possível identificar com segurança pelo modo como está retratado. O traje e a feição saudável (rubra) da boneca contrastam com a visão que temos da criança negra, posicionada na obra ao lado da boneca, distante cerca de um metro e recostada em pé no batente de uma porta branca, ligeiramente recuada em relação à cadeira com boneca, do ponto de vista do observador da pintura e da cena.
Figura 2
Figura 3
Figura 2. Princesse de Broglie, 1851–53. Jean Auguste Dominique Ingres (Francês, 1780–1867). Óleo sobre tela (121.3 x 90.8 cm). Coleção Robert Lehman, 1975 (1975.1.186). Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/works-‐of-‐art/1975.1.186. Acesso em 25/10/2015. Neste retrato de meados do século XIX vemos um vestido azul com saia volumosa, característica da moda francesa da época. A manga curta diferencia esta voga de outra, mais característica do final do século que é mais parecida com a roupa da boneca. Figura 3. Vestido de seda e renda Liberty & Co London, Inglaterra, 1893-‐1894. © Victoria & Albert Museum, Londres. Número de localização: T.17-‐1985. Disponível em: http://www.vam.ac.uk/content/articles/v/victorian-‐dress-‐at-‐v-‐and-‐a/. Acesso em 25/10/2015. Este vestido, aqui reproduzido em baixa resolução em um pequeno detalhe, é muito semelhante ao da boneca. Feito em seda de cor azul e com detalhes em renda branca, foi moda no final do século XIX e produzido pelo maganize inglês Liberty, indicando uma voga que havia se tornado internacional.
A criança tem feições de menina, está vestida com vestido de cor clara, um tom entre creme e rosado. O traje aparenta ser uma peça inteira, vestido de mangas longas, cintado, com jabô aparentemente do mesmo tecido ou cor. A simplicidade do vestido da criança, que não calça sapatos ou veste outros adereços como chapéu, contrasta muito com a riqueza de detalhes dos trajes da boneca. A menina, cujo braço esquerdo se apoia para cima no batente da porta, olha a boneca com expressão de fascínio, o que remete ao título da obra: fascinação. A boca está entreaberta e o rosto não expressa felicidade ou tristeza, mas há algo no modo de retratar a menina que nos remete à contemplação de um objeto que não poderá ser tocado. A pobreza fora retratada por outros artistas no século XIX e início do XX, e a indumentária é um dos elementos que melhor destaca essa condição social, conforme vemos nas figuras 4 e 5.
Figura 4 Figura 5 Figura 4. Negra tatuada vendendo caju, 1827. Jean-‐Baptiste Debret. Aquarela sobre papel. 15.6 x 21 cm Museus Castro Maya -‐ IPHAN/MinC, Rio de Janeiro. Disponível em: http://museuscastromaya.com.br/colecoes/brasiliana/. Acesso em 10/11/2015. Em suas aquarelas, Debret retratou mulheres negras como essas vendedoras de frutas que vestiam saia e blusa no início do século XIX. Ainda hoje as vendedoras de acarajé são vistas em Salvador/BA com este tipo de traje. Figura 5. Nhá Chica, 1895. José Ferraz de Almeida Júnior. Óleo sobre tela, 109 X 72 cm. Acervo Pinacoteca do estado de São Paulo. Disponível em: http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-‐pt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=A&cd=2335. Acesso em: 28/10/2015. Vestir-‐se de blusa e saia era comum às mulheres mais pobres do Brasil como na Europa. Vestidos inteiros feitos de um único tecido era um privilégio aparentemente dos mais ricos, ao menos enquanto a costura industrial não passou a dominar a produção do vestuário que viria a acontecer no século XX.
Apesar de as mulheres pobres e negras terem sido retratadas muitas vezes vestindo saia e blusa no lugar de vestidos inteiriços de mulheres burguesas e brancas, vemos a criança negra vestida de um modo diverso. Ela não está retratada com saia e blusa como uma mulher mais velha e não veste um vestido inteiriço como a boneca que representa uma mulher à moda. Seria esta uma roupa de adulto adaptada para a criança? Isto é possível já que a menina parece vestir uma camisa de adulto que nela estaria mais longa? Mas há ainda outras possibilidades, como a de uma roupa feita para a criança a partir de tecidos grosseiros disponíveis para corte e costura de roupas das populações mais pobres, como acontece ainda hoje no interior dos estados brasileiros em que populações rurais vestem-‐se com trajes feitos de sacos de algodão que embalam alimentos e outros produtos. Este é um tema fascinante de investigação para ser
perseguido num trabalho de maior fôlego. Uma pesquisa em arquivos históricos e acervos de museus poderia informar a respeito dos modos de vestir que a cultura visual nos apresenta. Todo o entorno da cena apresenta um ambiente rico: o tapete aparentemente Aubusson, um estilo francês, o mobiliário de madeira com desenho ornamental, a cadeira de balanço que aparece no fundo e tem desenho Thonet sobre o qual vemos um tecido, possivelmente um xale franjado, característica da moda feminina do período em que a obra foi realizada. Há livros dispostos em prateleiras também ao fundo, o que remete à casa de gente letrada. O estilo de retrato do cotidiano, conhecido por pintura de gênero, é característico da época. Não é possível precisar a localidade representada, mas pode ser uma casa brasileira já que vemos a relação racial protagonizando a cena. A obra fora executada, considerando a data 1909, vinte e um anos depois da abolição da escravidão no Brasil pelo decreto assinado por Isabel aprovado por senado e câmara dos deputados em 1888. Mas em que medida esta imagem se assemelha a outras da mesma época? O trabalho de Ana Laura Benachio (et al., 2014), analisa uma parte importante das produções artísticas no Brasil que representam o negro entre 1850 e 1950 e nota essa diversidade de modos de visibilizar as tensões sociais. Os autores concluem que, apesar de prevalecer a produção de artistas brancos sobre negros, há uma contribuição relevante no período em marcar as diferenças sociais e apresentá-‐las em sua complexidade. De certa forma, o estudo do conjunto artístico do período ajuda-‐nos a ter essa percepção mais alargada das múltiplas impressões sobre essas tensões. Certamente, como aponta o estudo, novas pesquisas precisarão se debruçar sobre a produção de artistas negros, como Estevão Silva (1845?-‐1891) formado na Academia Imperial de Belas Artes (Benachio et al., 2014, p.25) para que tenhamos uma dimensão mais significativa das questões ligadas ao racismo do período. A Academia de Belas Artes foi uma instituição muito importante para a produção e difusão da ideia de uma arte nacional. Pedro Peres estudou na instituição tendo sido aluno de Victor Meireles (1832-‐1903) e colega de Almeida Júnior (1850-‐1899). Através da análise do trabalho de outro pintor, Modesto Brocos y Gomez (1852-‐1936) (Capel, 2014), sabemos como a arte no Brasil passava por uma transformação decorrente, entre outras coisas, da mudança de regime político e da consequente instabilidade das instituições antigas. Em seu trabalho, a autora demonstra como buscar o “nacional” na arte dependia agora de uma apreensão das questões locais. Segundo ela (Capel, 2014, p.5), não bastava a solução formal das obras, muitas delas baseadas numa formação europeia dos artistas, mas a nova estética processava-‐se “(...) por meio da observação empírica da localidade, pela observação dos tipos nacionais, elementos únicos que pudessem contribuir na composição de uma obra”. Em Pedro Peres observamos essa absorção dos aspectos sensíveis da realidade local para além da forma acadêmica de pintura. Parece haver em “Fascinação” uma escolha por manter o conflito em suspenso, como se participássemos da cena sem que percebessem nossa presença. No trabalho de Peres há um convite para espreitar os acontecimentos naquilo que eles tem de complexo, é como se o artista tivesse registrado a tensão velada da cena que presenciou. Um modo semelhante de registro do cotidiano encontramos em Almeida Junior (1850-‐1899). Contudo, as cenas registradas por ele parecem refletir um distanciamento quase científico entre o artista e a cena registrada, como se o artista fosse um mediador, documentando a cena sem transpor o limite objetivo dos elementos retratados. Em Pedro Peres vejo algo distinto, uma sensibilidade para captar o subjetivo na cena e destacar o que estaria, de outra forma, invisível. Em relação à produção artística de sua época Pedro Peres apresenta um olhar sensível às questões sociais brasileiras, em especial às dos problemas visivelmente presentes após a abolição da escravidão. Havia outros artistas, além do prestigiado Almeida Junior já mencionado, que ao se preocuparem em retratar o cotidiano, demonstraram de modos distintos as tensões raciais presentes na sociedade que lidava com as mudanças recentes. O que prevalece nas obras da época é a imagem de um distanciamento entre negros e brancos, sendo os primeiros aqueles que estão à sombra ou à serviços dos últimos. Em seu artigo sobre representações de negros e índios brasileiros na produção artística nacional, Vera Lins (Revista Z Cultural,
s/d) observa como o historicismo presente nas várias obras produzidas no final do século XIX e início do XX perde em importância quando o sensível é o aspecto privilegiado pelo pintor. Sobre a obra “Fascinação” e refletindo sobre a ideia da partilha do sensível em Jacques Rancière, a autora disse: “Na pintura, o regime estético depunha os quadros históricos e trazia o banal à cena. Não é mais a representação da nacionalidade o que conta, mas as questões que afloram – possibilitando a reconfiguração polêmica do sensível. Passa-‐se dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificando os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária. O que acontece já no quadro Fascinação, que gera pensamento, o que se espera da arte.” Considerações finais Os tecidos, as cores, os trajes são elementos que destacam as diferenças sociais que na obra são retratadas na menina negra e na boneca branca com visível contraste. Uma representa um modo de vida centrado no consumo de produtos de moda, de luxo, o que identificamos em muitos dos objetos que veste e reveste: a cadeira, o chapéu, os sapatos e vestido de seda com renda, o rubor da face. A outra parece se apoiar de uma forma incômoda à cena, olha a boneca com a expressão de quem vive distante do mundo em que ela também habita. Além da fascinação, há um deslocamento, uma inadequação retratada que nenhum objeto enseja tão bem quanto a indumentária. A análise de imagem é um instrumento legítimo na busca por conhecimento a respeito da história cultural e social, especialmente importante quando os discursos predominantes invisibilizam os preconceitos que vão se arraigando e naturalizando na sociedade brasileira. As roupas e a moda são marcadores dessa distinção social que revela o racismo, como vemos destacadamente na obra de Pedro Peres. Estudos sobre indumentária a partir da análise de imagens, assim como a de artefatos, colaboram para uma visão mais abrangente da situação complexa, da sensação de inadequação de negros e ex escravos no início da República.
Agradecimentos Agradeço as Professoras Dra. Heloísa Selma Fernandes Capel e Ms. Ana Amélia Aquino Brito pelas sugestões valiosas na elaboração deste texto, inicialmente preparado para a conclusão do curso de especialização em História e Cultura Afro-‐Brasileira e Africana (2014-‐2015). Agradeço ainda a leitura cuidadosa e as importantes contribuições dos pareceristas para a elaboração da versão final deste artigo, assim como a organização do evento pela cuidadosa gestão do processo de revisão cega pelos pares, que considero crucial para o amadurecimento e consolidação da área de pesquisa. Finalmente, agradeço a Indyanelle Marçal Garcia e Luiz Guilherme Menezes Di Calaça, responsáveis pela tradução deste artigo com revisão final minha.
Referências Benachio, Ana Laura; Beck, Diego Eridson; Costa, Rafael Machado; Vargas, Rosane. 2014. Considerações sobre a representação do negro na arte do Brasil, 1850-‐1950. In: Revista 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan./jun. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/negro_representacoes.htm Braga, João e Prado, Luís André do.2011. História da Moda no Brasil -‐ das influências às autorreferências. São Paulo: Pyxis Editorial, 2a ed. Calanca, Daniela. 2008. História Social da Moda. Tradução Renato Ambrósio. São Paulo: Senac. Capel, Heloísa Selma Fernandes. 2014. Artífice Da Tradição: Modesto Brocos Y Gomez (1852-‐1936) no debate sobre a identidade nacional. In: Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho -‐ Dezembro Vol. 11 Ano XI nº 2 ISSN: 1807-‐6971. Disponível em: www.revistafenix.pro.br
-‐-‐-‐. “n.d”.Como analisar uma imagem: sugestões para o professor. Texto do curso de especialização à distância em História e Cultura Afro-‐Brasileira e Africana. Disponível em: http://www.historiaecultura.ciar.ufg.br/modulo3/capitulo13/conteudo/2-‐1.html -‐-‐-‐, H.S.F.; G.Witeze Junior. 2012. Performances híbridas no pensamento utópico de Modesto Brocos y Gomez (1852-‐1936). In: Estudos Ibero-‐Americanos, PUCRS, v. 38, n. 2, p. 363-‐380, jul./dez. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/12071/8727. Gates Jr., Henry Louis. 2014. Os negros na América Latina. Tradução Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras. Hill, Marcos. 2012. Quem são os mulatos? Belo Horizonte: Editora C/Arte. Scarano, Julita. 2002. Negro nas terras do ouro: cotidiano e solidariedade século XVIII. São Paulo: Editora Brasiliense. Lins, Vera. “n.d”. Representações do primitivo: cenas de pensamento. Z Cultural: revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea. Ano VIII, número 03, ISSN 19809921. Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/cenas-‐afro-‐brasileiras-‐de-‐vera-‐lins Schwarcz, Lilia Moritz. 1993. O Espetáculo das raças -‐ cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo: Cia das Letras. Souza, Gilda de Melo e. 1987. O espírito das roupas: a moda do século XIX. São Paulo: Cia das Letras.