Fátima: do Espectáculo da Multidão às Notícias Comuns

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2014 12 31 Fátima XXI

Fátima: do espectáculo da multidão às notícias comuns Eduardo Cintra Torres Voltemos à merecidamente famosa expressão do cardeal Cerejeira em 1942: “Não foi a Igreja que impôs Fátima, foi Fátima que se impôs à Igreja”.1 Analisada literariamente, a frase recorre à figura estilística do quiasmo, pelo qual a disposição entrecruzada dos elementos cria uma antítese: “Fátima/impôs/Igreja” nega “Igreja/impôs/Fátima”. Na frase que a esta juntou, Cerejeira acrescenta que é o manto da Igreja que justifica Fátima, mas leva ainda mais longe a imposição de Fátima à instituição eclesiástica: “a Igreja não carece de Fátima, Fátima porém não se compreende sem a Igreja”. Note-se como “não carece” é bem mais forte do que “não se compreende”. Dado que o milagre “se conforma com o Evangelho e o serve”, a Igreja acredita nele. A antítese da primeira frase prossegue, assim, no argumento seguinte, confirmando Cerejeira que foi o acontecimento que se impôs à Igreja. E o que foi o acontecimento, analisado sociologicamente? Para lá da sua expressão espiritual, Cerejeira afirma também que a multidão de fiéis impôs o fenómeno religioso e a sua materialidade: o seu reconhecimento nas décadas seguintes pela Igreja portuguesa e pelo Vaticano, as manifestações de devoção, a sua estruturação no seio da Igreja, a construção do lugar. Fátima é um dos acontecimentos religiosos dos últimos séculos mais marcado pela força da multidão, neste caso a multidão católica, que pelo seu número e dedicação, venceu a forte oposição do jacobinismo do poder político e mediático nos primeiros anos.2 O evento fatimita esteve próximo no tempo, no espaço e no ambiente social do fenómeno de Lourdes, onde Bernardette Soubirous disse ter presenciado 18 aparições da Imaculada Conceição, em 1858. No ano seguinte, já milhares de peregrinos se dirigiam ao local das aparições. Como Fátima, Lourdes ficava num local isolado; a vidente, como os pastores de Fátima, era uma rapariga pobre; as aparições ocorrem numa França republicana, considerada adversária do catolicismo, como o Portugal pós-1910; o fenómeno não é imediatamente reconhecido pela Igreja, mas tem os seus acérrimos defensores, como veio a ser, de Fátima, o padre Manuel Nunes Formigão, que esteve no Santuário de Lourdes durante o Verão de 1909. Em Lourdes, Formigão suplicou, na gruta das aparições, que lhe fosse concedido tornar-se “um dos mais ardorosos propagandistas” do culto da Virgem de Lourdes em Portugal, como escreveu em 1930. Viria a sê-lo de Fátima, e mais ainda, foi “o quarto mensageiro e o ‘apóstolo’ de Fátima”.3 Lourdes foi o primeiro fenómeno multitudinário católico moderno, tendo beneficiado do desenvolvimento das comunicações, todas as comunicações do tempo: o caminho-de-ferro, o livro, a imprensa, mais tarde o teatro e o cinema. Tornou-se em poucos anos um dos santuários mais visitados e divulgados. Situado no fim do mundo, foi, depois de Roma, o primeiro santuário de todo o mundo, recebendo crentes de todos os continentes. Soubirous referiu ter recebido da Virgem Maria um apelo de Nossa Senhora às multidões: pediu que “os povos aí se dirigissem em procissão, de todos os pontos da Terra”. Tal como depois Fátima, Lourdes esteve no centro de intensos debates na imprensa e rapidamente originou obras literárias, apologéticas, críticas ou simplesmente polémicas. A multidão de Lourdes impôs-se à Igreja e a toda a sociedade. Émile Zola, num romance que a Igreja condenou, sublinhava o papel central da multidão no fenómeno, ousando suplantá-la à fé: era o milagre do povo, a “multidão que cura”.4 Fátima repete, no geral, a realidade sociológica, política e comunicacional de Lourdes. Aliás, Lourdes era referido insistentemente pelos detractores de Fátima, que viam neste fenómeno 1

Cerejeira, Manuel Gonçalves. 1943. “Fátima e a Igreja”. In Obras Pastorais, vol.2. Lisboa: União Gráfica. Sardica, José Miguel. 2007. Estado e Fátima. In Carlos Moreira Azevedo e Luciano Cristino, coords., Enciclopédia de Fátima, Estoril, Principia. 3 Gomes, Jesué Pinharanda. 2007. “Formigão, Manuel Nunes”. In Carlos Moreira Azevedo e Luciano Cristino, coords., Enciclopédia de Fátima, Estoril, Principia. 4 Torres, Eduardo Cintra. 2007. “A Multidão Religiosa de Lourdes em Zola e em Huysmans”. Análise Social, vol. XLII (184). Disponível em https://www.academia.edu/2923450/ . 2

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uma cópia do outro. E, ao mesmo tempo, Fátima não ignorou Lourdes desde o princípio: o Avé de Lourdes foi cantado pelo menos pela multidão de 13 de Outubro de 1917.5 Os adversários laicistas anticlericais ficaram paralisados com o poder do número da multidão católica, primeiro em Lourdes, depois em Fátima, que, a seu ver, seguia no caminho contrário da multidão urbana e laica que a Revolução Francesa tornara um mito da modernidade. Os autores católicos, inversamente, foram assimilando o poder da nova multidão religiosa, já não local, mas nacional e global: é o que a frase do cardeal Cerejeira lapidarmente regista. A multidão de Lourdes e de Fátima era um sinal de uma renovação do catolicismo na relação com os fiéis. Aos defensores e detractores de Lourdes e Fátima não escapava o elemento espectacular da multidão. Nos anos 30 já o padre Fisher podia indicar que a multidão de Fátima suplantava a de Lourdes e até a de Roma.6 O “maior milagre” de Fátima era o de exibir a renovação da fé da nação portuguesa, escreveu Aires da Fonseca em 1934.7 Como é do carácter da multidão, ela vê-se, mostra-se, comunica uma mensagem não só pelo motivo da reunião e pela sua expressão verbal e não-verbal, mas também pelo seu próprio número. Numa palavra, a multidão é mediática. E os media, pois? Logo em 1917, Fátima serviu exemplarmente o carácter serial da imprensa: 13 de Maio, 13 de Junho, 13 de Julho…, acontecimentos previstos, programados, atingindo o apogeu em 13 de Outubro, que reificou o fenómeno, na Cova da Iria e nas notícias e reportagens. Não se tratava, porém, de acontecimentos programados normais, mas de acontecimentos extraordinários, matéria de interesse primordial para o jornalismo. Fátima originou intensa produção jornalística, quer a favor, quer contra, mas foi a multidão que fez o seu caminho, quer lesse, quer não lesse a imprensa. Os primeiros relatos jornalísticos não deixam de mencionar a impressionante multidão em Outubro, servindo o número de fiéis para as reportagens legitimarem o fenómeno — e justificarem a cobertura jornalística: a multidão, as massas e os media, juntos desde o início. Lida à luz da teoria dos “acontecimentos mediáticos” de Dayan e Katz8, Fátima foi simultaneamente um evento de coroação (de Maria, do catolicismo, primeiro do popular, depois em geral), um evento de conquista (Portugal reconquistado pelo catolicismo) e um evento de competição (entre católicos e laicistas anticlericais, crentes e não-crentes). Juntou os três principais ingredientes dos eventos mediáticos: uma liderança, neste caso, à época, uma liderança de dissensão), liderança improvável de três crianças pastoras e da sua fé; uma multidão, sem a qual o fenómeno dificilmente se imporia; a potência das novas comunicações, da divulgação nos grandes media do tempo, os jornais nacionais e a rede de pequenos jornais que reproduziam as notícias e artigos dos grandes jornais. As comunicações modernas permitiram que a “crendice popular” de um local ignoto e de difícil acesso acrescentasse a multidão. Passados os anos de coroação pela multidão e pela Igreja, de conquista do “espaço” religioso e social e de competição (os anticlericais, no poder ou não, desistiram), Fátima foi evoluindo com os tempos, inscrevendo-se assim na ontologia historicizante do catolicismo. Os media não deixaram de acompanhar Fátima, já não nas discussões políticas e principalmente teológicas, mas no que mais lhes interessa: a efervescência colectiva do grande evento. Foi assim com os acontecimentos em Fátima durante a República, a Ditadura, o Estado Novo e a democracia, foi assim com as visitas papais, de Paulo VI a Bento XVI, assim será no centenário de 2017. Dominada nas últimas décadas pela televisão generalista, a comunicação e a estética da efervescência colectiva centram-se nas peregrinações de Maio a Outubro, quando grandes multidões enchem o santuário. A televisão generalista procura estar onde estão as massas, isto é, as suas 5

Fernandes, António Teixeira. 1999. O Confronto de Ideologias na Segunda década do Século XX. À volta de Fátima. Porto: Afrontamento. 6 Eduardo Cintra Torres. 2010. “Zola, Lourdes and the New Religious Crowd in Ideological Debates in Portugal (18941932)”, Conserveries mémorielles, nº8. Disponível em https://www.academia.edu/2923397/ . 7 Fonseca, L. Gonzaga Aires da. 1934. Nossa Senhora de Fátima. Porto: Ed. Apostolado da Imprensa. 8 Katz, Elihu e Dayan, Daniel. 1999. A História em Directo. Os acontecimentos mediáticos na televisão. Coimbra: Minerva.

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audiências visadas. Aderindo aos grandes acontecimentos, o discurso da televisão adapta-se às circunstâncias. Nos grandes eventos de Fátima, a televisão generalista é “católica”, do mesmo modo que é “laica” por estatuto e, também, por convicção, nos eventos não-religiosos. Os longos directos do santuário de Fátima, por vezes em simultâneo em vários canais, ilustram essa adesão à ideologia do evento. O mesmo sucedeu na cerimónias de trasladação da irmã Lúcia, que também mobilizaram multidões — e audiências. Essa adesão ideológica transmite-se ao discurso geral dos jornalistas, à sua postura, até ao seu vestuário e à comunicação não-verbal, sendo a dimensão multitudinária — a efervescência colectiva, nos locais religiosos ou nas ruas e a sua representação através de vox populi nos mesmos locais — o que mais interessa à televisão.9 À parte os programas religiosos que os canais transmitem, por opção institucional, caso da RTP (missa e Ecclesia), ou por opção editorial, caso da TVI (missa e Oitavo Dia), a religião apenas interessa na medida em que corresponde ao interesse previsto ou real das audiências. Se os grandes eventos fatimitas correspondem a essa expectativa de audiências, o noticiário religioso quotidiano, institucional, comum, não cabe nessa estratégia de programação. Não é “interessante”, aos olhos do jornalismo, seja porque não perspectiva boas audiências, seja porque não se enquadra no discurso ideológico maioritário nas redacções, seja porque não não se enquadra nos valores-notícia do jornalismo. Deste modo, só o trabalho comunicativo de quem emite poderia despertar o interesse nas redacções para os eventos não-multitudinários: parafraseando o quiasmo do cardeal Cerejeira, não é a Igreja que impõe a informação às redacções, é a informação da Igreja que se pode impor às redacções, através do uso da linguagem e das ferramentas comunicacionais contemporâneas, tornando-a interessante para leitores, ouvintes e espectadores na perspectiva dos filtradores ou gatekeepers, os jornalistas dos media de massas.

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Capucho, Carlos, Eduardo Cintra Torres e Catarina Duff Burnay. 2011. “A Construção da Festa Electrónica na Visita de Bento XVI a Portugal”. Comunicação e Cultura – Sagrado e Modernidade, n.º11, Lisboa, BOND.

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