FATORES LINGUÍSTICOS E EXTRALINGUÍSTICOS EM TEXTO PRODUZIDO POR ALUNA DO QUARTO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL I speech in writing, textual production and textual, socio-cognitive processes and language, linguistic and extralinguistic factors

May 19, 2017 | Autor: Valdir Vegini | Categoria: Linguística Textual (Text Studies)
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FATORES LINGUÍSTICOS E EXTRALINGUÍSTICOS EM TEXTO PRODUZIDO POR ALUNA DO QUARTO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL I Valdir Vegini1 Rebecca Louize Vegini2 RESUMO: Este artigo teve por objetivo analisar, sob a ótica da Linguística Textual, um texto acadêmico produzido por uma aluna de oito anos de idade, matriculada no 4º ano do Ensino Fundamental I, em um estabelecimento de ensino particular da cidade de Porto Velho. A partir de um olhar macro e micro textual, foram observados os fatores linguísticos (ou semântico-formais) e extralingüísticos (ou pragmáticos), explícita ou implicitamente presentes no texto produzido pela menina, incluindo entre os formais aqueles referentes aos reflexos da fala na escrita. Do processo analítico realizado, emergiu um volume muito grande e rico de informações que permaneceriam encobertas não fosse a adoção dos avanços da teoria da Linguística Textual. A soma de todo esse trabalho parece-nos ter esclarecido grande parte das estratégias argumentativas utilizadas pela aluna e gerado a textualidade, a meta primeira de sua tarefa escolar A consequência mais imediata desse exercício intelectual foi, de um lado, confirmar, uma vez mais, a relatividade da importância que se tem dado às dificuldades ortográficas encontradas nos textos dos alunos das primeiras séries do Ensino Fundamental; de outro, revalidar a importância do trabalho linguístico, familiar e escolar, centrado na leitura e na escritura. PALAVRAS-CHAVE: Linguística Textual; Fala e Escrita; Reflexos da fala na escrita; Produção textual e textualidade; Processos sócio-cognitivos e linguísticos; Fatores linguísticos e extralinguísticos. ABSTRACT: This article aims to evaluate from the perspective of linguistics Textual, an academic text produced by a student nine years of age, enrolled in 4th year of elementary school (Ensino Fundamental I) in a private educational organization in the city of Porto Velho. From a look at macro and micro textual factors were observed language (or formalsemantic) and extralinguistic (or pragmatic), explicitly or implicitly in the text produced by the girl, including among those relating to formal reflections of speech writing. The analytical process performed, there emerged a very large volume and rich information that would remain hidden were not for the adoption of advances in theory of Textual Linguistics. The sum of all this work seems to have cleared much of the argumentative strategies used by student and generated the textuality, the first goal of his homework. The most immediate consequence of this intellectual exercise is, on one hand, confirm, once again the relativity of importance has been given to spelling difficulties encountered in the writings of students in early grades of elementary school, on the other, validate the importance of language work, family and school, focusing on reading and writing. KEYWORDS: Textual Linguistics, Speech and Writing; Reflections of speech in writing, textual production and textual, socio-cognitive processes and language, linguistic and extralinguistic factors.

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Doutor em Letras/Linguística/UFSC/1995; Professor do DLV/UNIR/PVH, 2008...

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Graduada em Letras/UNIVILLE/2007; Professora do Instituto Laura Vicuña/PVH, 2009.

PREÂMBULO A motivação maior para a elaboração deste artigo veio de um texto acadêmico produzido por uma aluna de oito anos de idade, matriculada no quarto ano do Ensino Fundamental I, num estabelecimento de ensino particular da cidade de Porto Velho. O propósito do trabalho é, a partir de um olhar macro e micro textual, analisar os fatores linguísticos (ou semântico-formais) e extralingüísticos (ou pragmáticos) do texto produzido pela menina, incluindo entre o primeiro olhar especulações acerca dos reflexos da fala na escrita.

1. INTRODUÇÃO

2.1 Texto: um evento dialógico Koch (2006, p. 9), interpretando Beaugrande (1997), entende o texto como um lugar de constituição e de interação de sujeitos sociais, um evento que convergem ações linguísticas, cognitivas e socias, ações por meio das quais se constroem interativamente os objetos-de-discurso e as múltiplas propostas de sentidos, como função de escolhas operadas pelos coenunciadores entre as inúmeras possibilidades de organização que cada língua oferece. Nesse sentido – acrescenta -, “o texto é um construto histórico e social, extremamente complexo e multifacetado, cujos segredos (quase ia dizendo mistérios) é preciso desvendar para compreender melhor esse ‘milagre’ que se repete a cada nova interlocução – a interação pela linguagem, [...], atividade constitutiva.” Essa concepção de texto deriva da definição de língua que a autora adota. Para ela, ancorada em Bakhtin (1992), a língua é o lugar por excelência da interação, onde “os sujeito (re)produzem o social na medida em que participam ativamente da definição da situação na qual se acham engajados, e que são autores na atualização das imagens e das representações sem as quais a comunicação não poderia existir.” (KOCH, 2006, p. 17.) Esses sujeitos são histórica e ideologicamente situados, constituindo-se na interação com o outro. Nesse sentido, se diz que o texto encena e dramatiza essa relação. Nele, o sujeito divide seu espaço com o outro porque nenhum discurso provém de um sujeito adâmico que, num gesto inaugural, emerge a cada vez que fala/escreve como fonte única do seu dizer. Segundo essa perspectiva, o conceito de subjetividade se desloca para um sujeito que se cinde porque átomo, partícula de um corpo históricosocial no qual interage com outros discursos, de que se apossa ou diante dos quais se posiciona (ou é posicionado) para construir sua fala. (BRANDÃO (2001, p. 12,

apud KOCH, 2006, p. 16),

Pela concepção interacional ou dialógica da língua, prossegue Koch, o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos. Dessa forma, há lugar, no texto, para toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivio dos participantes da interação. O texto, por essa ótica interativa, passa a ser visto como uma atividade altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos linguísticos presentes na superfície e na sua forma de organização e requer um vasto conjunto de saberes (enciclopédico) e sua reconstrução no interior do evento comunicativo. O sentido de um texto, escreve Koch (2006, p. 17), é construído na interação do texto-sujeitos (ou texto-co-enunciadores) e não algo que pré-exista a essa interação. Também a coerência deixa de ser vista como mera propriedade ou qualidade do texto, passando a dizer respeito ao modo como os elementos presentes na superfície textual, aliados a todos os elementos do contexto sociocognitivo mobilizados na interlocução, vêm a constituir, em virtude de uma construção dos interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos. (KOCH (2006).

Das teorias que tentam explicar as estratégias utilizadas pelo produtor/leitor de um texto, um voraz “caçador dos sentidos”, conforme expressão cunhada por Dascal para interpretar a compulsão do Homo Sapiens na busca do sentido das coisas (DASCAL, 1992, apud KOCH, 2006, p. 17-8), a autora inclina-se para o modelo pragmático, acrescido da preciosa metáfora do iceberg, ou seja: no topo, o signo a ser interpretado; abaixo da superfície, o sentido semântico; mais abaixo, as intenções; mais ao fundo, as florestas geladas das causas profundas. Nessa busca determinada para encontrar sentido sentido, o ouvinte/leitor de um texto, mobilizará todos os componentes do conhecimento e estratégias cognitivas que tem ao seu alcance para ser capaz de interpretar coerentemente a mensagem entre as quais a organização linguística, o conhecimento prévio, a coerência etc. “O processamento textual - arremata Koch -, quer em termos de produção, quer de compreensão, depende, essencialmente, de uma interação – ainda que latente – entre produtor e interpretador.” (KOCH, 2006, p. 19) Assim, conclui a autora, para a elucidação das questões relativas ao sujeito, ao texto e à produção textual de sentidos, uma alternativa altamente viável é observá-los a partir de “uma concepção sociointeracional da linguagem, vista, pois, como lugar de ‘inter-ação’ entre sujeitos sociais, isto é, de sujeitos ativos, empenhados em uma atividade sociocomunicativa.” (KOCK, 2006, p. 19)

E nessa atividade há um “projeto de dizer” por parte do produtor do texto e uma participação ativa na construção do sentido por parte do interpretador (leitor/ouvinte)3. Segundo Koch (2006, p. 19), isso ocorre “por meio da mobilização do contexto, [...], a partir das pistas e sinalizações que o texto lhe oferece.” E, nesse sentido, afirma, produtor e interpretador “são ‘estrategistas’ na medida em que, ao jogarem o ‘jogo da linguagem’, mobilizam uma série de estratégias – de ordem sociocognitiva, interacional e textual – com vistas à produção do sentido.” Nesse competição, entram em ação as seguintes peças: 1. o produtor/planejador4, que procura viabilizar o seu “projeto de dizer”, recorrendo a uma série de estratégias de organização textual e orientando o interlocutor, por meio de sinalizações textuais (indícios, marcas, pistas) para a construção dos (possíveis) sentidos; 2. o texto5, organizado estrategicamente de cada forma, em decorrência das escolhas feitas pelo produtor entre as diversas possibilidades de formulação que a língua lhe oferece, de tal sorte que ele estabelece limites quanto às leituras possíveis; 3. o leitor/ouvinte6, que, a partir do modo como o texto se encontra linguisticamente construído, das sinalizações que lhe oferece, bem como pela mobilização do contexto relevante à interpretação, vai proceder à construção dos sentidos. (KOCH, 2006, 19).

Em resumo, “o texto é evento dialógico constante” (BAKHTIN, [1929] 2002), “de interação entre sujeitos sociais – contemporâneos ou não, copresentes ou não, do mesmo grupo social ou não” (KOCH, 2006, p. 20) para o qual convergem “ações linguísticas, cognitivas e sociais” (BEAUGRANDE, 1997, p. 10).

2.2 O contexto e suas múltiplas faces Por contexto entende-se o conjunto de condições de uso da língua, que envolve, simultaneamente, o comportamento linguístico e o social, e é constituído de dados comuns ao emissor e ao receptor. Para Dubois et al. (1993, p. 149), ao “conjunto das condições sociais que podem ser levadas em consideração para estudar as relações que existem entre o comportamento social e o comportamento linguístico” dá-se o nome de contexto social7 de uso da língua; aos dados comuns ao emissor e ao receptor na situação cultural (MALINOWSKY, 1923) e psicológica, às experiências e conhecimentos de cada um dos dois” denomina-se contexto situacional. 8 Segundo Charaudeau & Mainguenau (2006, p. 127), o

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“O texto é uma máquina preguiçosa que espera muita colaboração da parte do leitor.” (ECO, 1994). Grifo nosso. 5 Grifo nosso. 6 Grifo nosso. 7 Grifo nosso. 8 Grifo nosso. 4

contexto apresenta um continuum de dois eixos: um estrito9 (contexto imediato) e um abrangente10 (contexto ampliado). No que concerne ao contexto não-linguístico, o contexto estrito11 (ou micro) faz sobressair, por exemplo, o quadro espaciotemporal e a situação social local nos quais a troca comunicativo, seus participantes (número, características, status, papéis, e a relação que mantêm entre si), o tipo de atividade e as regras que a regem (contrato de comunicação, script da interação sobre os diferentes ingredientes do contexto [...]). Enfocado de forma abrangente12, o contexto (nível macro) faz sobressair o aspecto institucional, e se apresenta, portanto, como uma série sem fim de encaixes: assim, o quadro físico último será o conjunto do mundo físico, e o quadro institucional último será o conjunto do mundo social [...].CHARAUDEAU &

MAINGUENAU (2006, p. 127).

A noção do contexto, ao longo do tempo, passou pelo crivo sociológico (HALLIDAY, 1976; LABOV, 1966, 1976), ganhou roupagem situacional (HYMES, 1964), percorreu os caminhos da análise transfrástica (WINRICH, 1964, 1971, 1976; PETOFI, 1973; VAN DIJK, 1972), da Teoria dos Atos de Fala (AUSTIN, 1962, SEARLE, 1979), da Teoria da Atividade Verbal (SEARLE, 1979), da Pragmática (WUNDERLICH, 1976; SCMIT, 1973; MOTSCH & PASCH, 1987; van DIJK, 1980) para, finalmente, incorporar conceitos sociocognitivos (BEAUGRANDE & DRESSLER, 1981; VAN DIJK, 1983), que pressupõem conhecimento enciclopédico, sociointeracional, procedural, linguístico compartilhados. Hoje, sob o prisma da Linguística Textual, afirma Koch (2006, p. 24), o contexto abrange o ambiente verbal, a situação de interação imediata, a situação mediata (sociopolítico-cultural) e amplo aparato sociocognitivo subjacente que engloba todos os tipos de conhecimentos arquivados na memória entre os quais se sobressaem o linguístico, o enciclopédico, o situacional, o superestrutural, o estilístico, o intertextual e o de gênero. E, a partir disso, as investigações na área da cognição tem obtido avanços extraordinários como as que se interessam por questões relativas ao processamento do texto (produção e compreensão), às formas de representação do conhecimento na memória, à ativação desses sistemas de conhecimento por ocasião do processamento, às estratégias sociocognitivas e interacionais nele envolvidas, que envolvem as de referenciação, inferenciação, acessamento ao conhecimento prévio, o tratamento da oralidade, da relação oralidade/escrita e o estudo dos gêneros textuais. (KOCH, 2006, p. 151-2).

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Grifo nosso. Grifo nosso. 11 Grifo nosso. 12 Grifo nosso. 10

2.3 O Texto e a escrita-padrão

2.3.1 Saber falar, ler e escrever

Os problemas de ortografia e de letramento têm suas raízes, invariavelmente, na hora mágica da apropriação da escrita pelas crianças. Segundo Lemle (1987, p. 5), “o momento crucial de toda a sequência da vida escolar é o da alfabetização”. Para Cagliari (1993, p. 8), a alfabetização ou a aprendizagem da escrita e da leitura”13 constituem-se no “momento mais importante da formação escolar de uma pessoa.” Como lembra Lemle (1987, p. 16), “Quem já tentou ensinar alguém a ler e escrever certamente teve a experiência de testemunhar um salto repentino no progresso do aprendiz”, um verdadeiro estalo ou um insight, após o que a pessoa faz rápidos progressos. Para essa autora, a primeira coisa que a criança precisa saber é o que representam aqueles risquinhos pretos em uma página branca. Esse conhecimento não é tão simples quanto parece a quem já o incorporou há muitos anos ao seu saber. Para entender que eles representam os sons da fala é necessário compreender o que é um símbolo, ideia bastante complicada para qualquer um. Uma coisa é símbolo de outra sem que nenhuma característica sua seja semelhante a qualquer característica da coisa simbolizada. Uma criança que ainda não compreende o que é uma relação simbólica entre dois objetos não conseguirá aprender a ler. (LEMLE, 1987, p. 7) Da alfabetização depende o letramento14, que é “o resultado da ação de ensinar a ler e escrever, o estado ou a condição que atinge um grupo social ou um indivíduo em consequência de ter-se apropriado do código escrito” (HOUAISS, 2007). Assim, no ensino do Português, afirma Cagliari, é fundamental, essencial e imprescindível distinguir três tipos de atividades ligadas respectivamente aos fenômenos da fala, da escrita e da leitura. São três realidades diferentes da vida de uma língua, que estão intimamente ligadas em sua essência, mas que têm uma realização própria e independente nos usos de uma língua. (CAGLIARI, 1993, p. 30).

Para facilitar a leitura, uma das colunas mestres do letramento, a sociedade achou por bem decidir em favor de um modo ortográfico de escrever as palavras, independente dos modos de falar dos dialetos, mas que pudesse ser lido por todos os falantes, cada qual ao modo de seu dialeto. Isso permite (ou deveria permitir) que o aluno seja capaz de

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Grifo nosso. Grifo nosso.

escrever qualquer coisa, mas também o de que há somente uma única forma ortográfica aceitável. Essa condição não impede, porém, que as crianças escrevam textos tão logo aprendam as letras, mesmo que cometam muitos erros de ortografia, algo que, no início do processo, não é tão importante quanto o fato de aprender a manifestar por escrito as ideias que lhes povoam a mente. Como nos ensina Cagliari, a escrita da fala serve para a fala e não para o sistema de escrita convencional usado pela sociedade. [...]. A fala apresenta uma variedade de dialetos, a escrita tantas leituras quantos forem os dialetos, mas a escrita ortográfica é o único uso da língua portuguesa que não admite (por princípio) variação [...]. Porém, quando a escola ainda não pode exigir o conhecimento ortográfico dos alunos alfabetizados, por que não aceitar a variação de escrita baseada em possibilidades de uso dos sistemas de escrita refletindo a variação da fala individual ou dialetal? [...]. A ortografia pode matar esse conhecimento que as crianças que estão se alfabetizando têm em alto nível de perfeição.15 (CAGLIARI, 1993, p. 32- 33).

2.3.2 Motivações fonêmicas, fonéticas e etimológicas da escrita De acordo com Faraco (1992, p. 9-10), “a língua portuguesa tem uma representação gráfica alfabética com memória etimológica”; segundo Kato (1995, p. 17-20), “a escrita da língua portuguesa tem múltiplas motivações: fonêmica, fonética, lexical e diacrônica.” Não há discordância no pensamento desses dois autores, mas formas ligeiramente diferentes de se posicionar perante o mesmo fenômeno. Assim, para Faraco, a apresentação gráfica da Língua Portuguesa é alfabética porque as letras representam basicamente unidades sonoras (consoantes e vogais) e não palavras (como pode ocorrer na escrita chinesa) ou sílabas (como na escrita japonesa). Além disso, a escrita alfabética tem, como princípio geral, a ideia de que cada unidade sonora será apresentada por uma determinada letra e de que cada letra representará uma unidade sonora. Além disso, explica esse autor, o sistema gráfico admite também o princípio da memória etimológica ao tomar como critério para fixar a forma gráfica de certas palavras não apenas as unidades sonoras que a compõem, mas sua origem. E exemplifica: monge16 é escrito com g e não com j por conta de sua origem grega; pajé escreve-se com j porque tem sua origem na língua indígena tupi, amplamente falada no litoral brasileiro por ocasião da chegada de Cabral ao Brasil17; e homem tem h porque se originou da palavra latina homo/hominis. (FARACO, 1992, p. 9-10) Kato (1995, p. 17-20) entra em maiores detalhes para explicar o assunto. Segundo ela, percentualmente falando, nossa escrita é essencialmente fonêmica, ou seja, usamos um mesmo símbolo grafêmico para sons não distintivos, sendo, pois, realizações de um mesmo fonema. Assim, por exemplo, escrevemos de forma idêntica o primeiro e o último a da 15

Grifo nosso. monakhós (gr.) > monàchus,i (l.cl.) > *monicus (l.v.) > mõges/mongues (sXIV)/muge (sXIV > monge. 17 pa'ye (f.hist. 1551) > paié > pajé. 16

palavra cama, embora foneticamente sejam sons diferentes. A mesma coisa pode ser dita do e (ê/é) na palavra pele e do l na palavra animal[animaw] e animalesco. Ou seja, nossa escrita é essencialmente fonêmica porque neutraliza diferenças fonéticas que existem na fala, mas que não são diferenciadas na escrita. Todavia, em outros momentos, nossa escrita representa graficamente também aspectos fonéticos da língua falada. Assim, por exemplo, escrevemos canto com n antes do t e não camto com m por uma questão de harmonização fonética: n e t são ambos linguoalveolares; pelo mesmo raciocínio, escrevemos campo (com m antes do p) e não canpo porque tanto m quanto p são articulações secundárias bilabiais. (KATO, 1995, p. 17-20) Há também motivações lexicais na escrita da língua portuguesa. É o caso da palavra medicina, que, pela regra geral (posição intervocálica) deveria ser escrita com dois ss, como em pássaro, por exemplo. Ocorre que a palavra medicina faz parte de uma mesma família lexical em que o c é uma constante: médico, medicar, medicando, medicinal, medicamento etc. Outro exemplo desse caso ocorre com a palavra animal, com dupla motivação: fonêmica (escrito animal, mas pronunciado animau e animalesco), como vimos acima, e lexical (animal: animalaço, animalada, animalão, animalco, animalcular, animalculismo, animalesco etc.) (KATO, 1995, p. 17-20) Finalmente, nossa escrita é, por vezes, diacronicamente ou etimologicamente motivada, ou seja, tem também natureza arbitrária. Neste caso, a única explicação plausível é a história, a etimologia da palavra. Assim, por exemplo, escrevemos hábil e não ábil por conta da origem latina dessa palavra: habil/habilis. Por esse mesmo prisma, também podemos explicar a palavra medicina, escrita com c graças à origem latina (medicina ou medikina); ou os pares capaz (do latim: capax/capacis) e capacidade; feroz (do latim: ferox/ferocis) e ferocidade; veloz (do latim: velox/velocis) e velocidade. No caso de medicina, as motivações são duplas: lexical (como visto acima) e diacrônica, esta por conta da origem etimológica da palavra: medikina (l.cl.) > medicina (l.ecl.) > medicina. (KATO, 1995, p. 17-20). Por isso, ao operar também com a memória etimológica, o sistema gráfico relativiza o princípio geral da escrita alfabética e introduz certa faixa de representação arbitrária. Em consequência disso, uma das coisas essenciais que o aluno deve aprender no processo de apropriação da grafia, sugere Faraco (1992, p. 9-10), é que, embora grande parte das representações gráficas sejam perfeitamente previsíveis pelo princípio da relação unidade sonora/letra, há certa dose de representações arbitrárias, as quais exigem estratégias cognitivas próprias. Nesses casos, conclui, será necessário memorizar a forma da palavra ou, única saída, consultar um dicionário.

Para Franchi (1985, p. 46-7), contudo, isso não significa que tenhamos que ensinar às crianças uma gramática formal. Não significa, tampouco, que tenhamos que intervir em sua linguagem. Se a cultura do professor deve fazer parte da consciência da criança, é preciso em primeiro lugar que a cultura da criança esteja na consciência do professor. Isso pode querer dizer que o professor deve poder compreender a linguagem da criança em lugar de tentar deliberadamente transformá-la.

A compreensão atual da relação entre a aquisição das capacidades de redigir e grafar rompe com a crença arraigada de que o domínio do bê-à-bá seja pré-requisito para o início do ensino de língua e nos mostra que esses dois processos de aprendizagem podem e devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um conhecimento de natureza notacional: a escrita alfabética; o outro, à aprendizagem da linguagem que se usa para escrever. (BRASIL – Parâmetros, 1995, p. 33). É bom lembrar que a conquista da escrita alfabética não garante ao aluno a possibilidade de compreender a produzir textos em linguagem escrita. Esse aprendizado exige um trabalho pedagógico sistemático, afirma o documento do MEC. Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do convívio com textos verdadeiros, com leitores e escritores verdadeiros e com situações de comunicação que os tornam necessários. E conclui: Todo texto pertence a um determinado gênero, com uma forma própria, que se pode aprender. Os que circulam socialmente cumprem um papel modelizador, servindo como fonte de referência, de repertório textual, de suporte de atividade intertextual. A capacidade de decifrar o escrito é não só condição para a leitura independente como também um verdadeiro rito de passagem, um saber de grande valor social. (BRASIL. Parâmetros, 1995, p. 34)

2.3.3 Reflexos da oralidade na escrita das crianças A tese de Kato (1995, p. 11) é a de que a fala e a escrita são parcialmente isomórficas, “mas que, na fase inicial, é a escrita que tenta representar a fala – o que faz de forma parcial – e, posteriormente, é a fala que procura simular a escrita, conseguindo-o também parcialmente.” O que os estudos nessa área têm revelado é que, de fato, a escola comumente leva o aluno a pensar que a linguagem correta é a linguagem escrita, que a linguagem escrita é por natureza lógica, clara, explícita, ao passo que a linguagem falada é por natureza mais confusa, incompleta, sem lógica etc. Nada mais falso, afirma Cagliari (1993, p. 37), opinião que é largamente apoiada por Kato (1995) e tantos outros, especialmente por Marcuschi (2001, p. 41). Este último autor, em seu notável livro “Da fala para a escrita”, apresenta um gráfico onde mostra o contínuo dos gêneros no contexto da fala e da escrita, sublinhando o “balão” intermediário que representa gêneros tidos como “mistos”. Ele postula que a relação fala e

escrita não são dicotômicas como pode parecer aos leigos no assunto. Sob o ponto de vista sócio-interacional, são dois poderosos códigos da linguagem humana que mantêm entre si vastas áreas de intersecção e muitos pontos similares. Em certos casos, as proximidades entre fala e escrita são tão estreitas que parece haver uma mescla, quase um fusão de ambas, numa sobreposição bastante grande tanto nas estratégias textuais como nos contextos de realização. Em outros, a distância é mais marcada, mas não a ponto de se ter dois sistemas linguísticos ou duas línguas, como se disse por muito tempo. Uma vez concebidas dentro de um quadro de interrelações, sobreposições, graduações e mesclas, as relações entre fala e escrita recebem um tratamento mais adequado, permitindo aos usuários da língua maior conforto em suas atividades discursivas. (MARCUSCHI, 2001, p. 9).

Na análise de muitos erros encontrados em provas e nas avaliações feitas na alfabetização, é fácil observar que, em muitos casos, a criança revela um apego às formas fonéticas da língua, em lugar das formas ortográficas, não raramente deixando o professor perplexo por conta de sua incapacidade de analisar a fala com a mesma competência que a criança apresenta. (CAGLIARI, 1993, p. 29) Se a questão é o texto como um todo, o que se nota é que, de maneira geral, as crianças constroem os “parágrafos” ou “períodos” mais como “blocos de orações”, muitas das quais meramente justapostas, e que fazem coincidir normalmente com os parágrafos na disposição gráfica do texto. Nestes casos, a coesão é assegurada por sequencias de “e” ou de “ele/a”. No primeiro caso, é mais óbvia a natureza conectiva (ou “continuativa”) da conjunção; no segundo, trata-se de elementos anafóricos, isto é, que relacionam expressões do enunciado em que estão com elementos anteriores no discurso. Dito de outra forma, as duas orações “falam” de um certo modo dos mesmos elementos. Outras expressões que são usadas com o mesmo valor são “assim”, “aí” “daí”, então etc. (FRANCHI, 1985, p. 15) O ensino de Língua Portuguesa – afirma o texto dos “Parâmetros curriculares nacionais” (1995, p. 35) - tem sido marcado por uma sequenciação de conteúdos que se poderia chamar de aditiva: ensina-se a juntar sílabas (ou letras) para formar palavras, a juntar palavras para formar frases para formar textos. Se o objetivo é que o aluno aprenda a produzir e a interpretar textos, não é possível tomar como unidade básica de ensino nem a letra, nem a sílaba, nem a palavra, nem a frase que, descontextualizadas, pouco têm a ver com a competência discursiva, que é questão central. Dentro desse marco, a unidade básica de ensino só pode ser o texto, mas isso não significa que não se enfoquem palavras ou frases nas situações didáticas específicas que o exijam. O assunto não se esgota com essas explicações, evidentemente, mas essas foram aqui inseridas para dar uma ideia da complexidade da ortografia da língua portuguesa escritapadrão. Só assim é possível mensurar parcialmente o esforço hercúleo desempenhado pelas

crianças para memorizar o desenho final de toda essa história que não vivenciaram, mas que lhes é imposta pela sociedade.

2. METODOLOGIA e CORPUS DE ANÁLISE

2.1 Cognição, sociointeracionalidade e textualidade Segundo Koch (2006, p. 24), por ocasião do processamento textual, os actantes empregam estratégias de diversas ordens: a) cognitivas: inferências, focalização, relevância; b) sociointeracionais: preservação das faces, polidez, atenuação, atribuição de causas a malentendidos etc.; c) textuais: conjunto de decisões relativas à textualização (pistas, marcas, sinalizações etc.). No texto em análise (apresentado a seguir), e para os propósitos deste artigo, essa trilogia estratégica processual será observada sob dois prismas: 1) linguístico (ou semântico-formal), centrado no texto: coesão, coerência, leiaute18 e ortografia; 2) extralinguístico (ou pragmático), centrados no usuário: situacionalidade, aceitabilidade, informatividade, intencionalidade, intertextualidade e/ou polifonia;

2.2 Corpus de análise Porto Velho, 27 de março de 2009. Profa. Rebecca Aluna: xxx Série: 4º ano – Turma “B” Atividade de Portugues A menina Rebecca Era uma ves uma menina que cixamava Rebecca e ela era muito çapeca ela gotava muita da comida da cozinheira. Ela tinha 9 anos e tinha uma cachorra chama da Lili ela gotava muita do seu cabelo ela fazia muitas trancinhas ela tambem gosta dese maquia. Ela queria ser quando creser Médica e ponto final. Beijo

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Do ing. layout (1965) ‘modo de distribuição de elementos num determinado espaço’. (HOUAISS, 2007)

3. ANÁLISE DO TEXTO 3.1 Análise dos fatores linguísticos (coesão, coerência, leiaute e ortografia) 3.1.1

A progressão temática do texto da aluna é garantida pelos elos ou laços coesivos que ela, a sua maneira e em conformidade com o seu conhecimento linguístico e de

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mundo, lhe permite. É por meio deles que ela estabelece um equilíbrio entre as informações pressupostas e as informações retomadas de frase em frase, sobre as quais os novos enunciados se apoiam (“princípio de coesão-repetição assegurado

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pelos temas”, cf. HALLIDAY & HASAN, 1976), de um lado; e a contribuição de novas informações (“princípio de progresso assegurado pelas remas”, cf. HALLIDAY & HASAN, 1976), de outro. Foram cinco os elos coesivos que a aluna empregou para manter a recorrência e/ou a progressão textual do seu pensamento: a

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conjunção “e” (3 x), o pronome “ela” (7 x), a elipse do pronome “ela” (1 x), o pronome reflexivo “se” (1 x) e o pronome possessivo “seu” (1 x). Por intermédio do conectivo “e”, ela amarra as orações do primeiro, do segundo e do último parágrafo e através dos pronomes (reto, reflexivo e possessivo) ela mantém as diversas relações anafóricas ou correferenciais com, praticamente, todos os enunciados do texto. Enfim, é por meio desses treze mecanismos (3 conjuncionais, 9 pronominais e 1 elíptico) que ela constrói a tessitura do seu texto.

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“Conjunto dos meios linguísticos que asseguram as ligações intra- e interfrásticas e que permitem a um enunciado oral ou escrito aparecer como um texto”. (HALLIDAY & HASAN, 1976); “[...] diz respeito ao conjunto de recursos semânticos por meio dos quais uma sentença se liga com a que veio antes, aos recursos semânticos mobilizados com o propósito de criar textos.” (KOCH, 1993, p. 17); “Modo como os componentes da superfície textual – isto é, as palavras e frases que compõem um texto – encontram-se conectadas entre si numa sequência linear, por meio de dependências de ordem gramatical.” (BEAUGRANDE & DRESSLER, 1981); “Fatores que dão conta da estruturação da sequência superficial do texto.” (MARCUSCHI, 1983). “Os principais laços ou nós coesivos são estabelecidos por meio da referência, da substituição, da elipse, da conjunção e da coesão lexical.” (KOCH, 1993, p. 17).

3.1.2

A coerência e a coesão mantêm entre si uma relação de mão dupla, ou seja, “na produção do texto se vai da coerência (profunda), a partir da intenção comunicativa, do pragmático até o sintático, ao superficial e linear da coesão; C

na compreensão do texto ocorre o caminho inverso, das pistas linguísticas na superfície do texto à coerência profunda”. (KOCH, 1991, p. 42). Por conta

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disso, é preciso sempre lembrar que as relações interpretativas não são estabelecidas tão somente pelo viés sintático-gramatical ou semântico, mas, e sobretudo, pela ampla rede complexa de conexões sócio-cognitivas e pragmáticas. Se a superfície do texto estiver em sintonia com suas partes mais

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profundas, ou seja, se ambas forem correferenciais, então estará assegurado o princípio da inteligebilidade e da textualidade e a mensagem global do texto compreendida. A coerência também diz respeito “à boa formação do texto em termos da interlocução comunicativa, que determina não só a possibilidade de

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estabelecer seu sentido, mas também, com frequência, qual sentido se estabelece.” (KOCH, 1991, p. 32). Enfim, “a construção da coerência decorre de uma multiplicidade de fatores das mais diversas ordens: linguísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais.” (KOCH, 1991, p. 59). Muitos desses itens serão examinados na seção destinada aos fatores extralinguísticos. Por ora, o que pode ser dito é que, a par da singeleza textual da menina, a relação entre sua intenção comunicativa profunda, graças às pistas linguísticas estrategicamente deixadas por ela na superfície de seu texto, permitiu à leitora/professora estabelecer correferências e alcançar a compreensão holística da mensagem.

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“A coerência está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido para os usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de interpretabilidade, ligada à inteligebilidade do texto numa situação de comunicação e à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido do texto. Este sentido, evidentemente, deve ser do todo, pois a coerência é global.” (KOCH & TRAVAGLIA, 1991, p. 21).

3.1.3 L

considerando a idade e a escolaridade da aluna, tudo está conforme o que é

E

previsto para esse nível formal do texto: o título está centralizado e

I

adequadamente colocado no início do texto; a redação é constituída de três

A

parágrafos bem demarcados; a tessitura das inter- e intrapartes são compatíveis

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para alunos do 4º ano das séries iniciais do Ensino Fundamental; o texto, iniciado

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Em relação a mais superficial das superfícies, a da página manuscrita, e

pela expressão “Era uma vez...” é concluído pela expressão “e ponto final”, uma forma altamente marcada para não deixar dúvida da conclusão de seu trabalho.

“Distribuição física de elementos num determinado espaço.” (DIC. HOUAISS, 2007); “Partes do texto e sua integração: título, parágrafo, inter- e intrapartes, início e fim. (GUIMARÃES, 1992, p. 50 a 64).

3.1.4

No que se refere à grafia, o texto da aluna apresenta: alguns reflexos de sua oralidade; suas dificuldades em memorizar palavras etimologicamente motivadas e

G

exigências de sobreposição de diacríticos (acentuação gráfica); uma inadequação quanto à concordância nominal e outra quanto ao emprego do tempo verbal. No seu conjunto, essas dificuldades assim se manifestaram: Portugues [Português], ves

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[vez], cixamava [se chamava], çapeca [sapeca], go_tava (2 x) [gostava], muita [muito], chama da [chamada], ceu [seu], dese [de se], maquia_ [maquiar], creser [crescer], tambem [também], medica [médica]; gotava, gotava, gosta_ (gostava).

A

Quanto aos reflexos da oralidade, observa-se que a aluna: a) ainda não fixou a escrita dos clíticos (separados, se precedendo palavras; ou com/sem hífen, se as F

seguindo): “cixamava” (se chamava); “dese maquia” (de se maquia); b) apaga grafemas em final de sílaba e de palavras: “go_tava” (gostava) e “maquia_” (maquiar); c) emprega o grafema ç ou c em lugar do s em início de palavras:

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çapeca (sapeca), ceu (seu); quanto à concordância (muita da comida) e ao tempo verbal (gotava/gotava/gosta_), são pequenos descuidos que também podem ocorrer 22

A

com alunos de séries mais avançadas As outras dificuldades ortográficas encontradas são de ordem etimológica e, portanto, apresentam complexidade ainda maior de fixação: ves, xamava e creser se escrevem, respectivamente, vez, chamava e crescer devido às suas origens latinas: vez: (< lat. vice(m), ac. de vix), ou seja, c (lat.) seguido de e ou i finais > z no português; chamava (< lat. clamo, as, ávii, átum, are), ou seja, cl (lat.) > ch no português; crescer: (
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