Favelas e controle estatal: um estudo em representações sociais --- Favelas and state control: a study of social representations

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Descrição do Produto

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia

Gustavo Clayton Alves Santana

Favelas e controle estatal: um estudo em representações sociais

Rio de Janeiro 2015

Gustavo Clayton Alves Santana

Favelas e controle estatal: um estudo em representações sociais

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Psicologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Vieiralves de Castro

Rio de Janeiro 2015

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

S232

Santana, Gustavo Clayton Alves. Favelas e controle estatal: um estudo em representações sociais / Gustavo Clayton Alves Santana. – 2015. 133 f. Orientador: Ricardo Vieiralves de Castro. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 1. Psicologia Social – Teses. 2. Representações Sociais – Teses. 3. Favelas – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 4. Unidades de polícia pacificadora – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. I. Castro, Ricardo Vieiralves de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

es

CDU 316.6

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte. ___________________________________ Assinatura

_______________ Data

Gustavo Clayton Alves Santana

Favelas e controle estatal: um estudo em representações sociais

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Psicologia Social. Aprovada em 18 de março de 2015. Banca examinadora: __________________________________ Prof. Dr. Ricardo Vieiralves de Castro (Orientador) Instituto de Psicologia – UERJ __________________________________ Prof. Dr. Jorge da Silva Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ __________________________________ Profa. Dra. Luciane Soares da Silva Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF __________________________________ Prof. Dr. Marcelo Henrique da Costa Universidade Veiga de Almeida – UVA

Rio de Janeiro 2015

Para Marina, pretinha do cabelo de mola, nosso futuro.

AGRADECIMENTOS

A submissão e defesa de uma dissertação de mestrado marcam o momento em que um jovem pesquisador começa a sair da infância acadêmica e direcionar com mais acuidade seus interesses de pesquisa. No momento em que apresento publicamente esta dissertação me deparo com muita alegria com todo o processo vivido, desde a seleção para o PPGPSUERJ, passando pelos momentos riquíssimos das aulas com os professores do Programa, dos encontros com meu orientador e também das angustias para a elaboração do texto. Mais do que nunca a constatação do poeta faz sentido e percebo que aprendi o quanto somos resultado das marcas e “das lições diárias de outras tantas pessoas”. É a algumas destas tantas pessoas que foram tão importantes para a elaboração deste trabalho que quero agradecer. Agradeço aos meus pais, Severino e Sebastiana, que na década de 1980 tiveram a coragem de deixar para trás suas famílias e raízes no interior de Pernambuco em busca de uma vida melhor para si e seus dois filhos, entraram num ônibus Itapemirim com uma menina com três meses de vida e um menino com três anos. Hoje esta menina é pedagoga e este menino conclui o curso de mestrado. Esta luta toda não está sendo em vão! Obrigado ao meu orientador, Ricardo Vieiralves, que me conduziu nesta jornada de aprendizado e que é para mim um dos mais importantes exemplos de como deve se comportar um intelectual orgânico. Suas palavras e exemplo me dão ímpeto e certeza do caminho a ser seguido. Me enche de alegria poder ter estes anos de trabalho conjunto marcados na minha trajetória profissional e acadêmica. Agradeço a Marcelo Henrique da Costa, pela escuta e orientação desde a seleção quando em uma simples conversa por telefone me ajudou a dar sentido ao objeto de pesquisa e caminho para o projeto. Obrigado por me dar a chance de aprender com você, Marcelo. A Jorge da Silva agradeço por tantos e profícuos momentos de conversa que, parecendo informais, na verdade eram grandes aulas sobre cidadania, questão racial, gestão pública, policiamento, história do Rio de Janeiro... Sobre a vida e os caminhos a seguir.

A Renata Oliveira, digo obrigado pela presença e palavras de estímulo quando as coisas pareciam estagnadas. Meu muito obrigado a Regina Weissmann, seu sorriso sincero e carinho gratuito dão cores a este coração de pedra cinza que em muitos momentos se torna a UERJ. Agradeço a professora Danielle da Cunha Motta pela leitura atenta e contribuições importantes desde a qualificação deste trabalho. Obrigado à professora Luciane Soares da Silva, pela participação nesta banca de avaliação e contribuições para o aprimoramento do trabalho. Por último, quero dizer a Ana Paula Diório, obrigado pela vivência que nos permitimos. Obrigado pelos anos de sorrisos, colo e conquistas conjuntas. Você sabe o quanto é responsável pela mudança de rumos que originou este curso de mestrado e um outro sujeito. A certeza de sua presença, mesmo que os caminhos tenham se bifurcado, ajuda a trazer sentido para a caminhada.

É difícil para um menino brasileiro, sem consideração da sociedade Crescer

um

homem

inteiro,

muito

mais

do

que

metade.

Fico olhando as ruas, as vielas que ligam meu futuro ao meu passado E vejo bem como driblei o errado (...). Elisa Lucinda

RESUMO

SANTANA, G.C.A. Favelas e controle estatal: um estudo em representações sociais. 2015. 133 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Tomando as favelas do Rio de Janeiro como campo privilegiado de análise, esta dissertação busca trazer para o centro da discussão a forma a partir do qual os moradores destes territórios da cidade vivenciam e externalizam sua percepção da injustiça e lidam com a frustração de seus desejos e aspirações, quando confrontados com a ação policial. Partindo da observação das possíveis interferências de uma ação de policiamento, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), na esfera pública local do Morro do Andaraí, buscou-se entender como agem seus moradores diante do contexto sócio-político atual de reconfiguração do pensamento estatal em relação à atuação da segurança pública na cidade. Quais representações sociais os moradores organizam para formular uma rede de relações entre seus membros e como estas representações estabelecem objetivos e procedimentos específicos para interpretar e pensar a realidade cotidiana. E, em que medida a ação do Estado interfere, efetivamente, de modo a reconfigurar a esfera pública local, são questões que foram abordadas ao longo do trabalho teórico e empírico. Partindo de uma abordagem holística, que considerou observar os fatos humanos como totalidades, adotou-se uma “postura reflexiva” diante do objeto de estudo e dos sujeitos que o constroem em seu cotidiano – no desenrolar da esfera pública local. Desta forma, junto a uma extensa pesquisa bibliográfica foram associados um trabalho de campo exploratório e a aplicação de um instrumento de investigação não diretivo a um conjunto de moradores, posteriormente as falas recolhidas dos moradores foram tratadas segundo a técnica de Análise de Conteúdo. Percebe-se nas representações sociais dos moradores, o entendimento de que as ordens ideológica, política e econômica que compõem o Estado continuam a olhar para as favelas como o espaço onde identificam a desordem e a causa dos problemas sociais enfrentados pelo conjunto da cidade. Espaço que por isso precisa ser reordenado, “pacificado” para acabar com ideia da cidade partida em frações marginais. Por fim, relacionando a conjuntura atual vivenciada nas favelas ocupadas com os conceitos de policiamento comunitário, busca-se compreender em que medida as UPPs podem ou não contribuir para as mudanças tão esperadas nas ações de policiamento das favelas. O momento atual é de observação atenta e discussão constante para a constituição de uma cidade de mais direitos, pacífica não apenas para os moradores do asfalto. Palavras-chave: Psicologia Social. Representações Sociais. Favelas do Rio de Janeiro. Unidades de Polícia Pacificadora.

ABSTRACT

SANTANA, G.C.A. Favelas and state control: a study of social representations. 2015. 133 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Taking the favelas (slums) of Rio de Janeiro as a privileged field analysis this dissertation seeks to bring to the center of discussion the form from which the inhabitants of these territories experience and outsource their perception of injustice and deal with the frustration of his desires and aspirations when faced with the police action. It started from the observation of possible interference of a policing action the Pacifying Police Units - into the local public sphere of Favela do Andaraí. It sought to understand how its residents acts give the current socio-political context of reconfiguration of state thinking concerning the work of public security in the city. What social representations residents organize to formulate a network of relationships among its members and how these representations establish specific goals and procedures to interpret and think everyday reality. And to what extent the government action interferes effectively to reconfigure the local public sphere. This are issues that have been addressed over the theoretical and empirical work. From a holistic approach that considered observe human facts as wholes, we adopted a reflective attitude on the subject of study and subjects that build in their daily lives - in the course of the local public sphere. Thus, along with an extensive literature search were associated an exploratory field work and the application of a non-directive research tool to a set of residents, later collected the statements of the residents were treated according to the content analysis technique. It can be seen in the social representations of the residents the understanding that the ideological orders, political and economic that make up the state continue to look to the favelas as the space where the clutter and identify the cause of social problems faced by the entire city. Space so it needs to be reordered, pacified to end view of the city starting in marginal fractions. Finally, relating the current situation experienced in the occupied favelas with community policing concepts, it tries to understand to what extent the UPP may or may not contribute to the changes as expected in the favelas policing actions. The present moment is close observation and constant discussion for the establishment of a city of more rights, not only for peaceful asphalt residents. Keywords: Social Psychology. Social Representations. Favelas (Slums) of Rio de Janeiro. Pacifying Police Units.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRAPSO

Associação Brasileira de Pesquisa em Representações Sociais

ALAPSO

Associação Latino-Americana de Psicologia Social

COHAB

Cooperativa de Habitação do Estado da Guanabara

EUA

Estados Unidos da América

GAPE

Grupamento de Aplicação Prático Escolar

GEPE

Grupamento Especial de Policiamento de Estádios

GPAE

Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais

IPP

Instituto Pereira Passos

ISP

Instituto de Segurança Pública

NEV/USP

Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo

ONG

Organização Não Governamental

PCB

Partido Comunista do Brasil

PM

Polícia Militar

PMERJ

Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

PRONASCI

Programa Nacional de Segurança com Cidadania

SAGMACS SDH

Sociedade

para

Análises

Gráficas

e

Mecanográficas

Aplicadas aos Complexos Sociais Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República

SEASDH

Secretaria de Estado Assistência Social e Direitos Humanos

SENASP

Secretaria Nacional de Segurança Pública

SERFHA

Serviço Especial de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas

TCLE

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UPP

Unidade de Polícia Pacificadora

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................

12

1

REFERENCIAIS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS................................

18

1.1

Objetivos...................................................................................................

18

1.2

Características deste estudo..................................................................

20

1.3

Princípios éticos.......................................................................................

22

1.4

Sobre o instrumento de investigação....................................................

22

1.5

Tratamento e análise dos dados.............................................................

26

2

PSICOLOGIA SOCIAL E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS........................

30

2.1

Psicologia Social – uma ciência dos fenômenos sociais....................

31

2.2

Representações – um conceito..............................................................

35

2.3

Da

noção

de

representações

coletivas

de

Durkheim

às

representações sociais...........................................................................

36

2.4

Representações sociais e esfera pública favelada...............................

44

3

FAVELA – HISTÓRIA E REPRESENTAÇÕES..........................................

51

3.1

Dos cortiços às favelas...........................................................................

52

3.2

A favela como tema sociológico e político............................................

55

3.3

A regulação da favela..............................................................................

58

3.4

Tráfico de drogas e o fortalecimento da empresa criminal nas favelas.......................................................................................................

66

3.5

“A Favella está pacificada, regenerada!” ..............................................

69

4

AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA PACIFICAÇÃO NO MORRO DO ANDARAÍ...................................................................................................

4.1

79

A ocupação – “nós trocamos a truculência dos bandidos, pela da polícia” .....................................................................................................

81

4.2

“O que diminuiu foi a bagunça aparente” ............................................

92

4.3

“É mais polícia e menos governo” ........................................................

93

4.4

Nem tão próxima assim...........................................................................

97

4.5

Expectativas em relação ao futuro.........................................................

99

5

O

TRABALHO

DE

SÍSIFO



CONSIDERAÇÕES

SOBRE

POLICIAMENTO COMUNITÁRIO.............................................................

102

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................

115

REFERÊNCIAS.........................................................................................

119

ANEXO I - Aprovação na Comissão de Ética em Pesquisa – UERJ.........

126

ANEXO II - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido......................... 128 ANEXO III - Roteiro temático para as entrevistas com moradores............ 129 ANEXO IV - Decreto-lei 42.787 de 6 de janeiro de 2011...........................

130

ANEXO V - Requerimento para realização de eventos em áreas de UPP 133

12

INTRODUÇÃO

A tese do Brasil harmônico e homogêneo, ancorada em ideias como as da “brasilidade” (FREYRE, 2005), e da “cordialidade” (HOLANDA, 1995) – que buscam assinalar características positivas que estariam nas raízes de nossa constituição enquanto nação – mantém-se como uma representação de muitos brasileiros e intelectuais. Apresentado como um país onde a cordialidade e a coesão social superam as desigualdades e abrem caminhos, o Brasil seria de fato o lugar onde se assume uma identidade universal, onde os antagonismos de classe, raça e gênero se diluem e as relações sociais se fundam em harmonia e boa convivência. Na relação do poder público com os territórios da pobreza e seus moradores esta tentativa de “pasteurizar” os antagonismos da sociedade brasileira através do “mito da brasilidade”, do qual Freyre foi um profícuo propagador, por muito tempo logrou êxito em encobrir as desigualdades e, até os dias atuais, sua força pode ser percebida em certos “cuidados” de nossas elites em relação à explicitação de conflitos e diferenças. (SOUSA, 2009). Há que se levar em consideração que a propensa igualdade formal, centrada nos princípios culturais e nas representações comuns da nação, oculta a manutenção de formas sistêmicas de marginalização, pobreza e desrespeito exercidas cotidianamente para com aqueles cujos enunciados culturais, classe social e processos históricos são colocados em condições de hierarquia e externalidade aos conteúdos das representações dominantes. (DA SILVA, 2005). Como que escamoteadas, colocadas “para baixo do tapete”, estas distinções não são afetadas pela proximidade geográfica ou pela interação cotidiana entre os distintos membros de cada grupo, afinal por aqui impera a ordem do “cada qual com seu cada qual”. Por mais que se escamoteie, a tensão entre as subjetividades coletivas e processos de cidadania reguladores e estatizantes, entre as aspirações existenciais e a imposição de uma identidade nacional fixa é uma característica que acompanha o desenvolvimento da modernidade ocidental. O caso brasileiro evidencia que suas configurações institucionais respondem aos diversos contextos históricos, políticos e sociais de desenvolvimento. (DOMINGUES, 2009).

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O papel hegemônico do Estado no monopólio legítimo dos símbolos culturais seja através da dominação institucional, do controle da violência e muitas vezes no exercício aberto da mesma no subjugo das minorias, especialmente nas áreas pobres e de predomínio da empresa criminal do tráfico de drogas no Rio de Janeiro é um dos capítulos mais contundentes desta narrativa. Diante deste cenário, a opção tomada para a constituição desta pesquisa foi de trazer para o centro das discussões a forma através da qual os moradores de áreas pobres, especificamente, as denominadas favelas1 da cidade do Rio de Janeiro, vivenciam e externalizam sua percepção da injustiça e lidam com a frustração de seus desejos e aspirações, quando confrontados com a atuação estatal. Buscou-se, desta forma, cotejar sentimentos e experiências empíricas, individuais e coletivas, de injustiça que estão expressas na relação cotidiana destes sujeitos com as instituições estatais, onde, em muitos momentos, predominam os maus tratos físicos, a privação de direitos e a submissão do corpo ao poder e ao arbítrio do outro. (FOUCAULT, 2009). Com um universo de pesquisa baseado em conceitos contemporâneos sobre a esfera pública é possível identificar as situações atuais vivenciadas pelos moradores nos territórios favelados de uma das maiores metrópoles do país. E, assim, compreender e identificar quais representações sociais estes sujeitos organizam para constituir uma rede de relações entre seus membros e como estas representações estabelecem objetivos e procedimentos específicos para interpretar e pensar sua realidade cotidiana. Tomada como ponto de referência, a metrópole carioca apresenta configurações sui generis na constituição contemporânea de suas favelas, onde a segregação residencial é erigida em referência às precariedades do mercado de trabalho e dos mecanismos de oportunidades de acesso ao capital social, “o que faz

1

Neste texto, os termos favela, comunidade, territórios favelados ou territórios da pobreza, são utilizados como sinônimos para designar os locais de moradia da maioria dos pobres urbanos de nossas cidades. Em igual medida, os moradores destes territórios, em alguns momentos serão nomeados através do termo favelado.

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com que a pobreza urbana socialmente isolada se constitua como um caso paradigmático da exclusão social”2. (KAZTMAN, 2001, p. 173). Fato é que, nesta metrópole brasileira, a ocupação desordenada do solo urbano é uma das faces mais visíveis da estruturação do modo de produção capitalista, o qual gera uma extrema despossessão da renda da classe trabalhadora e uma consequente falta de acesso oficial à moradia, pois o custo de morar não está incluído no salário. (MARICATO, 2007). A geografia do Rio de Janeiro expõe a nódoa do processo de exclusão sócioterritorial que sustenta esta cidade, desde seu surgimento, e que vem se intensificando a partir da consolidação das favelas na paisagem urbana. Ao longo do último século e, até os dias presentes, um intricado processo de condução das políticas públicas associado à estruturação social da cidade em benefício das classes mais abastadas, fez do Rio uma cidade escassa aos mais pobres. Desta forma, as favelas são, efetivamente, ícones da capacidade de resistência que os mais pobres possuem na dura batalha cotidiana pela sobrevivência. Ao mesmo tempo sua existência denuncia um extensivo sistema de omissão e debilidade do Estado brasileiro em prover as mais básicas políticas de moradia, saúde e educação. A intensa violência estrutural vivenciada pelos moradores dos territórios favelados do Rio de Janeiro não é algo episódico ou acidental, ela está entalhada na estrutura autoritária, a partir da qual se edificou a sociedade brasileira, e seus braços atuam principalmente na negação dos direitos mais básicos aos cidadãos pobres. Outro mal acarretado por esta violência estrutural é o forte estigma gerado pela percepção que o conjunto da cidade mobiliza em relação aos territórios favelados. Na maioria das vezes esta visão da favela como local de existência das “classes perigosas” é usada como saída para promover toda a sorte de políticas autoritárias. Na outra ponta, o acirramento do cotidiano violento no interior das favelas, fruto das transformações do mercado da droga no Rio, gerou para os moradores um

2

O trecho original é: “[...] lo que hace que la pobreza urbana socialmente aislada se constiuya em el caso paradigmático de la exclusión social.” Tradução nossa.

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ambiente de vida onde as relações sociais passam a se estabelecer ancoradas em padrões de medo e desconfiança recíprocos. Identifica-se que o tema das favelas e sua relação com a violência reflete em larga medida a fragmentação da sociedade do Rio de Janeiro, neste sentido, sublinha-se um objeto que se estabelece na confluência de duas temáticas: a do controle estatal dos territórios da pobreza e a maneira como estes territórios se organizam em relação aos poderes supralocais3. Cumprindo este desiderato acredita-se que ficará visível – sem deixar de considerar as particularidades de cada comunidade – como a ação do Governo do Estado do Rio de Janeiro em relação às favelas, atualmente, constitui-se como uma ação de disciplina e controle. Aproximando estas discussões propostas da conjuntura atual vivenciada em 38 favelas da cidade do Rio de Janeiro que receberam a iniciativa de ocupação policial militar denominada Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e, diante das inúmeras notícias, trabalhos acadêmicos e relatos dos moradores, podemos inferir que há em curso, hoje, mais uma estratégia que visa, desde o surgimento destes territórios, a constituição de uma sociedade disciplinar, evidenciada pela privação de direitos, a submissão dos corpos e regulamentação da vida. (FOUCAULT, 2005; 2009). Ora, a produção social não ocorre suspensa no ar, viver, produzir-se enquanto ser social, principalmente em um meio como este, exige dos sujeitos determinadas avaliações e tomadas de posição em relação à conjuntura. Gera o surgimento e propagação de representações sociais. A opção pela teoria das representações sociais para se estudar um fenômeno peculiar e transversal como são as favelas do Rio de Janeiro e sua atmosfera política se insere no esforço teórico e acadêmico de estabelecer um diálogo entre as diversas formas de elaboração disponíveis ao cientista social. Neste sentido, as representações sociais como trilha privilegiada: [...] possibilitam a psicologia social este deslocamento de sentidos, principalmente porque produz, como objeto para a investigação e análise, um contorno que necessariamente transcende a psicologia como matriz 3

Nos termos de Leeds e Leeds, poderes supralocais podem ser entendidos como organismos sociais para cujos princípios organizacionais qualquer conjunto dado de condições locais e ecológicas é irrelevante. “(...) Qualquer estrutura cuja formação não seja governada por, ou relacionada a, uma dada localidade e que confronta várias localidades de maneira idêntica”. (LEEDS; LEEDS, 1978, p. 39).

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exclusiva. É preciso, para nos aproximarmos de uma representação social, dialogar com a cultura, com a história, com a comunicação, com a linguística, com a antropologia, com a estética. Desta maneira, este conceito permite a constituição de um diálogo transverso nas ciências humanas e sociais e, ao mesmo tempo, um contorno epistêmico preciso: o saber do senso comum. (CASTRO, 2005, p. 206)

As representações das quais esta dissertação se ocupará serão consideradas na perspectiva do fenômeno psicossocial, situado na fronteira entre os universos de pensamento social, nas transições do conhecimento entre o pensamento científico para os ambientes consensuais, onde se constituem em “verdadeiras teorias do senso comum” e estabelecem necessariamente modos de pensar e viver no cotidiano. Assentada em um alicerce teórico e metodológico transdisciplinar, a teoria das representações sociais de Serge Moscovici (1928-2014) insere-se na fronteira da teoria social contemporânea. É importante admitir o interesse deste trabalho no diálogo entre a psicologia social, a sociologia e a antropologia para a construção da presente jornada investigativa. Neste sentido, mais uma vez há concordância com Castro quando este aponta para a necessidade de a psicologia social construir seus objetos de pesquisa dentro

dos

pressupostos

teóricos

metodológicos

transdisciplinares,

tendo

obviamente a psicologia como matriz inicial, mas dialogando a todo instante com suas

ciências

pares.

Aprofundar

tal

interface

enriquecerá

a

pesquisa

psicossociológica, até por que: Se a teoria psicológica, seus constructos teóricos e empíricos nos são, para os pensadores em psicologia social, referência básica para a construção de nosso objeto e metodologia, considerarmos esta fonte como exclusiva nos matará de sede. [...] Se formos na direção da disciplinaridade, estaremos nos condenando a nada dizer ou a repetirmos o óbvio pobremente. Na melhor das hipóteses, estaremos fazendo uma péssima ciência social ou uma psicologia menor. (CASTRO, 2005, p. 207).

Na questão específica aqui abordada, percebe-se que a relevância em estudar um tema diretamente ligado ao universo das favelas na cidade do Rio de Janeiro, dentro do escopo psicossocial, reside no fato de que, desde sua origem, as favelas são representadas como lugar de aglomeração da pobreza, da exclusão e da delinquência, espaço que assusta as classes médias e no qual o poder público

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interfere, na maioria das vezes, com força e violência física e simbólica sobre os moradores.

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1 REFERENCIAIS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS:

1.1 Objetivos

Esta dissertação de mestrado está situada no campo da psicologia social “mais socialmente orientada", especialmente, a partir do conceito de representações sociais desenvolvido por S. Moscovici e muito trabalhado por pesquisadores estrangeiros e brasileiros das mais diversas áreas das ciências humanas e sociais. Pretende-se identificar, nas políticas recentes de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, sua realização no cotidiano dos moradores da capital fluminense e mais especificamente dos moradores de favelas desta cidade. Questões como violência, economia da droga, ausência do poder público e o consequente crescimento do poderio dos comandos criminosos permeiam a vida cotidiana deste território. Neste sentido, as ações de segurança reativas executadas pelo estado para o combate à violência dos criminosos, a implantação de políticas públicas estatais e a chegada maciça de organizações não-governamentais constituem uma arena política, a partir da qual os moradores e lideranças locais orientam e produzem suas representações. Caberá, portanto, a este estudo apresentar as imbricações dos moradores e agentes políticos favelados nesta atmosfera, as redes em que se inscrevem, as disputas que travam e os arranjos que são obrigados a fazer para o cotidiano nestes territórios. Para isto, foi fundamental que houvesse proximidade com as diversas formas de viver e interpretar o fenômeno das favelas no Rio de Janeiro. Presentes em toda paisagem da cidade, as favelas anunciam que sua história é uma história de repressão e luta no território urbano. Partindo da identificação das representações sociais, buscar-se-á o entendimento das práticas dos moradores e a partir deste movimento, onde será dada especial atenção aos meandros do processo social de produção de conhecimento a respeito de seu local de moradia, retorna-se às representações, como categorias que estruturam a vida cotidiana. Como afirma Giddens:

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A vida social, em muitos aspectos, não é um produto intencional de seus atores constituintes, embora a conduta no dia – dia seja cronicamente levada a cabo de modo deliberado. É no estudo das consequências impremeditadas da ação, (...) que serão encontradas algumas tarefas mais características das ciências sociais. (GIDDENS, 1984, p. 404)

A própria elaboração das teorias científicas e da opinião das classes altas a respeito do universo das favelas se dá a partir do fluxo de informações encontrado na esfera pública, nas “teorias do senso comum”, formuladas cotidianamente pelos moradores destes territórios e pelo conjunto da sociedade. Ora, se de fato há dinamismo no pensamento social elaborado na esfera pública, as representações sociais são a maneira de pensar e agir de ambos os grupos – moradores de favelas e sociedade em geral, e definem saberes e conceitos, identidade e modos de vida sobre este determinado tema. Nesta pesquisa, o espaço urbano das favelas e a produção cognitiva a respeito de si serão entendidos como os campos privilegiados de onde emergem sentidos e apontamentos para a ação política cotidiana, seja dos “interlocutores nativos”, seja dos “produtores do saber reificado”. Esta dupla orientação é necessária, porque o trabalho de investigação social é sempre uma interpretação da interpretação nativa. Para realizar seu trabalho, o cientista social necessita dialogar com a memória, a cultura e a produção política do grupo que estuda, para absorver o entendimento da realidade local. Sua interpretação é a interpretação da maneira como os sujeitos praticam e valoram a vida cotidiana. É Giddens (1996), ao falar da dupla hermenêutica em sociologia, que nos relembra que todo sujeito social, que efetivamente compreenda seu lugar no mundo é, também, um teórico social, na medida em que, ao conduzir sua vida cotidiana, faz uso de interpretações da maneira como se comporta, de seus desejos, razões e motivações. A sociologia, portanto, e ousamos dizer que as ciências sociais como um todo atuam na interpretação de um mundo já “pré-interpretado” pelos sujeitos, “que o constituem enquanto mundo a ser estudado através da sua manutenção como “significante””. (GIDDENS, 1996, p. 172). Desta maneira, ainda segundo Giddens, o trabalho empírico e teórico o qual esta pesquisa pretende abarcar, está fundamentado, em grande parte, na

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compreensão da relação recíproca entre os juízos e valores elaborados pelos sujeitos e os empregados ou cunhados pela ordem estatal e seus detentores.

1.2 Características deste estudo

Levando em consideração o quão complexo é um fenômeno como a relação dos moradores de favelas do Rio de Janeiro com as intervenções estatais que grassam estes territórios, desde sua constituição social, este estudo buscou não se reduzir a descrições óbvias sobre os indivíduos e sua intervenção cotidiana na esfera pública local. A proposta é, seguindo os termos de Jodelet, a constituição de uma abordagem holística, que considere os fatos humanos como totalidades que não podem ser explicados limitando-se a estudar separadamente seus diferentes componentes. (JODELET, 2003). A característica multifacetada das representações sociais, como fenômenos assentados no cotidiano, pode, caso haja uma “mirada” superficial, fazer crer ao cientista social que seu estudo está autorizado a ser conduzido como algo que não demande rigor metodológico e teórico. Contudo, é justamente desta característica, sua complexidade e dinâmica que advém a relevância do estudo das representações. A tarefa epistemológica da constituição do objeto que se quer estudar em representações sociais exige cuidado, como adverte Jodelet (2009, p. 695), “pois as representações sociais são fenômenos complexos, incitando um jogo de numerosas dimensões que devem ser integradas em uma mesma apreensão e sobre as quais é necessário intervir conjuntamente”. Posição semelhante a respeito do caráter das representações é defendida por Celso Sá, em importante livro onde apresenta as estratégias para a construção do objeto de pesquisa em representações sociais. Sua opinião é a de que: Os fenômenos de representação social estão “espalhados por aí”, na cultura, nas instituições, nas práticas sociais, nas comunicações interpessoais e de massa e nos pensamentos individuais. Eles são, por natureza, difusos, fugidios, multifacetados, em constante movimento e presentes em inúmeras instâncias da interação social. Assim, estes

21

fenômenos simplesmente não podem ser captados pela pesquisa científica de um modo direto e completo. (SÁ, 1998, p. 21)

A própria complexidade da vida social não pode ser captada de modo direto e completo pela pesquisa científica. Os cientistas das áreas sociais têm a consciência de que sempre a aproximação de um objeto de pesquisa significa reduzi-lo e isto, mesmo que não "dê conta" do fenômeno social em sua totalidade, não invalida e nem diminui as contribuições significativas destas ciências. Por estas questões, ao utilizar instrumentos consagrados pela sociologia e antropologia para a identificação das representações sociais no objeto em questão, os cuidados enumerados por Jodelet, nos obrigam a adotar uma “postura reflexiva” diante do objeto de estudo, pois: Somente a vigilância permite dominar os riscos ligados ao engajamento do pesquisador, à sua apreensão do mundo vivido pelo outro, como evitar as interpretações apressadas, as projeções indevidas. Preconiza-se uma volta reflexiva sobre as operações realizadas e as técnicas aplicadas para avaliar a maneira pela qual se procedeu em relação às metas de pesquisa e aos constrangimentos impostos pelo meio, e refletir sobre o que é que o pesquisador quer e deve fazer. (JODELET, 2003, p. 15).

Assim sendo, compreender o que os sujeitos pensam e como interagem com determinadas situações colocadas de fronte à sua existência requer, além de um referencial teórico robusto, um exaustivo trabalho de campo e a utilização de demais técnicas que permitam levantar informações diretamente. O trabalho de campo é aqui reconhecido como o momento privilegiado de toda pesquisa que se pressupõe investigar o social. Através de sua atuação no campo, o pesquisador pode empenhar-se empiricamente em promover o alargamento da razão, através do conhecimento das várias concepções de mundo de seus informantes. É nele que se pode colocar em prática a alteridade. Neste sentido, a pesquisa aqui apresentada foi conduzida como um estudo exploratório, de campo, com emprego da teoria das representações sociais, a partir do profícuo intercâmbio que esta permite entre a psicologia social, a sociologia urbana e a antropologia social.

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1.3 Princípios éticos

Por se tratar de uma pesquisa que conta com a participação de seres humanos como objetos de estudo, apesar de não envolver intervenção direta no seu cotidiano, foram obedecidos os princípios Éticos de Responsabilidade Profissional, normatizados pela Resolução n°. 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde. À vista disso, o projeto de pesquisa foi encaminhado, por meio da Plataforma Brasil, para a apreciação da Comissão de Ética em Pesquisa da SubReitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tendo sido aprovado, em 15 de maio de 2014, por meio do parecer n°. 946.846, disponibilizado em anexo. Foi realizado contato prévio com os possíveis participantes voluntários para esclarecimento dos objetivos e das finalidades da pesquisa, bem como seus diretos e deveres do pesquisador, conforme consta no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido4 (TCLE). Todos os participantes desta pesquisa tiveram, quando da coleta de dados e terão, permanentemente garantidos, a confidencialidade, o anonimato e o direito de desistência da sua participação a qualquer momento do estudo, sem que isso lhes cause quaisquer danos morais, financeiros ou a sua saúde.

1.4 Sobre o instrumento de investigação

Para identificar as representações, optou-se por associar a observação do pesquisador em campo, com instrumentos de investigação de base qualitativa, através da prática de entrevista não diretiva5 Esta escolha metodológica deveu-se especialmente a poder permitir, diante da emergência deste novo fenômeno (as políticas de segurança do estado do Rio de 4 5

Conforme Anexo II. a Segundo Castro (1995), esta modalidade de entrevista foi definida pela prof . Denise Jodelet quando prestava assessoria a uma pesquisa coordenada por ele sobre a violência na Baixada Fluminense.

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Janeiro), que os sujeitos da pesquisa tivessem mais "liberdade" para suas exposições, mas principalmente porque a representação de violência nas favelas cariocas tem um alto grau de exposição midiática e é tema corrente nos discursos públicos dos atores políticos. Esta escolha foi feita para evitar que este estudo se reduzisse a um estudo de opinião, que Moscovici (1978) muito bem diferenciou dos estudos de representações sociais. A pesquisa sobre a favela e a relação de seus moradores com a violência estatal, utilizando esta técnica, pode ser mais do que um instrumento para o "recolhimento de falas" dos moradores sobre seu cotidiano. O instrumento permite momentos de interação com os sujeitos da pesquisa, no encontro face a face, transformando o próprio ato de pesquisar em prolongamentos da esfera pública local e possibilitando que os sujeitos tratem de maneira livre os temas definidos pelo objeto da pesquisa. Há um modo "tradicional" de identificação/recrutamento dos respondentes que pressupõe que os participantes sejam recrutados de maneira casual, seguindo perfis sociais mais amplos. No entanto, seguir estes protocolos de maneira estrita traria tanto o risco de não se encontrar sujeitos realmente dispostos a participar das entrevistas, quanto o de ter suas falas entrecortadas pelo temor da identificação de suas identidades. Ambientes sociais hostis, onde há conflitos e tensões, exigem do pesquisador outras espécies de abordagem. A solução encontrada foi distinguir-se da orientação mais habitual e seguir um caminho muito parecido com o utilizado por Machado (2008) e equipe na pesquisa “Vida sob cerco”, onde investigam os efeitos da violência criminal e policial sobre os moradores das favelas do Rio de Janeiro. Nos apontamentos metodológicos Machado (2008), indica que ele e sua equipe

de

pesquisadores

tomaram

a

liberdade

de

transmutar

algumas

características das estratégias de recrutamento, e isto foi necessário, segundo o autor, por conta da especificidade do tema e de todo o temor que tratar dele poderia gerar a respondentes mais “comuns”. Sua opção foi a constituição do que chamaram de “coletivos de confiança”, onde o recrutamento dos informantes pautava-se por critérios mais restritos como, por exemplo, a existência de uma relação prévia destes com ao menos um dos pesquisadores da equipe, garantindo, assim, o fortalecimento da confiança mútua.

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Graças a este cuidado, os pesquisadores puderam tratar de um dos problemas mais comuns encontrados por quem estuda as favelas do Rio de Janeiro e seu cotidiano violento, minimizaram a sensação de perigo e possível exposição que os informantes sentem quanto às consequências do que dizem. Dessa maneira, o ponto de partida fundamental na elaboração do desenho da pesquisa consistiu em sempre considerar os procedimentos visando reduzir a chance de bloqueio. (MACHADO DA SILVA, 2008, p. 28).

Gaskell (2010) admite a possibilidade de certa flexibilidade na seleção dos entrevistados, pois uma vez que o assunto abordado é expressivo para mais de um meio social, o pesquisador pode eleger características sociodemográgicas que melhor se adequem aos seus interesses, uma vez que os critérios para a escolha dos sujeitos não devem visar a representatividade do grupo, mas a construção racional de uma matéria a ser analisada. A “autorização” metodológica de Gaskell e a experiência bem sucedida de Machado e sua equipe, trouxeram segurança para a opção de constituir um “coletivo de confiança”, a partir do qual foram realizadas as entrevistas. Este coletivo se originou de uma rede de relações prévias existentes entre o pesquisador e três moradores, os quais indicaram os outros 12 participantes obedecendo-se os seguintes critérios: ser maior de 18 anos, ser morador do território a mais de 10 anos, estar desenvolvendo ou ter desenvolvido alguma atuação sócio-política no território. É importante ressalvar que o perfil de respondentes foi elaborado sob a constatação de que as ações desenvolvidas por tais sujeitos nos territórios os credenciam junto aos demais moradores como "porta-vozes de sua comunidade" que, ao viver tanto tempo sob a coação de traficantes e policiais não sabe se pode ou se deve expor publicamente seus pensamentos. As teorias psicossociais nos permitem considerar desta maneira, porque há compartilhamento, e o indivíduo que "fala", em realidade, permite que o "grupo fale". As questões discutidas nas entrevistas originaram-se de um roteiro temático, definido a partir dos objetivos da pesquisa e que buscou abordar o cotidiano da vida na favela em quatro momentos distintos: (1) a relação da comunidade com a polícia e com os traficantes antes da chegada da ocupação militar; (2) a chegada dos policias para a ocupação e o posicionamento da comunidade em relação a isto; (3) o

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relacionamento entre comunidade e polícia no momento atual, buscando identificar relatos de experiências violentas ou de controle da vida social; (4) perspectivas futuras em relação a esta ação estatal de ocupação do território. O roteiro foi utilizado da maneira como Castro (1995) aponta que o utilizou em pesquisa sobre representações sociais da prostituição: “considerando o roteiro exclusivamente em sua função orientadora, permitindo assim que os entrevistados tivessem a possibilidade de desenvolver seus discursos com maior liberdade”. (CASTRO, 1995, p. 152). A própria característica exploratória deste estudo justifica a opção por uma prática não diretiva para compreender os elementos das representações sociais, a partir tanto da observação do cotidiano quanto das falas dos sujeitos. As entrevistas, com a aquiescência dos participantes, foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas, lidas e revisadas para melhor compreensão e organização do corpus de análise. A devida atenção foi dada a alguns limites que poderiam ser encontrados na aplicação da técnica, como a possibilidade de interferência do entrevistador com juízos de valor. Além do mais, foi aplicado um pré-teste do roteiro temático, o que garantiu a possibilidade de fazer certos ajustes em relação as questões e a postura do pesquisador na condução das entrevistas, garantindo uma melhor participação dos entrevistados e a devida qualidade dos dados recolhidos em suas falas. Isto pôde fazer com que comunicassem de “maneira mais natural o conteúdo das representações, dos conhecimentos e das significações que partilham socialmente. (JODELET, 2003). A relação desta pesquisa com os preceitos antropológicos de investigação, nos obrigou a elaborar um diário de campo onde foram descritas as impressões recolhidas durante os encontros, em mais de seis meses de visitas ao território e as casas dos participantes. A função do diário de campo foi auxiliar na compreensão de como a relação sujeito (pesquisador) X sujeito (participante) ao ser transposta de sua historicidade, pode influenciar no modo como se dá a passagem do campo para o texto científico (SILVA, 2006).

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1.5 Tratamento e análise dos dados

Os encontros com os entrevistados foram extremamente proveitosos e legaram um importante material para análise a qual esta pesquisa se propõe. Para a tarefa de análise dos dados obtidos, foi utilizada a técnica da Análise de Conteúdo em concordância com o que diz Bauer ao apresentá-la como “uma técnica para produzir inferências de um texto focal para seu contexto social de maneira objetivada.” (BAUER, 2010, p. 191). Surgida no início do século XX, durante a primeira metade deste século a análise de conteúdo foi largamente empregada nas universidades norte-americanas principalmente nos estudos quantitativos de material de imprensa e propaganda da I Guerra Mundial, na Universidade de Columbia. Em 1940, com o despontar da II Guerra, a técnica começa a ser usada pelos departamentos de Ciências Políticas destas universidades para desvendar os objetivos da propaganda nazista presente em jornais e periódicos. (MINAYO, 2010). Sendo praticada em um ambiente influenciado pelo behavorismo e toda sua construção em torno do rigor e da cientificidade, a análise de conteúdo estabeleceu uma forte relação com as metodologias quantitativas, que invocavam o rigor científico dos números e das medidas, mediante a interpretação cifrada do material de caráter qualitativo (MINAYO, 2010). Durante algum tempo, este traço “quantativista” minimizou as possibilidades de exame dos materiais qualitativos pela análise de conteúdo e reforçou o falso debate em relação a qual modelo de investigação (quantitativo ou qualitativo) é melhor. Este debate metodológico não é novo e não terminará tão cedo, contudo, na atualidade, como afirma Minayo “todo esforço teórico, seja baseado na lógica quantitativista ou qualitativista, visa ultrapassar o nível do senso comum e do subjetivismo na interpretação (...).” (MINAYO, 2010, p. 308). Minayo (2010) indica ainda que, no que diz respeito a sua operacionalização, para atingir a essência manifestada na comunicação, os procedimentos da análise de conteúdo induzem “a relacionar estruturas semânticas (significantes) com estruturas sociológicas (significados) dos enunciados e articular a superfície dos

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enunciados dos textos com os fatores que determinam suas características”. (MINAYO, 2010, p. 308). Bardin (2010), por sua vez, elucida que este não é um simples deslocamento que o pesquisador deve fazer desde os significantes para alcançar os significados, a exemplo do que se faria em uma leitura corriqueira. Trata-se, concretamente, de, por meio da manipulação de significantes e significados, buscar sistematizar e expressar os diferentes significados de natureza psicológica, sociológica, política, histórica, entre outros, do conteúdo das mensagens. Foi Bardin (2010) quem melhor descreveu análise de conteúdo, segundo a autora, este conjunto de técnicas interpretativas possui duas funções bem claras que coexistem complementando-se: i.

uma função heurística, que visa a enriquecer a pesquisa exploratória, aumentando a propensão à descoberta e proporcionando o surgimento de hipóteses quando se examinam mensagens pouco exploradas anteriormente e;

ii.

uma função de administração da prova, ou seja, servir de prova para a verificação de hipóteses apresentadas sob a forma de questões ou de afirmações provisórias. É a partir deste entendimento que a autora traça sua definição modelar da

análise de conteúdo, segundo a qual esta deve ser entendida como: “(...) um conjunto de técnicas de análises das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos da descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens (variáveis inferidas) destas mensagens.” (BARDIN, 2010, p. 40).

Nas palavras de Bardin, a análise de conteúdo aloca-se exatamente na zona fronteiriça entre o rigor exigido pela objetividade da investigação científica e a riqueza das interações subjetivas evidenciadas pela enunciação da palavra. Cabe ao pesquisador encaminhar uma espécie de “segunda leitura” do processo comunicacional, assentada na dedução e na inferência, revelando o que a um leitor leigo poderia ficar latente, subentendido ou mesmo escondido na mensagem. Semelhante é a avaliação de Amado, para quem a análise de conteúdo “tratase de uma técnica que procura “arrumar” num conjunto de categorias de significação

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o “conteúdo manifesto” dos mais diversos tipos de comunicação.” (AMADO, 2000, p. 53). A análise de conteúdo clássica (BARDIN, 2010; BAUER, 2010) baseia-se no trabalho de interpretação de materiais textuais escritos. Em nosso caso o texto, objeto de análise, foi construído ao longo do desenvolvimento da pesquisa, a partir da transcrição das falas obtidas nas entrevistas. As informações coletadas, após sua transcrição, foram exaustivamente lidas e as ideias que se repetiam foram codificadas em categorias analíticas, permitindo a realização de uma análise temática, onde, “o conceito central é o tema. Este comporta um feixe de relações e pode ser graficamente apresentado através de uma palavra, uma frase, um resumo”. (DESLANDES; GOMES; MINAYO, 2010, p. 86, grifos dos autores). Sobre o tema e sua forma de enunciação, cabem ressaltar algumas considerações propostas por Bakhtin (2009), segundos as quais todas as palavras que os sujeitos mobilizam para a constituição de sua fala real possuem não apenas um tema e uma significação no sentido objetivo de seu conteúdo, mas principalmente um acento de valor ou apreciativo. Para ele, o tema se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação. A natureza da enunciação, por sua vez, é social, ela é produzida através da interação, socialmente organizada, entre os indivíduos. Ou melhor, ela está assentada no contexto sócio-histórico-ideológico em que o emissor constrói seu “horizonte social”. O tema da enunciação é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ele pertence [...] O tema é um sistema de signos dinâmicos e complexo, que procura adaptar-se às condições de um dado momento da evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir”. (BAKTHIN, 2009, p. 134).

A concepção dada por Bardin (2010) para o tema dialoga diretamente com o que é dito por Bakhtin (2009). Para a primeira o tema é visto como a unidade de sentido que se erige de maneira natural de um texto analisado consoante a mobilização das categorias da teoria que está servindo de guia à leitura. Sua análise deve ter por objetivo a descoberta dos “núcleos de sentido” contidos na comunicação e propagação das ideias na esfera pública. A frequência

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com que tais ideias aparecem pode significar o grau de importância que abarcam para o grupo. (BARDIN, 2010). Para atingir tais objetivos de interpretação, foi seguido o esquema proposto por Bardin (2010), sendo assim, a análise de conteúdo temática foi dividida em fases diferentes, organizadas de maneira cronológica: a) a pré-análise; b) a exploração do material; c) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação (BARDIN, 2010, p. 121). Dessa forma, o principal objetivo da pré-análise foi dar operacionalidade e sistematizar as ideias iniciais a respeito do tema tratado, para isto foi feita a 1) escolha dos documentos (neste caso as entrevistas transcritas); 2) a leitura flutuante (primeiras leituras de contato com os documentos a serem analisados) e por fim; 3) a formulação das hipóteses e objetivos (algumas afirmações provisórias sobre a análise do tema), A exploração do material permitiu constatar ideias e interpretações que se repetiam ao longo das falas dos entrevistados, sendo estes dados organizados em unidades, as quais permitiram descrever o conteúdo implícito presente nas opiniões expressadas. Assim, o tratamento deste conteúdo implícito verificado nas falas permitiu comparar as categorias analíticas (formuladas como hipóteses na constituição do roteiro temático) com o que se convencionou chamar de categorias empíricas (as ideias e interpretações trazidas pelos entrevistados). Esta categorização e comparação permitiu, enfim, apurar e analisar as representações sociais dos moradores. A aplicação deste percurso metodológico poderá ser verificada, quando da apresentação da presença desta pesquisa no campo de investigação.

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2 PSICOLOGIA SOCIAL E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Neste capítulo será apresentado o referencial teórico que fundamenta esta dissertação. Através de um delineamento da psicologia social como disciplina e da teoria das representações como percurso teórico/metodológico, busca-se defender uma forma de fazer pesquisa que esteja intensamente ligada à prática social cotidiana. Um ponto importante neste estudo é que a psicologia social que o orienta é aquela que convencionou-se chamar de psicologia social “europeia”, por ser distinta da vertente produzida nos Estados Unidos da América (EUA), de forte raiz individualista e experimental (FARR, 2012a). O individualismo da psicologia social norte-americana tomou conta das produções teóricas e de pesquisa, tanto nos países de língua inglesa, quanto em território latino-americano. Após apresentar a forma psicológica de psicologia social norte-americana, a atenção será voltada para o contraponto teórico/metodológico constituído na Europa, principalmente por Serge Moscovici que desenvolve a teoria das representações sociais. Além de seus desdobramentos para a pesquisa em psicologia social na América Latina, em especial no Brasil. A concepção de psicologia social de Moscovici, ordenada mais para o intercambio da disciplina com a sociologia e os estudos de cultura, desenvolveu o que Robert Farr classifica como uma forma sociológica de psicologia social. (FARR, 2012a). Deste ponto em diante será apresentado, primeiro, o conceito mais amplo de representação e, posteriormente, o caminho através do qual Moscovici chegou às representações sociais como traço característico das sociedades contemporâneas. Ao final, busca-se relacionar recentes estudos em representações sociais à possibilidade de sua apropriação para a compreensão da esfera pública encontrada nas favelas do Rio de Janeiro.

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2.1 Psicologia Social – uma ciência dos fenômenos sociais

A psicologia social que devemos criar deve originarse de nossa própria realidade ou, pelo menos, de seus aspectos relevantes. Serge Moscovici

Robert Farr (2012b), aponta que a psicologia social como disciplina, interessa-se pela relação entre o indivíduo e a sociedade. Entendê-la desta maneira nos leva a considerar o papel fundamental que as cognições individuais e coletivas possuem no estabelecimento do fenômeno psicossocial assentado na linguagem e comunicação. É desta tensão/relação constante entre sujeito-outro-objeto que ocupa-se a Psicologia Social. O mesmo autor, Farr (2012a), ao traçar uma historiografia da disciplina, demostra como desde o surgimento da psicologia na Alemanha com Wundt, além da psicologia

filosófica,



o

desenvolvimento

de

uma

psicologia

social

a

Völkerpsychologie (psicologia dos povos ou das massas). As origens destas duas formas de psicologia estão na Alemanha, país que foi cenário de uma conjuntura política muito turbulenta no início do século XX. Com a ocorrência das duas grandes guerras em solo alemão, há uma migração de diversos estudiosos da área para os Estados Unidos da América. Ao se fixarem nas universidades estadunidenses estes estudiosos travam contato com o individualismo, marca da sociedade norte americana, o que influência diretamente a aplicação da disciplina, fazendo surgir uma psicologia social cognitiva e experimental. Na abordagem experimental da psicologia social, os estudos se ocupam, de maneira quantificável, com processos psicológicos individuais influenciados por situções sociais muito vagas como a “presença real, implícita ou imaginária de outros indivíduos” (ALLPORT , 1995). Esta vertente psicológica da pesquisa em psicologia social teve grande penetração e se consolidou como dominante nas Américas, tanto ao norte como ao sul do continente.

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O peso desta vertente experimentalista de psicologia social é facilmente reconhecido em solo brasileiro nas abordagens de Aroldo Rodrigues e seus colaboradores, que se encarregaram de sua popularização. Em seu manual de psicologia social, ainda hoje muito popular nos cursos de graduação em psicologia, a disciplina é assim apresentada: Psicologia social é o estudo científico da influência recíproca entre as pessoas (interação social) e do processo cognitivo gerado por esta interação (pensamento social). [...] Interação humana e suas consequências cognitivas e comportamentais constituem, pois, o objeto material da psicologia social, ou seja, aquilo que a psicologia social estuda. (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 2000, p. 21)

Os autores concluem defendendo a psicologia social como a análise científica de “manifestações comportamentais de caráter situacional suscitadas pela interação de uma pessoa com outras pessoas ou pela mera expectativa de tal interação.” (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 2000, p. 24). Segundo esta concepção, a interação social desencadeia processos cognitivos. Processos estes, dos quais uma psicologia social científica deveria se ocupar. Esta foi a tônica da psicologia social durante as décadas de 1960 e 1970, na América Latina como um todo. Até que, em fins da década de 1970, os psicólogos sociais locais confrontados, tanto pela conjuntura ditatorial na qual seus países estavam afogados, como pelo peso de uma importação teórica acrítica, constatam uma “crise de referência” na psicologia social. A conjuntura local, com toda ordem violenta das ditaduras militares, sentida nas repressões sociais e políticas que impediam a livre manifestação do pensamento, exige um posicionamento mais firme dos intelectuais e suas organizações. Esta necessidade de relacionar a função social, a prática social de fato à produção intelectual, apresenta-se como imperativo aos pensadores mais engajados da disciplina. É o momento em que se iniciam disputas para um rompimento com a psicologia social psicológica de raiz norte-americana, principalmente, através do rechaço à Associação Latino-Americana de Psicologia Social (Alapso), conduzida por Aroldo Rodrigues.

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É também desta época o livro “Psicologia Social: o homem em movimento”, organizado por Silvia Lane e Wanderley Codo. A obra faz uma crítica à psicologia social tradicional com seu caráter experimentalista e positivista e dialoga diretamente com o materialismo histórico dialético. Neste contexto de ruptura com o individualismo e experimentalismo e da busca por uma forma de fazer psicologia social “engajada” com as questões conjunturais, que a teoria das representações sociais de Serge Moscovici desembarca em solo brasileiro. Trazida para o Brasil por jovens pesquisadores, retornados de seus estudos de doutoramento na Europa, ela se consolida como uma alternativa muito interessante para os estudos da dinâmica social local, conforme será visto adiante. Moscovici foi um dos teóricos que atuou firmemente, no decurso de sua carreira, no combate à forma individualista e puramente experimental de psicologia social. A concepção moscoviciana de psicologia social aponta que esta deve procurar definir o “social” como a interação entre dois sujeitos e um objeto, ele acredita que este é o verdadeiro objeto da disciplina: a análise do triângulo SujeitoOutro-Objeto, crucial para sistematizar e explicar os processos de interação. (MOSCOVICI, 2011). Diante disto, o autor salienta que uma psicologia social deve ser renovada e redesenvolvida, a fim de que se torne uma ciência dos fenômenos sociais, pois estes são a base de funcionamento de uma sociedade e dos processos essenciais que operam dentro dela. Diz o autor: O objeto central e exclusivo da psicologia social deve ser o estudo de tudo que se refira à ideologia e à comunicação, do ponto de vista de sua gênese e sua função. O campo específico de nossa disciplina é o estudo dos processos culturais que são responsáveis pela organização do conhecimento em uma sociedade, pelo estabelecimento das relações interindividuais no contexto do ambiente social e físico, pela formação dos movimentos sociais (grupos, partidos, instituições), através dos quais os homens agem e interagem, pela codificação da conduta interindividual e intergrupal que cria uma realidade social comum com suas normas e valores, cuja origem deve ser novamente buscada no contexto social. (MOSCOVICI, 2011, p. 154).

Ou ainda, O campo da psicologia social consiste de objetos sociais, isto é, de grupos e indivíduos que criam sua realidade social (que é, na verdade, sua única realidade), controlam-se mutuamente e criam tantos laços de solidariedade

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como suas diferenças. Ideologias são seus produtos, a comunicação é seu meio e o consumo e a linguagem são sua moeda. (MOSCOVICI, 2011, p. 160).

Ancorado na trajetória recente da psicologia social na América Latina, em especial no Brasil, e na concepção de Moscovici acerca do funcionamento da disciplina, o ponto que subsidia este estudo é o de contribuir para o fortalecimento de uma psicologia social mais socialmente orientada. Entende-se

que,

nesta

forma

de

abordagem

da

psicologia

social,

contrapondo-se a abordagem individualizante, somos instados a levar em conta os comportamentos individuais em sua relação efetiva e distinta com os fatos sociais e não apartados da realidade como uma presença abstrata de outros (SÁ, 1995). Ou ainda, nos termos de Moscovici, os tópicos tidos como importantes (mudanças sociais, relações raciais, guerras, violência, e etc.) devem ser enfocados de uma maneira relevante, de uma maneira que possibilite compreender, simultaneamente, como eles se relacionam com o ser humano e a sociedade e como seu estudo poderia contribuir para um avanço autêntico do conhecimento (MOSCOVICI, 2011). A psicologia social, segundo sua avaliação, não deve somente se encarregar de descobrir os aspectos mais profundos da realidade social, mas também participar dos experimentos sociais e do estabelecimento de novas relações sociais, participar na dinâmica geral do conhecimento. A influência desta psicologia social defendida por Moscovici está, segundo ele, em Durkheim, para quem: uma “ciência das sociedades” deve ir além de simplesmente descrever fenômenos, deve auxiliar-nos a compreender a realidade para além do que é comumente apresentado (MOSCOVICI, 2011). Avaliação muito semelhante é apresentada por Jovchelovitch ao pensar a Psicologia Social como ciência que se constitui na interface da relação entre os indivíduos e a sociedade, no lugar, de difícil localização, nebuloso para usar o termo da autora, onde há o encontro de ambos e a construção da realidade social. É neste local, expõe Jovchelovitch, que há a produção de categorias como identidade, o eu, o discurso, a representação e a própria ação. Por consequência, ela defende que é nele que deve-se depositar o objeto exclusivo do “inquérito psicossocial e é o entendimento detalhado deste espaço que a psicologia social pode oferecer a um diálogo interdisciplinar (JOVCHELOVITCH, 2004, p. 21).

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Jovchelovitch defende que, cumprindo este papel de trabalhar a mediação como seu objeto de estudo, a psicologia social poderá contribuir incisivamente com os diversos debates colocados na sociedade atual, “estudando como estas categorias se relacionam e ao mesmo tempo constituem a vida e o contexto cotidiano de comunidades humanas” (JOVCHELOVITCH, 2004, p. 21).

2.2 Representações – um conceito

O entendimento do conceito de representação não é questão pacífica entre as mais diversas disciplinas das ciências sociais, sua onipresença nos campos de estudo acabou constituindo enorme polêmica acerca de si e seus significados. Definidas nas ciências sociais como ideias, ou categorias de pensamento que servem para expressar a realidade, em muitos momentos lhe explicando, em outros lhe justificando, ou até mesmo lhe questionando. (MINAYO, 2012). As representações apresentam-se como uma categoria que pode romper com as características impessoais que veem o conhecimento como racionalidade pura, pois estas estando efetivamente na base de todos os sistemas de saber, de uma maneira dialógica, uma vez que são geradas pelas inter-relações, auxiliam na sua compreensão. Esta dialogia “nos fornece a chave para entender a relação que amarra o conhecimento à pessoa, a comunidade e mundos de vida” (JOVCHELOVITCH, 2011, p. 21). Ao tratar das atribuições das representações na sustentação dos contextos do saber, Jovchelovitch as compreende como estruturas mediadoras que afloram da relação sujeito-outro-objeto, parte do trabalho comunicativo cotidiano, ou seja, geradas pela ação comunicativa. O dinamismo da vida social requer dos sujeitos uma constante tomada de posição frente ao cotidiano, é o preço que se paga por estar inserido em um grupo social. Trata-se de construir, consolidar e transmitir visões de mundo e, para dar cabo a esta tarefa, sujeitos e grupos sociais utilizam-se das representações. Representar, nos recorda Jovchelovitch (2011), é propriamente o ato de dar forma, de tornar presente o que está ausente, o conceito de representação “está na

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base da inclusão e da exclusão – quem é e quem não é representado? – no centro do nosso conhecimento sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos” (JOVCHELOVITCH, 2011, p. 33). As representações são, antes de tudo, um processo de disputa, um sistema que é construído no decurso da ação social dos sujeitos e seus grupos. “Elas implicam um trabalho simbólico que emerge das inter-relações Eu, Outro e objetomundo e, como tal, têm o poder de significar, de construir sentido, de criar realidade” (JOVCHELOVITCH, 2011, p. 35). Diretamente associadas à teia de relações estabelecida entre os sujeitos, seus pares e o mundo as representações são, efetivamente, sociais e precisam ampliar as fronteiras da psicologia social. Tarefa da qual se incumbiu Serge Moscovici, ao formular sua Teoria das Representações Sociais, inicialmente apresentada com a publicação do estudo La Psychanalyse: Son image et son public, de 1961. As representações sociais possuem uma íntima relação com a formação do saber praticado pelos sujeitos sociais e seus grupos, no decurso da vida em sociedade.

2.3 Da noção de representações coletivas de Durkheim às representações sociais

As teorias sociais não são entes descolados da realidade ou da construção histórica dos campos de estudo aos quais estão vinculadas, este também é um traço das representações sociais. Portanto, antes de tratar propriamente das elaborações e Moscovici a respeito da teoria das representações sociais, faz-se mister compreender o percurso que o levou a esta concepção, Como foi visto, a teoria social clássica tem das representações sociais uma concepção abrangente a todos os seus ramos, as representações situam-se na conexão entre o pertencimento psicológico e social dos indivíduos. São categorias de pensamento que trazem em si as faculdades de expressar a realidade, questioná-la, justificá-la ou explicá-la, a partir da relação indivíduo/sociedade e do fluxo comunicativo que esta relação exige.

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Aquele que primeiro elaborou a respeito das representações, a chamando de “coletivas” foi Émile Durkheim, a quem Serge Moscovici escolheu como ancestral teórico de sua teoria das representações sociais. Robert Farr recorda que a escolha de um ancestral é reveladora da filosofia científica da qual o fundador de uma teoria é signatário. Portanto “a escolha de Durkheim feita por Moscovici, como um ancestral, é uma declaração que sua teoria das representações sociais é uma forma sociológica de psicologia social” (FARR, 2012a, p. 173). Durkheim buscava priorizar os estudos da produção de conhecimento público nas sociedades em detrimento do papel do individual, daí decorre sua insistência nas representações coletivas e nos fatos sociais. Igual oposição é posta a cabo por Moscovici que, ao aproximar-se de Durkheim, lega à pesquisa em representações sociais um caráter psicossociológico de crítica ao individualismo. Isto que a diferencia categoricamente das produções da psicologia social de natureza mais individualista e experimental desenvolvida nos Estados Unidos da América e a faz ser vista como uma forma sociológica de psicologia social. A ênfase da teoria das representações sociais de Moscovici é apontada para a compreensão de como as crenças e rituais da vida cotidiana agem como alicerces desta. Em seu estudo sobre as representações sociais da psicanálise, Moscovici buscou investigar o que ocorre, no momento em que há a circulação de uma forma de conhecimento – tido como científico – para além de suas estruturas originárias. A psicanálise, até então, prática de um grupo restrito na sociedade parisiense, começa a sair das arenas privadas e passa a ser apropriada pelos mais diversos grupos sociais e nesse processo de apropriação é resinificada para além do controle de seus “donos”. Através de um intenso percurso investigativo, onde se utiliza de entrevistas e questionários, além da análise dos discursos propagados pelos meios de comunicação da época, Moscovici vai ao cerne do pensamento social e demostra como ele se transforma, diante do processo comunicacional. Farr (2012b, p. 39-40) acredita que “Moscovici estava interessado em observar o que acontece quando um novo corpo de conhecimento se espalha dentro de uma população humana”. Para isso, ele elaborou um sólido itinerário

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metodológico, através do qual captou amostras do conhecimento que as pessoas possuíam a respeito da psicanálise e como agiam em relação à prática psicanalítica e seus operadores, os psicanalistas. A articulação entre a aplicação de questionários semiestruturados, pesquisas de opinião e análise de conteúdo do que era veiculado nos meios de comunicação da época, possibilitou a Moscovici compreender o universo por onde o conhecimento circula. Através deste esquema ele pôde perceber como as representações estão presentes tanto no mundo como na mente e que por isso devem ser pesquisadas em ambos os contextos. (FARR, 2012b). O ponto de Moscovici é que, na contemporaneidade, os meios de comunicação de massa assumiram o papel de promover a socialização de todas as formas de conhecimento. Moscovici estabelece, desde o primeiro momento, que as representações sociais

são,

especificamente,

contemporâneas,

“caracterizadas

fenômenos

representativos

por: intensidade

e

das

sociedades

fluidez das trocas e

comunicações; desenvolvimento da ciência: pluralidade e mobilidade sociais.” (JODELET, 2001, p. 22). Ao retomar o conceito de Durkheim de representações coletivas, Moscovici procura tirar-lhe da atmosfera mais ampla da sociologia, onde Durkheim o havia assentado, e trazê-lo para o nível estrito da psicologia social. O ambiente social onde Durkheim elaborou sua teorização a respeito das representações coletivas, com sociedades menos complexas, difere do colocado à frente de Moscovici onde o pluralismo e dinamismo das mudanças culturais, políticas e econômicas são a tônica das relações. A noção de representação social é, de certa forma, resultado deste deslocamento vertical, desta mudança de nível, que ele entende ser mais adequada num contexto moderno. Em Durkheim, as explicações das representações não passavam por seus componentes psicológicos. Considerando tão somente seus aspectos sociológicos, constituíam-se, portanto, no sentido clássico, em um instrumento explanatório e se referiam a uma classe geral de ideias e crenças (religião, ciência, mito, etc.) vistas efetivamente como fatos sociais.

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Minayo recorda que, “na concepção de Durkheim é a sociedade que pensa, portanto as representações não são necessariamente conscientes do ponto de vista individual”. (MINAYO, 2012, p. 74). Por conseguinte, as representações, impostas e agindo de maneira coercitiva por meio das instituições, são possuidoras de singularidades e agem de maneira específica. Constituem-se em fatos sociais passiveis de observação e interpretação. Durkheim enfatizava o estudo da sociedade de modo genérico, para ele as representações coletivas não poderiam ser reduzidas a representações individuais. Seus fatos sociais só poderiam ser explicados em termos de outros fatos sociais, ou seja, estes não podem ser explicados a partir do entendimento de decisões individuais (cognitivas), mas da coerção que a sociedade e as instituições impõem. Ele acreditava: Que a matéria da vida social não possa se explicar por fatores puramente psicológicos, ou seja, por estados da consciência individual, é o que nos parece de todo evidente. Com efeito, o que as representações coletivas traduzem é o modo como grupo se pensa em suas relações com os objetos que o afetam. Ora, o grupo não é constituído da mesma maneira que o individual, e as coisas que o afetam são de outra natureza. Representações que não exprimem nem os mesmos sujeitos, nem os mesmos objetos, não poderiam depender das mesmas causas. Para compreender a maneira como a sociedade representa a si mesma e o mundo que a cerca, é a natureza da sociedade, e não a dos particulares, que se deve considerar. (DURKHEIM, 2009, p. XXIII).

Mais à frente, já chamando as representações de sociais, Durkheim aponta para a necessidade de se estudar de que forma elas “se atraem ou se excluem, se fundem umas nas outras ou se distinguem”, pois o que se sabia, segundo ele, a respeito de como as ideias individuais se combinam formando representações era um conhecimento ainda muito parco (DURKHEIM, 2009). Como fenômenos que necessitam ser descritos e explicados.

As

representações sociais de Moscovici, diferentemente das representações coletivas de Durkheim, estão relacionadas com um modo particular de compreender e de se comunicar – um modo que cria tanto a realidade como o senso comum. É para enfatizar esta distinção que ele usa o termo “social” em vez de “coletivo”. A proposta de Moscovici é considerar com um fenômeno o que antes era um conceito (na visão clássica de Durkheim, as representações eram coletivas, fatos sociais, em Moscovici elas adquirem uma nova conotação) para isso:

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As representações sociais devem ser vistas como uma maneira específica de compreender e comunicar algo que já sabemos. Elas ocupam, com efeito, uma posição curiosa, em algum ponto entre conceitos, que têm como seu objetivo abstrair sentido do mundo e introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o mundo de uma forma significativa. Elas sempre possuem duas faces, que são interdependentes, como as duas faces de uma folha de papel, a face simbólica e a face icônica. Nós sabemos que representação = imagem/significação; em outras palavras, a representação iguala toda imagem a uma ideia e toda ideia a uma imagem. (MOSCOVICI, 2011, p. 46)

As representações sociais têm uma ação muito peculiar sobre os sujeitos, elas agem de maneira “prescritiva, isto é, elas se impõem sobre nós com uma força irresistível” (MOSCOVICI, 2011). Ou ainda, são: Um sistema de valores, ideias e práticas, com uma dupla função: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitará às pessoas orientar-se em seu mundo material e social e controlá-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunicação seja possível entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes o código para nomear e classificar, sem ambiguidade, os vários aspectos de seu mundo e da sua história individual e social. (MOSCOVICI, 1976: viii. apud DUVVEN, 2011, p. 21).

Na pesquisa qualitativa o social é visto como um mundo de significados passível de investigação e a linguagem dos atores sociais e suas práticas, como as matérias-primas dessa abordagem. Muitos autores, não apenas de psicologia social, mas das ciências sociais de maneira geral, tem buscado relacionar conceitos como representação e construção da realidade, pensando em um homem em busca de sentido para sua experiência de vida. Seguindo esta trilha, percebe-se que, ao falar de representações sociais, apesar de se ter os sujeitos sociais e seus atos como alvos da observação, não concentramos a análise no sujeito ontológico, possuidor de uma natureza comum, mas nos elementos determinados pelas construções particulares do campo social. “A questão central é o reconhecimento de que o olhar da Psicologia Social – e a análise das representações sociais – se dirigem ao social enquanto totalidade” (JOVCHELOVITCH, 2000, p. 79). Moscovici salienta que a finalidade de toda representação é tornar familiar o que não é familiar. Este ato de transformar o não-familiar em familiar é algo que se faz a todo o momento no intuito de dar forma as coisas. Portanto, as representações

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que os sujeitos fabricam vão sempre neste sentido de tornar comum algo que é incomum. O processamento das relações se dá pela familiarização “onde os objetos, pessoas e acontecimentos são percebidos e compreendidos em relação a prévios encontros e paradigmas.” (MOSCOVICI, 2011, p. 55). Pondo isto em termos mais claros, ele afirma que este movimento de familiarização está relacionado à segurança dos universos consensuais, pois, é ali que os sujeitos protegem-se dos riscos, atritos ou conflitos que as relações sociais impõem. Neste sentido, a mediação entre os indivíduos e o contexto social, estabelece a forma que as representações sociais adquirem no intento de trazer sentido material à produção simbólica de uma comunidade. Esta tarefa de familiarizar o não-familiar é cotidiana e requer dos sujeitos um exercício cognitivo constante, através do qual acionam e, utilizam-se de dois instrumentos nomeados como ancoragem e objetivação. O primeiro consiste em sintetizar significados diferentes e externos a fim de torná-los íntimos, ou seja, transformar um conceito que pode ser ameaçador ou indizível em uma imagem familiar. Este é um processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara com o paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada. [...] Ancorar é, pois, classificar e dar nome a alguma coisa. (MOSCOVICI, 2011, p. 61).

Ao fazer isto, o indivíduo passa a ocupar-se do segundo instrumento nomeado por Moscovici, assim, objetifica o desconhecido em uma realidade por ele já institucionalizada. Conforme explica Moscovici: Objetificação une a ideia de não familiaridade com a realidade, torna-se a verdadeira essência da realidade. [...] Objetificar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito em uma imagem. Comparar é já representar, encher o que está naturalmente vazio, com substancia. (MOSCOVICI, 2011, p. 7172).

Sobre tal esquema explicativo utilizado pelos indivíduos, Sá avalia que sua compreensão ajuda a transcrever o quadro que os orienta nos seus comportamentos

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e tomadas de posição. Ancoragem e objetificação, para ele, administram os processos de formação das representações (SÁ, 2002). Na chamada abordagem processual das representações sociais, inicialmente desenvolvida por Denise Jodelet (2005), em seu interessante estudo sobre as representações sociais da loucura em uma comunidade do interior da França, são desenvolvidas e apresentadas mais características das representações sociais. Jodelet nos leva a entender o quanto as representações constituídas no âmbito da vida social se apresentam como categoria precípua na articulação que os sujeitos fazem a respeito de sua existência e inserção no grupo. Para a autora, elas são importantes como categoria de análise visto que, orientam os sujeitos no modo como nomeiam, definem e se posicionam em relação as mais diversas aparências da sua realidade cotidiana. (JODELET, 2001). Jodelet defende que as representações, diante de seu caráter dinâmico e transversal, “estão ligadas tanto a sistemas de pensamento mais amplos, ideológicos ou culturais, [...], quanto à condição social e à esfera de experiência privada e afetiva dos indivíduos” (JODELET, 2001, p. 21). Ocorre que as várias significações das representações expressas pelos indivíduos e seus grupos sociais atuam como referenciais que conduzem suas ações e interações na vida cotidiana. Consequentemente,

a

partilha

das

definições

abarcadas

pelas

representações solidifica, nos grupos, uma visão consensual da sua realidade. Esta visão partilhada pelos membros do grupo trata-se, de fato, da dinâmica social das representações. Ela serve de roteiro para posicionamento em relação a outros grupos (JODELET, 2001). Retomando as elaborações de Moscovici, em expressão já bastante conhecida, Denise Jodelet aponta que, as representações sociais seriam: “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção da realidade comum a um conjunto social.” (JODELET, 2001, p. 22). Jodelet especifica mais acerca das características das representações. Ela afirma que as representações, enquanto fenômenos cognitivos, abrangem o pertencimento social dos sujeitos em todas as suas variantes (práticas, modelos de

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conduta e pensamento), com todas as implicações afetivas e normativas que isso possa trazer (JODELET, 2001). Percebemos que a representação social está diretamente ligada às condutas individuais e coletivas, criando, ao mesmo tempo, categorias cognitivas e relações de sentido exigidas para a inscrição social de determinado grupo. Ela pode funcionar como predicado deste grupo, ou seja, “grupos sociais podem identificar-se, perceber-se, aliar-se ou rejeitar-se através dela” (HERZLICH, 1991, p. 25). As representações inserem-se, portanto, no limiar da percepção do sujeito enquanto agente que se posiciona no contexto social e grupal, a partir da memória recebida, fazendo com que o par sujeito-objeto esteja ligado por um saber efetivamente praticado. O grupo é, destarte, conforme elaborou Halbwachs (2009), o ambiente específico da origem de múltiplas imagens, cogitações, sentimentos, entusiasmos e pretensões. As memórias que o sujeito recebe podem, a partir da vivência em grupo, ser reconstruídas, ou simuladas. Podem-se criar representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas que constituem o grupo. Moscovici (2011), tratando da relação entre memória e representações sociais, acentua que as experiências e ideias referenciadas no passado não são, de maneira alguma, pensamento morto, mas permanecem operantes e muito influentes em relação às experiências e ideias atuais. A força das representações sociais, estaria, acredita Moscovici, no “sucesso com que elas controlam a realidade de hoje através da de ontem e da continuidade que isso pressupõe” (MOSCOVICI, 2011, p. 37). O próprio esquema de ancoragem–objetificação é dependente da ação da memória dos sujeitos e seus grupos, esta questão é sublinhada por Moscovici ao dispor que: “Nossas representações, pois, tornam o não familiar em algo familiar. O que é uma maneira diferente de dizer que elas dependem da memória” (MOSCOVICI, 2011, p. 78). Depreende-se, portanto, o ensinamento de que as representações sociais, ao estarem inseridas em um processo histórico, trazem consigo todas as nuances deste fato, são contínuas, porém não lineares visto que são construídas por sujeitos sociais no rumo de sua existência.

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São, ainda, citando Moscovici: “entidades sociais, com uma vida própria, comunicando-se entre elas, opondo-se mutuamente e mudando em harmonia com o curso da vida (...)” (MOSCOVICI, 2011, p. 38).

2.4 Representações sociais e esfera pública favelada

As argumentações utilizadas até este momento para apresentar as representações sociais assinalam sua íntima relação com a prática social Efetivamente, não há representação social sem que os sujeitos deixem de transformar em ação o que representam. Ora, esta prática não ocorre suspensa no ar. Para agir, os sujeitos precisam de uma arena onde possam travar contato entre si. Este espaço por excelência é a esfera pública. Local de encontros e trocas que processam a opinião sobre os mais diversos temas e fundamentam o senso comum dos grupos sociais. Em importante trabalho onde comprova como as representações sociais podem se constituir em mecanismos de mediação simbólica assentadas na esfera pública, Sandra Jovchelovitch (2000) afirma que há uma trilha por onde se anuncia a relação dialética existente entre as representações sociais e a esfera pública, onde as representações nascem e circulam em espaços de “realidade intersubjetiva”. Nesta dimensão de atuação social, os sujeitos perpassam sua individualidade e as representações, surgindo da mediação social, transformam-se, também elas, em mediações sociais. Explicitando “o espaço do sujeito, em sua relação com a alteridade do mundo, lutando para dar sentido, interpretar e construir os espaços nos quais se encontra.” (JOVCHELOVITCH, 2000, p. 81). Subsidiada pelas noções de esfera pública de Habermas6 (1984) e Hannah Arendt7 (2007), Jovchelovitch, neste trabalho, tem por objetivo investigar as

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Habermas (1984), a partir de uma análise sobre como capitalismo mercantil se desenvolveu na Europa do século XVII, evidencia como este desenvolvimento motivou a criação de uma atmosfera entre a esfera privada e o Estado. A esfera pública, que se constitui como o espaço para realização efetiva das deliberações consensuais, o local da mediação necessária entre a sociedade civil e o Estado.

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representações sociais sobre a esfera pública brasileira, ao mesmo tempo em que procura apreender os elementos fundamentais que definem a relação entre as representações sociais e esta esfera pública. Para isso, a autora se utiliza de dois caminhos que estão intimamente ligados: a) Primeiro mapeia o campo de significações que definem a maneira pela qual os espaços públicos são representados no registro das experiências simbólicas. Centrando-se sobre as representações da esfera pública, ou seja, como a esfera pública torna-se um objeto sobre o qual as representações sociais se desenvolvem. b) Para depois delimitar o papel das representações na constituição do espaço público. Aqui, o foco foi direcionado para as representações sociais na esfera pública, ou seja, a esfera pública, enquanto o Outro generalizado, é constitutiva das representações sociais, na medida em que provê o espaço para sua produção. As representações sociais, como fenômenos radicados na esfera pública, relacionam-se com os processos de construção identitária dos grupos sociais. Para construir estes processos, os sujeitos envolvem, ao mesmo tempo, a proposição de uma identidade e uma interpretação da realidade. Entranhadas na esfera pública, elas são processo de mediação social. Não estão centradas nem nos indivíduos, nem na sociedade como um espaço abstrato. Emergem em espaços de realidade intersubjetiva, não são produtos de mentes individuais, existem no social. Este social é subjetivo e objetivo ao mesmo tempo. Ele não é uma variável independente, não é uma estrutura externa, não é uma influência. O social é a arena própria que constitui a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva do fenômeno das representações sociais (JOVCHELOVITCH, 2000). Jovchelovitch, através do caso brasileiro, buscou demonstrar a conexão terminante entre as representações sociais, enquanto espaço simbólico, e a esfera pública, enquanto espaço social. No inquérito apresentado nesta dissertação, a esfera pública favelada é vista como um prolongamento da esfera pública brasileira. Por conta disto o entendimento 7

Hannah Arendt descreve a esfera pública como o ambiente do discurso, da política. O lugar do “mundo comum” e, “enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer.” (ARENDT, 2007, p. 62).

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da forma como ela representa a ação do Estado para consigo e de como é representada por este Estado faz-se premente. É o que Jovchelovitch e Priego-Hernández (2013) identificam, em estudo recente, onde se intentou observar o que as autoras chamaram de “sociabilidades subterrâneas” vivenciadas nos territórios favelados do Rio de Janeiro. Por meio da análise de padrões de sociabilidade e de regeneração social desenvolvidos pelos moradores e agentes político no interior das favelas as autoras definem que: A natureza oculta dessas sociabilidades é socialmente construída por representações dominantes, pelo controle institucional, pela exclusão social e por mecanismos psicossociais, como a negação das condições dos padrões de vida de outros. Historicamente associadas à violência, à exclusão e à marginalidade, essas sociabilidades são frequentemente trazidas à tona por erupções que envolvem comportamentos violentos e/ou criminosos. (JOVCHELOVITCH; PRIEGO-HERNÁNDEZ, 2013, p. 21-22).

As representações que a cidade institucional aciona em relação às favelas são, desde a origem destes territórios na paisagem do Rio de Janeiro e até agora, é o cimento que dá liga à ideia de partição, a fronteira não demarcada, mas conhecida por todos entre o “morro e o asfalto”. Jovchelovitch e Priego-Hernández lembram bem o que significa estar na cidade com a distinção social de ser da favela, uma marca que lega aos sujeitos toda sorte de infortúnios, “uma experiência de discriminação e de luta identificatória que retira da sua população o direito a uma autointerpretação positiva.” (JOVCHELOVITCH; PRIEGO-HERNÁNDEZ, 2013, p. 41). Tal “estigma” é facilmente percebido no tratamento policial dado aos territórios favelados, o qual dissipa as distinções entre as pessoas que ali residem, principalmente, entre os moradores que não tem envolvimento com a criminalidade do tráfico de drogas e os poucos que atuam neste ramo. Os juízos que apresentam a favela como local da pobreza e delinquência, desde seu surgimento, são produto de uma continua acumulação social da violência no Rio de Janeiro e, ainda hoje, estão muito presentes, fazendo ver a violência urbana e suas consequências como um problema encarcerado em si mesmo. O atual alarde da “crise urbana”, o medo da violência, que vivemos nas grandes cidades brasileiras, em especial no Rio, é decorrente de um confuso e contínuo processo que envolve: padrões reativos de ação estatal, uma descomunal

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rede de quadrilhas criminosas, corrupção policial e toda sorte de crimes associados à economia da droga (MISSE, 1999). A violência estrutural sofrida pelas classes pobres que são obrigadas a mediar, a todo momento, sua integração no espaço público, com os comandos criminosos de um lado e a polícia de outro, não é algo episódico ou acidental. Entalhada na estrutura da sociedade ela está ligada diretamente à negação dos direitos mais básicos aos cidadãos. Será visto adiante que as transformações no mercado da droga a partir dos anos de 1980, geraram o acirramento do cotidiano violento experimentado nas favelas cariocas. Como uma gramática das relações sociais, propriamente um sistema de regras que condiciona as interações entre os indivíduos esta “sociabilidade violenta”, fez com que as relações sociais no interior dos territórios da pobreza se estabelecessem com base em padrões de medo e desconfiança recíprocos (MACHADO DA SILVA, 2010). É assim que durante os últimos 30 anos a exposição pública das violências, tanto estatal como da praticada pela empresa criminal tornou cada vez mais as favelas fronteiras simbólicas dentro das quais supõe-se que toda dimensão social seja organizada pelo ilícito. Suposição que “autoriza” o Estado a agir de modo a reordenar estes territórios, segundo padrões formais. Na atualidade, a compatibilização entre as ações de segurança postas em prática pelo governo do Estado na cidade do Rio de Janeiro e os interesses dos grupos dominantes têm, desde o ano de 2008, tomado a forma do que convencionou-se chamar de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). A entrada em campo desta nova maneira de ação policial estatal, além de gerar expectativas em toda a sociedade fluminense e brasileira, interpela a esfera pública local das favelas, causa tensões desta com o ente estatal e exige dos moradores a readequação de seu instrumental interpretativo da realidade e a tomada de determinadas posições. Evidentemente, a presença policial constante no interior das favelas age como um poder moderador de modo a estabelecer códigos de conduta que antes não eram acionados ou praticados cotidianamente pelos moradores. Em que pese a diminuição dos índices oficias de mortes nas favelas ocupadas e um desaparecimento visível do poderio militar do tráfico de drogas, a

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presença coercitiva da força policial contrapõe-se a consolidação da esfera pública local e a uma real integração dos moradores à cidade institucional. Como concluiu Fleury sobre a primeira UPP instalada, a do Morro Santa Marta, há ainda uma deficiente proteção aos direitos de cidadania e a população local permanece afligida pela insegurança, dado que o social com o qual o Estado tem chegado a este território e podemos dizer que a todas as 38 favelas com UPP é “(...) basicamente o aparato coercitivo, não havendo o mesmo empenho na construção institucional dos direitos de cidadania. A desproporcionalidade entre o contingente de 126 policiais e os 27 membros da equipe de saúde da família, com uma disparidade enorme de recurso, demonstra esse argumento”. (FLEURY, 2012, p. 219).

É inquestionável que no decurso da vida social os sujeitos assimilam o “novo” que se lhes apresenta nos ambientes em que estão inseridos e, ato continuo, compartilham estes objetos, estabelecendo, desta maneira, o que conhecemos como senso comum. É no intenso jogo de trocas, efetivamente na manifestação concreta do que é viver em sociedade, que se estabelecem os momentos de encontro e conversação geradores do senso comum como categoria interpretativa da realidade. Como Douglas (2014) vai lembrar, de fato a ideia de sociedade [o estar na esfera pública com todas a implicações, limites externos e estrutura interna] é iconicamente poderosa, pois atua no sentido de controlar ou estimular os sujeitos à ação Na questão que se discute aqui – a da chegada das UPPs nas favelas cariocas – acredita-se que estas propõem às favelas e seus moradores uma nova realidade, que pode ser compreendida desde as perspectivas instrumentais das representações como saberes do senso comum que, por sua vez, constituem-se como um integrado de mensagens e símbolos que ocorrem no compartilhamento entre os sujeitos. Sobre esta dinâmica, Bourdieu (2011) indica que as concepções da realidade são estabelecidas pelas relações entre os indivíduos, ou o habitus – um conjunto de categorias culturais adquiridas no jogo social e que predeterminam as escolhas. Como um apanhado cognitivo, o habitus, segundo Bourdieu, ao sofrer tesões das conjunturas do ambiente onde os indivíduos estão inseridos exerce influência direta na apropriação do cenário e na ação que põem em prática, mediante suas conveniências simbólicas ou materiais.

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Compreende-se, portanto que o habitus, tal como definiu Bourdieu, atua nas classificações mais utilitárias, as quais “estão sempre subordinadas a funções práticas e orientadas para a produção de efeitos sociais” (BOURDIEU, 2011, p. 112). Neste sentido, sua função é familiarizar os indivíduos às novas situações colocadas no ambiente em que vivem. A concepção de habitus de Bourdieu dialoga diretamente com as observações de Wagner (2000) para o processo de constituição da representação social que seria ao mesmo tempo: "(...) conteúdo mental estruturado - isto é, cognitivo, avaliativo, afetivo e simbólico - sobre um fenômeno social relevante, que toma a forma de imagens ou metáforas, e que é conscientemente compartilhado com outros membros do grupo social" além de "... um processo público de criação, elaboração, difusão e mudança do conhecimento compartilhado." (WAGNER, 2000, p. 3-4).

Funcionando

como

um

sistema

de

interpretação

da

realidade,

as

representações sociais dos moradores de favelas com UPPs instaladas em relação a esta política, embora não determinem completamente suas tomadas de decisões, por serem originadas no desenrolar das comunicações interpessoais da vida cotidiana, orientam seu universo de possibilidades. Assim, na medida em que esta ação política de segurança atua na esfera pública como algo singular, perscrutar as representações dos moradores a seu respeito; entender a estruturação do pensamento do senso comum local sobre tal empreitada governamental, apresenta-se como tarefa fundamental. Conduzir este exercício de pesquisa auxiliará tanto para o desenvolvimento teórico da Teoria das Representações Sociais, quanto para a compreensão da eficácia desta política pública que, inevitavelmente, vem alterando o modus vivendi destas comunidades e de seus moradores. A conjuntura pós-UPP, como está sendo dito, assedia as práticas correntes dos sujeitos e gera toda uma atividade narrativa nos espaços comuns. E é nos espaços comuns que se formulam e são partilhadas as opiniões a respeito do objeto. O compartilhamento das ideias do senso comum, lembra Castro é, portanto, “a chave paradigmática as representações sociais”. (CASTRO, 2015, p. 2). Vistas como uma “atmosfera” que se estabelece em relação aos indivíduos e aos grupos, para se efetivarem, as representações pressupõem que haja um

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“território comum”, mesmo com toda a dificuldade contemporânea de se delimitar parâmetros identitários (CASTRO, 2015). É neste “território comum” de compartilhamento de ideias que se dá a ancoragem. Como já foi dito aqui, o trabalho da ancoragem consiste no ato de transformar o objeto “novo” e por isso perturbador, através de um sistema particular de categorização, e “para ser compreendido exige o diálogo da psicologia social com a história e as teorias sobre memória social” (CASTRO, 2015, p. 3), e possivelmente, em se tratando de um estudo sobre as favelas do Rio de Janeiro, com as produções da sociologia urbana a este respeito. O exemplo dado por Moscovici a respeito do estudo de Jodelet sobre os doentes mentais fornece pistas para, em comparação, entender como possivelmente vem se dando a ancoragem do novo objeto UPP, na realidade dos moradores de favelas. Os doentes mentais do estudo de Jodelet, lembra Moscovici, colocados em convívio com a comunidade de Ainay-le-Chateau passaram a ser julgados por padrões convencionais que os moradores da cidade tinham para o desviante. Neste movimento de categorizar o novo objeto (os doentes mentais) e as ideias a respeito dele segundo os paradigmas que já possuíam, os moradores da cidade francesa o ancoraram em seu universo de explicações familiares. Dito de outra maneira, este ato de “categorizar alguém ou alguma coisa, [significou aos moradores da cidade francesa] escolher um dos paradigmas [estocados em sua memória] de modo a estabelecer uma relação positiva ou negativa com ele” (MOSCOVICI, 2011, p. 63). A "chegada" das UPPs seria, portanto o não-familiar que se apresenta às vistas dos moradores de favelas. Este não-familiar da presença constante dos policiais no território é posto em confrontação com as categorias familiares que já faziam parte do pensamento coletivo, onde ações policiais seguem um enredo muito bem determinado de incursão violenta a estes territórios.

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3 FAVELA – HISTÓRIA E REPRESENTAÇÕES

Este capítulo tem por objetivo descrever o fenômeno das favelas do Rio de Janeiro e a relação de controle e disciplinamento que é posta em prática pelo Estado e suas elites, desde a constituição destes territórios como local de moradia dos pobres urbanos. A história que será contada não é uma história nova. Objeto e produto de constantes disputas cognitivas e morais, a favela é tema de diversos estudos e intervenções de políticas públicas que, em muitos momentos, apenas solidificam as barreiras existentes entre a “cidade formal” e estes territórios. A partir de uma observação do processo histórico pelo qual passam as favelas do Rio de Janeiro, podemos identificar como transcorre o controle social e o disciplinamento, no modo de tratamento dado pelo Estado e suas elites a estes territórios. Durante o período escravocrata, o controle e disciplinamento ocorria, de um lado, no interior da propriedade rural, exercido pelo senhor de terras e seus funcionários (capatazes e capitães do mato). E, do outro, nos centros urbanos, atuava a força policial em relação a população pobre e livre, em uma espécie de desdobramento deste controle. Com o fim da escravidão, enquanto modelo formal de acumulação capitalista, segue-se a preparação urbanística da cidade do Rio de Janeiro para o novo momento econômico no qual o Brasil buscava se inserir. A principal reforma vivida pela cidade, posta em prática pelo prefeito Pereira Passos, significou o “aburguesamento” que exigiu do Estado e suas instituições mais iniciativas de controle sobre os não detentores da cidadania formal, notadamente, os negros, pobres e moradores das nascentes favelas. Às estratégias de urbanização e modernização da cidade somaram-se propostas de redefinição da ação policial e do controle operado por esta instituição, nos territórios pobres, que moldam, até hoje, os parâmetros de comportamento e sociabilidade na relação existente entre a cidade e suas favelas.

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3.1 Dos cortiços às favelas

As últimas décadas do século XIX trouxeram uma nova configuração à sociedade brasileira, principalmente, no arranjo político institucional que era sustentado pela infraestrutura econômica vigente. No mesmo período consolidava-se, no resto do mundo, a revolução industrial. Em solo brasileiro, sentem-se os impactos das repercussões da Guerra do Paraguai (1865-1870). A indústria da guerra solicitou a expansão da indústria manufatureira, o que por sua vez, expandiu inúmeros setores econômicos mais ligados ao território urbano, como a indústria naval, a fundição de ferro, o setor têxtil, e a produção de armamentos. Com o fortalecimento da economia industrial, o império vê ruir o consenso dentro das elites urbanas em relação à exploração de mão de obra escrava, ao passo que continua enfrentando uma ostensiva pressão por parte dos barões da agricultura cafeeira. Além das pressões internas, o governo imperial já vinha sofrendo coação por parte da Inglaterra, desde 1807, para a extinção da escravidão, não por razões humanitárias, como lembra Da Silva (2008), mas por conta do interesse de substituição do trabalho servil pelo assalariado, como forma de aumentar o mercado consumidor da nova ordem econômica trazida pela revolução industrial. Foi assim que, em 13 de março de 1828, o Brasil ratificou um acordo que previa a extinção do tráfico de escravos em três anos. A partir daí, dá-se a edição de uma série de leis relacionadas ao assunto8. Correram-se os anos e, em 1888, a princesa regente Isabel, assina aquela que ficou conhecida como a Lei Áurea, acabando oficialmente com a escravidão no Brasil. Uma observação desatenta do que significou a lei da abolição pode fazer crer na benevolência da princesa regente e de seu império, mas nesta história, abolição é algo bem diferente de emancipação.

8

Para uma exposição detalhada e leitura crítica da “legislação emancipadora”, recomenda-se o livro de Da Silva (2008), mais especificamente o capítulo III. “Negro e Direito”.

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Os dois artigos da Lei Áurea não tratam do que deveria ocorrer no dia seguinte à festa que se instalou no pátio do Passo Imperial e se espalhou pelas ruas do Rio de Janeiro. Passou-se agora a haver, no Rio e em todo o país, uma massa de novos cidadãos sem cidadania plena, aos quais são tolhidos os direitos mais elementares como morar e trabalhar (DA SILVA, 2008). Com a abolição há a migração dos libertos das fazendas para as zonas urbanas em busca de sustento. Esta massa de ex-escravos é jogada nas ruas das grandes cidades brasileiras, sem formação educacional ou capacidade técnica para se inserir nos nascentes parques industriais. O Estado brasileiro, por sua vez, estimulado pelas elites brancas, incentiva a migração de cidadãos europeus que têm a dupla função de servir para a formação de um exército industrial de reserva capacitado e, auxiliar no embranquecimento da população. Com estas duas migrações da pobreza: ex-escravos e europeus sem posses, estava posta a fórmula que fez crescer exponencialmente a população da cidade do Rio de Janeiro, em fins do século XIX. Lessa (2001) calcula que, em 1890, a cidade possuía uma população de 522 mil

habitantes,

destes,

cerca

de

106.461,

eram

de

origem

europeia.

Aproximadamente 24% da população era constituída de imigrantes estrangeiros e 22% de brasileiros de outras regiões, entre estes a grande maioria era de negros retirados das senzalas. Nesta nova demografia, onde os sujeitos contam apenas com seus corpos para o exercício de acúmulo de capital, a cidadania não é universal, tampouco o é o direito à moradia. Enquanto a população da cidade cresceu quase 90%, o número de moradias aumentou em apenas 62%, o déficit habitacional não ajudava a fechar a conta (LESSA, 2001). O comércio da época concentrava-se no centro da cidade e a indústria nascente, junto com o escoamento e entrada de novos produtos, em seu entorno (região portuária, São Cristóvão, Caju e Praça XI). A solução encontrada por aqueles que precisavam de acesso a esta estrutura e também de moradia foi ocupar

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os prédios disponíveis no centro. É assim que pipocam na cidade centenas de cortiços9. Pronto! Estava resolvida a equação da superpopulação da cidade, os pobres urbanos poderiam morar próximos a seu ganha pão. Engana-se quem pensar assim. Acaso as elites brancas, herdeiras do império e tão relacionadas com o mais moderno que ocorria na Europa, permitiriam que a cidade fosse tomada por Cabeças de Porco10? A condição insalubre dos cortiços, rapidamente os fez serem considerados como o principal foco de infecções sanitárias e esconderijo de criminosos. Sua erradicação que já vinha sendo tentada desde o império intensifica-se logo após a proclamação da república, quando teses higienistas começam a ganhar força junto ao governo. Gonçalves (2013) indica que este discurso higienista que procurava relacionar as camadas pobres da população e seus locais de moradia a grupos socialmente perigosos, apontava que a condição social dos sujeitos causava e reforçava os fatores naturais de contaminação. A legislação torna-se, pois, grande aliada para o controle dos cortiços. Foi-se pouco a pouco estendendo o perímetro de proibição para exploração do aluguel de quartos, até que, afinal, em 10 de fevereiro de 1903, por meio do Decreto n°. 391, o poder público proíbe a construção de novos, reforma ou manutenção de cortiços (GONÇALVES, 2013). Já em 1880, Karl Marx, no livro I de O Capital, atentava para o que as medidas sanitaristas estavam causando na Europa daquele momento. Tais avaliações assemelham-se diretamente com roteiro pelo qual a cidade do Rio de Janeiro passaria no início do século seguinte. Dizia Marx:

“(...) qualquer observador desprevenido percebe que, quanto maior o amontoamento correspondente de trabalhadores no mesmo espaço e, portanto, quanto mais rápida a acumulação capitalista, tanto mais miserável 9

Muitas outras designações eram usadas para identificar este tipo de construções (casas de cômodo, estalagens), contudo chama-las de “cortiços” era a opção mais recorrente usada pela imprensa e pela população da época.

10

Cabeça de Porco era como chamava-se o maior cortiço do Rio. Com uma cabeça do animal empalhada na porta, era habitado por cerca de 4 mil pessoas. Interditado pela Inspetoria Geral de Higiene, o Cabeça de Porco foi demolido em 26 de janeiro de 1893. O cortiço era propriedade do Conde d’Eu, marido da Princesa Isabel (MONTEIRO, 2004).

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as habitações dos trabalhadores. Os ‘melhoramentos’ urbanos que acompanham o progresso da riqueza, a demolição de quarteirões mal construídos, a construção de palácios para bancos, lojas etc., o alargamento das ruas para o tráfego comercial... desalojam evidentemente os pobres, expulsando-os para refúgios cada vez mais abarrotados de gente. Além disso, todo mundo sabe que a carestia do espaço para morar está na razão inversa da qualidade da habitação. Com o desenvolvimento e o ‘embelezamento’ das cidades, os males cresceram de tal modo que o simples medo das doenças contagiosas, que não poupam nem a respeitabilidade burguesa, motivou a promulgação pelo Parlamento de nada menos que 10 leis relativas à fiscalização sanitária”. (MARX, 1880:764-771, grifo nosso).

Do lado de cá, na parte de baixo do Atlântico. A administração do prefeito Pereira Passos (1902-1906) coloca em prática uma reforma urbanística e sanitária em todo o centro da cidade do Rio de Janeiro. A Reforma Pereira Passos abriu ruas (Avenida Central, atual Rio Branco) e foi responsável pela construção de uma arquitetura europeizada presente até hoje no cenário carioca. Seu sentido principal era o de sanear e higienizar a cidade, retirando os pobres de seu centro econômico. Como sabemos, e em nossas cidades ainda é assim hoje, estas pessoas constituíam o grosso da mão de obra barata necessária ao funcionamento da metrópole e tê-los distante significaria um sério impacto no arranjo produtivo da época e perdas consideráveis para aqueles que exploravam a força de trabalho. A solução encontrada foi autorizar a ocupação das encostas. É assim que, autorizados pelo poder público que momentos antes os havia desalojado, os sem teto do “bota a baixo” recolhem escombros e constroem barracos em morros próximos, iniciando o processo de ocupação das encostas da cidade. Os cortiços do centro da cidade viram algumas das favelas que conhecemos até hoje. 3.2 A favela como tema sociológico e político

O mito de fundação e a descoberta da favela como tema sociológico e político (VALLADARES 2000; 2011) são os pontos de partida para um entendimento privilegiado desta forma de organização social. Desde sua origem no cenário social brasileiro, as favelas são apresentadas como lugar comum de aglomeração da pobreza, da exclusão e da delinquência,

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espaço que assusta as classes mais abastadas e obriga o poder público a agir, via de regra, com força e violência contra seus moradores. A tarefa de determinar o momento em que estes territórios surgiram no cenário da cidade já foi empreendida por inúmeros autores, todos concordam com a origem do termo “favela” e sua relação com o fato de o Morro da Providência, nos arredores do Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro, ter sido inicialmente ocupado por soldados retornados da Guerra de Canudos (1896-1897). Ocorre que, no sertão da Bahia, estes soldados conheceram uma planta muito comum que recobria a vegetação de um morro local de nome Favella11 (Jatropa phyllaconcha). Em referência à campanha militar de Canudos e seus soldados o morro por eles ocupado passou a ser conhecido como “Morro da Favella” (VALLADARES, 2011; GONÇALVES, 2013). Ademais, outras ocupações como a do Morro de Santo Antônio eram relatadas. Valladares (2011) aponta que territórios como a Quinta do Caju, o Morro da Mangueira e a Serra Morena, onde se encontravam majoritariamente imigrantes europeus, também encontravam-se ocupadas, desde 1881 por incentivo do poder público. Outro autor, Campos (2010), defende a tese de que algumas favelas se desenvolveram a partir de antigos quilombo periurbanos que sem espalharam pela capital do Império, em meados do século XIX. Tese que é perfeitamente aceitável se pensarmos nas caracteristicas do Rio de Janeiro: capital de um regime escravocrata por mais de 300 anos, último país independente das Américas a abolir esta odiosa prática. Esta tese também é defendida por (LESSA, 2001), para quem, a organização de cunho quilombola urbana do Rio de Janeiro estaria presente na arqueologia da favela. Ele recorda que, alguns quilombos fronteiriços à cidade, como o da Serrinha, possibilitavam que seus moradores adentrassem a cidade para obter renda como faziam os escravos libertos. Ao observar todas estas características ligadas ao surgimento das favelas, é de se esperar que a convivência entre seus moradores o conjunto da cidade não nascesse pacífica. Nos primeiros anos do século XX, os desconfortos causados às 11

A grafia da palavra, até o ano de 1942, quando houve uma reforma ortográfica no Brasil, era favella. Sempre que for feita menção ao período até 1942 ou quando forem utilizados textos desta época, será mantida a grafia original.

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classes dominantes por estas aglomerações originaram inúmeras iniciativas estatais que buscaram conter e até mesmo eliminar a presença das favelas da topografia da cidade. O pensamento urbanista de então absorve uma concepção organizativa de cidade, pautada pelos interesses do crescente mercado imobiliário, cuja orientação era regular a divisão espacial da cidade segundo suas necessidades de acumulação de capital. Há uma valorização financeira de muitos terrenos ocupados por favelas nas zonas sul e central da cidade. É deste período a proibição do Código de Obras12 do Rio de Janeiro de se construir novas moradias nas favelas. (VALLADARES, 2011; GONÇALVES, 2013). Havia uma intensa necessidade do poder público de entender tal reordenação dos pobres no espaço urbano e “na origem desse conhecimento impunha-se uma finalidade prática: conhecer para denunciar e intervir, conhecer para propor soluções, para melhor administrar e gerir a pobreza e seus personagens.” (VALLADARES, 2000, p. 7). Como podemos ler nos inúmeros relatórios da época sobre as favelas, havia por parte do poder público um posicionamento evidentemente preconceituoso. Um deles, apresentado pelo diretor do Albergue da Boa Vontade Vitor Tavares de Moura ao Secretário-Geral da Saúde, é como um enunciado do pensamento recorrente das elites sobre as favelas, naquele caso específico o Morro da Favela:

“A vida lá em cima é tudo quanto há de mais pernicioso. Imperam os jogos de baralho, de chapinha, durante todo o dia, e o samba é a diversão irrigada a álcool. Os barracões, às vezes com um só compartimento abrigam, cada um, mais de uma dezena de indivíduos, homens, mulheres e crianças, em perigosa promiscuidade. Há pessoas que vivendo lá em cima, passam anos sem vir à cidade e sem trabalhar. E este morro está situado no coração da cidade, junto ao centro de trabalho intenso que são o porto, os moinhos Fluminense e Inglês, as Usinas Nacionais”. (VALLA, 1986, p. 35).

A descoberta da favela como fenômeno social se dá por conta da situação incômoda que sua presença causava na paisagem da cidade. O vertiginoso crescimento que experimentaram, colocando-as cada vez mais próximas da cidade 12

O Decreto Municipal n°. 6.000, de 1°. De julho de 1937, estabeleceu, pela primeira vez em seu artigo 349, um conceito jurídico oficial para tipificar as favelas, além de tratar das demais questões relacionadas à postura urbana como construções, loteamentos, altura dos prédios e zoneamento. Suas especificações vigoraram até 1970 e influenciaram toda a expansão urbana do Rio de Janeiro e outros municípios que o tomaram como exemplo.

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institucional, fez surgir o pensamento de que sua remoção era a solução para ordenar o solo urbano. Somado a este caráter de “aberração” dado as favelas estava sua invisibilidade política. Os barracos concentravam uma população de analfabetos, impedidos de votar até então, e desempregados, que por estarem fora do mercado de trabalho formal não recebiam a devida atenção das políticas sociais. Estes sujeitos, por sua lateralidade social, ficavam de fora do jogo político da cidade, sendo obrigados a receber a imposição de ações governamentais construídas sem seu conhecimento ou concordância.

3.3 A regulação da favela

Como um lócus onde se encontravam diversas mazelas da pobreza urbana, com habitações tidas como anti-higiênicas e denunciada como um local à margem da cidade, a favela preocupava e assustava as elites, tornando-se tema recorrentemente tratado por médicos sanitaristas, jornalistas e profissionais ligados à filantropia, engenharia, ao direito e à religião. Tal tratamento possuía uma clara orientação para o cuidado e a manutenção da ordem econômica e social que beneficiava as classes mais abastadas da cidade. (VALLADARES, 2000). Como tentativa de reordenar a cidade, é apresentada a proposta da construção de habitações populares que removeriam os moradores para zonas afastadas dos locais de moradia das classes médias da cidade, surgem assim os Parques Proletários. (VALLA, 1986). No relatório de Vitor Tavares de Moura, citado por Valla (1986), é possível perceber qual era a orientação para a construção destas moradias, diz o relatório: Casas provisórias, pelo menos do tipo mínimo permitido pela lei, serão imediatamente construídas e para elas transferidos os moradores dos casebres, tendo em vista as suas condições de saúde, de trabalho e de defesa contra a varíola, difteria, doenças do grupo coli-tífico, além da inspeção torácica e apurações de conduta social (VALLA 1986, p.38).

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Por meio de incentivos fiscais e da participação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, foram construídos, no ano de 1942, três conjuntos nos bairros da Gávea, Caju e Leblon, para onde se mudaram cerca de 4.000 pessoas. Para serem selecionados e receberem uma moradia nos parques, os indivíduos deveriam obedecer a inúmeros critérios, entre eles, ter trabalho comprovado na Zona Sul do Rio de Janeiro e possuir atestado de bons antecedentes. Além disso, a vida nos parques proletários significava a obediência a severas regras de controle social. Esta atmosfera nos parques acabou gerando muitas resistências entre os moradores (VALLA 1986, p.38-39). A experiência dos parques proletários criou um movimento de articulação interna que está na origem da organização das associações de moradores das favelas. A preocupação com a remoção de seus locais de vínculo afetivo e redes sociais, com a qualidade das habitações oferecidas e com o intenso controle sofrido, suscita nos moradores a necessidade de ação política para impedir que o estado agisse sem sequer consultá-los (BURGOS, 2006). O contexto nacional era de saída de uma ditadura13. O Partido Comunista (PC), que até então atuava de maneira clandestina, passa a intensificar sua ação junto aos favelados, o que é percebido em sua grande vitória para a Câmara de Vereadores, quando elegeu 36% dos representantes, nas eleições de 1947. Esta vitória se deu porque a trajetória de luta dos comunistas contra o fascismo e todo seu ideário de construção de uma sociedade igualitária encontrou reflexo nos anseios dos moradores dos parques proletários e favelas da cidade, tão envolvidos com um cotidiano de estigmatização, repressão e ausência estatal. O PC instalou centenas de comitês populares pela cidade e nas favelas que duraram até o fim de seu curto período institucional, mas mesmo com a revogação da autorização de funcionamento do partido, em 7 de maio de 1947, as bases para a organização política dos moradores de favelas já estavam lançadas. A atuação política dos moradores de favela junto ao PC cria e dá impulso a metáfora segundo a qual, era preciso, para o poder público “subir o morro antes que

13

O Estado Novo, período ditatorial que marcou o segundo governo de Getúlio Vargas (1937-1945).

60

deles desçam os comunistas”14. Era necessária alguma ação para solucionar as pautas dos favelados e, consequentemente, diminuir sua militância, para isso entra em atuação a Arquidiocese do Rio de Janeiro. A Igreja Católica, em acordo com o Estado e servindo aos seus interesses, intensifica, naquele momento o trabalho começado junto a estas populações pela Fundação Leão XIII. O documento de origem da Fundação dizia ser sua finalidade “dar assistência material e moral aos habitantes dos morros e favelas do Rio de Janeiro”. Por outro lado era visível que a função política de tal organismo consistiria em resolver o problema do controle político e da formação de bases eleitorais no seio de uma população com forte potencial para organização e luta como era, já naquele momento, a população favelada carioca (BURGOS, 2006, p. 29). Da parte do Estado e da Igreja estava estruturada a política assistencialista do momento, com o intuito de arrefecer os conflitos. O que originou outros instrumentos como a Cruzada São Sebastião, ligada a própria Igreja e o Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-higiênicas (Serfha), órgão do poder público. Ambos tinham como norte organizador minimizar a intensidade das pautas dos excluídos por meio de intervenções que iam do remocionismo ao estímulo à criação de associações de moradores “domesticadas” segundo um código de condutas. Liderada por Dom Helder Câmara, bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que depois viria a se tornar um dos grandes ícones da Igreja Católica na luta em favor dos menos favorecidos, a Cruzada São Sebastião iniciou sua atuação em 1955. Dom Helder pregava que o problema das favelas deveria ser solucionado no prazo de 12 anos, quando, até as comemorações do 4°. centenário da cidade, todas as favelas estariam urbanizadas. A urbanização das favelas sob o controle da Igreja

14

Lema alardeado pelas autoridades e por membros da Igreja católica, quando da criação da Fundação Leão XIII. Valla (VALLA, 1986, p. 43). Também citado no relatório SAGMACS pág. 38.

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começou pela favela da Praia do Pinto, de onde foram transferidos os moradores para um conjunto habitacional no Leblon15. Nos anos que se seguiram, Dom Helder, em nome da Cruzada São Sebastião atuou intensamente junto às questões que envolviam as favelas da cidade, reunindo-se com autoridades e moradores. A Cruzada recebeu doações de terras da União e, com a venda de alguns destes terrenos, angariou fundos para suas ações (RODRIGUES, 2103). Ainda no ano de 1956, na gestão de Negrão de Lima, a prefeitura do Distrito Federal instituiu um órgão que teria atribuições que dialogavam muito com os planos da Cruzada. Ao Serviço Especial de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (Serfha)16 cabia, dentre outras coisas, criar “centros de acolhida na periferia do Distrito Federal” que serviriam para o “controle e orientação das populações migrantes”, além do “estudo e acordos para a criação de colônias agrícolas na região geoeconômica em que se situa o Distrito Federal”17. Ademais, o Serfha deveria ser também responsável por iniciativas de urbanização e assistência médica, social e policial nas favelas. A partir da década de 1960, o órgão passa a ser comandado por José Arthur Rios, na época, um jovem sociólogo que havia acabado de participar do primeiro estudo sociológico sobre a realidade das favelas do Rio de Janeiro18. Sob o comando de Arthur Rios, o Serfha inicia um trabalho de buscar uma proximidade maior do Estado com a população favelada. Para isso, começa a instigar a organização de associações de moradores nestes territórios.

15

O conjunto construído no Leblon recebeu o nome do órgão da Igreja e é conhecido até hoje como Cruzada São Sebastião. Para lá foram transferidos cerca de 171 moradores da favela da Praia do Pinto. Nos tempos atuais, os moradores da Cruzada continuam a conviver contiguamente com a classe média alta da cidade e sua presença é vista como a principal causadora dos problemas de segurança no bairro. (OLIVEIRA, 2012).

16

Um mês após a criação do Serfha, o presidente Juscelino Kubitscheck promulgou a chamada Lei 2875, de 19 setembro de1956, chamada de “Lei das favelas”. Através desta lei a União destinou uma verba de 50 milhões de cruzeiros à Cruzada São Sebastião, para promover a ‘urbanização’ das favelas do Distrito federal, assim como verbas com o mesmo fim, para as cidades de Recife, Vitória e São Paulo (RODRIGUES, 2103). 17 Decreto n°. 13304, de 28 de agosto de 1956. 18

A pesquisa “Aspectos Humanos das Favelas Cariocas”, conduzida pelos técnicos da Sociedade para Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (SAGMACS), liderados pelo padre Lebret. Adiante trataremos mais especificamente desta pesquisa que inaugurou o campo de estudos sociológicos sobre o fenômeno das favelas do Rio de Janeiro.

62

Trajado de um idealismo democratizante, pois estimulava a participação política e a organização dos favelados em instituições representativas de sua realidade, este feito do órgão governamental tinha, na verdade, um objetivo muito próprio que era o do controle político das associações pelo Estado e a contenção do crescimento das favelas, como demonstra o texto do acordo que era firmado entre as associações e o Serfha. Eram compromissos das associações: i.

Cooperar com a Coordenação de Serviços Sociais, na realização de programas educacionais e de bem-estar.

ii.

Cooperar

na

urbanização

da

favela,

recolhendo

quaisquer

contribuições dos residentes para a melhoria local, responsabilizandose pela utilização de tais contribuições e submetendo-se a supervisão da coordenação. iii.

Contribuir para a substituição progressiva dos barracos por construções mais adequadas e cooperar, através da mobilização do trabalho, para a realização de outras obras de emergência na favela.

iv.

Cuidar das construções e melhorias feitas na favela.

v.

Solicitar a autorização da Coordenação para a melhoria das casas, especificando a necessidade de reparo e manutenção.

vi.

Impedir a construção de novos barracos, vindo, quando necessário, a esta coordenação para apoio policial.

vii.

Cooperar com a Coordenação para realocar os moradores removidos das favelas.

viii.

Encaminhar à coordenação as necessidades e reinvindicações da favela relativas a serviços públicos, manutenção, saneamento, polícia e higiene.

ix.

Na favela, manter a ordem, o respeito pela lei e, de um modo geral, garantir o cumprimento das determinações da Coordenação e do Governo.

x.

Dirigir todos os pedidos de assistência médica, hospitalar e educacional para a Coordenação.

Em contrapartida a Coordenação, representando o Estado, se comprometia a: i.

Fortalecer a associações da favela e nada fazer nas favelas ou vilas operárias, sem anúncio ou acordo prévio.

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ii.

Desenvolver um plano permanente de bem-estar para a favela com relação a melhorias no local, suas habitações e a situação de seus habitantes.

iii.

Supervisionar a utilização dos recursos recolhidos pela associação e aplicados para melhorias na favela;

iv.

Substituir progressivamente os barracos por construções mais adequadas, com a ajuda dos próprios favelados;

v.

Autorizar a melhoria dos barracos existentes, tendo sido os reparos aprovados pela associação.

vi.

Dar assistência às necessidades e reivindicações da favela, procurando a ajuda de outros organismos, mas sempre com cooperação com as associações.

vii.

Impedir qualquer violência da parte dos detentores de falsos títulos de propriedade contra os favelados.

viii.

Impedir

a

exploração

dos

favelados

sob

qualquer

forma,

especialmente com relação ao aluguel de barracos e ao fornecimento de eletricidade. ix.

Estimular a criação de cooperativas pela Associação, de modo a combater a exploração dos favelados por intermediários.

x.

Atender aos pedidos de assistência médica, hospitalar educacional sempre que associação levá-los à Coordenação, dentro dos limites dos recursos existentes (LEEDS; LEEDS, 1978, p. 248-250).

Nos termos do acordo acima apresentado, nota-se a orientação para uma relação comensal entre as associações e a Coordenação, onde a atuação política nas favelas, bem como a vida de modo geral, deveria ser regulada pelo Estado. A subordinação política era a moeda de troca por serviços públicos e urbanização do território (BURGOS, 2006). Com o esvaziamento do Serfha, ainda na década de 1960, ocorre a criação da Cooperativa de Habitação do Estado da Guanabara (COHAB) que era apresentada como uma instituição com fins de dar assistência às favelas para melhorá-las com a construção de casas e urbanização. Na prática, a atuação da COHAB marca o início de um período de remoção sumária das favelas, corroborando com a política de remoção executa a construção

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dos conjuntos habitacionais de Vila Esperança, Vila Kennedy, Vila Aliança e Cidade de Deus, removendo cerca de 42.000 pessoas e destruindo mais de 8.000 barracos. O período inaugurado pelo golpe civil militar de 1964 traz tempos de exceção política na sociedade brasileira e a ação coletiva, ainda embrionária nas favelas cariocas, sofre um duro revés, quando setores do Estado que defendiam claramente a remoção passam a ocupar mais espaços de influência na formulação de políticas públicas. Inúmeras mudanças políticas e administrativas ocorrem neste período, entre eles, é decretado o fim do Serfha que teve suas funções incorporadas pelo Serviço Social das Favelas e pelo Departamento de Recuperação de Favelas (VALLA, 1986). As ações de remoção deste período não se deram sem luta e violência, e este clima de exceção e terror com o desaparecimento de lideranças atrelado ao sentimento de impotência serve para que seja posta em curso uma certa “cooptação”. O apoio político no interior das favelas era negociado em troca da oferta de vagas de empregos ou transferência de recursos para as associações de moradores, elevando as lideranças locais ao posto de representantes do Estado no interior das favelas, fazendo com que algumas chegassem até a apoiar as remoções. (MACHADO DA SILVA, 2011). A remoção e a violência do período militar causaram um forte refluxo no processo de organização política dos excluídos. Desterritorializar e despersonalizar estes sujeitos enquanto atores sociais e políticos eram objetivos patentes e o sucesso desta empreitada estatal deixa um vazio político (BURGOS, 2006, p. 39). As iniciativas de remoção das favelas para os conjuntos habitacionais ganharam força com a chegada da Ditadura Militar ao poder, a violência destas ações causou um forte refluxo no processo de organização política dos excluídos. Desterritorializar e despersonalizar estes sujeitos enquanto atores sociais e políticos eram objetivos patentes. Já na década de 1970, a crise do capital enfrentada pelos Estados e a consequente emergência de governos neoliberais, especialmente, em países da América Latina, trouxe uma nova maneira de enfrentar o problema da habitação e da favelização das grandes cidades influenciada pelas cartilhas do Fundo Monetário

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Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Sobre esta nova conjuntura, Davis vai dizer que: “Melhorar as favelas em vez de substituí-las tornou-se a meta menos ambiciosa da intervenção pública e privada. Em vez da reforma estrutural da pobreza urbana imposta de cima para baixo, (...) a nova sabedoria do final da década de 1970 e início da de 1980 exigia que o Estado se aliasse a doadores internacionais e, depois, a ONGs para tornar-se um “capacitador” dos pobres. Em sua primeira iteração, a nova filosofia do Banco Mundial (...) insistia numa abordagem de oferta de “lotes urbanizados” (fornecimento de infraestrutura básica de água e esgoto e obras de engenharia civil) a fim de ajudar a racionalizar e melhorar as habitações construídas pelos próprios moradores” (DAVIS, 2006, p. 79-80).

No Rio de Janeiro, a percepção desta nova maneira estatal de agir nas favelas fica evidente na substituição das remoções pelo oferecimento de obras de infraestrutura e de diversos programas das três esferas governamentais. Esta mudança de orientação governamental, atrelada a mudanças na legislação em relação às favelas, à construção de habitações de alvenaria e à chegada de concessionárias de serviços públicos desde o final dos anos de 1970, constituem, para alguns autores da sociologia urbana, dispositivos capazes de tornar as favelas bairros das cidades. Contudo, em contraposição a esta tese da “vitória da favela” 19 o que se percebe é que tais ações, apesar de contribuírem para estabelecer um espaço habitável aos moradores, descuidam dos problemas de sua integração no conjunto da sociedade. Afinal, apenas urbanizar a favela não habilita seus moradores a estabelecer vínculos significativos com o restante da sociedade. Efetivamente, se a favela venceu, como defende a tese, os favelados não venceram, dado o fato de que, nos dias atuais, permanecem travando um intenso combate, em busca de reconhecimento e respeito aos seus direitos mais fundamentais. Há, na atualidade, como recorda Machado da Silva, uma “continuidade do problema da favela”, nas cidades brasileiras. A desarmonia, bem lembra o autor, reside no fato de os moradores das favelas permanecerem no lugar que lhes foi

19

Alba Zaluar e Marcos Alvito introduzem a coletânea “Um século de Favela”, defendendo a tese de que “Após 100 anos de luta, empregando diferentes formas de organização e de demanda política, inclusive o carnaval, a favela venceu.” (ZALUAR e ALVITO, 2006, p. 21).

66

estabelecido na hierarquia social, o de sujeitos obrigados a reproduzir as desigualdades constituintes da sociedade brasileira (MACHADO DA SILVA, 2002).

3.4 Tráfico de drogas e o fortalecimento da empresa criminal nas favelas

Para Elisabeth Leeds (2006), a transição dos regimes autoritários para a democracia na América Latina traz consigo a necessidade de uma transição econômica que gera um aumento considerável nos níveis de pobreza destes países. No Brasil, também a partir dos anos de 1980, a economia tem as estruturas abaladas com o rompimento do ciclo forte da industrialização nacional. Isto afeta drasticamente os processos de mobilidade social, favorecendo ainda mais a exclusão do segmento favelado na estrutura social brasileira. No mesmo período histórico, a organização transnacional do crime passava por um reordenamento e a entrada da cocaína no mercado das drogas do Rio de Janeiro trouxe junto consigo um moderno aparato bélico do qual o tráfico de drogas não podia prescindir, para pôr em prática suas ações e proteger aqueles que passavam a ser, a partir daquele momento, seus territórios. Inegavelmente, o crime e as bocas de fumo já existiam nos morros e favelas cariocas, contudo, como evidencia Leeds (2006), a convivência entre os criminosos comuns e os presos políticos no presídio da Ilha Grande, significou, para o primeiro grupo, um salto nas suas técnicas de organização, influenciando na criação do Comando Vermelho que viria a se tornar a principal organização criminosa daquele período. Para os chefes do Comando, o tráfico de cocaína significou uma maneira real de manter altos lucros sem que para isso precisasse pagar à polícia as propinas que lhes eram exigidas nos assaltos a banco. Assim, havendo condições favoráveis, o tráfico de cocaína e outras mercadorias aumenta, e, com ele, o envolvimento das comunidades em que se acham os traficantes. Como no final dos anos 70 e início dos anos 80 os líderes da falange ou Comando Vermelho estavam instalados em favelas por todo o Rio, o crescimento do tráfico de drogas nessas comunidades foi uma consequência natural. (LEEDS, 2006, p. 239).

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Triste coincidência. É no momento em que a sociedade brasileira começa a experimentar sopros de democratização de suas instâncias políticas que os moradores das favelas do Rio de Janeiro passam a ter seu algoz, antes apenas representado no aparelho repressor do Estado, agora também visível na figura do traficante armado com quem passam a coabitar. Por suas especificidades de localização, pela conjugação de um amplo processo de segregação econômico, jurídico, político e simbólico, levando a uma ausência, quase que total, de serviços públicos e uma presença fragilizada do estado, as favelas transformaram-se no ambiente propício para o comércio e distribuição das drogas no varejo. Com isto seu controle territorial passou a ser, para os traficantes, uma necessidade para o bom andamento da empresa criminal. Os combates extremamente violentos entre as diversas quadrilhas pelo controle territorial, a fim de expandir seus negócios, intensificaram-se na década de 90. Somado a isto as ações reativas contra essas quadrilhas passaram a ser rotina, com o Estado agindo de maneira repressiva dentro das favelas contra o mal representado na figura do traficante favelado, e no meio desse tiroteio, os moradores das favelas criminalizados desde sempre. Conforme sustenta Leeds: [...] a violência física e criminosa resultante do tráfico de drogas é uma forma visível e palpável da violência empregada pelo Estado, e ela mascara uma violência estrutural-institucional mais oculta, ao mesmo tempo em que perpetua relações políticas neoclientelistas com essas comunidades de baixa renda (LEEDS, 2006, p. 235).

Segundo Machado da Silva, em todas as partes do mundo os territórios pobres, de um modo geral, tendem a ser penalizados pelo comércio dos traficantes, o que em nenhuma medida orienta suas referências morais e cognitivas ou suas ações sociais. Primeiro, porque as linhas de comando da cadeia produtiva das drogas ilícitas estão fora destas áreas e, até mesmo, do território nacional. Segundo, porque é sabido que a localização física do varejo está muito longe de restringir-se aos espaços urbanos mais desfavorecidos que respondem apenas por uma maior concentração deste tipo de atividade, tornando-a mais visível. (MACHADO DA SILVA, 2006, p. 3).

O ambiente de segregação e debilidade da presença do Estado nas favelas permite ao tráfico sair, ao menos naqueles territórios, da clandestinidade que teria

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que resguardar em outros locais da cidade, esta “exposição pública”, naquele ambiente, dos crimes resultantes do comércio de drogas exerce uma força interna, na medida em que oprime a vida cotidiana dos moradores, impondo regras e costumes que cristalizam sua submissão frente ao poder dos criminosos, e outra externa quando afeta o bom andamento da rotina das classes médias e altas na cidade. Ora, se é dentro das favelas que estão os traficantes esta retorna ao cenário político administrativo como um problema social, como um território desregulado, fora de controle que precisa ser “pacificado20” pelo Estado. Na atualidade, apesar de iniciativas interessantes para a melhoria das condições de vida dos moradores das favelas, a forma do poder público e da sociedade se relacionar com estes territórios permanece inalterada. Como colocam Viviane Rocha e Dario Sousa e Silva (2009), a atmosfera política e social que a favela experimenta leva o conjunto da cidade do Rio de Janeiro a vê-la como um lugar perigoso necessitado de uma ação colonizadora por parte do poder público. Dizem os autores: Favelas são fronteiras mais simbólicas que geográficas, sobre as quais a parte mais amedrontada do senso comum e alguns atores políticos proeminentes supõem que toda atividade social seja baseada pelo ilícito, pelo avesso do direito em seu sentido amplo. Essa suposta distância em relação à participação em seu pacto coletivo de civilidade faz parecer a formuladores de políticas ou indivíduos envolvidos no policiamento direto que a favela é um território que deve ser colonizado preventivamente, sobretudo tendo em vista sua periculosidade. (ROCHA, V.; SOUSA E SILVA, D., 2010, p. 457).

Violência, segregação e estigma são os retalhos da colcha que cobre as favelas cariocas. E estes são os desafios que as políticas de segurança têm que enfrentar para mostrar se estão aptas a melhorar a qualidade de vida no Rio de Janeiro ou se são apenas mais uma saída para o sufocamento da pobreza em seus territórios. Discursos piedosos ou críticos, progressistas ou liberais reeditam velhos e enferrujados mitos intelectuais, para explicar as razões da “crise urbana” e justificar

20

Em nossa opinião, a ideia de pacificação remeteria a um rearranjo do pensamento sanitarista e policial dos primeiros momentos das favelas que viam aqueles territórios como uma patologia social que precisava receber um tratamento asséptico e ordenador. Na atualidade, gestada por setores ligados aos movimentos de não violência, tal ideal tem nas as ONGs seu principal agente propagador nos territórios de pobreza. Adiante procuraremos tratar com mais atenção este assunto.

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soluções técnicas, nem sempre democráticas para a questão da violência nos ambientes marginalizados. A construção da memória deste fenômeno em que se transformaram as favelas bem como das representações sociais construídas por seus moradores e agentes políticos configuram-se como condição preponderante para entendê-las, e para compreender como sua presença molda não apenas a paisagem geográfica da cidade, mas todo o ambiente político e social experimentado no Rio de Janeiro, e pode contribuir para desmistificar uma gama de argumentações que ainda as apresentam como lócus da pobreza e violência, passíveis de regulamentação e até mesmo de pacificação por parte do poder público e seus agentes.

3.5 “A Favella está pacificada, regenerada!”

“Sr. Chefe de Polícia do Districto Federal: attendei, pois, a essa gente! A Favella quer viver em paz, quer fazer parte do nosso meio, respeitando ou discutindo conosco as nossas leis, tomando parte nos festejos solemnes das nossas datas históricas, entrando em nossas salões e admirando as nossas artes o os nossos hábitos de povo civilizado! A Favella está pacificada, regenerada! Todavia, Sr. Chefe da Segurança do Districto, creado o posto policial no cocuruto do morro, enviae para ali, por cautela homens fortes e decididos: o tigre, depois de ferido e moribundo, ainda mata três caes de uma dentada”21.

A rotina das favelas do Rio de Janeiro, já muito movimentada pelo ambiente gerado com as disputas territoriais entre os comandos criminosos e entre estes a polícia, passou, a partir de novembro de 2008, a contar com mais um episódio emblemático de como se processam as ações estatais para com os territórios da pobreza. A referência é ao que ficou conhecido como o maior programa desenvolvido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro no sentido de “pacificar” as favelas controladas por traficantes de drogas e seu poderio militar. 21

Trecho de texto publicado na Revista da Semana de 15 de agosto de 1936. Citado por Gonçalves (2013).

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Tudo começou com a ocupação do Morro Santa Marta por 130 policiais, no dia 19 de novembro. A chegada destes homens ao território seria apenas mais uma incursão da polícia, no intento de capturar traficantes sem muita importância para quem não mora na favela, contudo iniciava-se uma sessão do que se tornou o roteiro atual da política de segurança do governo do Estado para com os territórios conflagrados. No primeiro momento, como podemos comprovar com as notícias dos jornais de grande circulação, nem o próprio governo do Estado sabia ao certo qual era o objetivo daquele ato, chegando a dizer que o objetivo seria promover um “choque de ordem”, pois com a presença da polícia de maneira ostensiva as diversas concessionárias de serviços públicos poderiam entrar no território e atuar livremente22. As discussões que se seguiram à chegada da polícia no morro Santa Marta foram delineando aquela nova forma de agir do governo. Começou-se a falar na instalação de “um novo modelo de policiamento” “com ações de duração infinita”, “um laboratório, um modelo de política de segurança pública23” e que este modelo seria estendido para outros territórios controlados pelos traficantes. Alguns dias após a ocupação, os jornais noticiavam que a presença da polícia havia feito cessar a venda de drogas nas bocas de fumo e, exatamente um mês após a chegada dos policiais no Santa Marta o governador do Estado subiu o morro para inaugurar um Posto de Policiamento Comunitário. Desde então, as ocupações policiais se seguiram e os postos de policiamento mudaram de nome. Agora, são as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) presentes em 38 favelas da cidade. Desde a primeira incursão e ocupação permanente, em finais de 2008, até agora, a Secretaria de Segurança tem tentado elaborar muito a respeito de seu programa de “pacificação”. Segundo o governo, novos policiais estão sendo formados dentro das concepções de “policiamento comunitário” e de “proximidade”, elaboradas pela atual cúpula da segurança do estado. 22

Conforme noticiado no jornal O Globo, de 20 de novembro de 2008: “Polícia ocupa Morro Dona Marta.”.

23

Declarações do secretário de segurança José Mariano Beltrame, veiculadas em matérias do jornal O Globo, de 03 de dezembro de 2008: “Dona Marta livre dos bandidos” e “Secretário anuncia tsunami de ações sociais com nova política.”.

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Em relação a isto cabe um parêntesis: Apresentado pelo Governo do Estado e celebrado pela grande mídia e alguns acadêmicos como “policiamento comunitário” ou de “proximidade”, o projeto das UPPs implantado no Rio de Janeiro destoa radicalmente dos ideais preconizados pelo Coronel-PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira, introdutor destas discussões na polícia fluminense. Quando foi Comandante Geral da Polícia Militar nos dois governos de Leonel Brizola (19831987 e 1991-1994), o Coronel Cerqueira conduziu as ações da polícia pautado pela importância de reformular o modo como o aparato de segurança se relacionava com a sociedade civil, dando forte atenção ao respeito aos direitos humanos e às sociabilidades locais. Adiante as ideias do Cel. Cerqueira e de seus colaboradores serão apresentadas e discutidas em contraponto ao proposto pela atual cúpula da segurança do Rio de Janeiro para as UPPs. Voltando à UPP, até hoje, a pouca fundamentação legal do Programa (três Decretos-lei)24 pode ser considerada como um marcador importante de como mais uma vez nas políticas de segurança executadas no Rio de Janeiro se “coloca o carro na frente dos bois”. Tomando como base os documentos oficiais que tratam das UPPs, Cano, Borges e Ribeiro (2014) analisam que desde seu surgimento o “(...) o projeto das UPPs avançou de forma experimental e pragmática, sem responder a um plano previamente desenhado” (CANO; BORGES; RIBEIRO, 2014, p. 18). Como pode ser lido nos Decretos-lei n°. 41.650, de 21 de janeiro de 2009, e n°. 41.653, de 22 de janeiro de 2009, destes dois apenas o do dia 21/01 dispõe sobre a criação da Unidade de Polícia Pacificadora na estrutura da Polícia Militar e o do dia 22 indica o pagamento de uma gratificação salarial para os policiais que dela fizerem parte. Os autores constatam que apenas dois anos após os dois primeiros decretos, há um avanço dos pontos de vista da estrutura, dos objetivos e da organização de atuação do Programa. Com o Decreto-lei 42.787, de 6 de janeiro de 2011, há o estabelecimento de que as UPPs, “destinam-se a aplicar a filosofia de proximidade nas áreas designadas para a atuação” (Art. 1°). Adiante, no § 1° deste artigo, há a 24

O fato de ter sido criado por decreto aponta para a baixa institucionalidade da ação. Junto a isto, uma tentativa de discussão dos critérios para a implantação das UPPs apresentada pelo, então, deputado estadual Alessandro Molon (PT), o projeto de lei no 2.966/2010, foi majoritariamente vetado pelos representantes da bancada do governo na Assembleia Legislativa.

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apresentação dos critérios para a escolha das comunidades onde se deve implantar UPPs: “comunidades pobres, com baixa institucionalidade e alto grau de informalidade,

em

que

a

instalação

oportunista

de

grupos

criminosos

ostensivamente armados afronta o Estado Democrático de Direito”. O artigo 2°. estabelece que o “programa de pacificação” deve ser realizado em quatro etapas interligadas: i.

Intervenção Tática – onde há principalmente o emprego do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), do Batalhão de Polícia de Choque (BpChoque), duas das unidades policiais mais impregnadas pela lógica do confronto militar, para a recuperação do controle estatal;

ii.

Estabilização – ocasião em que as ações de intervenção tática e cerco da comunidade são intercaladas;

iii.

Implantação da UPP – quando há efetivamente a chegada dos policiais “especialmente capacitados para o exercício da polícia de proximidade” (sic);

iv.

Avaliação e Monitoramento – quando, após instalada a UPP, há a produção de dados sobre sua presença na comunidade.

A redação dos demais artigos do decreto delineia questões administrativas do cotidiano das UPPs, classificando-as segundo seu contingente e estabelecendo critérios para a escolha dos comandantes, entre outras questões. Mas, dentre estes, o que chama atenção é o artigo 10° que ordena no inciso I de seu parágrafo único que o Instituto de Segurança Pública (ISP) – autarquia estadual responsável por produzir estudos e análises das incidências criminais – no prazo de (60) dias, a partir da publicação do Decreto, deveria produzir e divulgar o “Programa de Polícia Pacificadora”, onde constaria “dentre outros tópicos, seus objetivos, conceitos, estratégias, indicadores e metodologia de avaliação”. Até o momento de divulgação desta pesquisa foram visitadas todas as páginas oficiais dos órgãos do Estado, bem como foi feita uma minuciosa pesquisa sobre publicações que tratassem da questão na rede mundial de computadores, mas não foi possível encontrar qualquer menção a este documento. Nos tempos atuais, a presença ostensiva dos comandos criminosos realmente não é mais vista nas favelas ocupadas e o tráfico se reduziu a vendas eventuais conhecidas como “esticas”. No entanto, a grande mídia tem noticiado uma série de ataques às sedes das UPPs e constantes confrontos entre traficantes e

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policiais destas unidades, o que demostraria uma tentativa dos criminosos de restabelecer suas bases de controle. Outro percalço a ser enfrentado pela nova política de segurança para e que foi verificado e será discutido adiante é o risco de policias das UPPs ocuparem certo papel de mediação dos conflitos internos das comunidades e, até mesmo, agirem de forma a tutelar a ação política em seu interior. Mormente, o que se vê após a chegada dos policiais militares é uma série de reclamações dos moradores a respeito da truculência utilizada como instrumento de controle do seu cotidiano. Como em uma continuação da “metáfora da guerra”, as principais críticas dos moradores apontam para a deficiência na oferta de serviços sociais e para certa “policialização” da ação política das organizações de base nas favelas, principalmente das associações de moradores, como foi comprovado por Leite (2012; 2014), para quem: (...) os agenciamentos e dispositivos acionados nas favelas, no campo da “pacificação”, constituem uma inflexão nos modos de gestão da vida e de administração de conflitos nessas localidades que, embora incida em alguns aspectos da política de segurança pública praticada nesses territórios desde a década de 1980, não rompe completamente com a noção de “guerra” mobilizada por esta, e sim desloca seu campo de atuação. (LEITE, 2014, p. 625).

Se no passado a ação do Estado se pautou por uma orientação de controle e até mesmo tentativa de extinção das favelas do ambiente urbano da cidade do Rio de Janeiro com ações que foram desde uma política sanitarista, a remoções com criação de parques proletários e perseguição as lideranças comunitárias, nos tempos atuais, as ordens ideológica, política e econômica que compõem o Estado continuam a olhar para as favelas como o espaço onde identificam a desordem e a causa dos problemas sociais enfrentados pelo conjunto da cidade. Espaço que, por isto, precisa ser reordenado – pacificado para acabar com ideia da partição – e o principal instrumento utilizado para isso continua sendo a polícia e seus fuzis. Para com os territórios da pobreza a solução é a guerra, como pode ser comprovado nas palavras do secretário de Segurança José Mariano Beltrame: “Não

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é que a cidade esteja em guerra, mas você possui núcleos que têm que ser tratados dessa forma”25. Como uma reedição do mesmo roteiro, sem ao menos ter o cuidado de acrescentar novos personagens ou posturas de cena, as ocupações militares das favelas do Rio de Janeiro por meio das UPPs deixam lacunas e fazem diversos setores da sociedade questionarem se elas são uma real ação com vistas à melhoria do cotidiano dos moradores ou apenas outra maneira de agir com os métodos já tradicionais junto a estes sujeitos. Jorge da Silva, um dos estudiosos que há muito vem se debruçando sobre este tema aponta que: Um dos principais entraves a uma abordagem mais consequente é que a violência urbana tem sido encarada como um problema em si mesmo, independentemente dos fatores sócio-histórico-econômico-culturais que a retroalimentam. No calor das paixões, as propostas de solução, não raro, partem do suposto – absolutamente falso – de que é possível “acabar com a violência”. No caso das drogas, por exemplo, “acabar com os traficantes” (e não com o tráfico); ou mandá-los para bem longe, como se fosse possível, mantido o modelo de “guerra as drogas” no mundo, quebrar a corrente entre tráfico e uso. (DA SILVA, 2012, p. 395)

O ponto levantado pelo autor é o entendimento de que lutar contra a violência que assola nossas cidades, que tem no tráfico de drogas e seus conflitos sua principal causa, não é uma ação apenas de polícia, mas deve envolver uma ação pública que pressuponha a interlocução entre o poder estatal e a sociedade civil, sendo tarefa do primeiro construir este ambiente. Agir desta maneira e não apenas “na ponta do fuzil” não seria “inventar a roda” nas ações de segurança empreendidas no Rio de Janeiro, prova disso são as experiências que já foram postas em prática nas décadas de 1980 e 199026. Mais recentemente, o Governo Federal, por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), apresentou um conjunto de estratégias chamadas

25

Entrevista concedida ao site “Operacional – Defesa e Segurança”, disponível em: http://www.revistaoperacional.com.br/entrevistas/entrevista-jose-mariano-beltrame/ Acessado em 11/02/2015 as 00h e 47min. 26 As experiências do Cel. Cerqueira e sua equipe (da qual Jorge da Silva fez parte) citadas anteriormente. Mesmo sem receber os devidos créditos, sem dúvida estas concepções de atuação policial serviram de base para a formulação de muito da proposta do que veio a se tornar o PRONASCI.

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Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI)27. Abandonado como tática pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, o PRONASCI foi substituído pelas UPPs. O Rio de Janeiro está no centro do que acontece no país e a atenção dada a tudo que aqui ocorre não é diferente, dando certo ou não, governos de outros Estados se apropriam de iniciativas desenvolvidas em território fluminense. Cabe, portanto, a todos aqueles que se interessam pela construção de alternativas democráticas ao combate da violência a tarefa de se debruçar sobre tais questões e apontar acertos e lacunas. O interesse desse trabalho, ao tratar desta ação de segurança do governo atual nas favelas é apontar o quanto a história não mudou, pois o Estado continua reservado para àqueles que sempre o possuíram e o controle territorial dos locais onde residem as classes pobres continua sendo tarefa da polícia. Mas as coisas podem mudar e para isso há que se envolver o conjunto da população, não apenas os agentes públicos como únicos detentores das respostas e soluções. Todavia, a maneira como a atual política de segurança para as favelas cariocas foi formulada com a participação ativa do empresariado fluminense é uma característica contundente de possíveis interesses em relação às UPPs. Com exceção das Unidades instaladas na favela do Batan, no bairro de Realengo, na Vila Kennedy, ambas na Zona Oeste da cidade e a UPP do Conjunto de Favelas da Mangueirinha em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, todas as outras 35 UPPs constituem um “cinturão” de segurança em torno dos bairros nobres da cidade e dos locais onde vem se realizando grandes eventos internacionais. O mapa apresentado pela Subsecretaria de Comunicação do Governo do Estado (Figura 1), apesar de conter dados apenas até 2013, quando haviam 34 UPPs instaladas, auxilia a visualizar este “cinturão”:

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Segundo o Ministério da Justiça: composto por 94 ações que envolvem a União, estados, municípios e a própria comunidade o PRONASCI articulou políticas de segurança com ações sociais; priorizando a prevenção e buscando atingir as causas que levam à violência, sem abrir mão das estratégias de ordenamento social e segurança pública. A partir de 2011 os princípios de diretrizes estabelecidos pelo PRONASCI passaram a orientar toda a ação da política nacional de segurança pública. http://portal.mj.gov.br/pronasci/data/Pages/MJ3444D074ITEMID2C7FC5BAF0D5431AA66A136E43 4AF6BCPTBRNN.htm

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Figura 1 - Mapa das UPPs até 2013.

Fonte: Adaptado de Subsecretaria de Comunicação – Gov. RJ. Adaptado.

Conforme Ost e Fleury (2013) identificaram, em tempos de eventos globais no Rio de Janeiro, os grupos empresariais participam ativamente do planejamento e da execução das ações, inclusive financiando-as diretamente, possivelmente, com a expectativa de obter benefícios com a “integração” destas áreas faveladas, a maioria delas situadas nas zonas mais caras do mercado imobiliário. Segundo as autoras, esta harmonização entre as ações de segurança pública postas em prática pelo governo do Estado e os interesses empresariais, vista pelos agentes estatais como virtuosa pode, na verdade, ser mais um entrave a ideais de controle social e cogestão originados na Constituição Federal de 1988.

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A lógica “empresarial” na instalação das UPPs também é identificada por Cano, Borges e Ribeiro (2014), pois a maneira como as unidades são implantadas, com poucas exceções, privilegia territórios com maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) e os que podem ser explorados como roteiros turísticos visitados pela grande massa de visitantes trazidos pelos megaeventos que a cidade vivencia, em detrimento das favelas com maiores taxas criminais. Em relação às formas de sociabilização pós-UPPs, Silva (2014) identifica como a sustentação de um imaginário estigmatizado em relação aos jovens frequentadores de bailes funk, atualmente, opera no sentido de combater os bailes deste ritmo como espaços de sociabilidade na favela. A autora recorda que não apenas os espaços de baile funk como qualquer atividade que reunia um certo número de pessoas (eventos religiosos, rodas de samba e festas familiares), tinha sua realização regida pela Resolução SESEG N°. 013 de 23 de Janeiro de 200728 (revogada em agosto de 201329) que estabelecia ser atribuição dos Comandantes de Batalhão ou Delegados da área a liberação desses eventos. Na realidade, “o baile é o espaço mais visível do acirramento dos conflitos durante o processo de legitimação das UPPS” (SILVA, 2014, p. 177). A proibição destas manifestações públicas lembra Silva, é apenas uma demonstração visível do quadro de instabilidade que a implantação das UPPs acarreta para os territórios favelados, onde está em jogo o descrédito sofrido pelas instituições policiais e o estigma dos moradores de favela. O controle da sociabilidade local é a mancha mais facilmente identificável no fardamento da UPP. De maneira contundente, Batista (2011) argumenta que nos territórios “pacificados” estaria se consolidando uma “gestão policial da vida”, pois, ocupando militarmente o Estado desloca sua atenção do social (gestão coletiva de

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Disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2009/01/248_1452Resolu%C3%A7%C3%A3o%20013%202007%20SESEG.doc. Acessada em 05/01/2015 às 16h32min.

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Conforme nota à imprensa de 14/08/2013, disponível em: http://www.rj.gov.br/web/imprensa/exibeconteudo?article-id=1715979, acessada em 05/01/2015 às 16h55min. O Governador do Estado revogou a Resolução N°013, contudo, mesmo com a revogação continuam ocorrendo desmandos dos comandos locais e normas quase impossíveis de cumprir para os organizadores de eventos em favelas ocupadas.

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projetos de vida, oferecimento de serviços e fortalecimento da cidadania) para o gerenciamento penal da pobreza. As próximas páginas se encarregarão de descrever as representações sociais mobilizadas pelos moradores do Morro do Andaraí em relação à chegada e ocupação de seu território pelas forças policiais. A descrição destas representações sociais, acredita-se, permitirá perceber a dinâmica de um processo histórico de incorporação de práticas sociais em relação à favela.

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4 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA PACIFICAÇÃO NO MORRO DO ANDARAÍ

A comunidade do Morro do Andaraí, localizada Zona Norte da Cidade do Rio de Janeiro foi escolhida para ser o campo de pesquisa. A escolha deste campo, foi orientada por dois motivos: a antiguidade da ocupação (datada dos anos 30) o que permitiria a identificação de laços comunitários mais sólidos e a sua localização estratégica na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. No fim do século XIX, a região recebeu a construção de várias fábricas e, diante da construção de vilas operárias como moradias para os trabalhadores, passou a atrair um contingente grande destes trabalhadores que acabaram não encontrando espaço nas vilas e iniciam, por volta dos anos de 1930, a ocupação das encostas da região. Nesta mesma época, como foi visto anteriormente, a construção de moradias em encostas de morros consolidava-se como alternativa habitacional para os milhares de trabalhadores pobres que precisavam se manter próximos aos grandes centros comerciais, mas que não possuíam meios financeiros de se estabelecer nas áreas urbanizadas da cidade (IBASE, 2006). O Morro do Andaraí, surge assim, junto com favelas mais conhecidas como os Morros da Providência e Santa Marta, mas acaba não recebendo o mesmo destaque e não suscitando mas mesmas preocupações dos poderes da época, por estar afastado da região da Central do Brasil e da Zona Sul da Cidade. Atualmente, o Morro do Andaraí funda-se com mais cinco comunidades (Jamelão, Arrelia, Parque João Paulo II, Nova Divinéia e Borda do Mato) formando o chamado “complexo” do Andaraí com uma área territorial de 449.804 m² e com uma população estimada de 9.704 habitantes, segundo dados do Instituto Pereira Passos, com base no Censo 2010 do IBGE, conforme pode ser visto na tabela abaixo:

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Tabela 1 - Comunidades que compõem o Complexo do Andaraí:

Comunidade Jamelão Morro do Andaraí Arrelia Pq. João Paulo II Nova Divinéia Borda do Mato Total

População 943 1.760 1.972 2.615 1.975 420 9.685

Domicílios 262 557 606 810 627 131 2.993

Fonte: Instituto Pereira Passos, com base em IBGE, Censo Demográfico (2010). Adaptado.

A UPP do Andaraí foi implantada em 28 de julho de 2010 e sua sede está localizada na Rua Santo Estevão, entrada principal da favela. Conta, atualmente, com um efetivo de 219 policiais30. Figura 2 - Área de abrangência da UPP Andaraí

Fonte: SABREN/IPP 2011. Adaptado.

30

Informação disponível em: http://www.upprj.com/index.php/informacao/informacaointerna/Andara%C3%AD Acessado em 03/02/2014 as 14h e 28min.

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4.1 A ocupação – “nós trocamos a truculência dos bandidos, pela da polícia”

"Marcado a ferro" na história dos territórios favelados do Rio de Janeiro está o habitual diagrama que associa sua situação de pobreza com a potencialização de atitudes ilícitas, moldando desta maneira tanto as ações postas em prática pelos entes governamentais e sua polícia, quanto as reações do senso comum dos moradores. Viu-se que o ambiente gerado pela economia da droga transformou as favelas cariocas em campo de intensos combates entre os comandos criminosos e a polícia. Os interditos à sociabilidade trazidos por este cotidiano de violência nos territórios expandem-se para o conjunto da cidade e sua face mais latente configura-se na percepção de desestabilização da vida sentida pelos moradores de favelas. Os incontáveis conflitos ocasionados pelo comércio de drogas nas favelas e as ações reativas da polícia no combate aos traficantes organizaram um expediente que desestabilizou profundamente as esferas públicas locais das favelas e formou toda uma geração de moradores pouco habituada ao exercício de alguns direitos elementares. A extrema capacidade de coação advinda da força bélica de traficantes e policiais consolidou, ao longo das três últimas décadas, uma atmosfera de guerra e o medo daí decorrente condiciona as representações dos moradores. As manifestações dos moradores expressas nas entrevistas de campo traduzem como esta "ambiência de guerra" vivenciada no Morro do Andaraí gerava expectativas, em grande parte dos moradores, pela "chegada da polícia" para uma ocupação permanente do território. Conforme foi relatado pelos entrevistados: Morador: “Os moradores já queriam [a UPP]. Nós estávamos na verdade imaginando quando seria esse momento que era de redenção da favela, porque pô, estava toda entregue ao tráfico.

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Toda hora tinha a presença do BOPE e ninguém quer ninguém de preto encapuzado entrando na sua casa, ou andando perto dos teus filhos, da sua mulher, pô da sua mãe...” (Morador, 29 anos) Morador: “A gente precisa avaliar dois momentos dessa situação da chegada da UPP no morro do Andaraí. Primeiro quando a polícia subia o morro pra pegar bandido. Vamos falar assim: a polícia subia o morro como? A mais de 80km por hora em uma rua que não suportava 30km de velocidade. Subia sempre no horário escolar, ou de manhã na hora da entrada das crianças na escola ou na hora da saída, 12h. Então o que eu vejo é que em um primeiro momento houve uma euforia, pois o bandido que se escondia atrás do próprio morador que descia pra trabalhar com sua marmita não pode mais fazer isso. Nesse sentido foi um alívio a polícia ter chegado. (Morador, 47 anos).

Desde as primeiras ocupações de favelas, os relatos de expulsão de traficantes apontavam para uma possível “devolução” destes territórios a seus moradores, o que atuou diretamente na percepção de segurança do conjunto da cidade. Com efeito, os dados oficiais32 (Tabela 2) divulgados pelo ISP apontam para uma redução em números absolutos dos casos de crimes violentos no Morro do Andaraí, principalmente, nos homicídios dolosos, passando de 04 ocorrências em 2010, ano de implantação da UPP, para 1 ocorrência em 2014. Os mesmos dados indicam que em 2010 houve 04 mortes decorrentes de autos de resistência 33 e nenhuma em 2014, denotando certa diminuição na letalidade da ação policial.

31

O Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) – facilmente reconhecido por seu uniforme preto e pelo brasão contendo uma caveira transpassada por uma faca e duas pistolas cruzadas atrás de si – é uma tropa de elite da Polícia Militar do Rio de Janeiro treinada na lógica do combate de guerrilha urbana. Conforme estabelecido pelo Decreto nº 42.787 de 06 de Janeiro de 2011, o BOPE é empregado em duas das quatros fases previstas para a implantação de uma UPP, a “intervenção tática” e a “estabilização”.

32

A série história de dados abrange o período do ano de 2006 (4 anos antes da instalação da UPP) até o ano de 2014. Disponível em: http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=61 Acessada em 05/02/2014 as 17h.

33

Entulho jurídico autorizado pelo Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689/41) o auto de resistência consente no uso de quaisquer meios necessários para que o policial se defenda ou vença a resistência, mesmo que isso implique grave lesão ou a morte do possível criminoso. Para atestar a veracidade das informações determina-se que apenas seja feito um auto, assinado por duas testemunhas.

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Tabela 2 - Índice de crimes registrados na região da UPP – Andaraí. OCORRÊNCIA 2010 2011 2012

2013

2014

TOTAL

Homicídio Doloso

4

1

1

-

1

7

Lesão Corporal Seguida de Morte

-

-

-

-

-

-

Latrocínio (Roubo seguido de morte)

1

-

-

-

-

-

Tentativa de Homicídio

3

3

5

2

4

17

Lesão Corporal Dolosa

93

141

119

109

52

514

Estupro

11

4

10

2

2

29

Ameaça (vítimas)

80

130

84

85

35

414

Pessoas Desaparecidas

3

6

6

3

1

19

Autos de Resistência

4

1

-

-

-

5

Policiais Militares Mortos em Serviço

-

-

-

-

-

-

Policiais Civis Mortos em Serviço

-

-

-

-

-

-

Roubos

43

29

12

6

9

99

Furtos

54

49

41

41

21

206

Fonte: Elaborada pelo autor com base nos dados do ISP.

Como relatam os moradores, a sensação de segurança experimentada na comunidade

com

a

ausência

visível

dos

traficantes,

a

diminuição

dos

acontecimentos violentos e a chegada de concessionárias de serviços, antes impedidas de atuar livremente, os fez entender que haveria uma possível integração com a cidade oficial: Morador: “Então, eu acho que a UPP do morro do Andaraí ela foi muito bem recebida. Os moradores, aquelas famílias que tinham um histórico de ter perdido membro pela violência do tráfico se sentiram aliviados. Também foram doadas bastantes geladeiras porque tinha um programa da Light. Tiraram a gatonet e colocaram a Sky e outras empresas, a 21 também começou a aparecer lá. Então agora a gente tem uma conta de luz com endereço, uma coisa assim mais de uma integração da nossa vida, com a vida social, com a cidade. E ai foi um momento bom, melhor do que era antes em termos de matanças dos jovens. Assim, deu uma esperança, uma sensação de segurança muito legal. (Morador, 60 anos) Pesquisador: Como que era a vida na comunidade antes desse momento de agora da UPP que vocês estão vivendo? Morador: Olha era bem mais complicado. Era bem mais complicado, era muita violência, muito medo, antes tinha muito medo, hoje em dia, eu acho que a UPP é aquilo, uma faca de dois gumes, nesse período que eles estão lá, pô graças a Deus morreu muito menos gente do que morria antigamente. Antigamente era muita morte, de inocente, de vagabundo mesmo, de bandido, morria muito. Deu uma acalmada mas não tá 100%. (Morador, 62 anos)

Os depoimentos dos dois principais agentes estatais envolvidos na implementação das UPPs dão o tom desta lógica de guerra para a recuperação dos

84

territórios. Quando da ocupação do conjunto de favelas do Alemão em 2010, Sérgio Cabral Filho, então governador declarava: “Vamos continuar a recuperar todos os territórios. Quando se luta por território é guerra. Quando se conquista é a paz”. 34 Ao que era seguido pelo secretário de Segurança José Mariano Beltrame: “o remédio para trazer a paz, muitas vezes, passa por alguma ação que traz sangue”.35 Nestes depoimentos, há o que Gramsci (2000) denominou de “Estadocoerção”, estruturado por um aparato através do qual as classes dominantes e seus representantes políticos dominam o monopólio legal da repressão e da violência e que, como aponta Coutinho (2012), “se identifica com os aparelhos de coerção sob o controle das burocracias executiva e policial-militar” (COUTINHO, 2012, p. 127). Com efeito, o Estado constrói consensos a partir da coerção Gramsci (2000) vai dizer que a operação da hegemonia de uma classe sobre a outra, ou do Estado sobre os sujeitos é caracterizada pela atuação conjunta, pelo equilíbrio, entre força e consenso, numa relação em que um não sobrepuje o outro, mas, pelo contrário, “a força pareça apoiada no consenso da maioria expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e associações –, os quais por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados”. (GRAMSCI, 2000, v. 3 p. 95). Um exemplo disto foi que, logo no início das ocupações o jornal de maior circulação no Estado, “O Globo”, publicou uma série de reportagens intitulada “Favela sem Tráfico”. Em um dos textos, ainda de novembro de 2008, sobre a ocupação do Morro de Santa Marta na Zona Sul do Rio, lia-se seguinte chamada: “Dona Marta livre dos bandidos” e em um box separado: “Sem confrontos: Comerciantes e moradores dizem que acabaram-se os tiros e roubos.” A criação de consenso sobre as UPPs estabelecidas a partir das mídias, fez crer que sua atuação se estenderia não apenas aos males identificados pela presença acintosa de traficantes armados nas favelas e seu comércio, mas que sua força cintilaria sobre toda ordem de crimes influenciados por esta modalidade de crime. A admiração pela UPP estimulou a sensação da inauguração de uma “nova cidade”, onde se viveria sem medo. (FRIDMAN, 2014)

34 Entrevista do Governador Sérgio Cabral ao site G1, 2010. “‘É guerra’, diz Cabral sobre ocupação no complexo do Alemão”, 30/11/2010, http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-contra-ocrime/noticia/2010/11/e-guerra-diz-cabral-sobre-ocupacao-no-alemao.html 35 Declaração dada ao jornal O Globo, em 29/06/2010.

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Contudo, o consenso gerado em relação às UPPs, a partir do qual o Estado e os mais diferentes grupos da sociedade passaram a interpretar e tecer análises dos benefícios da pacificação, começa a ser questionado. Este consenso acaba sendo mais uma utopia ancorada no controle policial que intimida as ações violentas por meio do controle continuo que, em alguns momentos, até serve de contendor da violência exacerbada, mas conserva em si todos os atributos já conhecidos da “antiga cidade”. “Não há qualquer aceno à vida melhor, à vida desejada”, presente em qualquer utopia. É uma utopia que conserva todas as circunstâncias geradoras do medo” (FRIDMAN, 2014, p. 613) No Morro do Andaraí os sujeitos entrevistados, os mesmos moradores que celebraram a chegada da UPP no Morro, apontam as limitações do programa: Morador: “(...) mas quando veio a UPP para o morro do Andaraí, em 2010, já tinha uma grande propaganda em torno do programa. Então alguns moradores começaram a ver a chegada da UPP no Morro do Andaraí como um benefício do Estado, uma salvação, como um arrebentar de correntes. O que não foi, efetivamente não foi. O que o Estado oficial nos dizia era o seguinte: "Queremos livrar essa população da truculência dos bandidos." Mas nós trocamos a truculência dos bandidos, pela da polícia”. (Morador, 49 anos).

As inúmeras alterações do cotidiano sentidas pelos moradores passam a expor as fragilidades do arranjo proposto pela ocupação, que pressupõe uma integração entre a favela e as forças da ordem. A maneira como tem sido resolvidas as rotinas a partir da UPP, principalmente a partir da imposição de determinações das forças policiais do Estado configura-se em flagrante tentativa de policialização da vida. A percepção de um controle maior dos momentos de sociabilidade, com os policiais excedendo suas atribuições e interferindo diretamente nas rotinas diárias, motiva grande parte das discussões públicas e vem se caracterizando como um dos principais entraves à aceitação da presença policial no território. Um dos exemplos mais recorrentes do questionamento desse controle é verificado quando os moradores relatam suas implicações na maneira como se divertem e ocupam o espaço público na favela. Como nas outras favelas ocupadas, no Andaraí, a organização de atividades públicas deve passar pelo clivo do comando da UPP. Para tal, os moradores que se

86

dispõem a organizar qualquer atividade cultural ou esportiva devem solicitar a autorização por meio de um documento padrão disponibilizado. Como uma espécie de polícia do comportamento, a UPP atua na supervisão das ações dos sujeitos, principalmente dos mais jovens. A conversa a seguir detalha como acontece tal situação: Morador: “A questão cultural fica praticamente sufocada porque antes até podia ter um baile, podia ter uma festa de samba, não tinha tanto porque a gente fazia aqui em cima era pra gente, ou pra outros favelados ou para amigos nossos muito próximos que chegavam a ter acesso a comunidade pela gente. Mas hoje em dia a comunidade tá aberta para qualquer um que chegar, mas também ai pô a UPP não deixa, a UPP restringe o horário, a UPP implica com o som que tá tocando, porque é proibido tocar funk. É proibido... Pesquisador: Proibido? Morador: Sim. Pesquisador: Qualquer funk? Morador: É, então. Tem um certo questionário que você tem que responder para fazer qualquer evento no morro. E ai quando você vai responder o questionário tem que dizer qual é o ritmo, ou sei lá que música você vai tocar, então se você coloca funk, tipo, ninguém deixa você fazer o evento. E se tocar funk ai o cara [policial da UPP] chega lá. “Cadê a sua autorização?” Quando pega o papel diz: “É aqui não tá dizendo que você pode tocar funk, então pode parar!”. Pesquisador: Qualquer festa que você fizer no morro tem que pedir autorização? Morador: Sim, qualquer festa tem que pedir autorização, é como se fosse um alvará para fazer festa na rua. Aqui não tem alvará aqui tem a lei da UPP. Pesquisador: Mas então a forma de se divertir mudou com a presença da UPP? Morador: Então, mudou. Mudou pô, claro. Por um lado é assim, hoje em dia eu não consigo ser eu contra ou a favor da UPP eu estou refletindo o que é esse momento, entende? O que mudou é que realmente a gente pode fazer algumas coisas que antes não podia, porque não tinha esse acesso facilitado à comunidade (Morador, 29 anos).

Outros dois relatos exemplificam bem a situação: Moradora: É tipo assim: tem um bar lá na rua Leopoldo, em frente aonde eu moro, bar do Bolinha. Lá todo domingo ele colocava um funk pra toda rapaziada porque a rapaziada todo mundo gosta de funk e até eu. Pesquisador: Sim Moradora: Então! Limitaram a hora, limitaram algumas coisas que a gente não pode ouvir, não deixam ouvir. Eu sei que um lado tá certo, outro tá errado, mas a gente não tinha hora pra nada, a hora que a gente começava e deixava de começar era problema nosso. Agora eles chegam tipo assim: as vezes até que você consegue o papel, mas eles chegam antes da hora. Chega um marrentão lá e manda você parar. Pesquisador: Que “papel” tem que conseguir? 36 Moradora: Tem que ter alvará!” (Moradora, 33 anos).

36

Confronte Anexo V.

87

Moradora: “Eu não gosto de funk, mas esse negócio de proibir os garotos é complicado. Por exemplo, tem um barzinho lá que é o bar do Bolinha onde os meninos daqui frequentam, onde bota som, bota som no alto, bota funk, a polícia não gosta, né? A ordem é “Oh! Dez horas desliga o som”. Se passar até dez e meia, eles chegam lá dando porrada nas pessoas. É assim que eles agem, não querem saber se tem tóxicos, se tem maconha. Chega lá dez horas, tá tocando? Eles metem a mão na caixa de som, se alguém reclamar alguma coisa, já taca o gás de pimenta na cara da pessoa, eles não querem saber. Pesquisador: Então eles colocaram regra nas coisas? Moradora: Ela [a UPP] botou muita regra. Assim, aos poucos foram quebradas algumas... Não pode ainda ter baile funk, essas coisas, mas algumas foram quebradas.” (Moradora, 33 anos).

Não apenas os momentos públicos de divertimento da comunidade vêm sendo controlados pelos policiais, mas os espaços privados das festas de família ou das celebrações religiosas também sofrem ingerência das determinações da UPPs. Morador: Hoje em dia, também acontece uma coisa dentro da comunidade: muitas das vezes você está dentro da sua casa fazendo uma festa, não que seja uma coisa desorganizada, mas, muitas vezes o policial vem e quer acabar com a festa na sua casa. (Morador, 30 anos) Morador: “Uma das coisas que mudou é que agora é tudo regrado, você 37 tem o horário do batizado, horário de bater o tambor da macumba , horário para fazer o samba. Pesquisador: Mas tem interferência até nas cerimônias religiosas? Jorginho: Até as cerimônias religiosas. Elas começam 2 horas da tarde e só podem ir até 10/11 horas da noite. Eu moro ao lado da UPP e o terreiro de macumba fica nos fundos, tu acha que os policiais vão deixar bater tambor bem do lado deles? E é assim: não existe no Andaraí liberdade, tem que pedir autorização para tudo. Um Estado militarizado...” (Morador, 47 anos). Morador: “(...) e ai a comunidade que antes não tinha regras que seguir, agora tem que obedecer a UPP. Antes a regra era todo mundo avisando: “vou fazer 50 anos, vai lá na minha festa”. Então todo mundo sabia que na minha casa ia ter festa até de manhã, se não fosse lá na minha casa seria lá na ladeira, na rua, lá na quadra. Isso então era o natural e com a UPP tem lá um formulário a preencher pra saber se pode fazer evento ou não. Então a UPP, eu acho que na verdade a UPP não foi preparada para interagir bem com a cultura da comunidade. Uma festa rolando, errada ou não em termos de horário... Porque pra gente se passou de meia noite ainda é cedo, passou de 1 hora ainda é cedo, então a gente não tá errado, né? Se estamos celebrando algo. E a UPP não conhece a cultura local ou conhece, mas não considera. Ai ela vai nessa festa e vai como se ela fosse lidar com o tráfico, ela vai com as mesmas armas gigantes, sai entrando na festa, tratando todo mundo como se estivesse super errado, com aquelas armas muito fortes.

37

Refere-se a um culto de religião de matriz africana, não foi possível precisar se Umbanda ou Candomblé.

88

Então isso arrepia muito as pessoas, tem visitantes ali também, é muito feio. Nesse momento é muito assim, causa um impacto muito negativo pra todo mundo, então a UPP precisa interagir mais com esse lado, essa segurança, ali ela é tudo, ela quer fazer a lei geral. (Morador, 60 anos).

O controle dos espaços público e privado, identificado pelos moradores e as fragilidades da integração entre eles e os policiais descortinam a crise atual do contrato social entre Estado e população favelada, uma questão que extrapola os limites territoriais da favela e ajuda a entender os interstícios postos entre ela e a cidade oficial. Boaventura de Sousa Santos descreve que, como metáfora instituinte das racionalidades política e social da própria modernidade ocidental, o contrato social faz vigorar no campo da sociedade civil a tensão dialética entre regulação social e emancipação social, cuja face visível é a polarização entre as vontades dos indivíduos (esfera privada) e a vontade geral (esfera pública) (SANTOS, 2006). Assentado em parâmetros de exclusão e inclusão o contrato social possui como um de seus critérios a “territorialização da cidadania”, a partir do que distingue dos cidadãos (homens) todos que, ainda que coabitando o mesmo território geopolítico – mulheres, estrangeiros, imigrantes, minorias étnicas, pobres urbanos e do campo – são dele excluídos por sua pouca interação econômica, política e social. Ou seja, A abrangência das possibilidades de contratualização tem como contrapartida uma separação radical entre incluídos e excluídos. Embora a contratualização se assente numa lógica de inclusão/exclusão, ela só se legitima pela não existência de excluídos. Para isso estes últimos são declarados vivos em regime de morte civil. (SANTOS, 2002, p. 7).

Outro aspecto fundamental do contrato social é a desagregação entre os espaços público e privado. Apenas os interesses gerais, ou seja, aqueles decididos pelos grupos de controle da sociedade, são propósito do contrato. “A verdade é que a igualdade que o contrato social garante é formal e não material e por isso a inclusão no contrato tende a reproduzir o sistema de desigualdade (SANTOS, 2006, p. 318). Santos (2002; 2006) ainda afirma que o contrato social com os seus critérios de exclusão e inclusão e os seus princípios “metacontratuais” tem há muito subsidiado os arranjos econômicos, políticos e culturais das sociedades modernas.

89

Acontece que, no tempo presente, estes paradigmas fundamentados no contrato social moderno estão experimentando um profundo período de turbulência. Esta crise na contratualização advém dos ideais liberais individualistas e traz consigo a emergência do que o autor chama de fascismo social que, diferentemente do regime político experimentado nos anos trinta e quarenta do século XX, não atua no sentido de prejudicar o jogo democrático, mas de adequar sua existência ao modelo capitalista. As formas do fascismo social há muito podem ser observadas na relação da cidade do Rio de Janeiro com suas favelas, principalmente, através do fascismo do apartheid social e do fascismo paraestatal, termos também empregados por Santos. O primeiro é percebido pela segregação socioespacial que divide a cidade em zonas selvagens e zonas civilizadas. “As zonas selvagens são as zonas do estado de natureza hobbesiano. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens”. (SANTOS, 2006, p. 334). Já o fascismo paraestatal aproxima-se muito do momento vivido pelas favelas quando havia uma presença constante dos comandos criminosos que usurpavam as prerrogativas estatais de coerção e regulação social em benefício do controle territorial para a venda de drogas. Não obstante as críticas ao controle dos eventos públicos, os moradores mais velhos, aparentemente, admitem que haja certa regulação da esfera pública em troca da sensação de segurança atribuída ao cerceamento dos conflitos entre as quadrilhas de traficantes locais e seus rivais que intentavam tomar o controle do morro e entre estes e a polícia. Isto se reflete nas falas dos moradores: Morador: Pelo menos lá na comunidade do Andaraí os que não tinham muita regra estão se domesticando mais, porque até então, antes, podia tudo, ninguém respeitava nada. Agora pelo menos sabem que tem que dar satisfação a alguém, antes não tinha que dar satisfação a ninguém. O que eles queriam era o que eles queriam agora eles sabem que tem alguém, se fizer algo de errado, sabe que tem alguém te olhando. (Morador, 54 anos). Morador: Eu acho que agora, em parte é até melhor, a pessoa vai se diverte. A pessoa chega numa certa idade como eu tô e vai num ambiente que você não quer ver mais briga. Hoje em dia se tem uma briga, a pessoa está se conscientizando: “pô não briga não, chama a polícia.” É isso que tô falando pra você, em parte foi até bom quando eles chegaram porque tinha muita gente ai que não respeitava o próximo, entendeu? Você chega num ambiente ai, você vai, você vê briga, você vê coisas erradas. Porque a gente antigamente tinha uma visão de chamar outras pessoas, entre aspas, que sabiam resolver o problema, mas ai a gente já sabe que é

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diferente, a gente sabe que chamando a polícia dá mais resultado e a polícia geralmente só houve quem tá certo. Então é mais ou menos assim: “deixa disso vai pra sua casa, se continuar, vou te levar.” As pessoas estão eu acho que as pessoas já estão se conscientizando disso. Entendeu? Então isso é muito importante. (Morador, 59 anos).

Entretanto, como toda produção da vida social é permeada por consensos e dissensos, esta provável aceitação do controle em troca de segurança demonstra-se não tão alicerçada no senso comum local. Se antes era possível ver traficantes transitando pela comunidade com seus fuzis, plantados nos postos de observação ou nas bocas de fumo, locais de varejo da droga. Agora com a UPP vê-se durante todo o dia viaturas policiais estacionadas nos diversos acessos à comunidade, bem como rondas extensivas com policiais empunhando fuzis em todas as ruas e becos. Esta "ostensividade" tem como objetivo claro a tentativa de demonstrar que o controle do território mudou de mãos. Para os moradores, parece que o conflito continua. Há relatos sobre a presença dos traficantes e que suas intervenções violentas, apesar de discretas, ainda são comuns: Pesquisador: E como está o dia-a-dia na comunidade depois da UPP? Morador: Hoje é mais firme, mais controlado, sem tanta violência, vamos dizer assim, como era antes. Onde tem UPP, não tem o risco de invasão de outra facção, então, isso gera uma tranquilidade pra gente e gera uma tranquilidade, para o outro lado, que não tem risco de invasão... Pesquisador: Como assim outro lado? Morador: Ué. Os caras de antes ainda estão por aqui mais escondidos só que continuam e agora com a UPP não tem risco de confronto. Então não precisa ter arma na rua, não precisa ter soldado na rua, eles estão em paz, vendem a parada deles. (Morador, 50 anos). Morador: Vou dizer que a única coisa que mudou foi o tiroteio. Eu acho que deveria continuar, mas de outra forma, não sei te dizer como. Por exemplo, um fato bom: ah! não tem tiroteio, eu posso sair que eu não tenho medo de chegar em casa. Mas ontem, com a morte do cara, teve toque de recolher, a polícia lá e não podia ir ninguém pra rua, mas foi diferente agora é raro acontecer, mas acontece ainda. (Morador: 31 anos). Morador: Como te falei do início, a UPP é uma faca de dois gumes. A violência diminuiu? Diminui um pouco, mas não cessou de tudo, entendeu? É o que tô te dizendo, desde que a UPP chegou lá no Andaraí vai 5 anos aproximadamente. Vamos dizer, eu não tenho a conta exata né, mas assassinatos lá aconteceram uns 5, vamos dizer entre a 5 e 8 nesse período. Se eles não estivessem lá seria um número bem maior, entendeu? Então, com relação a isso, melhorou, com relação ao social, não melhorou nada. (Morador, 62 anos).

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O controle das liberdades individuais por meio da restrição da esfera pública associado ao medo de sofrer violência por parte dos traficantes que ainda estão presentes na comunidade faz com que os moradores permaneçam vivendo diante do que Alvito (2000) já chamava no início da década passada, de “um duplo panoptismo”. Constituindo-se numa conjuntura totalitária, a vigilância permanente da vida comunitária executada agora por policiais e criminosos, impede o livre movimento dos moradores e prejudica o fortalecimento da esfera pública da favela como local de produção da cultura popular e da atuação sócio-política dos sujeitos. Conquanto, por mais que esta conjuntura seja extremamente prejudicial, a chegada da UPP no morro do Andaraí e a consequente visibilidade que isto traz, mesmo não mudando radicalmente as práticas policiais, auxilia a contrapor as ideias correntes que apresentam os territórios favelados como local em que os moradores desconhecem os mecanismos de reivindicação de seus direitos. Como relata um morador: Com a continuidade da UPP a comunidade ela passa a falar mais, aquela lei do silêncio que era própria do tráfico ela foi ficando esquecida e os moradores se sentem mais seguros e a gente se sente estimulado a falar mais. (Morador, 60 anos).

O fato de a UPP ser uma instituição estatal, passível de certa regulação por parte do próprio governo ou da Justiça, acaba gerando alguma desinibição entre os moradores para denunciar seus atos violentos no momento atual como na situação relatada: Morador: Uma vez eles tentaram oprimir o moto-taxi, uma vez deram um tapa no moto-taxi pô, deu a maior lenha, rodou a rede social toda, porque o morador filmou. Só do morador ter a coragem, de chegar, sair voado pra pegar a câmera, jogar na direção deles e capturar a imagem e botar no Youtube, isso já é uma forma de protesto, de falar: “pô a gente não vai ficar aqui só olhando vocês crescerem dentro da comunidade, de se manifestarem com abuso.” Entendeu? Pesquisador: Antes isso não era possível? Morador: Antes não, pô. Antes não. Tu ia fazer filminho de traficante? E com a polícia de antes da UPP também não tinha disse-me-disse, ele era a lei, eles julgavam. (Morador, 29 anos).

92

A cena citada pelo entrevistado exemplifica uma importante mudança em relação à rotina anterior de "silenciamento" imposta por policiais violentos e traficantes38.

4.2 “O que diminuiu foi a bagunça aparente”

Nas entrevistas, os moradores denunciam a manutenção de situações de violência pós-UPP: Moradora: Dizem por ai a fora que não tem mais violência, mas continua. Deve ter um mês atrás, perdão três semanas mais ou menos, houve um falecimento de um rapaz que se supõe que era um chefe, nem sabia que se tinha mais chefe, enfim... Ai o comércio fechou, foi obrigado a fechar, mesmo com a presença da UPP, o comercio foi fechado. Se morreu seja lá quem for, envolvido ou não, mandaram fechar. Que garantia tem o comerciante? Ele não sente o reflexo da segurança, porque se ele se sentisse verdadeiramente respaldado de uma segurança, de uma segurança verdadeira, ele ia manter o comércio dele aberto. Com certeza! Pesquisador: Mas diminuiu o tráfico? Moradora: O que diminui foi a bagunça aparente, pra debaixo do tapete, vamos botar assim, né? Na verdade o que diminui foi isso, só a bagunça aparente. O traficante que anda armado o tempo todo pela rua, pra lá e pra cá, ostentando o poder ilusório, que eles acreditam que tem, né? Enfim, não tem essa ostentação aparente de poder bélico, de armas. O tráfico continua normal, eu passo, eu trabalho, né? Passo o tempo todo pela rua ali, e indo e voltando para o trabalho, e estão ali os meninos vendendo e quem passa percebe que eles estão vendendo porque não é nada tão discreto, então, é normal como sempre. (Moradora, 35 anos).

Não é apenas a violência armada que tem sido identificada. Dicotomicamente ao que é apresentado nas estatísticas oficiais39, uma das evidências da continuação da violência no morro é percebida na alta incidência de um crime que, segundo os moradores, antes não ocorria no Morro, os assaltos a comércio e residências. Morador: Pô não fazem nada! Comércio é assaltado direto. O que eles tem resolver, principalmente esses assaltos que já começaram a acontecer não combatem! Ontem mesmo aconteceu, lá no depósito de bebidas. É do lado 38

Não foi possível encontrar o referido vídeo, mas esta mudança não é vista apenas no Andaraí, mas em muitas outras favelas ocupadas por UPPs, na rede social de compartilhamento de vídeos Youtube (www.youtube.com.br) uma busca rápida utilizando os termos “UPP” e “violência” aponta inúmeros vídeos como o relatado pelo morador.

39

Confronte Tabela 2 pág. 86.

93

da UPP, o depósito do Mário, do lado da UPP hein? Cem metros de distância no máximo e ninguém viu nada, levaram toda a mercadoria... (Morador, 62 anos). Moradora: A violência tá começando a aumentar, o comércio tá sendo roubado direto, não é a primeira vez não. Antigamente tinha, era menos porque é aquilo, no local, os camaradas, os meninos também cobravam, não podia ter roubo, e agora, estão roubando lá direto. (Moradora, 33 anos)

Se no "asfalto" a preservação do patrimônio privado é uma das questões de segurança importantes para as classes médias e altas e mobiliza suas críticas e demandas por segurança, na favela os crimes contra o patrimônio não se estabeleciam sem importância, mas "no tempo do controle dos traficantes" os assaltos recebiam uma forte repressão. O controle aos assaltos significava um componente importante do poder dos chefes do crime local; permitir que se assaltasse na favela era sinônimo de desmoralização, de que a favela estava “bagunçada”. No pós-UPP o questionamento à leniência dos PMs em combater esta modalidade de crime é mais um entrave para sua aceitação, pois "agora acontecem coisas que nem os traficantes permitiam".

4.3 “É mais polícia e menos governo”

No enredo proposto pela Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro para a implantação de uma UPP40, consta em sua “Etapa III – Implantação da UPP” que, após a acomodação definitiva dos policiais na comunidade há a preparação desta “para a chegada de outros serviços públicos e privados que possibilitem sua reintegração à sociedade democrática”. Este seria, portanto, o momento em que, com a ausência do poderio dos traficantes, a comunidade voltaria a receber plenamente os serviços públicos e as ações sociais anteriormente deficitárias, mas parece que no Morro do Andaraí as coisas não são bem assim:

40

O Decreto nº 42.787 de 06 de Janeiro de 2011. Confronte anexo III.

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Pesquisador: E os serviços públicos melhoraram? Moradora: A ideia inicial era maravilhosa né, a ideia inicial poxa, bacana, você vai dar uma faxina na comunidade, né? Diziam que iam injetar N coisas na comunidade, mas é delicado, que nem eu te falei, as coisas chegam, mas chegam pela metade, já chegam falhas, e a própria comunidade nem sabe fazer uso daquilo que chega, não sabe dar valor, aquilo que chega. (Moradora, 35 anos).

Assim como ocorreu com o desapontamento gerado em relação a continuação do controle de suas ações cotidianas, a esperança de um fortalecimento nas ações sociais e nos serviços públicos oferecidos pelo governo na comunidade começa a esmorecer entre os moradores do Morro do Andaraí: Morador: O governo pensa que é só a presença da polícia que é governo, só que muitas outras coisas que são governo também eles foram tirando da comunidade ao longo do tempo, o governo foi saindo e abandonando a comunidade sem governo... Pesquisador: Sem os serviços? Morador: Sem os serviços. Porque você vê, cidades do interior, quase não tem polícia, mas tem governo. Mas em qualquer comunidade, é mais polícia e menos governo, sempre foi assim no Brasil todo, em toda comunidade, sempre foi mais polícia e menos governo, porque os governantes pensam que o governo é polícia. (Morador, 49 anos).

Esta deficiência das ações sociais no território denunciada pelos moradores, soma-se aos questionamentos da presença excessiva da polícia: Morador: A gente vê que não tem um planejamento do Estado para oferecer as coisas boas né? O estado sei lá, eles estão com a cabeça no mundo da lua, ao invés de oferecer serviços bons, sei lá, pra melhorar nossa vida. Só que vem tudo junto com a polícia e ai a coisa não funciona. (Morador, 30 anos).

A visível presença de empresas prestadoras de serviços privados e o relato dos moradores da quase ausência de ações sociais promovidas pelo governo faz pensar que há uma afinidade direta entre a inoperância do poder público estadual com as profundas desigualdades e disparidades no exercício do poder seja ele político ou econômico percebido no Brasil, reforçando a tendência a interpretar o Estado Brasileiro como privatizado por interesses particulares das elites e do mercado. Como aponta Neves (1994), o Estado atuando em muitos momentos a margem dos textos constitucionais legais impede a integração jurídica e igualitária na sociedade, isto é, a ancoragem do direito no indivíduo independente de suas condições de classe e de sua posição na estratificação sociocultural.

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A avaliação de Neves corrobora com a constatação de que a precária autonomia do sistema institucional das UPPs conduz ao tratamento desigual dos cidadãos perante a lei, como sempre tem sido em relação aos moradores de favelas. Mesmo em tempos de “pacificação” permanece nas favelas ocupadas aquilo que o autor diagnosticou como a subcidadania brasileira, caracterizada pela subintegração e a sobreintegração dos cidadãos. O primeiro grupo de subcidadãos, destituídos do acesso aos benefícios do ordenamento jurídico, possui mais deveres que direitos. Já o segundo é composto pelos privilegiados sobrecidadãos que podem dispor da burocracia estatal para fazer valer seus interesses. (NEVES, 1994). A comprovação empírica das avaliações de Neves é apresentada por um dos moradores: Morador: A gente sabe que há por parte do governo, por parte da visão econômica, e do faturamento, a visão de estarmos seguros até esse período das Olimpíadas, ai a gente chega em uma conclusão que a UPP, ela passa ser uma polícia de patrimônio, ela não é uma polícia que defende o direito do cidadão, ela ainda está em função do movimento de faturamento da cidade, não de ajudar a melhorar nossa vida aqui. Então, a mudança que a gente esperava é que a UPP fosse de fato uma polícia que assegurasse o direito do cidadão, que ajudasse a fortalecer nosso acesso aqui dentro às políticas sociais e não que tenha uma visão como da outra polícia que assegura o patrimônio da classe social mais alta. (Morador, 60 anos).

Na avaliação o morador reflete o profundo desapontamento da comunidade ao constatar que a UPP, anunciada como um mecanismo de atração de ações sociais e políticas públicas para a comunidade, em muitos momentos acaba apenas reproduzindo as práticas patrimoniais tão comuns em suas ações no restante da cidade. Esta dificuldade de a UPP servir de canal para o social estaria, segundo outro interlocutor, precisamente na falta de conexão entre a atividade policial e as ações sociais. Morador: A polícia não resolve o problema social, né? O policial não tem essa capacidade, não é o perfil profissional do policial. Ele entra na academia de polícia para outra coisa, que não é trabalhar como assistente social. Ele é policial, ele tá ali, para garantir a lei, pra proteger, para auxiliar. Pô, ele não tá ali para pensar se o cara tem uma cesta básica dentro de casa, para pensar se a luz no morro tá regularizada, para pensar se está faltando, ou não, água, para pensar se tem equipamento cultural o suficiente, para pensar se tem equipamento de esporte o suficiente. Ele não quer saber de nada disso, se a galera tá na escola, se tem médico ou se tem acesso ao serviço de saúde, o posto. Entendeu? (Morador, 50 anos).

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Durante toda a história das favelas, grande parte das políticas públicas não observam os moradores e as favelas como sujeitos de direitos, mas como problema a ser enfrentado. É desta maneira que sua atuação acaba sendo mais na ordem de dirimir problemas de integração, passando ao largo das necessidades específicas de cada comunidade. Na prática, o próprio Estado reconhece e concorda com a consideração do morador e para tentar solucionar os entraves ao oferecimento de serviços sociais nas favelas ocupadas por UPPs a Prefeitura do Rio de Janeiro criou com o financiamento da ONU-Habitat o programa chamado UPP Social que, desde o agosto de 2014, passou a se chamar Rio+Social41. Na verdade, a ideia de programa UPP Social surgiu na Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) na gestão do economista Ricardo Henriques. Segundo a proposta apresentada pelo edital publicado à época de seu lançamento: O programa UPP Social tem por objetivo a consolidação do controle territorial e da pacificação, a promoção da cidadania e do desenvolvimento social e a integração plena das comunidades pacificadas por UPP ao conjunto da cidade do Rio de Janeiro. (Edital Seleção Pública – UPP Social 2010).

Em dezembro de 2010, com a saída de Ricardo Henriques da SEASDH e sua ida para o Instituto Pereira Passos (IPP) da Prefeitura do Rio o programa também acabou migrando e passou, desde então, a ser executado por este órgão da Prefeitura. A menção aqui a ex-UPP Social, agora Rio+Social apresenta-se como algo interessante, porque mesmo presente no Morro do Andaraí, como é relatado no site do programa, desde 23 de setembro de 2011, não foi encontrada nenhuma referência ao programa nas falas dos moradores. Tal fato pode ser inferido como mais um exemplo que confirmaria as críticas a quase ausência de ações sociais no território. Afinal, um programa que possui como seus três objetivos principais: a) contribuir para a consolidação do processo de pacificação e a promoção da cidadania local nos territórios; b) promover o 41

Mais informações podem ser obtidas em: http://www.riomaissocial.org/programa/

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desenvolvimento urbano, social e econômico nos territórios; c) efetivar a integração plena dessas áreas ao conjunto da cidade; não é sequer citado: Morador: “(...) a parte social não avançou, outras entidades, outras instituições de cultura e do social, se chegaram, chegaram muito enfraquecidas, sem nenhuma transformação, sem a mesma coisa que a UPP tem, a UPP é gigante, ela é pujante, ela é grande, ela ocupa, o social não ocupou. (Morador, 50 anos) Moradora: “A UPA não funciona direito, nas escolas os cursos não são completos para todo mundo. Então, a gente esbarra o tempo todo na deficiência daquilo que tá chegando. As coisas já chegam capengas, a gente já recebe tudo capenga, a gente recebeu uma UPP que ela é frágil, ela funciona, mas funciona pela metade, então na verdade, isso tudo deixa a população ainda mais revoltada, mais descrente. (Moradora, 35 anos).

4.4 Nem tão próxima assim

Para o Estado, as UPPs são uma estratégia para estabelecer um contato mais próximo com as comunidades, denominado como policiamento de proximidade. Mesmo que não haja uma formulação oficial a respeito do que significaria para o Governo do Estado e para a Secretaria de Segurança este policiamento de proximidade, infere-se que haja uma tentativa de apropriação de conceitos que tratam do tema. As representações sociais dos moradores do Morro do Andaraí a respeito da atuação da UPP fazem pensar algumas disjuntivas entre a efetivação desta modalidade de policiamento no Morro e a práxis dos policiais envolvidos no trabalho cotidiano. Os relatos anteriores em relação à atuação coercitiva dos policiais sustentam a visão difundida de que com as populações dos territórios da pobreza, o emprego da força é a melhor alternativa. Mas a força coercitiva não se manifesta apenas no controle das rotinas, a dificuldade de diálogo entre os policiais da UPP e os moradores é outro marcador da incapacidade de o programa de pacificação integrar as favelas aos mesmos direitos experimentados no "asfalto". Quando os policiais "chegaram" houve por parte do comando da UPP tentativas de estabelecer diálogo com os moradores, mas as deficiências desta rotina ainda são apontadas como um problema para a integração:

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Morador: “Olha, eles até tentaram, não vou dizer pra você que não tentaram, porque até tentaram. Eles tentaram fazer reunião, fazia reunião não ninguém comparecia, se comparecia meia dúzia de pessoas era muito. Mas a comunidade é um pouco arredia com a polícia, tantos anos levando porrada e agora de repente chega a pessoa e passa a mão na cabeça? A gente fica meio escabreado. (Morador, 54 anos). Morador: “Fizeram reuniões porque o presidente da associação reclamava dos abusos de autoridade e o comandante ia lá, foram no máximo umas 4 reuniões, não mais que isso. (Morador, 31 anos).

Relacionando a pouca participação dos moradores nestas reuniões com os relatos anteriores da permanência velada dos criminosos no território, depara-se com outro entrave importante para o estabelecimento de um diálogo estável entre moradores e polícia. Mais uma vez encontram-se componentes que corroboram com a ideia de que está em curso um “duplo panoptismo”: Morador: Apesar de que é assim, arriscado né? O pessoal tem medo até hoje, né? Quando se trata de falar com a polícia, de negociação com a polícia, toda a comunidade tem medo. Gustavo: Mas por quê? Morador: Tem receio. Quem não tem receio, são os próprios comandantes da própria criminalidade que, eles conversam, eles negociam, entende? Eles lá, eles sem entendem, aqui em baixo, é que tem briga. (Morador, 54 anos).

Óbvio que há o componente de desconfiança em relação aos policias constituído ao longo dos anos por suas incursões violentas na comunidade, mas a certeza de que há ainda a presença de traficantes parece ser o maior inibidor de uma atitude da comunidade em prol de maior aproximação, como é relatado: Moradora: Vou te falar que todo mundo evita ter contato com a polícia, até porque sabemos que o bandido tá na rua, normalmente, só não tá na forma como antes, mas está. Então a você evita contato, porque você não tem essa segurança. Você vai parar para falar com policial e sabe que tá sendo vigiado, que tá sendo observado. E você necessita morar no lugar, não tem como você fazer diferente. (Moradora, 33 anos).

Esta associação entre o controle da sociabilidade e o medo de uma possível reação dos traficantes faz permanecer no senso comum o sentido de que aquele ainda não é de fato um território seguro, “pacificado”.

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4.5 Expectativas em relação ao futuro

Através das entrevistas, foi possível perceber o grau de influência que a imagem da UPP e as expectativas em relação à sua permanência ou não na comunidade geram nos moradores, fazendo-os interiorizar na esfera pública local determinadas opiniões e estereótipos que, em muitos momentos, moldam seu comportamento público sobre o programa. Apesar de todas as críticas já relatadas sobre o controle e a continuação do cotidiano violento, quando perguntados se acreditam/querem que o programa permaneça na comunidade as respostas são unânimes em apontar para o desejo de continuação, indicando que isto seria inclusive um desejo da sociedade de modo geral. Morador: “Eu acho que a sociedade tá pedindo isso né? Porque, tu vê ai, se analisar legal, se analisar bem legal, quantos morros têm no Rio? Então, imagine se não tem esse trabalho de UPP nas comunidades, ia ser o estopim, né? Agora se a UPP sair, com certeza estoura uma guerra, vai estourar uma guerra. Então, eu acho que se o trabalho que tá sendo feito, se em algumas coisas que a população não aprovou, basta a gente dar mais um voto de confiança a ele, pra amanhã, porque tudo é com o tempo, É isso! (Morador, 59 anos).

Também se verifica a existência de uma compatibilidade entre a expectativa de futuro dos moradores em relação à UPP e a preocupação de esta ação do governo estar sendo constituída apenas para a manutenção da cidade para os grandes eventos que vem acontecendo. Morador: Desde antes de chegar a UPP, sempre teve um comentário, isso é até as Olimpíadas, depois das Olimpíadas, volta tudo como era antes, e quem saiu, sempre falou: “a gente tá saindo, mas vai voltar”. E isso sempre ficou bem claro né, e ai a gente sente isso, né, como uma coisa passageira. (Morador, 49 anos). Morador: “Pela leitura política da comunidade tem uma sensação que é para 2016 até 2017. O governo do PMDB, da capital, o Eduardo Paes, tá trabalhando bastante em função das Olimpíadas. Já recebemos um enorme contingente de turistas na Copa do Mundo, vimos a cidade colorida. Na época que o Papa veio, na Jornada da Juventude também. Então, a gente acha que tem um período seguro até 2016/2017. Comentam-se que depois só Deus sabe o que vai acontecer, né? Não vou dizer que eu sou “desesperançado”, estou fazendo uma análise técnica porque do jeito que tá é muito ruim, precisa de órgãos de Direitos

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Humanos, órgãos do social e da cultura e para a comunidade. (Morador, 60 anos).

Esta preocupação de as UPPs estarem inseridas, apenas, no bojo de uma preparação da cidade para os megaeventos que vem acontecendo surge na fala dos próprios moradores. Interessante notar também que associadas às expectativas sobre o futuro do programa sempre estão as críticas à pouca inserção social do Estado no território e a defesa de que só através da valorização desta área é que se poderia consolidar uma estratégia de “reintegração” das favelas à cidade formal como almeja o governo. Morador: Eu até acredito que pode continuar, desde que o governo, entre com o social, falta creche para as crianças, uma área de lazer, creche, principalmente creche para criança não tem, só tem 3 creches no morro, não dá vazão não tem vaga, a maioria das crianças tudo fora da creche, a mãe tendo que trabalhar e deixar na casa de parente, quando não tem deixa na casa de conhecido. Então falta muito o social, muito o social, falta asfaltar aquelas ruas, iluminar lá pra cima do alto do morro, não tem iluminação o suficiente. A Light chegou lá, botou poste, mas aqueles fios velhos de luz, aquilo continua tudo no mesmo lugar, nem tirar aquilo eles não tiraram até hoje. (Morador, 47 anos).

Com a sensação de estarem vivendo um novo momento, mesmo com todos os percalços que isto signifique, os moradores parecem apontar sua preocupação para a pouca ação do estado. A ampliação do programa, trazendo a participação de outras secretarias de governo, é vista como a uma solução para romper com a lógica que permeia a atuação utilitarista do estado no território. Morador: O programa UPP, tem que ter ser um programa ampliado. Pô, eu tô aqui no alto da favela, falando pô, o que o governador não sabe? Claro que sabe disso, mas para ele o que dá resultado a curto e médio prazo é colocar polícia aqui, mano. Pro bem do futuro dele, é bom que ele acorde, e coloque outras secretarias aqui dentro. Eu sei que é um desafio que o próprio Estado, o próprio Brasil, não estava preparado. Não estava se ligando que ia passar por isso. A gente não tem profissional suficiente ou se tem ainda não tá mobilizado dessa forma pra realmente fazer um trabalho de verdade aqui dentro. É quase uma militância porque a gente tá consertando um país que estava ferrado há 500 anos, entendeu? Então, eu acredito nisso, tem que ter uma força-tarefa. (Morador, 29 anos).

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Os moradores compreendem seu papel na consolidação deste processo iniciado com a chegada da UPP em sua comunidade: Morador: Cabe a nós meu filho, no caso, nós moradores da comunidade, começar a cobrar deles, se começar a afrouxar, temos que começar a cobrar. O que mais tem hoje é isso, nego cobrando, liga para ouvidoria, não tá resolvendo aqui, alguém tem que resolver. (Morador, 50 anos).

Dizem que também querem a integração proposta pelo Estado: Morador: Mas é bom a gente ser reintegrado o mais rápido possível, porque a violência começa assim, entendeu? Essa disparidade econômica e social, porque a classe social não é só o poder de compra, tem toda uma subjetividade, pô, nego não quer ser só playboy, entendeu? A gente quer viver bem, a gente quer viver com dignidade, da mesma forma. (Morador, 29 anos).

Os moradores apontam com veemência sua percepção e anseios sobre a UPP, entendem a parte que lhes cabe neste processo. Agora o caminho certamente está na atuação do Estado no sentido de associar às políticas permanentes de Estado, a execução de outras medidas que fortaleçam um ambiente democrático e de digno.

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5 O TRABALHO DE SÍSIFO – CONSIDERAÇÕES SOBRE POLICIAMENTO COMUNITÁRIO

Em relação à recente atuação da PMERJ nas favelas cariocas que receberam UPPs e, sob influência da interpretação das representações sociais dos moradores a respeito da UPP do Morro do Andaraí, cabem alguns questionamentos que põem em cheque a defesa feita pela Secretaria de Segurança do Estado de seu Programa de Pacificação e do que chama de “policiamento de proximidade”. Apresar de não se encontrar nenhum documento oficial, que apresente teoricamente o que a Secretaria entende por “policiamento de proximidade”, para além da legislação atinente ao desenrolar das ocupações. As inúmeras declarações do secretário Beltrame apontam para o entendimento de que esta modalidade de policiamento posta em prática nas UPPs derivaria do conceito mais geral de Policiamento Comunitário. Para tentar entender de onde se origina a fala do secretário é importante recuperar a memória das iniciativas pioneiras que foram implementadas em solo carioca na tentativa de oferecer um serviço de polícia mais voltado para as noções de serviço público e proteção das comunidades, seja do asfalto, seja das favelas. Certamente a concepção de um trabalho policial direcionado para melhora na qualidade de vida, principalmente, dos moradores de favelas com a tentativa do controle dos conflitos armados e dos desmandos policiais, amparado na filosofia de policiamento comunitário teve início na cidade do Rio de Janeiro (BEATO, 2001; RIBEIRO, 2012). Estas iniciativas primeiro ocorreram entre os anos de 1984 e 1987, época do primeiro governo de Leonel Brizola que entregou o comando da PMERJ ao Cel. Carlos Magno Nazareth Cerqueira, já citado aqui. Jorge Da Silva (2003) relembra que a orientação desta nova proposta de atuação da PM estava manifestamente refletida no “objetivo síntese” que pode ser encontrado no Plano Diretor da PM para aquele momento: “Promover, adaptando a estrutura policial-militar às exigências da segurança pública, o ajustamento comportamental da organização, dentro de uma nova concepção de ordem pública, na qual a colaboração e a integração comunitária sejam os novos e importantes referenciais, o que

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implica um novo policial e uma nova polícia.” (Plano Diretor da PMERJ, 42 1984).

Por apresentar a necessidade de mudança nas práticas policiais, estes primeiros esforços do Cel. Cerqueira e sua equipe, apesar do apoio do governador, sofreram forte contestação de outros oficiais e praças da PM e até mesmo de setores da sociedade acostumados a aplaudir uma atuação firme, repressiva e preconceituosa da polícia. Com o fim do primeiro governo Brizola as iniciativas democratizantes do trabalho policial ficaram em suspenso até que em 1991, com início do segundo mandado e a volta de Cerqueira ao comando da PM são retomadas, agora inclusive com uma fundamentação teórica mais consistente que traz as ideias de policiamento comunitário como parte de uma grande estrutura de atuação da qual faziam parte: i. Projeto Policiamento de Bairro com o Grupamento de Policiamento do Bairro que visava uma maior aproximação com as associações de moradores; ii. Implantação do policiamento comunitário no bairro de Copacabana; iii. Projeto Batalhão-Escola de Polícia Comunitária (BEPC), no 17°. Batalhão que além de aplicar a filosofia de policiamento comunitário servia de centro de formação de policias para esta forma de atuação. iv. Criação do Grupamento Especial de Policiamento de Estádios (GEPE), com a função de dialogar com os diversos grupos de torcedores organizados para a contenção do problema da violência que ocorria entre eles. v. Programa

Educacional

de

Resistência

às

Drogas

(PROERD)

destinado aos alunos das escolas de 1°. grau; vi. Tradução e edição do livro Polícia Comunitária: como começar de Trojanowics e Bucqueroux, em 1994; vii. Projeto Central de Denúncias que originou o atual serviço Disque Denúncia. viii. Criação do Grupamento de Aplicação Prático Escolar (GAPE) que atuou com a presença regular de policiais no Morro da Providência (adaptado de DA SILVA, 2003; RIBEIRO e MONTANDON, 2014). 42

Citado por Da Silva (2003, p. 368).

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Já no final da década de 1990, a atmosfera gerada por estas iniciativas influenciou a realização de outras ações governamentais como o “Mutirão da Paz”, realizado em 1999 na favela do Pereirão, zona sul do Rio de Janeiro, que associava a atuação policial ao atendimento de demandas locais, por meio da mobilização diversas secretaria e órgãos do governo estadual. No ano de 2000, foi criada uma unidade operacional da PM denominada Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE) que primeiro atuou nos morros anexos Cantagalo/Pavão/Pavãozinho. Em 2002, mais três unidades do GPAE foram instaladas: no Morro do Cavalão, na cidade de Niterói; nos Morros Formiga/Chácara do Céu/Casa Branca, na Tijuca e na favela Vila Cruzeiro, na Penha. Com exceção do Morro do Cavalão, todas a outras unidades do GPAE atuaram nas comunidades até sua substituição pela UPP local. Apesar de apresentarem resultados satisfatórios, grande parte desta estrutura organizacional proposta para consolidar a filosofia de policiamento comunitário, devido aos interesses políticos do governante do momento, acabou sendo abandonada ou substituída por ações que além de mudar a nomenclatura descaracterizam os procedimentos. Da forma como é apresentada pelos principais formuladores, a filosofia de policiamento comunitário procura encarar conteúdos que estão arraigados interna e externamente à instituição policial. Em consequência disto é que as estratégias propostas pelo Cel. Cerqueira e sua equipe visavam causar impacto não apenas na sensação de terror ocasionada pelo crime e na redução dos níveis de vitimização, mas produzir câmbios significativos no interior da PMERJ. Nos países desenvolvidos, as experiências de policiamento comunitário há muito vêm sendo disseminadas como forma de aproximar as comunidades do trabalho da polícia, tais experiências influenciaram muito o Cel. Cerqueira e sua equipe. Nestas experiências um dos pilares é a confiança que as populações depositam na instituição policial. Um aspecto comum a todas estas experiências de policiamento comunitário aplicadas ao redor do mundo é a incorporação da comunidade e o fortalecimento de sua participação nas decisões das questões de segurança. É consenso na literatura (TROJANOWICS; BUCQUEROUX, 1994; DA SILVA, 2003; SKOGAN, 2008; NEV/USP, 2009) que policiamento comunitário é um modelo

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de atuação policial onde se pressupõe uma intensa relação de confiança entre as comunidades envolvidas e os contingentes que atuam em seus territórios. Esta relação de confiança só pode se originar em uma sociedade verdadeiramente democrática e que respeite os ideais dos Direitos Humanos, diferente do que comumente se vê no Brasil onde, graças a sua estrutura extremamente preconceituosa e hierarquizada, a atuação policial herdou um mandato altamente autoritário para a execução de seus serviços. (DAMATTA, 1997). No livro que muito influenciou as primeiras discussões sobre policiamento comunitário no Rio de Janeiro e ainda hoje é bibliografia básica em todo o país sobre o tema, Trojanowics e Bucqueroux (1994) conceituam policiamento comunitário como: uma filosofia e estratégia organizacional que proporciona uma nova parceria entre a população e a polícia. Baseia-se na premissa de que tanto a polícia quanto a comunidade devem trabalhar juntas para identificar, priorizar e resolver problemas contemporâneos tais como crime, drogas, medo do crime, desordens físicas e morais, e em geral a decadência do bairro, com o objetivo de melhorar a qualidade geral da vida na área. (TROJANOWICS; BUCQUEROUX, 1994, p. 4).

Da Silva (2003) aponta as dificuldades para a formulação do que seria de fato essa tal polícia comunitária. Segundo sua avaliação, na verdade, há mais questionamentos a respeito do tema que consensos, seja entre os acadêmicos ou os próprios operadores do serviço de polícia. A todo momento, as elaborações a respeito do tema circunavegam em torno da palavra “comunitária” como se ai estivesse a explicação que daria forma a este desejo de policiamento. Desta maneira o policiamento comunitário seria tudo que se relacionasse à presença e a atuação compartilhada entre a polícia e a comunidade para a mediação e a resolução dos conflitos. Ao questionar estas tautologias que não apresentam mais do que uma reelaboração da expressão original, Da Silva reflete que as inúmeras tentativas de definir o que seria este tipo de policiamento têm deixado de lado uma questão muito importante para seu estabelecimento efetivo, o “foco” da ação. Este negligenciamento é resultante da aplicação do modelo de polícia profissional herdado da polícia estadunidense, que prevalece até hoje como prática e foca sua atuação no indivíduo para a promoção da segurança. Já o modelo de policiamento comunitário seria, como sustenta Da Silva, uma retomada de ideias

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mais democráticos da atuação policial deixados de lado com a adoção do modelo profissional. Numa, o foco são os indivíduos; noutra as comunidades. Assim, com a noção de foco, pode-se construir um conceito mais operacional. Tendo em vista o fato de a segurança pública ser um bem difuso e indivisível (se considerada a totalidade dos cidadãos), esta poderá ser um bem menos difuso, e até certo ponto divisível, se tiver como objetivo proporcionar tranquilidade às diferentes comunidades e bases democráticas. (DA SILVA, 2003, p. 353).

A defesa feita à consolidação do “foco” de atuação policial no modelo comunitário seria uma solução para evitar os deslocamentos discursivos que não auxiliam na consolidação do que efetivamente é este tipo de policiamento. Retomando a produção de Trojanowics e Bucqueroux (1994), o “Manual de Policiamento Comunitário” (NEV/USP, 2009) produzido pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) para a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) diz que os autores definem o policiamento comunitário conceitual e operacionalmente como: “(...) filosofia e estratégia organizacional que proporcionam uma nova parceria entre a população e a polícia, baseada na premissa de que ambos devem trabalhar, conjuntamente, na construção da segurança pública. [E] (...) filosofia de policiamento adaptado às exigências do público que é atendido, em que o policial presta um serviço completo”. (NEV/USP, 2009, p. 14).

Já Da Silva (2003) moldando à realidade brasileira o que diz estes mesmos autores (TROJANOWICS; BUCQUEROUX, 1994) e, diante das dificuldades de explicar de maneira afirmativa o que vem a ser o policiamento comunitário prefere considerá-lo pelo que ele não é ou não deveria ser, assim: (a) não é uma panaceia; (b) não é uma tática, uma técnica ou um programa; (c) não é relações públicas; (d) não é espalhafato; (e) não é elitismo; (f) não é algo concebido para favorecer os que têm poder; (g) não é um instrumento de captação de doações da comunidade; (h) não é concentração de efetivos policiais numa determinada área; (i) não é proteção de áreas turísticas;

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(j) não é massificação de efetivos em áreas comerciais. (Adaptado de DA SILVA, 2003, p. 354-355). A revisão dos conceitos de Trojanowics e Bucqueroux apresentada por Da Silva, se colocada em comparação ao que tem sido visto na atualidade do Programa de Pacificação do governo do Estado, auxilia a atestar que o que se pensa por policiamento comunitário difere em muito do que é aplicado hoje no chamado policiamento de proximidade do Rio de Janeiro. Percebe-se nas UPPs a reiterada existência de muitos desses “não é”. Em suma, policiamento comunitário não é apenas uma estratégia de ação, um programa ou a correspondência aos interesses de determinados grupos de pressão na sociedade, mas todo um sistema de reforma na estrutura organizacional e no devir da polícia que se identifique com os ideais de serviço público, como bem coloca Cerqueira (2010). “Dentro dos aspectos da igualdade, da cidadania, identificamos a polícia como serviço público, que deve estar a serviço da comunidade e pronta para garantir os direitos do cidadão. Isso significa romper com uma tradição histórica, de Força Pública a serviço do poder, ou de grupos minoritários que dominam o poder. Implica uma polícia realmente orientada para atender aos anseios e necessidades reais da comunidade (...)”. (CERQUEIRA, 2010, p. 197-198)

Para que as iniciativas de policiamento comunitário sejam de fato classificadas como tal, há que se levar em consideração a existência de determinadas características como as que aponta Skogan (2008): ativa participação das comunidades locais na identificação dos transtornos e na definição de quais assuntos devem ser tratados de maneira emergencial pela força policial; descentralização das tomadas de decisão, quando é dado maior poder de ação aos policias que atuam na ponta; isto tudo somado à aplicação de recursos metodológicos que auxiliem na solução dos problemas. A pergunta que se faz ao olhar para as UPPs é se pode-se encontrar nesta experiência as características de descentralização organizacional, monitoramento técnico, participação ativa das comunidades e maior discricionariedade listadas por Skogan, e, se os policias envolvidos na execução do trabalho as reconhecem em sua ação cotidiana.

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Foi com este objetivo de trazer para o debate as opiniões dos policiais diretamente envolvidos na implementação das UPPs que Mesumeci et al. (2013) aplicaram um survey entre os anos de 2010 e 2012 abrangendo as vinte Unidades criadas até então, das quais a UPP do Morro do Andaraí já fazia parte. Na pesquisa, as autoras constataram que a identidade dos policiais responsáveis pelas UPPs é de sujeitos jovens (81,7% com idades entre 25 a 33 anos), predominantemente pretos e pardos (70%), e 47,5% está cursando ou já concluiu algum curso superior. Uma questão importante identificada na pesquisa de Mesumeci et al. (2013) é que um pouco mais da metade dos policiais ouvidos (50,9%) considerou que a formação recebida para a atuar nas UPPs é insuficiente, principalmente, em relação aos temas que poderiam ser aplicados para a promoção de um policiamento menos violento, como: a utilização de armamentos não letais, procedimentos para violências domésticas, prática de policiamento cotidiano em favela, mediação de conflito e relacionamento com o público. É significativo que estes são os temas que mais permeiam as principais ocorrências em que atuam os policiais nas favelas ocupadas, sendo assim, as críticas levantadas pelos policiais sobre a deficiência de sua formação, se colocadas em comparação com as reclamações encontradas nas falas dos moradores do Morro do Andaraí sobre a forma de atuação destes mesmos policiais, ajuda a constatar as dificuldades do Programa em formar seus agentes para aplicar as estratégias de policiamento de proximidade. Outra questão que chama atenção é o posicionamento dos entrevistados sobre a relação estabelecida com a comunidade, as pesquisadoras observam que não mais que 2,9% das respostas à pergunta sobre qual seria, na opinião dos policiais, o aspecto mais positivo de seu trabalho na UPP, apontaram a relação com a comunidade. Ao passo que 34,7% dos entrevistados mencionou a relação com a comunidade como algo negativo de seu trabalho. Esta percepção, segundo as autoras decorre da consideração dos policiais de que grande parte da comunidade nutre por eles sentimentos de desconfiança, rejeição, raiva e medo. Os quais, como pode-se comprovar nas avaliações aqui apresentadas e nas falas dos moradores do Morro do Andaraí, muito possivelmente são originários da histórica relação da polícia com estas comunidades.

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Vê-se assim que, longe de responsabilizar os policiais pelas dificuldades do Programa, muito possivelmente, o entrave para a apropriação e efetivação de um policiamento comunitário pelos policiais está justamente na cabeça destes sujeitos, ou seja, não adianta uma pretensa filosofia da ação integradora da polícia sem incorporar outra formação que não a de apenas policiar as comunidades tidas como perigosas e sua gente (DA SILVA, 2003). Na verdade, ao olhar para o Programa de Pacificação do governo do RJ, vêse que sua atuação é construída mais na ordem de incorporar a tradicional forma de operação da polícia nas favelas, pautada pela repressão e ação reativa. As favelas do Rio de Janeiro têm na sua história a característica de serem pensadas sempre como um território conquistável, disto decorre a constante presença de “donos dos morros” como eram os bambas e valentões dos primeiros tempos que se transmutaram nos traficantes das últimas quatro décadas e que agora estão sendo substituídos pelos policiais de UPPs. Francamente, é dificultoso concordar com o fato de que justamente as favelas, que sempre sofreram com os males do controle, com o poder destes “donos”, torne-se hoje um laboratório para medidas que mais uma vez da ocupação territorial e da força buscam soluções para o problema da criminalidade violenta decorrente do tráfico de drogas que tanto assola o Rio de Janeiro. Possibilitar condições de vida em segurança a todos os cidadãos constitui-se como uma das principais razões de existência do Estado moderno e o monopólio da utilização do uso da força para isso é uma questão inconteste, conquanto esta seja utilizada dentro dos marcos do respeito aos direitos humanos fundamentais. O que se defende aqui é que para colocar isto em prática as ações de segurança devem conseguir combinar o modelo de policiamento comunitário com a participação ativa das comunidades locais e a aplicação de estratégias de desenvolvimento social, atuando desta maneira tanto nos eventos criminais, quanto na consolidação das esferas públicas locais. O primeiro passo da redução significativa das formas mais graves de crimes vivenciadas no interior das favelas já foi dado pelas UPPs, agora talvez reste a tarefa mais complexa do ponto de vista liberal para uma instituição acostumada ao exercício da força e coerção. Neste instante, somente uma real ação conjunta entre polícia e comunidades, onde os cidadãos possam controlar socialmente a atuação dos agentes vai

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fortalecer a sempre insipiente sensação de confiança da população, principalmente da população moradora de favelas, em relação à PMERJ. O Instituto legal que regulamenta as UPPs43 não determina a criação de fóruns participativos ou iniciativas similares de incorporação da comunidade, mas toda a discussão aqui empreendida ajuda a sustentar o juízo de que é o momento de aproveitar a sensível mudança nos ambientes das favelas e se pensar na consolidação de conselhos comunitários de segurança para os espaços onde há a presença permanente da polícia44. Constituídas como simples intervenção militar as UPPs não impactam positivamente no cenário social das favelas, sendo assim, a criação dos conselhos comunitários de segurança em suas áreas auxiliaria na introdução de dois conceitos muito importantes para a transformação das UPPs em um verdadeiro programa de segurança pública cidadã, a junção da ideia de “accountability” com a de “governança”. Como uma política pública o Programa de Pacificação do governo do RJ e suas UPPs devem passar por um controle social efetivo, ou seja, além de prestação de contas contínua das ações, há que se ter a participação das comunidades em seu desenvolvimento, nos termos propostos pela noção de “accountability”, segundo quais os processos de avaliação e responsabilização devem ser permanentes de maneira que permitam ao cidadão controlar o exercício do poder concedido aos policiais. Da mesma forma, a “governança” como capacidade de os gestores formularem e aplicarem políticas que se legitimem junto à sociedade, a legitimação destas políticas está precisamente no fato de emanarem dos interesses da própria sociedade civil que é ouvida pelo poder público (MATIAS-PEREIRA, 2008). Considerando a segurança pública como um bem difuso e indivisível, da maneira como a conjuntura daqueles anos e o trabalho policial solicitavam, o Cel. Cerqueira deixou também sua contribuição na defesa dessas ideias:

43

44

Confronte anexo III

Os conselhos comunitários de segurança são apenas regulamentados para sua aplicação nas chamadas Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP), espaços que abrangem bairros e áreas dos Batalhões e delegacias locais. Confronte: http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=40

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Eis alguns dos aspectos: atores envolvidos; modo de atuação; níveis de aceitação e reação social; dados estatísticos sobre índices, tendências e impacto social agências preventivas e repressivas; dados geográficos e outros. Estes e outros aspectos ajudarão a construir programas operacionais com a filosofia prevencionista da polícia comunitária. Com eles poder-se-ão articular as ações preventivas e repressivas das agências formais e informais do controle social; dos órgãos governamentais e nãogovernamentais; das agências nacionais, estaduais e municipais, articulando e integrando ações, sendo proativo e não reativo, (...) segundo os ditames de uma política de segurança pública, para um Brasil pluralista, democrático e respeitados da dignidade da pessoa humana. (CERQUEIRA, 1996, p. 210).

Nos tempos atuais, diante do alto grau de desenvolvimento das discussões em Direitos Humanos e Cidadania, está mais do que na hora de como defende Rolim (2006), se pensar a substituição do paradigma que apresenta o trabalho policial apenas como algo análogo ao privilégio do uso da força pelo Estado, como apenas uma força de coerção, para uma visão de polícia mais relacionada com a ideia de instituição protetiva das pessoas e dos direitos. Pensar desta maneira não se trataria, obviamente, de deixar de considerar a necessidade do uso da força quando necessário para a manutenção do Estado de direito, mas sempre levando em consideração que, pensando esta polícia dentro de uma ótica humanista é “muito importante definir o trabalho policial como aquele vocacionado para uma visão civilizadora, algo que sua identificação com a ideia de “força” acaba atrapalhando” (ROLIM, 2006, p. 28). Fosse tão somente uma questão de arranjo na política de segurança, este problema poderia ser resolvido com a assunção de um governante aliado dos ideais de Direitos Humanos, que desse espaço de trabalho a profissionais também comprometidos com estes ideais, como foi o caso do governador Leonel Brizola e da equipe do Cel. Cerqueira, mas como afirma Loïc Wacquant (2001) verifica-se que, independente da filiação política dos governantes há, graças ao modelo econômico vivido atualmente, um aumento do Estado policial nos países periféricos como o Brasil. Wacquant (2001) analisa que, desde o início do desmonte do Estado providência, na década de 1980, o modelo econômico neoliberal vale-se da administração de políticas penais para com os mais pobres, caracterizadas por ações que, invariavelmente, resultam no subjugo e letalidade destas populações. Sobre tais ocorrências nos países da América Latina e, especificando, o caso brasileiro autor afirma que, independentemente do crescimento econômico

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experimentado nas décadas da industrialização, a sociedade brasileira permanece caracterizada pela associação entre fatores prejudiciais tais como a desigualdade de oportunidades, a estrema despossessão dos sujeitos e a debilidade do jogo democrático e suas instituições, configurando um Estado penal (WACQUANT, 2001). Este Estado penal apontado por Wacquant encontra na violência das ações policiais realizadas nas favelas cariocas um de seus arquétipos mais fortes. A alegoria da guerra constante contra o mal representado na figura do traficante de drogas, ao utilizar-se da comum generalização que associa pobreza, componente racial e crime, não distingue quem serão os inimigos, fazendo de todos, traficantes ou moradores vítimas em potencial. Mesmo com consideráveis tentativas de modernizar e democratizar o trabalho policial, diante do ethos militar repressivo da organização, reforçado em muito pela atuação desta instituição junto às forças armadas para o combate aos inimigos do regime ditatorial brasileiro, as atividades da PMERJ nas favelas conflagradas ainda não ocorrem sem a devida utilização de força e violência indiscriminadas. Em consonância, o alarde em torno da crise urbana vivenciada pela violência impulsiona os diversos grupos da sociedade, no sentido de cobrar do Estado a utilização de toda força possível à instituição policial para o combate ao crime, mesmo que, agindo assim, transforme os territórios controlados por traficantes em verdadeiras praças de guerra como tem sido visto. Este contexto fez do Rio de Janeiro um “caso bom” a partir do qual se começou a pensar iniciativas de atuação da polícia para a retomada dos territórios ocupados pelos bandidos. É assim que entra em curso o Programa de Pacificação do governo do Estado, cujo principal instrumento são as UPPs com a presença permanente de policiais nas favelas. Primeiro executadas sem muita certeza do que seriam, as UPPs começaram a receber o rótulo de “policiamento de proximidade” – algo como que uma corruptela da filosofia mais abrangente de policiamento comunitário – e vêm ao longo dos últimos seis anos se consolidando como um empreendimento de longo prazo. Ao menos enquanto durar a presença do atual grupo político no comando do governo do Estado. O prolongamento das UPPs no tempo e no espaço impõem-se para as comunidades que recebem sua intervenção como um novo elemento que,

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invariavelmente, causa constrangimentos às esferas públicas locais através da coerção e controle da sociabilidade. Como foi comprovado aqui e também em outras pesquisas realizadas com moradores de favelas ocupadas por UPPs (CANO; BORGES; RIBEIRO, 2014; OST; FLEURY, 2013, entre outros), verifica-se a constância de atitudes autoritárias e de controle da sociabilidade postas em prática pelos policiais. Este assédio das UPPs às esferas públicas faz com que os moradores acionem categorias presentes no seu senso comum e interpretem esta ação segundo estas categorias, formulando assim representações sociais. Nas representações sociais observadas dos moradores do Morro do Andaraí verificou-se que, como elementos centrais, que transitam entre todas as categorias levantadas,

estão

os

questionamentos

ao

intenso

controle

disciplinar

e

regulamentador exercido pelos policiais lotados na unidade. Do que se infere que o diagrama surgido no cruzamento destes dois dispositivos – a disciplina e a regulamentação – seriam em tempos de UPP um rearranjo para o que sempre se processou nas favelas do RJ. Foi visto aqui que, em muitos momentos, a política de segurança desenvolvida em solo fluminense parece constituir um roteiro repetitivo que hora se traveste de ideais humanistas, mas que sempre acaba voltando à utilização da força e subjugo das populações mais pobres como principal instrumento. Chega a parecer que muitas vezes a preocupação maior é em se mudar nomenclaturas, mas a realidade na verdade não se transforma, a não ser no aperfeiçoamento da repressão, exclusão e negação da cidadania aos mais pobres. A reatividade da ação policial em muito assemelha-se à tragédia vivida pelo personagem grego Sísifo. O escritor Albert Camus em seu livro faz uma comparação entre a situação vivida pelo personagem da mitologia grega Sísifo e o absurdo que em muitos momentos é a vida da humanidade. Como punição recebida dos deuses, Sísifo é condenado a rolar até o cume de uma montanha uma grande pedra, mas toda vez que parecia ter alcançado seu objetivo, a pedra rolava ladeira abaixo voltando ao ponto inicial, anulando todo o esforço empreendido. Apesar das críticas já pontuadas aqui, este é sem dúvida um momento de transição na política de segurança do Rio de Janeiro. Para alcançar as mudanças que se espera na relação da polícia com as favelas, há que se desafiar as atitudes e

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representações estabelecidas por ambos os lados, ir além do que apenas alterar nomes ou fundir iniciativas. A população do Rio de Janeiro e, principalmente, os moradores de favelas ocupadas por UPPs dormem e acordam indagando-se sobre em qual estágio da montanha estaria a atual cúpula de segurança do estado e torcendo para que a pedra, dessa vez, fixe-se no topo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O interesse central desta dissertação baseou-se em traçar uma gramática que ajude a entender a maneira como a ação estatal, junto aos territórios favelados da cidade do Rio de Janeiro, constitui-se a partir de mecanismos de controle destas localidades e de sua gente, desde seu surgimento até os dias correntes. Nascida como uma cidade rebelde, palco de revoltas contra os colonizadores e tantos outros estrangeiros invasores, ambiente de organização de uma massa escravizada que no jogo do cotidiano não sucumbiu aos poderes dos senhores, mas fez da insurgência sua marca. O Rio de Janeiro tem nas favelas o exemplo de mobilização e luta dos pobres urbanos por moradia, acesso ao mercado de trabalho e cidadania. À história do controle das classes pobres e seus locais de moradia são adicionados componentes hora repressivos, como o Código de Obras e as remoções, hora populistas evidenciados pelos Parques Proletários e, em outros momentos, com alguns sopros democráticos como as urbanizações e outorgas de propriedade das décadas de 1990 e 2000. Ao fazer uma leitura da história das favelas e da relação intrincada que o poder público sempre estabeleceu com estes territórios, repara-se que a atual maneira militarizada como se desenrolam as ações de segurança pública é, na verdade, produto das práticas coercitivas já presentes no início do século XX. Sendo assim, defende-se que este modo de o Estado lidar com as favelas ativa nos moradores categorias interpretativas, por meio das quais buscam explicar seu lugar no mundo e a maneira como acreditam serem vistos pela ordem estatal e pelo conjunto da sociedade. A cena recorrente desta crônica é a presença violenta do Estado nas favelas por intermédio de sua polícia militar, principalmente. Situação que, como foi visto aqui, se agravou desde a década de 1980 quando as favelas, em decorrência das mudanças no comércio transnacional das drogas, passaram a ser locais privilegiados para a venda de cocaína no varejo e, consequentemente, objeto de domínio dos comandos criminosos que exploram este mercado. Com o crescimento do poder bélico e da violência do tráfico de drogas, o medo difuso da “crise urbana” vivenciada na cidade encontrou na figura do traficante

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favelado seu arquétipo mais robusto. E, diante da necessidade de combater estes comandos, os seguidos governos institucionalizaram a utilização da violência e repressão por parte da força policial. O que atingiu não apenas os criminosos, mas o conjunto

dos

moradores

de

favelas

homogeneizados

pela

interpretação

discriminatória que sempre associa pobreza à delinquência. Para tratar destas questões, a dissertação foi sustentada pelo referencial teórico metodológico da Teoria das Representações Sociais, por sua vez, situada campo da “psicologia social mais socialmente orientada”, principalmente em seu diálogo com a sociologia. Partindo de uma abordagem holística, que considerou observar os fatos humanos como totalidades, adotou-se uma “postura reflexiva” diante do objeto de estudo e dos sujeitos que o constroem em seu cotidiano – no desenrolar da esfera pública local. Junto a um trabalho de campo exploratório, com um instrumento de investigação não diretivo a história e as representações das favelas foram abordadas de modo a auxiliar na compreensão de como, desde sua aparição, os territórios de moradia dos mais pobres no Rio de Janeiro são apresentados, interpretados e tratados pelo poder público e pelas elites, como desviantes da cidade institucional e passíveis de regulação. Observar estas questões faz interpretar que o combate violento a tudo o que a favela representa de assustador, sempre permeou o ideário conservador das elites como um plano de ocupação dos locais de moradia das classes pobres. No decorrer de todo século XX e na primeira década do século XXI este ideário foi se consolidando até que, desde novembro de 2008, o governo fluminense parece ter começado a dar forma a este plano de ocupação. Estranhamente, é neste mesmo momento que a cidade do Rio de Janeiro é alçada à capital mundial de megaeventos e campo privilegiado de ação do capital financeiro internacional, o qual não pode atuar sem um ambiente onde impere a “sensação de paz”. A manutenção deste ambiente propício ao crescimento econômico e favorável ao trânsito de turistas e moradores na realização dos grandes eventos faz com que haja um deslocamento das políticas sociais universais preconizadas na Constituição Federal para ações sociais setorizadas subordinadas às políticas de segurança.

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Tendo no motivo público do combate aos crimes ocasionados pelo comércio da droga, as UPPs surgem na cena política das favelas do Rio como um dispositivo de ocupação do tempo e de disciplinarização da esfera pública local. Atuam de modo a enquadrar aquelas populações aos modelos de sociabilidade da cidade institucional. Esta constatação da gestão policial da sociabilidade nas favelas ocupadas por UPP foi aqui encontrada nas representações sociais colhidas dos moradores do Morro do Andaraí a respeito da implantação de uma unidade em seu território. Estes moradores relataram que as expectativas de uma mudança nas suas vidas, com o fim da violência e a expulsão dos traficantes foram rapidamente substituídas pela constatação de que apenas trocaram a truculência dos bandidos pela da polícia, como disse um deles em entrevista. Os moradores também apontam e questionam o aumento do efetivo policial em sua comunidade em detrimento do oferecimento de políticas sociais anunciadas com a chegada da ocupação. É perceptível o desapontamento dos moradores ao exprimirem a constatação de que a UPP, anunciada como um mecanismo de atração de ações sociais e políticas públicas para a comunidade, não se efetivou. A apresentação das UPPs, pelo governo do estado, como uma ação de policiamento comunitário ou de proximidade como preferem nomear, colocada em contraposição às representações sociais verificadas no contato dos moradores com estas, levaram, por fim, à necessidade de elaborar algumas considerações sobre o que efetivamente é policiamento comunitário e se as UPPs se enquadram nesta filosofia. Ao retomar as ideias apresentadas sobre o tema na literatura especializada e ao rememorar iniciativas postas em prática em um passado não muito distante do Rio de Janeiro, concluiu-se que policiamento comunitário não pode ser pensado apenas como uma estratégia de ação, um programa governamental ou a algo que corresponda aos interesses de determinados grupos de pressão na sociedade. Além do mais, para estabelecer uma estratégia de policiamento comunitário, o governo precisa romper com a tradicional imagem de violência e coação encarnada pela polícia militar. Precisa ir além e colocar em prática um sistema de reforma na estrutura organizacional e no devir da polícia lhe identifique com os ideais do serviço público.

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Inegavelmente, não será num passe de mágica que se resolverá a sobrecarregada relação entre as favelas e a polícia. Para tal demanda-se tanto a mudança da concepção estatal de combate ao crime nestes territórios, quanto a reestruturação do processo formativo destes policias que atuam na ponta da “pacificação”. Operando apenas como uma política pública policial, as UPPs tendem a deixar de contribuir para a questão mais importante colocada na atualidade da cidade do Rio de Janeiro, a do aproveitamento da diminuição do poder dos comandos criminosos nas favelas como possibilidade de reestruturação do tecido urbano a partir dos ideais democráticos e de consolidação do acesso aos Direitos Humanos para todos os cidadãos, do asfalto ou da favela.

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ANEXO I - Aprovação na Comissão de Ética em Pesquisa – UERJ

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ANEXO II - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Declaro que concordo em participar, voluntariamente, da pesquisa científica intitulada “FAVELA E CONTROLE ESTATAL – UM ESTUDO EM REPRESENTAÇÕES SOCIAIS”, que será realizada pelo mestrando Gustavo Clayton Alves Santana, cujo objetivo é analisar o cotidiano de minha comunidade diante das ações de segurança do governo de estado do Rio de Janeiro. Estou ciente de que a participação na pesquisa não envolverá qualquer custo financeiro ou risco a minha saúde. Estou ciente de que os resultados são confidenciais e que serão utilizados somente para fins de pesquisa, não havendo identificação dos voluntários, a não ser entre os responsáveis pelo estudo, sendo assegurado o sigilo sobre minha participação (confidencialialidade). Autorizo a publicação dos resultados das análises em conjunto para efeito público. Os resultados individuais só poderão ser comunicados a minha pessoa. Estou ciente, ainda, de que posso desistir da minha participação nesse estudo a qualquer momento, sem que me cause nenhum prejuízo ou dano pessoal.

Rio de Janeiro, ________de _____________________________de 2014.

Assinatura do entrevistado NOME COMPLETO: Número de Identidade: Contatos com os pesquisadores:

Gustavo Clayton Alves Santana (Pesquisador) Telefones: (21) 2334-0426 – UERJ e (21) 994-426-976 E-mail: [email protected] Ricardo Vieiralves de Castro (Orientador) Telefones: (21) 2334-0426 – UERJ E-mail: [email protected] Caso você tenha dificuldade em entrar em contato com o pesquisador responsável, comunique o fato à Comissão de Ética em Pesquisa da UERJ: Rua São Francisco Xavier, 524, sala 3020, bloco E, 3º andar, - Maracanã - Rio de Janeiro, RJ, email: [email protected] - Telefone: (021) 2334 2180 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido elaborado em 03/02/2014. Versão 1.

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ANEXO III - Roteiro temático para as entrevistas com moradores

1. Gostaria que você me contasse como era a vida na comunidade antes da chegada da UPP. Como era a relação da polícia com o “movimento”?

2. Quando a UPP chegou, como foi? A comunidade apoiou? Houve alguma reunião para apresentar a UPP? Houve participação nesta reunião?

3. Agora gostaria de conversar com você sobre a UPP hoje em dia. Em sua opinião a comunidade apoia ou não a UPP?

4. A presença constante dos policiais mudou a maneira como a comunidade se diverte ou organiza suas atividades religiosas?

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ANEXO IV - Decreto-lei 42.787 de 6 de janeiro de 2011

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ANEXO V - Requerimento para realização de eventos em áreas de UPP

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