FAZER-SE PATRIMÔNIO CULTURAL: TESSITURAS DE MEMÓRIA E HISTÓRIA NA UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES

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33º Encontro Anual da Anpocs

GT 29: Patrimônios, Museus e Ciências Sociais Coordenadores: Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu (UNIRIO), Myrian Sepulveda dos Santos (UERJ)

FAZER-SE PATRIMÔNIO CULTURAL: TESSITURAS DE MEMÓRIA E HISTÓRIA NA UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES

Aline dos Santos Portilho (Mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo PPHPBC / CPDOC / FGV)

Este trabalho tem por objetivo apresentar algumas reflexões sobre o processo a que temos nos referido como a patrimonialização da União Nacional dos Estudantes UNE. Trata-se de entender como os agentes mobilizados em torno da instituição, ao reelaborar sua performance na esfera pública; a que corresponde o processo de reconversão de capital político em capital cultural; acabam por inseri-la na retórica do patrimônio cultural brasileiro. A proposta é investigar como a UNE é pensada como patrimônio, apesar de não ser objeto da política efetiva de patrimônio cultural. O investimento é de reconhecer, no discurso dos agentes, elementos que ligam a instituição ao discurso de patrimônio cultural, mas que não são objetivados como tal por meio de tombamentos ou salvaguardas, por exemplo. Neste caso, o patrimônio cultural é tomado como uma categoria de pensamento a que se faz recurso de maneira genérica e serve para consolidar um passado como “legítimo” e, desta forma, referendar demandas por reparação política. Esta demanda ganhou materialidade no ano de 2007, quando das ações levadas a cabo no espaço da Praia do Flamengo, 132; sede da instituição entre 1942 e 1964. O que se pretende é, por um lado, entender qual processo propiciou a categoria patrimônio cultural alargar-se de tal forma que, nos dias de hoje, demandas por reparações políticas sejam abarcadas por ela. Por outro, entender como especificamente os militantes do movimento estudantil, em suas demandas por reparação, operam estes elementos que compõem a categoria patrimônio cultural, consolidando uma narrativa que constrói o lugar da UNE de agredido pelo Regime Militar e, portanto, habilitada a ser reparada por este período. O prédio da Praia do Flamengo foi construído, em 1929, pela Sociedade Germânia, fundada por imigrantes alemães e que se reunia desde agosto de 1821 na cidade do Rio de Janeiro. Construído para abrigar a sede de seu Clube 1, o endereço teve esta função até 1942. Em 22 de agosto daquele ano, o prédio havia sido confiscado pelo governo de Vargas como reparação de guerra2 e, passado à administração do Ministério

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Conforme consta nos estatutos da instituição. A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial foi acompanhada de medidas legais de confisco dos bens, públicos ou privados, de alemães, japoneses e italianos. Como está no decreto-lei 4166 de 1942, que dispõe justamente sobre este confisco, definido, neste mesmo documento, como “indenizações devidas por atos de agressão contra bens do Estado brasileiro ou contra a vida e bens de brasileiros ou de estrangeiros 2

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da Educação e da Saúde - MES, foi cedido à ocupação de três instituições: Juventude Brasileira, projeto cívico-militar de mobilização da juventude implementado pelo governo, a UNE e o Diretório Central dos Estudantes da Universidade do Brasil. As organizações do movimento estudantil permaneceram no prédio até 1º de abril de 1964, quando este foi incendiado por grupos estudantis que davam apoio ao regime militar que se estabelecia no país3. A partir de então, o prédio passou a abrigar, como trata o decretolei 55.591 de 19 de janeiro de 1965 além da Campanha de Assistência ao Estudante da Divisão de Educação ExtraEscolar do Departamento Nacional de Educação, o Conservatório de Teatro, o Museu e a Biblioteca do Serviço Nacional do Teatro, o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e o Museu Villa Lobos.4

Em 1980, um ano após a reconstrução política da UNE, que esteve impedida de se organizar até 1979, o prédio foi demolido, dando lugar à ocupação por um estacionamento, situação que se manteve até o ano de 2007. Auxilia na definição deste objeto entender um pouco da trajetória que me levou a “encontrá-lo”, ou, a percebê-lo como algo sobre o qual deveria refletir. No ano de 2006, fui convidada para trabalhar na produção da 5ª Bienal de Arte e Cultura da UNE. O convite não foi por acaso, havia sido militante do movimento estudantil secundarista pela União da Juventude Socialista entre 2000 e 2002, ano em que comecei a cursar Produção Cultural na Universidade Federal Fluminense e, portanto, abandonei as atividades militantes. O fato de ter guardado alguma proximidade com a corrente que dirigia a UNE (e dirige até hoje) casado com a atuação profissional que eu iniciava na época resultou no convite para coordenar o Espaço CUCA no evento, que era destinado às apresentações das atividades desenvolvidas pelo Circuito Universitário de Cultura e Arte. Este Circuito era composto na época por uma rede de 11 Centros Universitários de Cultura e Arte¸ sendo 10 destes Centros participantes do Programa Cultura Viva5 como Pontos de Cultura.

residentes no Brasil”, os “bens das sociedades culturais ou recreativas formadas de alemães, japoneses e italianos poderão ser utilizados, no interesse público, com autorização do Ministro da Justiça e Negócios Interiores”. Foi neste processo que o prédio da Sociedade Germânia passou à posse do governo brasileiro. 3 Jornal O Globo, 02/04/1964, capa. 4 Decreto-lei 55.591 de 19 de janeiro de 1965. 5 Programa da Secretaria de Cidadania Cultural, do Ministério da Cultura que firma convênios com organizações da sociedade civil para desenvolvimento de projetos culturais.

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A 5ª Bienal de Arte e Cultura da UNE aconteceu no Rio de Janeiro em janeiro de 2007. Além de coordenar o Espaço CUCA, trabalhei na produção da Culturata, passeata que tradicionalmente encerra as Bienais da UNE. A Culturata da 5ª Bienal saiu da Praça da Lapa, onde ocorria o evento, e se encerrou no terreno da Praia do Flamengo, 132, momento em que foi ocupado pelos estudantes. Logo após o evento, fui convidada para ser coordenadora de produção do CUCA da UNE/RJ, um dos Pontos de Cultura da UNE. Meu trabalho era de dar suporte técnico às atividades que o CUCA e a UNE realizassem, em virtude do que trabalhei na equipe que produziu as comemorações dos setenta anos da entidade e rememorava o incêndio de 1964. Entre estas atividades, destacam-se a exposição “Praia do Flamengo, 132”, que consistia em um conjunto de banners que “contava a história” daquele espaço de 1942 até 2007; que contou com o apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; o ato político realizado em 1º de abril que rememorava os 43 anos do incêndio ao prédio, que contou com as tradicionais falas de líderes políticos, show de Carlos Lyra; músico, militava no Centro Popular de Cultura – CPC da UNE – nos anos 1950 e 1960 e compôs, junto com Vinícius de Moraes, o Hino da UNE; e exibição de vídeos. Foi realizado especialmente para esta data o filme A Casa do Poder Jovem, mas do qual não participei da equipe de produção. Neste mesmo período, estava terminando a graduação em Produção Cultural . Foi quando tive os primeiros contatos com os estudos sobre memória e suas relações com a historiografia. Fui motivada em especial pela bibliografia da seleção para o mestrado do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC/FGV e por ter sido, na graduação, socializada em uma tradição intelectual, ainda que muito recente, que nos incita a sempre aliar trabalho reflexivo ao trabalho técnico da produção cultural, a reconhecer nas atividades no terreno da UNE um objeto peculiar sobre o qual era necessário me debruçar. Em um primeiro momento, pensava em investigar como a memória do incêndio que a sede sofreu em 1964 servia como um elemento articulador da identidade do movimento estudantil. Com o início dos trabalhos na orientação, da leitura das fontes e após cursar as disciplinas do mestrado, o foco do trabalho ampliou-se. Percebemos ser importante investigar como, mais que articulador desta identidade, o incêndio está inserido em um processo em que os militantes da UNE estão preocupados em dar 3

respostas à nova realidade que os cerca; ou, buscando novas formas de agir na esfera pública. Desta busca decorreu, entre outras inovações, uma preocupação em sistematizar a memória e escrever uma história para a UNE para que seu passado fosse preservado. Juntou-se ainda a este movimento de redefinição de suas maneiras de agir publicamente o surgimento das demandas por reparação, que reivindicavam a posição da instituição como agredida pelo Regime Militar. Na confluência da preocupação com a preservação de sua memória com sua demanda por reparação define-se o objeto que buscamos explorar: o processo de patrimonialização da UNE, ou, a retórica que os militantes constroem para inserir a instituição no discurso de patrimônio cultural brasileiro. O empenho de estabelecer a narrativa de sua memória e uma escrita oficial para sua história está fundado no empenho de projetar sua representação para o restante da sociedade como portador autorizado de um passado legitimado de atuação política. É baseada nesse passado que a UNE pode reivindicar reparação pelos atos ocorridos durante o Regime Militar. Este movimento está ainda inserido em um momento mais específico da vida política da instituição. Refere-se ao fato de, na dinâmica de funcionamento da UNE, estabelecer-se, na década de 1990, a idéia de crise no movimento estudantil, caracterizada pelos próprios agentes como um processo de esvaziamento em sua base política. Diz respeito tanto à quantidade de estudantes que lhe conferiam representatividade ao se organizarem politicamente em torno dela, quanto à quantidade de forças políticas participando da instituição, que faziam dela um espaço de disputa e reforçavam assim o “pacto” de depositar nela credibilidade de representante dos estudantes. Seus agentes recorrem, então, a outros meios para preencher-se de outro tipo de capital simbólico, que, podendo ser reconvertido novamente em capital político, propicia que a instituição continue presente no jogo político, porém, reinventada na nova realidade, refazendo suas maneiras de se apresentar na esfera pública. É nesta dinâmica que surgem as iniciativas que, aos poucos, dão contorno ao que aqui é tratado como patrimonialização da UNE. Um conjunto de ações que trabalham no sentido de escrever a memória da instituição, inserindo-a na memória nacional; de tornar significativos os elementos do seu passado não somente para o movimento estudantil, mas para toda a nação. Isso implica em articular uma retórica que estabelece uma noção

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de passado da instituição e que elege determinados momentos deste passado para serem rememorados. Esta análise terá foco nos investimentos recentes que os militantes da UNE promovem no sentido de exigir do Estado brasileiro reparação à instituição pelos atos ocorridos em sua sede durante o Regime Militar (1964 – 1984). Este investimento se materializa no Projeto de Lei 3931/08, chamado PL da Reconstrução, que objetiva reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro na destruição do prédio da Praia do Flamengo, 132 e estabelece que a instituição deva ser indenizada financeiramente para fins de construção de um novo prédio no mesmo endereço. Para concluir o objetivo deste trabalho, é preciso perceber o processo que propiciou que demandas por reparações políticas promovessem o alargamento da categoria patrimônio cultural para abarcar grupos sociais e práticas culturais para além da idéia de patrimônio de pedra e cal. Mais especificamente, entender como os agentes que demandam estas reparações operam estes elementos que compõem a categoria patrimônio cultural para consolidar uma narrativa que ao mesmo tempo constrói seu lugar de agredido por determinado sistema de governo e legitima seu lugar de demandante, portanto, passível de ser reparado por este período em que foi perseguido. É neste sentido que, adotando o termo patrimônio como uma categoria pensamento e trazendo junto à reflexão as idéias de “colecionamento” e “experiência cotidiana”, recorrendo às definições destes conceitos que José Reginaldo Gonçalves oferece (1996 e 2002), se pretende pensar no acúmulo da experiência histórica da UNE como lastro para sua patrimonialização. Entender como se dá este acúmulo passa por perceber como se constrói o espaço Praia do Flamengo, 132. O lugar de memória6 que ali se estabelece após a demolição do prédio é construído a partir dos usos do passado que a militância promove no momento em que determinados atores, cuja atuação era de oposição ao Regime Militar (19641984), assumem o poder político do país. Assim, se antes uma visão de mundo estabelecia que certos grupos devessem ser alijados do discurso de nação, hoje é o estabelecimento destes mesmos atores políticos que se opunham ao Regime Militar em certas instâncias de enunciação que promove o “resgate” e “incorporação à história” de

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Cf. NORA, 1993.

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alguns grupos naquele período perseguidos pelo Regime. Porque há intelectuais7 dispostos a, a partir de seu lugar de fala, qualificar estes opositores como agredidos e os militares como agressores, estabelecendo mecanismos que condensam estas posições no mundo social, há hoje um campo propício às ações de reparação. Neste sentido, os investimentos da UNE durante o ano de 2007 são um conjunto privilegiado de atos simbólicos, de onde emergem as questões que permitem caracterizar, por um lado, que está ocorrendo um processo de patrimonialização da UNE e, por outro, que um ponto importante neste processo é a disputa pelo terreno da Praia do Flamengo, 132. O que há de específico no caso da UNE é que não é a edificação que se torna patrimônio cultural e sim a instituição. O prédio, porém, tem um papel destacado na narrativa que se cria e na performance que dá fundamento a este processo. Colecionando experiências No artigo Monumentalidade e cotidiano: os patrimônios culturais como gêneros de discurso (GONÇALVES, 2002), José Reginaldo Gonçalves sugere que abordar o patrimônio cultural como gênero de discurso signifique adotar este não apenas como fala, mas, como enunciado que parte de um autor em resposta a um enunciado anterior; que, por si já era, também, uma resposta; gerando uma cadeia interminável (idem: 109). Sob este ponto de vista, os discursos são modalidades de expressão escrita ou oral, que partem de um autor posicionado (individual ou coletivo) e se dirigem e respondem a outros discursos. (GONÇALVES, 2002: 111)

Sua argumentação permite perceber que os patrimônios culturais são constituídos discursivamente, para além da observação dos valores de uso dos objetos em coleção. Esta discursividade é o elemento que institui a classificação dos elementos do patrimônio cultural como tais. Porém, está interessado no discurso não como seu sentido formal estabelece; “como gramática, sintaxe, léxico”; mas, concentrado nas visões mundo a que estão ligados. Refere-se, portanto, às concepções de patrimônio cultural, tanto quanto a noções como tempo espaço e subjetividade ligadas àquelas. Fazendo recurso ao elaborado por Mikhail Bakhtin, estabelece o patrimônio cultural, na medida em que o define como gênero de discurso, como “campo de 7

Penso em especial no sentido que Antonio Gramsci confere ao termo (Cf. GRAMSCI, 1989)

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percepção valorizada, um modo de representar o mundo” (BAKHTIN apud GONÇALVES, 2002: 112). A diferença que José Reginaldo faz entre “monumentalidade” e “cotidiano” são importantes para refletir em que conjunto de modos de representar o mundo se insere o pensamento que inscreve a UNE no conjunto do patrimônio cultural brasileiro. Se observada sua categorização buscando partir daquilo que, em geral, é objeto do patrimônio; seus objetos, suas coisas: o prédio de sua sede ou seu acervo documental, por exemplo; não se encontra elementos de densidade para analisar o proposto. A edificação foi demolida e é justamente o fato de ter sido alvo de investimentos tão violentos sob a perspectiva dos agentes que nela se reconhecem e que construíram a referência ao prédio que o preenche, contemporaneamente, de significação. Ressalte-se que o edifício foi alvo de destruição; aquilo que é mais temido e contra o que a política de preservação concentra seus esforços. A discussão articulada por José Reginaldo Gonçalves no livro A retórica da perda (1996) esclarece como este é elemento que está no fundamento dos discursos de preservação do patrimônio cultural, mesmo quando estes estão obedecendo a lógicas intelectuais distintas. O autor identifica nesses discursos uma concepção moderna de história como um processo inexorável de destruição. Esta concepção explica o pavor da perda, caracterizada, portanto, como algo que lhes é totalmente externo, uma violência. Este processo inexorável torna transitórios e fragmentados os valores e objetos e, para agir contra isso, é necessário apropriar-se. Ou seja, lançar fora do discurso do patrimônio cultura a transitoriedade e fragmentação para garantir a ele, e às categorias que dele decorrem, certas noções de unidade, identidade e integridade. Estas noções são construídas; por isso ilusórias; entretanto, na elaboração discursiva elas aparecem como elementos essenciais e naturalizados do patrimônio. É possível perceber esta concepção de história e empenho por integridade discursiva no ato de escrever a história legítima da UNE. É o conjunto de experiências que nele se desenrolam que dão à instituição o direito à proteção, que se materializa na reparação do Estado pelos atos cometidos durante o Regime Militar. Está, portanto, inserida na narrativa de patrimônio que tem como ponto de referência básico a experiência pessoal e coletiva dos diversos grupos e categorias sociais em sua vida cotidiana. (GONÇALVES, 2002: 119)

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Nesta medida, associando esta percepção do patrimônio cultural à ideia de “colecionamento”, ponto importante na formação de patrimônios, e assumindo a posição de que é o ponto de vista de uma valorização das experiências cotidianas que permite aos militantes pensarem a UNE como um elemento que pertence à categoria do patrimônio cultural, somos levados a refletir sobre que tipo de “colecionamento” os agentes operam. Em seu sentido moderno, os patrimônios “podem ser interpretados como coleções de objetos móveis e imóveis, apropriados e expostos por determinados grupos sociais” (GONÇALVES, 2003: 22). A partir do PL da Reconstrução podemos interpretar a forma dos militantes lidarem com a história da instituição como um modo de “colecionamento”. O documento é iniciado firmando que a destruição do prédio se deu em 1964, no incêndio, e que sua causa é de responsabilidade do Estado. A estrutura de base cronológica pode ser tomada como elemento revelador de uma noção de história como acúmulo de eventos. Nesta medida, a história estruturada pelo documento estabelece um recorte dos acontecimentos, porém, não deixa isto explícito. Recurso do próprio gênero a que este tipo de texto pertence, o que se procura ali é estabelecer a verdade dos fatos. Para isso, as disputas e contradições que envolvem aquelas datas que pontuam o texto são deixadas de lado. Alguns elementos que poriam questionamentos àquelas afirmações são, da mesma maneira, obliterados. A primeira data estabelecida, a da fundação da UNE em 1937, é alvo de disputas que exemplificam esta diferença entre a história da UNE como é estabelecida oficialmente e como está marcada na experiência dos agentes. Em depoimento ao projeto Memória do Movimento Estudantil, Irum Satanna, militante comunista que atuou na fundação da instituição, coloca seu ponto de vista: Em agosto de 1937, o que houve foi uma tentativa de evitar a UNE, é a antiUNE por excelência. A reunião do Conselho Nacional dos Estudantes é a posição anti-UNE. A UNE nasceu no encerramento do II Congresso Nacional de Estudantes, no dia 22 de dezembro de 1938, ali é que ela nasceu.8

O I Congresso Nacional dos Estudantes, em 1937 aparece como marco fundador da UNE nas narrativas militantes. Entretanto, segundo a opinião de que Irum é exemplo, aquela foi uma movimentação, capitaneada pelos militantes comunistas, de desarticular a

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Depoimento dado por Irum Sant‟Anna ao projeto Memória do Movimento Estudantil em 14/10/2004. Disponível em www.mme.org.br.

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organização dos estudantes, que buscava a criação de uma organização nacional dos estudantes. É preciso levar em conta que a fala de Irum é uma construção memorial; uma elaboração posterior ao fato e que, por isso, tem seus próprios condicionantes. Não se pode observá-la sem pensar em quem e para quem ela é a elaborada. Entretanto, não se pretende esgotar neste artigo esta discussão específica. Ela serve apenas para ser tomada como um exemplo pontual das diferentes visões sobre os fatos em que a instituição está envolvida e de que sua experiência acumulada, escrita oficialmente do projeto de lei, é fruto de elaboração que recorta da realidade alguns elementos, tidos como relevantes, assim como descarta outros. Não só as disputas são homogeneizadas no discurso, mas, alguns fatos são mesmo descartados da construção. É desta forma que, no documento, não aparecem, por exemplo, como nos anos 1950 o prédio foi alvo de disputa judicial envolvendo o governo; que nunca deixou de ser efetivamente dono do prédio até 1987, fato também descartado na narrativa; e a Sociedade Germânia, que, com o fim da Segunda Guerra, voltou às atividades e tentou reaver a posse do edifício. Estes fatos podem ser acompanhados pelos jornais da época, como o jornal O Globo, de 23/08/1958, que trazia na capa a reportagem, intitulada “UNE vai perder sua sede”, que tratava do ganho de causa para a Sociedade Germânia na disputa judicial pela posse do prédio. Além disso, o decreto 45.050 de 13 de dezembro de 1958 trata da declaração do imóvel “para fins de utilidade pública”. Somente a lei nº 7.606 de 28 de maio de 1987, do presidente José Sarney, autoriza a doação do prédio à UNE. A partir do texto do projeto de lei não podemos perceber que houve esta disputa pela posse do prédio, nem muito menos que a possibilidade da UNE ser despejada do local foi um fato concreto. Na construção de sua “coleção”, ou de sua história, elabora-se uma seqüência encadeada de atos heróicos da instituição, que também serve para consolidar sua posição “à esquerda” no jogo político. Após a exposição da trajetória de acontecimentos envolvendo a instituição no espaço, é postulado no texto do Projeto de Lei que

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não se pode negar a legitimidade da reivindicação dos estudantes, tendo em vista os fatos históricos narrados anteriormente e a proteção que a Constituição Federal assegura ao patrimônio cultural brasileiro.9

O que se apresenta, portanto, na lógica do documento, é a trajetória da UNE naquele espaço. Não é apresentado como uma possibilidade ou um recorte. Por ser um texto jurídico, seu caráter é declaratório e não abre espaço para fragmentações ou outros pontos de vista. Sua função é estabelecer a história e legitimá-la com tal e é isto que o instrumento, ao final, faz. Estes fatos históricos da instituição estabelecidos pelo documento oficial, são o objeto de colecionamento da instituição. Sempre carregados de heroísmo, são fruto de investimento narrativo, que reescreve e descarta elementos dentro do conjunto de suas experiências, porém, os narra como a história da instituição e estabelece esta como o patrimônio acumulado da instituição. É importante, ainda, percebermos que a categoria “patrimônio cultural” é utilizada, no PL da Reconstrução, para conferir à experiência histórica da UNE legitimidade. Não se pretende aqui revelar outra “verdadeira” história, que estaria subjacente à estabelecida no documento. É justamente por adotar uma noção de que toda história é, também, uma narrativa, portanto, que recorta elementos que, no mundo social, operam segundo lógicas próprias e são, posteriormente, reagrupadas em outra esfera, que podemos entender a história estabelecida para a UNE como uma operação de colecionamento. Não somente por estabelecer uma trajetória oficial para os usos do espaço na Praia do Flamengo, mas especialmente por fazer isto de forma claramente posicionada politicamente, o que lhe concede também sua significação no mundo social, é possível olhar para a elaboração deste documento como um espaço privilegiado de análise do processo de patrimonialização da UNE. Nele, os atos da instituição ao longo de sua existência e seu posicionamento quanto aos rumos políticos do país em diferentes momentos da história são ressaltados como fontes de defesa da “democracia” e pela “legalidade”. Sua proximidade ao presidente João Goulart é classificada como posição de “defesa do estado democrático de direito”10, construindo uma clara oposição ao período

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Projeto de Lei 3931/08. Ibdem.

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imediatamente posterior, de governo dos militares, classificado como “estado de exceção”11. Entretanto, estes elementos de classificação que sustentam uma defesa da UNE enquanto patrimônio nem sempre tiveram os mesmos sentidos. O que é a nação brasileira, tanto quanto o que são os estudantes e como são classificados no jogo político são construções provenientes de disputas no mundo social. Este jogo das significações dos elementos que compõem estas experiências explica o que levou ao incêndio e demolição do prédio, tanto quanto sua posterior recuperação e ressignificação. E esta elaboração somente é possível ser feita da maneira que o é, articulando os elementos que articula, porque há um corpo de agentes; que inclui militantes do movimento estudantil, políticos, membros da burocracia estatal; mobilizados para a recuperação desta memória e sua inscrição na memória coletiva do país. O patrimônio serve para agir, para além de simbolizar e representar. Serve como um conjunto de elementos disponibilizados de que as pessoas fazem uso construindo suas formas de representar o mundo e operar nele a partir delas. Nos termos de José Reginaldo Gonçalves: O patrimônio é usado não apenas para simbolizar, representar ou comunicar: é bom para agir. Essa categoria faz a mediação sensível entre seres humanos e divindades, entre mortos e vivos, entre passado e presente, entre o céu e a terra e entre outras oposições. Não existe apenas para representar idéias e valores abstrato e para ser contemplado. O patrimônio de certo modo, constrói, forma pessoas. (GONÇALVES, 2003: 27)

O prédio da Praia do Flamengo funciona como um elemento importante na mediação entre o passado e o presente do movimento estudantil. Ao ser demolido, em vez de rompidas, as ligações com o passado de que são herdeiros foram fortalecidas por outro viés. Justamente, pela articulação da memória desta perda como elemento de mobilização e reconhecimento de seu passado que os militantes convertem o capital político da instituição em capital cultural e, desta forma, continuam atuantes na cena pública, mesmo que de maneira distinta dos seus antecessores. A construção do espaço “Praia do Flamengo, 132” como “sede” dos estudantes

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Idem.

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As questões em torno da memória têm provocado amplas discussões contemporaneamente, seja por aspectos políticos, onde passados são mobilizados por grupos sociais considerados vítimas de experiências políticas anteriores, seja por inquietações acadêmicas alimentadas pela ânsia de ler criticamente a sociedade, não raro por ambos se nutrindo mutuamente. Vários são os autores que contribuem para a reflexão sobre este aspecto; aqui serão utilizadas em especial as propostas de NORA (1993) e HEYMANN (2007). Pierre Nora argumenta que o tema da memória está hoje tão em voga por que ela já não existe mais. Não existe no contexto de uma ruptura de equilíbrio gerada por uma aceleração da história que faz o mundo contemporâneo experimentar “uma oscilação cada vez mais rápida de um passado definitivamente morto” (NORA, 1993: 7). Deste movimento contemporâneo da história surge o interesse pelos lugares onde a memória se refugia. É na medida em que a memória deixa de ser um elemento natural ou uma vivência cotidiana, como era o caso para os camponeses, segundo Nora, “coletividade memória por excelência” (idem, idem), para ser um dever, um exercício consciente e projetado que as pessoas deixam de experimentar a memória em si e, portanto, passam a buscá-la (a projetá-la e experimentá-la) nos lugares, nas edificações, em última instância, nos elementos materiais. A análise do autor sobre a trajetória da história, que, ao debruçar-se sobre seu próprio fazer desvencilha-se da memória e dessacraliza seu ato, deságua na reflexão sobre o estudo dos lugares, que estarão no entrecruzamento desta inflexão da história sobre si mesma com a experiência contemporânea em que uma tradição de memória teria chegado ao fim. O interesse pelos lugares é, simultaneamente, o aprofundamento destas questões da historiografia e o surgimento de necessidades memoriais, vivenciadas agora como herança daquela tradição de memória. Os lugares de memória são, nessa perspectiva, aquilo que “secreta, veste, estabelece, constrói, decreta, mantém pelo artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua renovação.” (Idem: 13) Investigando como os lugares de memória são estabelecidos, Nora sugere que sua efetivação somente ocorre a partir da articulação de três sentidos do termo lugar: o aspecto material, o aspecto simbólico e o aspecto funcional. 12

Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica. Mesmo o lugar puramente funcional, como o manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. (idem: 21)

O terreno da Praia do Flamengo articula estas três dimensões, porém de maneira pouco aparente à primeira vista. Sua funcionalidade – abrigar a sede administrativa da instituição – foi interrompida no ano de 1964, experiência vivida e narrada posteriormente pelos agentes, tanto pelos que viveram a época quanto pelos herdam esta memória, como algo bastante violento. Como está explicitado no PL da Reconstrução A resistência da entidade resultou no incêndio ocorrido em 1o de abril de 1964 que destruiu sua sede, expulsando a entidade do imóvel localizado na Praia do Flamengo no 132.12

A vivência da expulsão torna a experiência do lugar mais intensa e significativa. Logo em 1965 o prédio ganhou, nos termos da lei13, nova funcionalidade, porém, terminado o Regime Militar, o uso rememorado de forma potente é o que foi empregado pela UNE. Em 1980, quando o prédio foi demolido, a instituição que ocupava o prédio era a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. Entretanto, não ocorreu que esta instituição se reivindicasse como agredida pelo Regime Militar. Mesmo o uso que a universidade deu ao prédio é recuperado pela memória da UNE. Em vez de apagar este período, ele é trazido para o quadro significativo do movimento estudantil, que reforça o aspecto cultural que o espaço recebeu neste período em que foi ocupado pelos cursos de arte da universidade. Nas memórias da demolição, a data é recuperada a partir da chave da violência sofrida pelos professores e alunos da instituição, como se pode perceber pelo depoimento de Ruy Cézar 14, presidente da UNE de 1979 a 1980. Há uma acomodação destas diferentes memórias, porém a portadora reconhecida socialmente dos usos passados do espaço da Praia do Flamengo é a UNE.

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Projeto de Lei 3.931/08. Site do Senado Federal. Decreto nº 55.591 de 19 de janeiro de 1965. Determina que “o prédio número 132, da Praia do Flamengo, no Estado da Guanabara, desapropriado ex vi do Decreto nº 45.050, de 13 de dezembro de 1958 passará a abrigar além da Campanha de Assistência ao Estudante da Divisão de Educação Extra-Escolar do Departamento Nacional de Educação, o Conservatório de Teatro, o Museu e a Biblioteca do Serviço Nacional do Teatro, o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e o Museu Villa Lobos.” 14 Depoimento dado ao projeto Memória do Movimento Estudantil por Ruy Cézar Costa Silva em 12/11/2004. Disponível em www.mme.org.br. 13

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No que diz respeito à materialidade deste lugar de memória, outras questões se colocam. Os marcos de sua recuperação são operados justamente com base nos ataques que a materialidade sofreu. O prédio foi metralhado na noite de 31 de março de 1964, incendiado em 1º de abril do mesmo ano e finalmente demolido em 19 de junho de 1980. Neste ponto um aspecto particular da operação memorial do movimento estudantil ganha relevo. A edificação não existe mais; posta abaixo, nem mesmo vestígios da antiga construção podem ser encontrados. Somente havia duas construções em concreto e telha, que serviam de abrigo aos carros durante o funcionamento do espaço como estacionamento, que funcionou no espaço entre meados dos anos 1980 e 2007, e, ao fundo, uma sala com banheiro. Quando o terreno foi ocupado no ano de 2007, logo se iniciou o processo de destruição das construções que ali existiam, com exceção da sala ao fundo. A instalação de contêineres e a construção de uma nova sala na entrada do terreno, que deveria dar lugar à sede administrativa das organizações estudantis, mas nunca chegou a ter este fim, ocorreu imediatamente à ocupação também. Após a ocupação pelos estudantes, os representantes do estacionamento que funcionava no local mantinham uma casa na entrada do terreno com três moradores fixos, como forma de garantir que, em virtude da disputa judicial que movia contra a UNE pela reintegração da posse, o espaço era utilizado como residência e que os antigos ocupantes não haviam aberto mão da posse pacificamente. Em março do mesmo ano o processo chegou ao fim com ganho de causa à UNE, porém, somente na metade do ano seguinte a uma ação de despejo retirou os antigos moradores do terreno. No mesmo dia, logo após a retirada dos moradores, os militantes iniciaram a depredação da antiga casa. Já era noite e alguns militantes se concentravam ali em virtude da reunião do CUCA da UNE, razão pela qual eu mesma pude presenciar o evento. Claramente eufóricos, e visivelmente imbuídos do sentimento de modificar o espaço materialmente para conceder-lhe nova significação, nem ao menos cogitaram a possibilidade de reaproveitar a construção para outros fins. O ato foi extremamente ritualizado, de posse de uma marreta, um estudante começou a destruir a paredes internas da casa enquanto outro retirava as telhas, motivado por gritos visivelmente eufóricos de comemoração. A construção não chegou a ser totalmente demolida naquele mesmo dia, mas função do ato para aquela coletividade estava cumprida. Os estudantes buscavam efetivamente comunicar através do ato de demolir a casa, para si e para a coletividade, 14

que estavam ali retomando a posse do espaço e consolidando publicamente o terreno como um lugar de memória da UNE. Temos um lugar de memória, não exatamente porque sua materialidade e funcionalidade sejam preservadas ao rigor do termo. É justamente na destruição destes dois aspectos que se ancora a construção daquele espaço como um lugar de memória. A primeira destruição evoca a violência promovida contra o grupo e é com base nela que se ancora o aspecto simbólico que compõe este lugar de memória. Como está no PL da Reconstrução, o prédio foi incendiado em virtude da resistência ao Regime Militar e a demolição do prédio foi fruto de “conturbado litígio judicial e diversas manifestações contrárias à demolição”, o que, na lógica do documento, referenda a “legitimidade da reivindicação dos estudantes” em virtude da proteção que a “Constituição Federal assegura ao patrimônio cultural brasileiro”. Neste viés, é o projeto de “reconstruir” a sede que está no foco da demanda por reparação. A mobilização dos estudantes tem agora como objetivo a reparação dos danos causados pelo incêndio ocorrido em 1964, de modo a possibilitar a reconstrução de sua sede no terreno mencionado e de um espaço reservado à preservação da memória do movimento estudantil15

A funcionalidade se altera: no lugar de um espaço destinado à administração e moradia dos estudantes, a reserva ao lugar que por princípio e finalidade preserve oficialmente a memória do movimento estudantil. A materialidade também: no lugar do antigo prédio construído por imigrantes alemães nos anos 1940, um moderno projeto de Oscar Niemeyer. Entretanto entre o projeto de futuro e as memórias do passado de usos daquele terreno que estão concentradas as ações que, no campo simbólico, conferem contemporaneamente os sentidos empregados ao terreno. “Ocupar”, “acampar”, “retomar” são nomes dados aos usos do terreno no ano de 2007, ações que só foram possibilitadas pelos atos de agressão empregados contra o prédio. É importante unir esta discussão às reflexões que buscam dar conta das maneiras como memória e esquecimento operam no contexto político, estabelecendo uma relação mais forte entre memória e direitos. A proposta que Luciana Heymann (2007) apresenta 15

Projeto de Lei 3931/08, chamado PL da Reconstrução, em tramitação na Câmara dos Deputados.

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de, a partir da discussão do dever de memória francês, traçar paralelos com a situação brasileira e discutir como, neste último caso, opera mais a idéia de um “resgate do passado”, é importante para refletirmos sobre a situação em questão. Segundo a autora, a expressão dever de memória não compõe o léxico das políticas públicas nem dos movimentos sociais no Brasil. Em seu lugar, a expressão mais próxima é a de resgate da memória, que seria “mais apropriado, talvez, em um país em que o „passado passa‟ e deixa poucos registros” (HEYMANN, 2007: 31). Ainda assim o tema da memória e das reparações, bem como dos direitos e do reconhecimento, tem ocupado a cena pública, articulando também a idéia do dever de justiça. Sem estabelecer uma comparação da situação brasileira com a francesa, a autora sugere que em contextos de lutas de alguma forma assemelhadas, a memória, ainda que acionada, não mobiliza os mesmos sentimentos, não produz os mesmos desdobramentos, não tem, enfim, os mesmos sentidos. (Idem: idem)

Os usos que serão feitos do passado pelas coletividades estão associados aos aspectos sociais, políticos, históricos e culturais a que estão circunscritos. Heymann procura deixar claras estas diferenças para entender as questões postas na pauta brasileira de discussão e demanda por reparação e direitos a partir do trabalho sobre a memória de determinados grupos sociais. Tratando especificamente da Lei nº 6683 de 28 de agosto de 1979, a Lei da Anistia, instrumento central na gestão dos passados sensíveis gerados pelos acontecimentos durante o Regime Militar, destaca-se que este tenha sido um recurso que visava a “pacificação nacional e estabelecimento de um consenso que lançasse as bases para a construção do futuro” (idem: 32). Fruto do seu momento histórico, a lei condensava o empenho em estabelecer um processo de abertura política que não fugisse do controle do Regime; que fosse uma abertura “lenta, gradual e segura”. Percebe-se, tanto pela redação final da própria lei quanto pelos dois instrumentos estabelecidos posteriormente para sua aplicação, que ela que opera na chave individual. O primeiro instrumento, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, instituída pela Lei 9140/199516, objetiva reconhecer as pessoas desaparecidas e mortas por motivação política no período entre setembro de 1961 e agosto de 1979, investir na localização dos corpos e emitir pareceres a pedidos de indenização aos familiares de vítimas nesta 16

A lei “reconhece a responsabilidade estatal por mortes e desaparecimentos por motivação política entre setembro de 1961 e agosto de 1979” (HEYMANN: 2007, 32).

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condição. A Comissão de Anistia, instalada pelo Ministério da Justiça em 28 de agosto de 2001, tem o objetivo de “analisar os pedidos de indenização de pessoas impedidas de exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política, entre 1946 e 1988 (...)” (idem: 33). Em ambos os casos o objeto da ação são os indivíduos: mortos, desaparecidos ou impedidos de exercer atividade econômica. O crime que o Estado reconhece ter cometido é aquele contra os indivíduos. Como Luciana Heymann conclui: No Brasil, a memória da ditadura tem sido acionada na sua dimensão de direito, como foi dito anteriormente, pelos agentes individuais ou coletivos que com ela se identificam, mas a evocação pública dessa memória não implica uma obrigação socialmente compartilhada. Seus usos na demanda por direitos têm, portanto, em que pese a aceitação de sua legitimidade, mais a marca dos combates individuais (mesmo em se tratando de grupos) do que a dos imperativos morais.” (ibdem: 36)

A instituição de um instrumento como o projeto de lei que repara a UNE pelos atos ocorridos em sua sede durante o Regime Militar coloca novas perspectivas de análise da gestão dos passados sensíveis deste período. Em contraste ao que é abrangido pela Lei de Anistia e seus instrumentos, o que opera no caso da UNE é justamente o resgate do passado onde as atitudes que, provocadas pelos “imperativos morais” que colocavam a instituição posicionada politicamente, definida de maneira genérica, à esquerda, e por esse motivo ter sido perseguida durante o Regime Militar, são valoradas, em 2007, e tomadas como elemento de prestígio e reconhecimento social. Trata-se, por um lado, de diferenciar as ações direcionadas a indenizar indivíduos pela ação do Estado da ação de mobilizá-lo para reconhecer uma instituição política como agredida. Ao deslocar a questão da reparação da esfera individual para a institucional é trazido para o foco mais densamente as disputas, da época, por visões de mundo e formas de condução política do país. A chave em que o opera, no caso da UNE, não é como a de um ex-militante que, por ter sido impedido de exercer a profissão, foi vitimado como pessoa, excluindo, assim, as prerrogativas morais de sua militância. No caso dos indivíduos, não se trata de julgar se sua militância estava correta ou errada; trata-se de marcar que o Estado não pode atingir o indivíduo em sua dignidade, portanto, enquanto pessoa. Trata-se, justamente, de consolidar que o Estado não poderia atentar contra a pluralidade da ação política, logo, não poderia agredir a UNE.

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Por outro lado, ainda analisando o texto do PL da Reconstrução, podemos perceber como certo conjunto de valores estão em jogo e servem para qualificar de forma diferente a experiência passada da instituição. No início da década de 1960, a União Nacional dos Estudantes já era notável por sua atuação em defesa dos estudantes e do estado democrático de direito, com importante papel no movimento denominado “Cadeia da Legalidade”, cujo objetivo era assegurar a posse do Presidente João Goulart, o que foi alcançado em setembro de 1961. Em retribuição ao apoio recebido, a visita à sede da entidade foi um dos primeiros atos do Presidente recém empossado17.

A primeira chave articulada é a que pensa a instituição como uma defensora do “estado democrático de direito” porque atuante em defesa da posse do vice-presidente João Goulart quando da renúncia do presidente Jânio Quadros. Articula, assim, a defesa da “democracia” à da “legalidade”, acionando a figura do presidente João Goulart, significação que não operava desta mesma maneira no período dos acontecimentos. Assim, o lugar de memória Praia do Flamengo, 132 se estabelece no resgate de um passado sensível, qual seja, da memória da oposição ao Regime Militar. Este resgate só é possibilitado na medida em que determinados agentes autorizados se empenham no trabalho de enunciar este novo discurso sobre o que seja a nação e que passado deve ser rememorado e tomado como constituinte desta idéia revisitada de nação. Considerações finais Não pensamos que “tornar-se patrimônio cultural” seja uma estratégia consciente dos agentes. Esta é uma condição tomada como natural, ou seja: para os militantes, não se trata de elaborar a UNE como instituição portadora de um passado político memorável e exemplar e sim de tornar reconhecido publicamente que a UNE o é. Esta busca de reconhecimento acaba por criar a retórica de sua patrimonialização, como se procurou analisar a partir do PL da Reconstrução. Os elementos simbólicos que o prédio articulava não o ligavam à representação de nação buscada no período do incêndio e da demolição. São estes mesmos elementos simbólicos que servem como base para o argumento, nos dias de hoje, que constrói o movimento estudantil como agredido da Ditadura Militar e procura lhe assegurar um

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Projeto de Lei 3.931/08

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lugar na história do país através de sua inserção na retórica do patrimônio cultural, ou seja, através de sua patrimonialização. A retórica da perda, que é objeto de José Reginaldo Gonçalves, experimenta aqui um caráter concreto. E a reparação surge em uma tentativa de recuperar o nexo: a indenização é destinada à construção do novo prédio. Entretanto, como reconstruir um nexo demolido? Aqui os paradoxos e coincidências do processo que repara a UNE ganham tonalidades intensas. Não será construído um prédio que reproduza a fachada antiga. Ela, relembrada em exposição fotográfica que reproduzia o prédio e a história da instituição, realizada em 2007 em comemoração aos seus setenta anos, segundo os próprios militantes, não representa mais a atualidade do grupo social. Mas, precisa ser lembrada e faz parte da memória da instituição. Mesmo tendo sido destruído, o prédio da Praia do Flamengo funciona como um nexo entre passado e presente do movimento estudantil. A destruição do prédio, em vez de romper completamente as correias de transmissão entre os acontecimentos passados e o presente do movimento estudantil, as fortaleceu no campo simbólico quando pôde ser, após o fim do regime militar, recuperada, ressignificada e servido de mote na transformação da UNE em um objeto da preservação do patrimônio cultural. Trata-se de entender como se funda o discurso que insere a UNE na retórica do patrimônio cultural brasileiro na articulação e usos das categorias “perda”, “colecionamento”, “experiência/cotidiano”. É neste processo que podemos perceber como o capital político acumulado pela instituição ao longo de sua trajetória começa a ser reconvertido em capital cultural. Os elementos que antes garantiam legitimidade (o potencial de mobilização pública, em especial) começam a perder-se ao longo dos anos 1990. É neste mesmo processo que seus agentes começam a investir em outros campos: o capital acumulado que garantia legitimidade política começa a ser aplicado, ou reconvertido, para habilitá-la a operar no campo da cultural, se constituindo como patrimônio cultural. Estes elementos são articulados para escrever a memória da instituição e demandar reparação na dinâmica do uso do passado político da instituição. Este retorno do passado, na dinâmica dos usos que seus agentes conferem a ele, está ligado a dois movimentos mais amplos do mundo contemporâneo. Por um lado, a força que a memória 19

assumiu contemporaneamente, conforme Pierre Nora demonstra, entre outros, nos informa sobre as dinâmicas que permitem a memória se tornar elemento de investimento e uso. Inserido nesta dinâmica mais ampla, os militantes da UNE conseguem tanta visibilidade às suas questões calcadas na memória por ser esta um elemento objeto de investimento e carregado de importância contemporaneamente. Há uma predisposição coletiva para conferir relevância a estas questões e é neste quadro que se funda a legitimidade conferida às demandas dos militantes da UNE. Por outro lado, dinâmicas que dizem respeito ao contexto brasileiro também precisam ser pensadas para compreender o que ocorre com a UNE. Vive-se um momento em que o posicionamento político à esquerda, definido de maneira genérica como aquele ligado a determinado conjunto de valores e visões de mundo, mas que, concretamente, se suportam em uma memória da resistência ao Regime Militar. Esta memória procura valorar o posicionamento à esquerda como fonte da defesa da democracia e da legalidade, construído por oposição ao estado de exceção. Esta valorização recente da esquerda também compõe o quadro que possibilita legitimar socialmente as demandas da instituição. É importante ainda perceber os meios de que os agentes se utilizam para atuar nestas novas dinâmicas. Neste ponto que é preciso recorrer à ideia de ação performativa para entender como os militantes estabelecem sua nova condição: de instituição politicamente articulada sobre sua alta capacidade de mobilização e influência em diversos setores da sociedade a instituição politicamente articulada sobre um passado memorável de atuação política. São em rituais que comunicam, para o grupo e para o público, sua nova condição que a instituição se estabelece como tal. No artigo The Anthropology of performance (TURNER, 1988), Victor Turner desenvolve conceitos como os de drama social, ritual e performance que são fundamentais para o desenvolvimento desta reflexão. Por drama social entende as unidades desarmônicas de processos sociais que afloram especialmente em situações de conflito. Em geral obedece a quatro momentos de ação pública. Em primeiro lugar uma ruptura (breach) nas regras gerais das relações sociais; em segundo um momento de crise (crisis) onde a ruptura tende a se alargar; em terceiro uma ação reparativa (redressive action), que pode variar de uma advertência ou mediação informal até a intervenção jurídica formal para resolver alguns tipos de crise ou legitimar novas maneiras de realizar 20

a performance do ritual público e que leva a quarta e última fase: a reincorporação (reintegration) do grupo que promovia o distúrbio ou um reconhecimento social e conseqüente legitimação da irreparável divisão entre as partes em conflito. Discutindo com autores como Erving Goffman e Richard Schechner, Turner apresenta a categoria ritual como “transformative performances revealing major classifications, categories, and contradictions of cultural processes” (TURNER: 1988). Em decorrência deste pensamento, performance é entendida como “a complex sequence of symbolic acts” (idem, idem). Ele explora a relação que Schechner estabelece entre drama social e teatro, defendendo a ideia, ao contrário de Erving Goffman, de que a teatralização (the dramaturgical phase) somente se inicia com o advento da crise no cotidiano da interação social. O importante de se apreender desta reflexão é que os rituais são atos de comunicação, “reflectiveness or reflexiveness”: ou seja, que se projeta externamente (reflectiveness) ao mesmo tempo em que se reflete sobre si mesmo (reflexiveness). A partir destas idéias, sugere-se pensar os atos para inscrever a UNE no discurso do patrimônio cultural como uma seqüência complexa de atos simbólicos, nos ancorando no recurso teórico que Victor Turner sugere. Tomando os rituais como processos de comunicação, é articulando uma série de ações que estabelecem a narrativa de sua memória e a escrita de uma história oficial para a UNE que ela torna-se patrimônio, comunica sua nova condição de entidade portadora de um passado memorável e exemplar que deve ser incluído no escopo geral da memória e da história nacionais. E o novo momento do grupo social requisita, então, um novo prédio. O projeto; chamado de reconstrução da sede, apesar de não guardar nenhuma relação em estilo com a antiga edificação; é uma engenhosa arquitetura modernista que conseguiu romper o concreto e implantar um jardim arborizado no centro. Presente do arquiteto Oscar Niemayer: modernista da “escola” do importante ator no grupo de Rodrigo Melo Franco de Andrade na gênese do discurso do patrimônio cultural no Brasil, Lucio Costa; além de fervoroso militante comunista, postura que garante seu lugar de relevante personagem da esquerda no imaginário brasileiro.

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