Fazer um filme em São Paulo nos anos 1920: o caso de \"Às Armas \" de Otávio Gabus Mendes

June 9, 2017 | Autor: Sheila Schvarzman | Categoria: Film Studies
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Fazer um filme em São Paulo nos anos 1920: o caso de "Às Armas " de Otávio Gabus Mendes1

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Texto desenvolve apresentação em Simpósio Temático “Cinema No Brasil: História e Historiografia” do Encontro SOCINE de 2013 2

Sheila Schvarzman é professora do Programa de Pós Graduação em

Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. Pós doutora em Multimeios e Doutora em História Social pela UNICAMP.

É autora de Construindo a história na

televisão: Marc Ferro e os Cinejornais em Histoire Parallèle, Revista Tempo, Niterói, 2014. Filmando a mulher no cinema mudo brasileiro - reedição comemorativa, Revista ArtCultura, UFU, 2013. Humberto Mauro e as Imagens do Brasil. São Paulo: EDUNESP, 2004. Organizou com o prof. Samuel Paiva Viagem ao Cinema Silencioso do Brasil, RJ: Azougue, 2011.

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Sheila Schvarzman2

e-mail: [email protected]

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Resumo Este artigo resgata, por meio da análise de Às armas, filme de 1930 dirigido por Octávio Gabus Mendes, características da realização cinematográfica em São Paulo naquele período: a aprendizagem do cinema, a concepção do enredo, a montagem do estúdio, os técnicos, os atores, as filmagens e as dificuldades de exibição. A ideia aqui é recuperar, por meio de documentação escrita, aspectos do enredo do filme, cujos negativos foram destruídos em 1938; vendidos para a fabricação de esmalte, o que ilustra o percurso; e o significado de fazer filmes brasileiros naquele momento. Jovens bacharéis paulistas concebem uma trama romântica envolvendo caipiras, imigrantes e tendo o Exército, batalhas, traições e patriotismo por centro.

Palavras-chave: Cinema brasileiro, realização cinematográfica, anos 1920, Octávio Gabus Mendes, Tenentismo.

Abstract This article recovers, through the movie Às armas (1930), directed by Octávio Gabus Mendes, characteristics from São Paulo's filmmaking from the end of 1920's: cinema's apprenticeship, plot's conceiving, studio's installation, technicians, actors, shooting and exhibition difficulties. Retrieves, the movie plot with written documentation because its negatives' disappearance in 1938, sold to a nail the time. Young scholars from São Paulo conceive a romantic plot evolving hillbillies, immigrants and the Army, showing battles, betrayals and patriotism as its core.

Keywords: Brazilian Cinema, Filmmaking in the 20´s, Octávio Gabus Mendes, Tenentism.

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polish fabric, what illustrates in a convincingly way the path and meaning of making Brazilian movies at

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Fazer filmes no Brasil não era simples: uma atividade artesanal numa terra que desprezava o trabalho técnico, o cinema não apenas era marginal, como esteve quase sempre, em seu início, circunscrito a imigrantes que haviam tido algum tipo de contato com atividades artísticas em seus países de origem. São fotógrafos como Gilberto Rossi, que exercia a profissão na Itália; Pedro Comello, que junto com Humberto Mauro decifrou o funcionamento de uma câmera de cinema em 1925; ou ainda atores como Vittorio Capellaro, que filmou em 1916 o film d´art O Guarany. Em meados da década de 1920, no entanto, movidos pelo culto ao cinema, já era possível encontrar jovens brasileiros de classe média e classe média alta que se interessavam pela atividade, movidos pelo gosto de contar suas próprias histórias e dominar a técnica daquilo que viam nas telas: seriados, melodramas, filmes de aventura. O prolífico cinema feito em Recife nesse período é um bom exemplo desse processo (ARAUJO, 2007, 33). A realização de filmes de ficção, desenvolvida desde 1923 em diferentes regiões brasileiras, do interior de São Paulo a Pelotas ou Minas Gerais, vem dessas mesmas aspirações. O cinema era então a principal atividade de lazer das grandes cidades brasileiras, e em 1925 o Brasil era o quinto exibidor mundial de filmes americanos, que constituíam 80% dos filmes exibidos naquele ano, segundo dados da censura (MACHADO, 1987, 106; SIMIS,2008, 75). estúdios

e

o

glamour

dos

filmes

norte-americanos,

que

alimentavam

semanalmente revistas como Cinearte e Scena Muda, a realidade da produção no Brasil era muito distinta, embora nem por isso fossem as aspirações menores. Resgatar a realização e reconstituir Às armas, filme de 1930 que Octávio Gabus Mendes dirigiu num estúdio criado em São Paulo por um bacharel abastado, obra deliberadamente destruída em 1938, será, em vários pontos, elucidativo sobre como se dava a produção de filmes no Brasil: o lugar social e cultural alimentado por um imaginário em torno do “cinema” confrontado às restrições locais; o desconhecimento da técnica, os problemas econômicos, as discordâncias sobre a realização, os atores improvisados, os entraves à

distribuição e exibição nas

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Nesse quadro em que o imaginário sobre o cinema eram estrelas, grandes

salas, culminando com respostas amenas do público a ponto de permitir anos 3



depois, no caso em pauta,

a banal mas consciente destruição do negativo -

vendido como matéria prima para a fabricação de esmalte - conforme o depoimento do produtor Joaquim Garnier a Maria Rita GALVÃO (1976: 158). Faziam parte desse universo as relações com a imprensa e suas repercussões em Cinearte, revista de cinema que, ao contrário de suas congêneres, interessavase e incentivava a produção nacional durante os anos 1920. Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, seus principais redatores, se impunham como autoridades do ramo para os diretores das várias regiões do país que vinham filmando no período. De seu lugar de poder como jornalistas da Capital Federal, Gonzaga e Lima orientavam os aspirantes sobre como fazer corretamente cinema e o que mostrar. Assim, ler a revista, corresponder-se com eles, vir à Capital Federal, ter encontros com Gonzaga e seus colegas e assistir às filmagens de Barro humano, encetada por esses jornalistas durante os anos de 1927 e 1928, constituía-se num privilegiado aprendizado. Octávio Gabus Mendes, o crítico paulista de Cinearte, participou desse processo. Deixando de lado sua postura de distanciamento em relação ao que a revista qualificava de “pernicioso meio cinematográfico paulistano”, entre 1928 e 1930 interveio na produção de filmes, e passou à direção com Às armas, projeto do estudante de direito Plínio de Castro Ferraz, com a produção de outro, Neste texto procuramos reconstituir a realização de um filme criado e financiado por jovens paulistas letrados e de camadas sociais abastadas, e observar a obra que produzem; no que a presença maior de recursos, a montagem de estúdios mais bem equipados, a formação intelectual e a inserção social em tudo oposta à dos antigos imigrantes modificou os filmes, cuja produção naquele momento foi ativada pela prosperidade econômica em São Paulo e, sobretudo no final da década, por uma efêmera conjuntura aparentemente favorável ao filme nacional, marcada pela introdução de filmes sonoros americanos sem legendas. O ano de 1929 foi saudado pela Cinearte

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Joaquim Garnier.

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como de produção nacional expressiva: 11 filmes, seis deles de São Paulo.3. De que forma Às armas, com uma história sobre amores numa cidade de interior, que tem o alistamento militar e o Exército como elementos centrais da trama, concebido e filmado durante a iminência da Revolução de 1930, informa sobre este momento e sobre os seus produtores? A mania do cinema em São Paulo

4

Quando Octávio Gabus Mendes5 (1906-1946) começou a escrever cartas para a Seção do Leitor da revista ParaTodos em 1925, queixando-se a Adhemar Gonzaga sobre a precariedade das salas de exibição em São Paulo, deu início à sua carreira cinematográfica. Antecipando-se ao seu contemporâneo, em 1921 o futuro bacharel em Direito Canuto Mendes de Almeida (1906-1990), que pertencia a uma família de juristas, entusiasmado com Perversidade, que o surpreendeu pela qualidade sendo um filme nacional, havia procurado José Medina6, seu diretor, para que o ajudasse na enquadração de um argumento que havia escrito. Em 1922, Tinha que ser 7 transformou-se na comédia-dramática Do Rio para São Paulo para casar (SALIBA

Acabaram-se os otários (Luiz de Barros); Piloto 13 (Achilles Tartari), São Paulo Simphonia (Kemeny e

Lustig); Enquanto São Paulo dorme (Francisco Madrigano), Escrava Isaura (Antonio Marques Filho), Fragmentos da vida (José Medina) (Cinearte 22.1.1930 p.4). 4

Agradeço à historiadora Ana Luiza Martins pela proveitosa leitura e sugestões.

5

Nasceu em Dourados – SP em 1906. Aos 15 anos, gastou a herança do padrinho em livros

estrangeiros sobre arte, música e cinema, para desespero da mãe, que queria vê-lo formado em medicina. Ao invés disso, tornou-se correspondente cinematográfico de ParaTodos em São Paulo e, a partir de 1926, de Cinearte. Escreveu roteiros, dirigiu Às armas e em 1930 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde realizou Mulher (1931) e escreveu o roteiro de Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933) para a Cinédia, estúdio de Adhemar Gonzaga. Com o fracasso do filme, voltou para São Paulo, onde se dedicou ao radialismo a partir da Revolução Constitucionalista de 1932. Morreu em 1946 (MENDES, 1988:16 e SCHVARZMAN, 2003, 135). 6

José Medina (Sorocaba,1894 - Sorocaba, 1980) ator, diretor, radialista e censor.

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Arquivo Canuto Mendes de Almeida APUD SALIBA, 2003:.29.

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2003:31) por sugestão de Medina e, dirigido por este, mereceu até mesmo uma crítica, ainda que sob pseudônimo, de Mário de Andrade na revista Klaxon! (n.2, junho 1922:16 assinada R.M. - de Raul de Morais). Segundo o realizador, “a fita foi feita e aceita com bastante sucesso no cinema República, que havia sido inaugurado em janeiro de 1922, com a exibição também do Rossi-Jornal n. 1” (MEDINA, 1972 APUD SALIBA, 2003:28). Canuto juntou-se a Gilberto Rossi e José Medina, que tiveram uma atuação mais assertiva no meio cinematográfico paulistano, pois associavam-se a exibidores para a realização de posados - como no caso acima, o prestigioso Cine República. Junto com eles, Canuto foi assistente de direção e produção e roteirista (SALIBA, 2003:32). Mais tarde, esteve ligado a Jayme Redondo e seu Clube de Cinema; ali realizaram Fogo de Palha (1926). Entre 1926 e1930, escreveu críticas de cinema para o Diário de São Paulo e o Diário da Noite (IDEM:40). Em 1927, deixando a atividade cinematográfica, foi o organizador dos festejos do Centenário dos Cursos Jurídicos (BARBUY e MARTINS, 1998:154), dedicando-se com intensidade às Arcadas 8 . Em 1931, publicou seu Cinema contra Cinema (1931), voltado à educação por meio de imagens cinematográficas. Chamo a atenção sobre Canuto Mendes de Almeida porque, vindo de família de juristas da cidade, exerceu influência no meio paulistano de cinema entre os escrevia esporadicamente sobre filmes brasileiros em jornais e pode-se dizer dele, assim como de Gabus Mendes, que teve uma carreira cinematográfica e uma expressão em São Paulo – certamente por isso tinha a antipatia de Gabus Mendes, como se verifica por sua correspondência com Adhemar Gonzaga9. É com Canuto Mendes de Almeida que Joaquim Garnier e Plínio Castro Ferraz chegam à realização cinematográfica.

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Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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Octávio Gabus Mendes. Correspondência a Adhemar Gonzaga. Pasta Octávio Gabus Mendes s/n.

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jovens aspirantes brasileiros, já que atuava na realização em várias funções,

Carta de 27/3/1929. Arquivo Cinédia. Rio de Janeiro.

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O entusiasmo pelo cinema surgiu nos tempos da Faculdade de Direito. O Dr. Garnier 10

era colega de turma de Canuto Mendes de Almeida

11

e Plínio de Castro Ferraz .

Canuto chegou a fazer filmes – o Dr. Garnier trabalhou em seu Fogo de palha, feito em 1925 – mas Plínio de Castro não passou do entusiasmo; era um rapaz extremamente inquieto, imbuído daquele espírito de modernidade tão comum aos jovens de então. É significativo que suas maiores preocupações da época fossem o cinema e a aviação; era sócio do Aeroclube de São Paulo e pretendia fazer um filme em que entrassem aviões às dúzias. Foi ele quem transmitiu a Garnier a ideia de fazer cinema. Começaram juntos, mas pouco tempo depois estava Garnier sozinho para levar a ideia avante. Comprou um enorme terreno de quinze metros de frente por trinta e quatro de fundo, na Rua Bering, e adaptou para estúdio um armazém ali existente. No entanto, ele e seus amigos “nada entendiam das questões técnicas sem as quais não se faz cinema. Mas Garnier conhecia Carrari, e foi procurálo.(GALVÃO, 1975: 152)

Como apontou Garnier, o entusiasmo surgiu entre estudantes de Direito, e essa filiação intelectual, política e social marcou os seus desdobramentos práticos, visíveis no filme que seria realizado. Da mesma forma, eram o cinema e a aviação extravagâncias de jovens abastados – a aviação, sobretudo, entre filhos de cafeicultores, marcados e inspirados na trajetória vitoriosa de Santos Dumont (1873-1932), este também filho de um “rei do café”. Entre eles, o intrépido Edu Chaves (Eduardo Pacheco Tibiriça (filho de Jorge Tibiriça Piratininga, governador de São Paulo entre 1890 e 1891 e 1904 e 1908), produtor de Hei de vencer, dirigido por Luiz de Barros em 10

Formandos de 1929 (BARBUY e MARTINS, 1998:154).

11

Não localizei biografia de Plínio de Castro Ferraz, apenas indicações: Escritório de advocacia na

Praça

da

Sé.

Indicador

Nominal

http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=313394&pagfis=109584&pesq=&url= http://memoria.bn.br/docreader “Conferência regional” na Rádio Educadora Paulista em 12.3. 1927, sobre

o

Conde

Maldito,

“dramalhão

caipira

em

14

atos”,

de

João

Boava.

http://www.memoriallandelldemoura.com.br/radiod_artigos_cronologia_do_radio_sp.html. Teria

dirigido

o

inacabado

Canção

do

Destino,

de

Cléo

de

Verberena

em

1931.

http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/o-z/FCRB_AnaPessoa_Por_tras_cameras.pdf.

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Chaves, pioneiro na ligação aérea entre São Paulo e o Rio de Janeiro) ou Alberto

Acessos em 21/7/2014.

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1924 - onde havia mais de um avião em atividade, como almejava Plínio, e outro elemento sensacional, uma perseguição aérea numa favela!12 Essa junção não era fortuita. Fazer cinema para esses jovens, assim como pilotar aviões, era uma aventura, ligada a uma modernidade muito explorada pelo cinema, sobretudo a partir da 1ª Guerra Mundial, quando os aviadores eram representados como cavaleiros modernos: aristocráticos, refinados e corajosos, como se podia ver tanto em filmes europeus, como Maudite soit la guerre, do belga Alfred Machin (1914), como em filme americanos, como Wings, de William Wellman (1927). A aviação era, naquele momento, atividade muito em voga também em São Paulo, com seus raids e chegadas de aviadores às cidades brasileiras: Gago Coutinho, Sacadura Cabral, o italiano Carlo del Prete e vários outros.13 Como a aviação, a produção de cinema era um hobby caro e praticamente sem retorno financeiro. Para fazê-lo dependiam, como menciona Garnier em seu depoimento, do financiamento de um pai rico que, segundo o filho único, patrocinou suas aventuras (GALVÃO, 1975: 151), além do trabalho de artesãos, como Arturo Carrari e Nicola Tartaglione, e de especialistas como Octávio Gabus Mendes. O empreendimento de Garnier, no entanto, não se reduziu a um filme. A sua que fez a revelação, entre outros, de Fogo de palha14 (1926) (SALIBA, 2003:36) e Piloto 13 (1929), de Achilles Tartari (GALVÃO, 1975:158).

11

FilmografiaBrasileira.http://www.cinemateca.gov.br/cgi-

bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p. Fotos do Banco de Conteúdos Culturais http://www.bcc.org.br/fotos/galeria/002618. Acesso em: 8 de agosto de 2014. 13

Conforme a Filmografia Brasileira (IDEM).

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Criado entre os anos 1926/1927 (GALVÃO, 1976, 152).

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produtora, a Cruzeiro do Sul, se manteve até 1938, e contava com um laboratório

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Fazer um filme em São Paulo Desde o início da correspondência entre Gonzaga e Gabus Mendes, em 1925, este revelava o desejo de escrever roteiros e dirigir filmes. Mendes pediu conselhos a Gonzaga, que sugeriu a Escola Palmer, de grande utilidade a Adalberto Almada Fagundes 15 . Gabus mencionou a leitura de Anita Loos e de revistas especializadas. A partir de 1927, já apareciam menções a roteiros. No ano seguinte, ele enviou a Gonzaga o roteiro de Renúncia: Um triângulo amoroso em que o marido fica cego, a mulher o trai com o melhor amigo dentro de casa, tem um filho e depois o marido se cura e vê tudo o que passa em sua casa e expulsa os culpados que despedaçavam o seu coração.

16

Em resposta, Gonzaga comentou o roteiro, provavelmente criticando os excessos melodramáticos,17 e Gabus respondeu: Não há a tragédia que você lobrigou. Ou melhor, há. Mas essa tragédia é tão disfarçada, tão ligeira, que, absolutamente, não pode afetar a sugestão do elemento amoroso. Eu sei, perfeitamente, com o estudo que me tem adiantado os filmes antigos, que não se deve empregar tragédia passional em excesso, (...). Mas, ao se desdobrar essa mesma tragédia, ela desaparecerá para dar lugar a detalhes, subentendimentos, pequenos nadas, muitos conhecidos teus, que substituem, a

Assim é o meu cenário Renuncia. A tragédia está tão “desdobrada”, tão espalhada, pelo trabalho todo, que, até aos quadros 300, não houve uma cena de drama sequer. Agora, o “clímax” da continuidade é dramático. Mas de uma dramaticidade de John M. Stahl, temperada com um pouco da humanidade de Von Stroheim, para trazer suavemente lágrimas aos olhos e mostrar a suavidade característica de um coração despido de maldade.

15

Industrial paulista, fez o curso por correspondência da Escola Palmer e montou a Visual Filmes, seu

estúdio. Por conta disso, era admirado pelos redatores de Cinearte. Filmou apenas Quando elas querem (1925). 16

Octávio Gabus Mendes. Correspondência a Adhemar Gonzaga. Pasta Octávio Gabus Mendes s/n.

Carta de 20/05/1928. Arquivo Cinédia. Rio de Janeiro. 17

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tragédia passional que aniquila um filme.

Não tive acesso às cartas de Adhemar Gonzaga para Gabus Mendes.

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No meu cenário, o vilão não é vilão. É talvez bem um galã perfeito. Ele não tem intenção de destruir o lar do amigo. (...) Ela não é uma prostituta de maus bofes. Não é vil. É apenas ardente. O seu temperamento profundamente fogoso exige carinhos.

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Gabus esboçava seus melodramas sensuais sob um fundo moralista ao gosto de então, que ele esposava, como realizaria depois com desenvoltura e com pitadas de crítica social em Mulher, seu filme de 1931 na Cinédia. Em meio a esta intensa atividade criativa, na qual buscava conciliar numa mesma história perversidade, erotismo e moralidade, Gabus começou a colaborar com Plínio de Castro Ferraz num outro roteiro e comentou exultante com Gonzaga: O Plinio procurou-me. Disse que esteve ai [Rio de Janeiro]. Veio tonto. Tontíssimo. Contou-me que assistiu à filmagem de alguma coisinha de Barro Humano. Está maravilhado, tonto, ofuscado. E, além disso, disse-me que você dissera a ele que se unisse a mim para escrevermos a continuidade. É VERDADE? Eu já o estou auxiliando, confiando na palavra dele. É verdade? MAS É VERDADE?

Se te

aborrece, é só escrever que eu paro incontinenti (...). Mas ele é ainda bem chucro, e eu, aos poucos, estou vendo se o elucido. Você acha que ele é elemento 19

aproveitável?

Devidamente autorizado, prosseguiu no trabalho com Plínio, que, em fins de Escrava Isaura. Mechita Cobus e Tosca Querze 20 da Companhia Roulien, Clara Salas. Hermínio Faria será o vilão”.21 Até aqui, como se pode ver, não há ainda menção a Joaquim Garnier. Na carta

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Octávio Gabus Mendes. Correspondência a Adhemar Gonzaga. Pasta Octávio Gabus Mendes s/n.

Carta de 29/05/1928. Arquivo Cinédia. Rio de Janeiro. 19

Octávio Gabus Mendes. Correspondência a Adhemar Gonzaga. Pasta Octávio Gabus Mendes s/n.

Carta sem data, final de 1928. Arquivo Cinédia. Rio de Janeiro. As maiúsculas são do original. 20

Tosca Querze é Diva Tosca, mulher de Raul Roulien.

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Octávio Gabus Mendes. Correspondência a Adhemar Gonzaga. Pasta Octávio Gabus Mendes s/n.

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abril de 1929, já estava terminando: “ele já contratou Celso Montenegro, o ator de

Carta de 23/4/1929. Arquivo Cinédia. Rio de Janeiro.

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seguinte, o assunto se esclarece: Ele [Plínio] respira pelos teus conselhos. E o filme, parece que vai mesmo. Eu presenciei o negócio com alguns lotes de terreno que ele está fazendo para iniciar o filme. Mas o Del Picchia

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já o quis tungar. Queria levar as atrizes. Mas o Plínio já

havia assinado contrato com elas. As moças assinaram por 3 filmes, a razão de três contos cada uma. E o Celso, por 3 contos e só para um filme. (...) O Garnier encomendou-me uma continuidade sob tema que ele me deu. Devo fazer? (...) Ele pretende financiar o próximo filme do Plínio. O que você acha?

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A produção nem havia começado e já pensavam em novas produções! Uma “febre”, que trouxe Pedro Lima (da revista Cinearte) a São Paulo para conhecer os vários estúdios em atividade naquele momento. Ele observa que: Os produtores de filmes em São Paulo são como os táxis desta cidade... são muitos. Mas nem todos são completos... A uns quando se fecha a porta, cai a do lado oposto. Noutros falta a bateria (...). Assim tem sido a filmagem paulista. Prometem e não realizam. (...) Quantas experiências não tem sido feitas. Custosas experiências. Que só tem servido para provar os conhecimentos de certos técnicos estrangeiros, (...) Mas felizmente o cinema paulista já vai tomando melhor orientação. Está se tornando mais limpo. Mais sério. (...) Na recente visita que fiz, pude constatar isto. Tal como sucede no Rio, em Cataguases, algumas estrelas são procuradas no lar. São pequenas distintas. De Film. Plínio Ferraz parece estar com vontade de acertar. A história está sendo cuidadosamente feita. Scenarizada. A escolha dos tipos tem merecido atenção. Celso Montenegro um galã moderno foi cedido por Marques Filho onde atua em A Escrava Isaura. (Cinearte 1.5.1929)

O jornalista veio a São Paulo, pois é significativo o número de produções. Apesar disso, manteve o olhar preconceituoso em relação ao papel dos imigrantes

22

Victor, irmão do poeta Menotti del Picchia. Eles eram proprietários da Independência Films.

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Octávio Gabus Mendes. Correspondência a Adhemar Gonzaga. Pasta Octávio Gabus Mendes s/n.

Carta de 28/04/1929. Arquivo Cinédia. Rio de Janeiro.

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família. De sociedade. (...) Uma das promessas que desperta interesse é da Record

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– realizadores e atrizes quando falava do ambiente “limpo”. Em suas observações, afirmou que Celso Guimarães foi cedido. Ao contrário, era o cachê mais caro e, por conta disso, foi cortado por Garnier, que era o produtor. Uma semana depois, no entanto, o panorama já era outro, sempre segundo Pedro Lima: Plínio, que não tem estabilidade nem para o nome da sua companhia, que já mudou três vezes, revela a mesma hesitação, a mesma falta de persistência nos seus empreendimentos (...) não tem orientação. A prova é que mudou novamente de artistas. (...) É muito significativo e as filmagens de Às armas já não podem nos inspirar muita confiança. (Cinearte 8.5.1929:4, n.167)

Em novo artigo, ele anunciou nova e definitiva mudança de nome e de proprietário da empresa: foi a Cruzeiro do Sul Film de São Paulo, de Joaquim Garnier, que contratou Plínio Ferraz para dirigir o filme. Para estúdio está sendo alugado um grande depósito que está sendo adaptado (...). Também foi contratado um operador alemão de São Paulo que dizem ser expert no seu métier. O início da filmagem deve ter sido a seis do corrente (6.5.1929) para estar terminado em quatro meses e ser lançado no sete de Setembro. (Cinearte 15.5.1929 n.168).

Em longa carta, em 17 de junho de 1929, Gabus Mendes explicou em detalhes a Gonzaga as mudanças da companhia adiantadas em Cinearte, dentre as quais, reveses e erros, ao mesmo tempo em que foram investidas somas significativas na montagem do estúdio e na compra de equipamentos: Plínio só está interessado no dinheiro. Você é bom psicólogo. É só então que eu vi que de ideal propriamente dito, ele só tinha mesmo a casca. Porque a única coisa que ele visa é o dinheiro, dinheiro e nada mais. Provou isto da seguinte maneira. Ficou combinado que o filme seguiria a seguinte diretriz. Antes de dirigir qualquer cena, ele, Plinio, estudaria o scenário comigo. Então eu vi o quão nulo e cru em cinema ele é. Para explicar uma sequência, apenas, e nem por isso a mais comprida, eu levei 3 horas. E apesar disso, ele filmou tudo errado e em desacordo com a continuidade

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sua passagem à direção por inépcia de Plínio Ferraz. Dá detalhes da produção,

feita em cartões e toda ela desenhada, para descrever a colocação de máquina. O

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Garnier, naturalmente, revoltou-se. Notou que ele não pescava nickel de Cinema. E, então, convocou o pessoal para uma convenção. Reunidos, ele deu o veredictum. Que ABSOLUTAMENTE não consentiria que o Plínio dirigisse o filme mais sozinho. Porque ele gastaria até 60 contos no filme. Mas não com um beócio! (Grifo de OM). Plínio alegou que havia estudado cinema comigo e que fizera duas viagens de estudo ao Rio, para estudar Cinema com você... Que ele sabia o que fazia. (...) No dia seguinte, converso com o Plinio. Observo-lhe a necessidade de correr a coisa mais ao gosto do Garnier, para que, afinal, se conseguisse ter a certeza de se estar fazendo MAIS UM FILME BRASILEIRO DECENTE. O Plínio, então me disse QUE NÃO FAZIA QUESTÃO DE DEIXAR DE DIRIGIR, MAS QUE COM O GARNIER, NÃO DIRIGIA EM HIPÓTESE ALGUMA. Eu lhe dei razão sob o ponto de vista de ser contrasenso um filme dirigido por dois cérebros diferentes. E falei com o Garnier. Este, também, irredutível. E como eu tinha, realmente, o maior trabalho do filme, DIRIGIR O DIRETOR, e vendo o Garnier que eu pescava um pouco mais do que o Plínio... Convidou-me, na frente dele, para dirigir o filme. O Plínio concordou. (...) pedi, apenas, que me dessem, durante dois meses os quais eu estaria de licença da 24

Repartição , aquilo que venço lá, ou sejam, 800$000 mensais. Que me dessem o que ganho na repartição, 800$ 000 mensais. Prontamente o Garnier concordou. No dia seguinte, porém o Plínio gritou. Que não dirigiria e que nem se importava com isso, mas queria o conto de reis mensal! (...) O Garnier fez-lhe mais duas propostas. Uma de 400$000 mensais, sem ter nada que fazer e mais 4:000$000 no fim do filme. Além do interesse que passaria, então a ser de 15% apenas. E ele não aceitou. Dizendo, então que preferia 5:000$000 de uma vez e, assim, desistiria de todo. Então Plínio, então conversou comigo. (...) Achatei-o e mostrei-lhe o lógico e são caminho. E que até se ele quisesse que ficasse o seu nome como diretor, porque EU NÃO FAÇO QUESTÃO de aparecer. O QUE EU QUERO, APENAS, É FAZER ALGUMA COISA APRESENTAVEL PELO CINEMA BRASILEIRO! (...) Afinal ele se decidiu. Não se meter! (...) Pretendo lançar o filme em 7 de setembro. O Garnier tem sido incansável. O estúdio tem 18 por 45 e é muito confortável. O laboratório começa a funcionar na terça. O Garnier comprou mais uma grande máquina copiadeira e diversos outros

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o Garnier encrencou! Disse-lhe que não dava coisa alguma. E não deu mesmo O

Octávio Gabus Mendes trabalhava na Repartição de Águas e Esgotos de São Paulo.

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apetrechos. E pretendemos filmar com luz de vela de mercúrio que encontramos na 25

casa General Eletric e com luz incandescente, lâmpadas solares. O que você acha?

Devido ao custo alto, o galã Celso Montenegro foi substituído por Gilberto Alencar. Estou satisfeitíssimo com Hugo Thorlay, o operador. É moderno e temos feito quase tudo com originalidade de maquina e com “flou” em todas as cenas românticas e poéticas. Aumentei as cenas tais. E fiz um final diverso para reforçar a parte amorosa que era fraca (...) Tenho esperança de fazer de “Às Armas” um filme bom. Ao menos à altura de Barro, Braza, Sangue Mineiro.

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Um filme Brasileiro, mas dos filmes feitos pelo

pessoal decente que luta por este ideal!

Gabus Mendes é enfático em sua carta a Adhemar Gonzaga quanto à decência: pessoal decente significava dizer pessoas que não se dedicavam a filmes de encomenda, o que naquele período era a verdadeira forma de sobreviver na atividade, e muito menos com filmes sobre a natureza brasileira, onde apareciam pobres e negros, que supostamente denegriam a imagem do Brasil, alvo constante da crítica de Cinearte. Decentes também são as “moças procuradas no lar”, em oposição às atrizes imigrantes, que eventualmente vinham constituir parte significativa do que foi o teatro em São Paulo (SILVEIRA, 1976). Obrigatoriamente, os imigrantes estavam associados às produções, mas no discurso persiste o preconceito. E o discurso de Gabus Mendes foi modelado para agradar Gonzaga, pois aspirava trabalhar em seu futuro estúdio no Rio de Janeiro, e o fato de ter se adiantado e começado a dirigir em São Paulo, sem pedir autorização (!), contrariou o carioca, pois são muito repetidos os mea culpa de Gabus sobre isso nas cartas. Como se pode ver por essa detalhada descrição unilateral da situação, que 25

A grafia das palavras e as maiúsculas correspondem ao original de Gabus Mendes.

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Barro humano (1929), de Adhemar Gonzaga; Brasa dormida (1928) e Sangue mineiro (1929), ambos

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do teatro amador ou de outros lugares e eram mal vistas, ainda que viessem a

de Humberto Mauro.

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deve conter exageros, aparecem aqui várias facetas da realização que não se mostram amadoras, apesar da pouca ou nenhuma experiência dos protagonistas. A contratação das atrizes por três filmes quando o estúdio sequer existia, assim como a negociação da saída de Plínio Ferraz, que havia escrito o argumento e iniciado os trabalhos de filmagem, são fatos significativos. Havia muito dinheiro envolvido, apesar da inexperiência de Plínio e de todos os outros no ramo. Aproximações da inexistente biografia de Ferraz poderão nos orientar: Plínio Ferraz gravou discos humorísticos pela Columbia e pela Victor entre 1929 e 1932. 27 Os seus temas eram o caipira, a cidade de interior e o exército, que explorou também no roteiro de Às armas. Nas gravações encontramos a cidade de Seribaté, ou Sorteio militar, que reproduzem piadas, estereótipos, sotaques e acontecimentos do mundo rural, ou de imigrantes e estrangeiros, como em O vendedor de Casemira. Em Sorteio militar (1932), a admiração pelo exército e o clima de exaltação patriótica que será observado em Às armas se repete, e a linguagem empregada é semelhante em seus arroubos. Talvez nosso roteirista possa ser classificado como um dos ratés do modernismo em seu humor regional, conforme definição de Elias Saliba (2002), da mesma forma que Cornélio Pires, (SCHVARZMAN, 2012). Por essas informações percebemos que Plínio Ferraz tinha experiência em criação artística e alguma projeção, o que teria lhe permitido lançar-se também no cinema, cobrando alto pelo seu roteiro e direção, o que explica o testemunho de Gabus Mendes. Nesta carta, sobressai ainda o desconhecimento e a inépcia sobre o que era dirigir um filme, enquanto conversas pessoais com o diretor de Barro humano valiam como atestado de formação e competência no ramo. Com a entrada de Gabus Mendes na direção, o enredo se alterou, agora recheado de cenas 27

Catálogo Geral dos Discos da Columbia, 1929. Informação de Carlos Roberto de Souza, a quem

agradeço. As gravações, que cobrem um período entre 1930 a 1932, podem ser ouvidas no site do

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que seria para ele uma inspiração, até mesmo por ter feito um filme em 1925

Instituto Moreira Salles: http://acervo.ims.com.br/. Acesso em 6 de agosto de 2014.

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românticas que ele acreditava necessárias ao sucesso do filme, ao contrário da ênfase mais regionalista do roteiro original. Mas o essencial da ideia original de Plínio foi mantido. O comentário de Gabus sobre o alto salário do galã Celso Montenegro – três contos de réis, enquanto ele mesmo receberia apenas o que ganhava como burocrata na sua Repartição de Águas, parecia mais uma forma de convencer Adhemar Gonzaga da sua desinteressada doação à causa do cinema brasileiro. Um estúdio brasileiro Há detalhes na documentação sobre a iluminação do estúdio, algo não habitual naquele momento em que grande parte dos filmes brasileiros ainda eram feitos com luz natural. Gabus fala de filmarem com lâmpadas incandescentes. Em seu artigo sobre o Cinema em São Paulo, Pedro Lima comentara como em todos os estúdios paulistas a luz ainda era a carvão, o que obrigava todos no set a usarem óculos de vidro preto, para evitar conjuntivite e que, apesar disso, “alguns não têm podido evitar o mal” (1º de maio de 1929, n. 166). O estúdio da Cruzeiro do Sul seria talvez um dos primeiros na cidade a incorporar a inovação. Em Um estúdio brasileiro, Guilherme de Almeida, crítico d´O Estado de São Paulo e autor dos intertítulos do filme, dá mais detalhes e descreve sua “comoção Braz quase Belém” – seu texto como a atestar desde o título a excepcionalidade desse lugar mágico no mapa da cidade: O estúdio - 15 metros por 40 cimentados coberto por telha vã coalhada de claraboias. Luzes fortíssimas distribuídas por quadros complicados cheios de chaves enormes. Confusão aparente de coisas disparatadas espalhadas pelo cimento: bastidores, portas, automóveis, caminhões, janelas, mobílias, grades, balcões, árvores, o diabo! Um cenário armado: um dancing com um “deslizador” no meio... refletores de arco voltaico por toda parte. À direita 6 camarins gêmeos (...) sobre os camarins o almoxarifado e o guarda roupa. Ao fundo os laboratórios: - a sala de revelação toda em longas luzes foscas vermelhas e amarelas, tanques, bastidores para banho, amplificadores e aquele perfume (perfume?) de ácido de acetona e de

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e estremecimento auri-verde ao adentrar no estúdio, Rua Fernão de Magalhães,

outras coisas desagradavelmente químicas, sala de cópia com aquele aparelho

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complexo (o copiador) entre pilhas e pilhas de latas (aquelas latas que não são absolutamente de goiabada), seção de secagem com um imenso tambor giratório automático todo enrolado de película, e com ventiladores, aspiradores e aquecedores funcionando a cada canto; e, afinal a seção de viragem onde se preparam as cores químicas..Em cima do laboratório: à direita uma gaiola que é a cabine de projeção, e ao fundo as diversas dependências para corte, enquadração, colagem, etc. (“Cinematógraphos”. In.: O Estado de São Paulo, 11 de maio de 1930)

A crer na descrição, tratava-se de um estúdio bem instalado, com diferentes equipamentos, vários camarins, muitas claraboias para a entrada de luz e iluminação elétrica alentada – precedido de um laboratório já em atividade (filmes já eram revelados em 1925) – com recursos técnicos e alto investimento econômico, e que funcionaria funcionar até 1938. Às armas foi concluído em fevereiro de 1930. Após as filmagens, Octávio Gabus Mendes partiu para o Rio de Janeiro, a fim de juntar-se a Adhemar Gonzaga, que inauguraria em março a Cinédia, o seu estúdio. O filme estreou em agosto. Às armas O enredo, segundo Garnier:

havia deixado duas moças. Uma muito simples e boazinha, que gostava dele, outra muito bonita e requestada, de quem ele gostava. No quartel, conhece um rapaz, recruta como ele, que se indispõe contra o Estado Maior e pretende chefiar uma revolta; durante uma manobra, desvia o tiro... para o mirante onde estava o General 'X'... mas o levante resulta em nada, porque há um quiproquó qualquer que leva o rapaz a se arrepender e avisar o general a tempo de poder escapar à cilada. Ele próprio, porém, não escapa, porque os outros soldados, não avisados da mudança do plano, atiram contra o alvo onde ele se achava. Durante estes incidentes, o caipira se comporta com extraordinária bravura; é promovido a cabo com todas as honras, e volta para casa garboso e desempenado, transformado em herói. A moça que o desprezava passa a procurá-lo insistentemente, mas ele compreende que mais vale o amor desinteressado da outra moça, aquela que antigamente era ele quem ignorava, e escolhe a segunda" (GALVÃO, 1976,154)

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contava a história de um matuto que vinha para São Paulo sentar praça. Lá na roça,

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Além desse depoimento e das lembranças de Nicola Tartaglione (GALVÃO, 1976:148), o documento detalhado acessível sobre o enredo é a descrição romanceada de Cinearte (edição de 14 de maio de 1930, pp. 6, 32, 33), que, se dá pistas sobre o filme perdido, é escrito na linguagem dos contos sentimentais e derramados, comuns nas revistas femininas do período, o que adulterava o seu conteúdo, como se pode ver comparando outros textos e filmes ainda existentes. Os cine-romances não só exageravam, como refletiam, antes de tudo, aspirações de Cinearte sobre a encenação que antecipavam, como parte da propaganda dos filmes brasileiros na revista, assim como se fazia com os filmes estrangeiros cujo material era enviado pelas assessorias dos estúdios – prática corrente também nas revistas cinematográficas internacionais. O argumento concebido por Plínio de Castro Ferraz e desenvolvido por Gabus Mendes fala de Roberto, que ama a fútil Luísa, mas é amado em segredo por Rosa, amiga de infância, boa moça de cujo amor Roberto não se dá conta. A ação se passa em Seribaté, imaginária cidadezinha caipira cujo nome vale como atributo de simplicidade, atraso e pasmaceira roceira em oposição a São Paulo: “sonho de cimento armado” (Cinearte, 14 de maio de 1930: 32). “Para cada duas horas de trabalho, Seribaté dá três de descanso...” (IDEM: 6). Pela descrição romanceada das personagens, notam-se as oposições que Ela é filha de Genaro, comerciante italiano. Só tem olhos para Augusto, o caixeiro viajante lusitano que chega à cidade (papel de Garnier). O resumo reitera essas denominações gentílicas, como se isso determinasse o próprio caráter do personagem. Augusto tem uma baratinha Chrysler, o que transtorna a cabeça de Luísa. Os carros têm sempre presença marcante nesses filmes, exibidos como production value e signos da modernidade que supostamente os aproximaria dos exemplares filmes americanos. Entretanto, como se verá pela ação dos personagens, essa imagem não vai se sustentar. Roberto, o protagonista, é tratorista e só pensa em Luísa. É agricultor moderno; não se diz se é proprietário da terra. Roberto conta a Pé de Vento, o

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marcam o caráter de Rosa, boa moça recatada, e Luísa, “a caipirinha apetitosa”.

caipira (segundo o protótipo de Genésio Arruda, conforme pode ser atestado em 18



fotos do filme28), personagem cômico, o que é a cidade de São Paulo: “Sonho de cimento armado! Fantasia de sons e ruídos” (IDEM). Depois de ter sido rejeitado de forma humilhante por Luísa, Roberto é sorteado pelo Exército e fica feliz. Convocado “se vai fazer mocinho de cidade, para assim, conquistar o coração de Luísa” (IDEM:32), que só tem olhos para Augusto. Desolado, o rapaz deixa a cidade. No quartel conhece Álvaro, o amigo que lhe dizia que Rosa o amava, e Lauro, “rapaz voluntário antipático e cínico. Que apenas visava, ali estando, encobrir-se do seu passado na polícia e das perseguições justas que a mesma lhe movia” (IDEM). Ele desencaminha Roberto, cujo comportamento era até então irrepreensível, para tomar dele o cargo de telefonista e chegar ao seu alvo: “Porque ele fora apanhado pelo Tenente Ferreira quando tramava contra a farda e contra a bandeira. Quando pregava a desordem e o descrédito, em suma! E o Tenente, justiceiro e enérgico fizera-o passar 15 dias a pão e água” (IDEM). Mas eis que chega o dia das manobras: O fragor dos canhões, o pipoquear das metralhadoras, o avançar simulado das tropas. Baionetas caladas. Os alvos ao longe sendo visados pelas miras dos artilheiros. E ativos e rápidos os telefonistas observando os tiros e dirigindo a mira dos canhões...

afastados da mira do canhão que Lauro controlava. (...) Esse era o seu plano. [Lauro]. Desviaria os tiros na direção do estado maior. E assim em frangalhos poria o homem que o aviltara. E depois quem poderia culpar? Não podia-se atribuir à uma casual mudança nos cálculos? (...) Roberto, auxiliar de Lauro percebe a mudança de alvo do canhão em direção ao tenente Ferreira. A mudança de trajetória da bala em direção ao estado Maior. Roberto grita e avisa: “Ele se está vingando! Procura atingir o setor de Ferreira. (...) E enquanto se agarrava a Lauro em medonha luta corporal arrancando o telefone das mãos, Álvaro corria em direção ao estado maior para avisar o tenente do perigo que corria

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Conforme fotos http://www.bcc.org.br/fotos/foto/FB_0813_002. Acesso em: 22 de julho de 2014.

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Ali estava o estado maior. O Tenente Ferreira e seus auxiliares. Poucos graus

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Os companheiros correndo pela salvação de seus superiores. Em busca de uma nobre ação. Fizeram pulsar seu coração. Fizeram-no sentir, pela primeira vez, a noção exata da palavra patriotismo. Mas a fatalidade tinha que vir. Álvaro é atingido. (IDEM)

Na luta Roberto leva murros, derruba Lauro e sai em disparada para mudar o curso do canhão: Lauro, já não lembrando mais nada e esquecendo sua vingança diante do companheiro caído, corre para acudi-lo, mas leva um tiro que o mata. Vitima de sua própria vingança. Pagando com seu sangue, o preço de suas faltas e baixezas.

O texto se alonga em detalhes sobre as lutas, estratégias e batalhas, cujas cenas foram incensadas na coluna de Guilherme de Almeida (OESP, 3 de agosto de 1930) e cuja redação lembra as reportagens dos jornais durante o movimento de 1922 no Rio de Janeiro e, sobretudo, a Revolução de 1924. 29 As cenas de caráter militar, a parte espetacular do filme, contaram com a colaboração do 4º Batalhão de Caçadores de São Paulo, que cedeu o quartel, soldados, armamentos, fardas, além de ensinar táticas militares reproduzidas na ação, conforme informa Joaquim Garnier, que exalta essa colaboração e o interesse do Exército pelos progressos do cinema brasileiro (Cinearte, 24 de abril de 1930, pp. enorme agressão à cidade que não deixou de ter suas simpatias por Isidoro Dias

29

“Durante todo o dia e a noite de sábado último, a rua Direita esteve absolutamente entregue aos

revoltosos. O tiroteio foi continuado [...]. O trecho da rua Direita entre a ruas São Bento e Quintino Bocaiúva [...] foi o triste teatro das operações belicosas. [...] Trânsito impedido, telefones desligados, sem luz, sem energia elétrica, metralhadoras correndo a rua” (Jornal do Comércio, edição de 7.8 e 9 de julho de 1924, apud BORGES e COHEN, 2004: 297). As forças federais sitiaram a cidade. “Aviões dirigiam a operação, lançando bombas que caíam por toda a parte, e explodiam ao acaso

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4-5). Certamente o filme seria uma boa propaganda do Exército, depois da

(CENDRARS, 1986:84 apud BORGES e COHEN, 2004: 303).

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Lopes e Miguel Costa, líderes da Revolução de 1924.30 Seria também propaganda do alistamento militar e de seu papel na vida dos jovens. Lauro, o voluntário corrompido e vingativo afinal não deixava de ter um coração sensível. Como a esposa de Renúncia - o roteiro de Gabus Mendes -, que traíra o marido, mas não era má pessoa... todos afinal se redimem. Álvaro faleceu no leito do hospital, Roberto foi condecorado. Elevaram-no a cabo e “deram-lhe a baixa que tanto merecia”. A descrição das cenas, conforme Cinearte, parece indicar paralelismo na montagem. O texto alonga-se em detalhes sobre a volta à cidade natal, sobre os arroubos falsamente apaixonados de Luísa, que o beijou de forma ardente na chegada: “Mas como tem coragem de beijar um Animal caipira?” diz Roberto, que desdenha de Luísa, que assim o chamara antes, e procura agora por Rosa junto de sua família. Entretanto, é abordado pelo poeta da cidade com um discurso de 500 páginas. Desvia-o. fazendo crer que o verdadeiro herói era Pé de Vento. Ao final, todos felizes participam do casamento de Roberto com Rosa. Pela organização da narrativa em Cinearte podemos entrever a composição do filme, tanto na cidadezinha quanto no quartel, marcada pela alternância de cenas que opõem a sensualidade de Luísa ao bom comportamento do protagonista e da mocinha que não era por ele amada. Recato, timidez, operosidade são exaltados personagens Roberto e Álvaro, e as vilanias de Lauro, dando ao desenvolvimento da trama, ao menos por esse texto, um caráter maniqueísta, unívoco e em muitos sentidos depreciativo do campo, que, no entanto, e contraditoriamente, é o centro do filme e lugar de onde vêm os personagens positivos. Era a tentativa de Plínio Ferraz de fazer humor com esse território, numa representação entre jocosa e ingênua, como parece se desenhar com Pé de Vento ou com o poeta da cidade. Seriam “causos”, como era o costume no humorismo sobre o universo rural, como

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“As crianças pobres, dia de Natal, ao em vez de esperarem Papai Noel, esperarão

desesperadamente inquietas, papai Isidoro, que lhes matou a fome o frio, vestindo-as e dando de

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no quartel e no trabalho. No quartel também se alternam as ações dos

comer, em ligeiros [...] dias (MACIEL, 1925:10, apud BORGES e COHEN, 2004: 300).

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acontecia com mais sucesso com Cornélio Pires em suas apresentações e no rádio, inclusive como se vê nas gravações de Ferraz (SALIBA, 2002; SCHVARZMAN, 2011). No entanto, o filme era mudo! Essa oposição é frequente nas narrativas paulistas, e acirrada nesse momento, quando ao caipira ingênuo/ladino se adiciona o imigrante italiano, como acontece em Às armas ou em Acabaram-se os otários, de Luiz de Barros, sucesso em São Paulo naquele mesmo momento. O campo é lugar de pasmaceira, mas também o berço do herói e da moça de bons princípios, em contraste com Luísa, a arrivista filha de italianos, ou Augusto, o leviano caixeiro português. O tema regional reagia à forte presença dos imigrantes, sobretudo italianos, cuja significativa entrada na sociedade era depreciada, como parece indicar esse filme; temida; ou até assimilada, como em Brás Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado (1927), ou mesmo em Acabaram-se os otários, com Tom Bill e seu personagem Xixilo Spicafuoco. Por outro lado, apesar das menções monumentais a São Paulo, não há cenas na cidade, só em quartéis como os de Areal e Quitaúna. O filme estreou em 3 de agosto em São Paulo no Odeon (Sala Azul), cinema de razoável prestígio, com distribuição de Serrador. Por seis meses desenvolveu carreira de exibição na capital. Em 1931 foi exibido no Rio de Janeiro, com Varginha, em Minas Gerais. Entretanto, para conseguir essas salas, foi preciso obedecer às condições do distribuidor. Segundo Garnier: Naquele tempo, quem dominava os circuitos de exibição era Serrador [...] Serrador era quem dava as cartas e estabelecia as regras do jogo. Propunha condições inaceitáveis para exibir filmes nacionais, mas os produtores eram obrigados a aceitálas, uma vez que não havia alternativa. O Dr. Garnier se lembra que uma das coisas que mais o irritaram [...] foi a proibição de exibir o filme fora do cinema lançador antes que decorressem seis meses a partir da data do lançamento; esta exigência anulava os efeitos da imensa soma de dinheiro que Serrador obrigava o produtor a gastar na promoção do filme, para garantir público aos seus cinemas. [...] Ainda assim, podiam dar-se por felizes os produtores que conseguiam lançar seus filmes

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distribuição da Paramount, e em Curitiba. Em 1932, em Recife, Porto Alegre e

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nos cinemas de Serrador. A maioria tinha que se contentar com as salas de segunda ou terceira categoria, e às vezes nem isso conseguia. (GALVÃO, 1976:155)

O filme, apesar das dificuldades de exibição, rendeu algum dinheiro que, segundo Garnier, foi consumido na boemia, sendo Gabus Mendes o maior farrista de todos (GALVÃO, 1976: 156). Depois desse filme, o estúdio só conseguiu realizar documentários agenciados por Nicola Tartaglione (IDEM). Em 1938, o estúdio foi fechado e o negativo do filme, vendido por Tartaglione como matéria prima para a fabricação de esmalte! Os sentidos de Às armas Estamos em 1929, diante de um argumento escrito por um estudante de direito e ‘regionalista’ em São Paulo. Um agricultor gosta de uma moça bonita mas de pouco caráter, e não percebe o amor verdadeiro da boa moça que o ama. Para compreender o seu equívoco, passará por uma prova transformadora: o Exército. Oportunidade para o personagem se tornar um herói, para o filme mostrar a vida num quartel, manobras militares e ação. Se o enredo – desilusão amorosa/alistamento na guerra, na Legião Estrangeira, heroísmo, sacrifício e final feliz – é constante em filmes internacionais, sobretudo a documentários, a começar por Um batalhão do Exército, de Pascoal Segreto (1899). A partir de 1908 e com a 1ª Guerra, são constantes “Grandes manobras”.31 O posado Pátria Brasileira, de João Stamato (1917), louva Olavo Bilac e a Liga de Defesa Nacional, que desde 1916 pregava o alistamento militar, questão que surge na Faculdade de Direito de São Paulo e lá foi discutida com ardor por seus estudantes (BARBUY e MARTINS, 1998: 143). Os “naturais” exaltam o patriotismo da mocidade brasileira como os documentários europeus: Às armas, de 1918, da Olímpia Filmes, encena “evoluções militares” e pede “aos 31

Fimografia Brasileira. http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/#. Acesso em 10 de

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partir da Primeira Guerra, na filmografia brasileira o Exército aparecia em

novembro de 2015.

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Srs. espectadores cantarem 'Às armas!', 'A Chaga do Soldado',

nos lugares

marcados no filme".32 A partir de 1922, as demonstrações militares eram associadas ao Centenário da Independência, e o Levante dos Tenentes aparece em documentários como o de Vittorio Capellaro, Revolução de 22.33 Aspectos da Revolução em São Paulo, da Rossi Films, e Pela Legalidade, da Hélios Film, sobre a Revolução de 1924, informam que as “imagens da entrada triunfal das tropas legalistas vitoriosas a São Paulo” foram autorizadas pelo Secretário da Justiça”. Segundo os letreiros do filme: “imagens feitas com a autorização das forças legais que deram combate aos sediosos” 34 deixam claro que o público só podia ver no cinema a imagem do poder.

Deem asas ao Brasil (1924), de Alberto Botelho, centra-se em

empolgantes raids 35 da aviação. Em 1926, Operações de Guerra, do Major Thomas Reis, documentou os combates do Exército brasileiro no Paraná contra os rebeldes de 1924 que formavam a Coluna Prestes. A revista de cinema Selecta comenta a precariedade das filmagens e do próprio Exército que as imagens, mesmo oficiais, deixavam ver36. Com o movimento de 1930, os tenentes ganham o centro dos documentários e da ficção, como em Amor e patriotismo, de Achille

33

Filmografia Brasileira. Dados d´O Estado de São Paulo. Acesso em 6 de agosto de 2014. Filmografia Brasileira. http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/#. Acesso em 10 de

novembro de 2015. 34

Filmografia Brasileira. http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/# Acesso em 10 de

novembro de 2015. Filme existente e visto. 35

Filmografia Brasileira. http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/ Acesso em 10 de

novembro de 2015. 36

"... São muito infelizes os apanhados de máquina embora sujeitos a preocupação de mostrar as

Quedas do Iguaçu, e outros pontos decantados do nosso sul... Não sabemos se o presente trabalho se destina a ser mostrado noutros lugares, e por isso pedimos que o revejam os seus confeccionadores, para que possam aquilatar quão vexatório é, para nós, vermos os nossos soldados marcharem descalços, com diversas formas de vestimentas. Para nós, que sabemos o que é o nosso elemento militar, compreendemos que, se não foi uma questão de técnica militar, outro qualquer motivo deverá subsistir, para tal, tanto mais que vemos a excelência da bóia fornecida e a alegria estampada na fisionomia dos nossos soldados..." (Selecta, 10 de fevereiro de 1926, p.14-5). Filmografia Brasileira.

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32

Acesso em 6 de agosto de 2014.

24



Tartari (1930), sobre a volta ao lar de um exilado da Revolução de 192437, ou o épico Alvorada de Glória, de Victor del Picchia (1931)38. Como se pode ver por esse breve e inconcluso levantamento, à parte Pátria Brasileira (1917), Às armas (1930)39 pode ser considerado – pelo que conhecemos pela documentação escrita e fílmica até hoje acessada e, quando existente, vista – , levando-se em conta os documentários oficiais de encomenda e as ficções do início dos anos 1930, como Alvorada de Glória (1931), de Victor Del Picchia, um dos filmes de enredo brasileiros que dão ao Exército o relevo que só era visto nos naturais autorizados, e que mostravam a vitória do poder constituído contra revoltas tenentistas como as de 1922, 1924 e durante a Coluna Prestes. O enredo do filme - segundo a Cinearte - exalta o heroísmo e o patriotismo em conformidade com a época que incensava em seus valores, na política liberal, na organização social, na literatura, na pedagogia ou na educação, o amor à pátria, o respeito às suas instituições, aos poderes constituídos e seus representantes (VELLOSO, 1993: 92). 40 Isso é perceptível no enredo do filme – como apresentado em Cinearte - por meio de um protagonista que, em suas ações, é capaz de arriscar a própria vida para salvar um oficial, seu superior hierárquico. No entanto, apesar da personagem de Rosa, a boa moça, entregar a Roberto uma bandeirinha do Brasil quando deixa Seribaté, ao menos no texto, o país não que fazia parte o “acadêmico” Plínio de Castro Ferraz, significava, então, o país, “a locomotiva que puxava os outros vagões” (BORGES e COHEN, 2004: 292). O patriotismo de que se fala era paulista até mesmo pelo federalismo que caracterizava a República Velha do “Café com Leite”, seja entre as elites no poder

37

Filmografia Brasileira. Acesso em 6 de agosto de 2014.

38

Idem.

39

Gabus fala da intenção de lançá-lo em 7 de setembro de 1929. O filme é lançado em 3 de agosto de

1930. 40

“Na constituição do projeto do Estado nacional, literatura e política caminham juntas como irmãs

siamesas. A arte é definida como o saber mais capaz de apreender o nacional e, portanto, o mais apto

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aparece nomeado uma única vez. Apenas São Paulo. São Paulo, para a elite de

para conduzir a organização do país”

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ou mesmo entre aqueles que começavam a expressar sua oposição ao Partido Republicano hegemônico, com a criação do Partido Democrático, em 1926. As discussões na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, centro formador do pensamento dessas camadas dirigentes (BARBUY E MARTINS, 1998: 155), foram possível inspiração para o enredo urdido por Plínio de Castro Ferraz. O alistamento militar, somado à recordação dos combates de 1924 na cidade, quando esta foi tomada pelos Tenentes e ostensivamente bombardeada por 29 dias pelo governador Carlos de Campos, para combatê-los (QUEIROZ, 2004:28), assim como a insatisfação política e a expectativa por novos golpes ou revoluções militares, vigente na época, podem nos falar sobre o clima de arregimentação que então se vivia, num quadro onde os valores de luta, à esquerda e à direita, eram incensados (SEVCENKO, 1992). À direita pelo culto aos valores nacionais, mas também militares, de organização, obediência e hierarquia (TORRES, 1938) contra o que se entendia que era a desorganização de operários manifestando-se contra a injusta situação social que, sabe-se, era entendida como “caso de polícia”, ideias que o filme afiança através do elogio ao alistamento e à vida militar, e sobretudo dos combates que geram no personagem um entusiasmo patriótico que se expressa pelo respeito e abnegação à hierarquia militar e aos poderes instituídos. transforma-se em luta verdadeira e mortal contra um vilão que usava o exército para fugir da polícia e “tramava contra a farda e a bandeira. Quando pregava a desordem e o descrédito, em suma!” (Cinearte, 14 de maio de 1930: 32). Qual o significado dessa trama? Será é possível ver nesse personagem de fugitivo da lei um militar revoltoso, um ex-tenente que Ferraz ou Garnier, temendo censura, ou em vista da situação política instável e de olho na colaboração do Exército, não deixou claro? O filme ficou pronto em fevereiro de 1930 e fez sua carreira de exibição em São Paulo no período anterior – 3 de agosto - e posterior à eclosão do Movimento de 3 de outubro de 1930, o que torna possível entender essa indefinição, sem que por isso seja menos clara a defesa dos valores constituídos,

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O que no enredo eram manobras de treinamento sem um motivo específico,

e a identificação dos envolvidos com esse ideário. 26



Por outro lado, Octávio Gabus Mendes e Joaquim Garnier tinham um sentido de oportunidade em relação a esse enredo: esperavam lançar o filme no dia 7 de setembro, os intertítulos foram escritos pelo incensado poeta Guilherme de Almeida, um dos mais atuantes construtores do mito em torno do papel central de São Paulo na edificação do país. Além disso, valendo-se do contexto de valorização da ordem, da força e da força armada, que não era só brasileira,41 criaram ações espetaculares que desejavam filmar – combates, troca de tiros, manobras - elogiando a vida militar, elevando assim o alistamento militar e o Exército, que colaborou com empenho na produção: Tudo fizeram. Dispuseram de companhias inteiras para auxiliarem detalhes de filmagem. Puseram todos os departamentos à disposição. [...] Organizaram exercícios especiais para o filme. Mostraram-se interessados na história do filme. Comentavam e seguiam de perto as filmagens. [...] (Cinearte 23 de abril de 1930: 5).

Essas várias questões que estão postas na sociedade e aparecem nesse enredo podem nos explicar a opção pelo protagonismo dos militares e do próprio Exército como a instituição que opera a necessária transformação no personagem Roberto. Esse ideário presente nesse período mundial de “volta à ordem” bebe, ainda, no carisma do soldado jovem que se sacrifica pela pátria, imagem entronizada pelos monumentos ao Soldado Desconhecido da 1ª Grande Guerra A utilização do tema militar mostra que havia na concepção do enredo uma vontade de ação, de sensacionalismo por meio das filmagens de batalhas - na impossibilidade de operações com aviões, desejo original de Ferraz, conforme a lembrança de Garnier. Nesse momento circulam pelas telas vários filmes sobre a 1ª Guerra Mundial que compõem o imaginário sobre a ação, como em West Point (1927) e Flying fleets (1929), exemplos referidos por Guilherme de Almeida em seu artigo sobre o filme, sem esquecer que Luiz de Barros já havia feito proezas com aviadores em seu Hei de vencer (1924), filme produzido por Antonio Tibiriça, filho 41

Com a ascensão do Fascismo Italiano desde 1922 e de seus correlatos pela Europa naquele mesmo

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(PROST, 2002, pp. 195-225).

momento de volta à ordem. O Futurismo de Marinetti.

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de governador, outro membro destacado da mesma elite paulista. Havia ainda The Big Parade (King Vidor, 1925), exibido em São Paulo em 1927, onde combates, soldados, sacrifício e amor à pátria davam o tom, e impressionou o então crítico Octávio Gabus Mendes, sobretudo pelo uso sincronizado do som atrás da tela (Cinearte 60, 20 de abril de 1927). Às armas é um documento expressivo sobre o seu tempo e sobre o fazer cinematográfico no Brasil. Procura aclimatar o aspecto espetacular dos filmes de ação e guerra internacionais visíveis nas salas brasileiras, a atmosfera de arregimentação e expectativa em torno do que vinha se esboçando na época, ainda que sua ação não expressasse inquietação, mas desconfiança com opositores que poderiam atentar contra a manutenção da ordem, e do poder das elites constituídas. Às armas foi uma aventura de estudantes com recursos que investiram na montagem de um estúdio em condições técnicas razoáveis, com o suporte de profissionais imigrantes e a maior aptidão de Octávio Gabus Mendes, que ajudou no desenvolvimento do roteiro e na direção. É um filme que investe num acento regional, buscando a partir dele criar notações jocosas que remetem ao campo como lugar de atraso e pasmaceira. O filme usou esse ambiente para mostrar como vulgar e ambiciosa a moça filha de italianos, e leviano o jovem português. final feliz. Trata-se de obra que expressa um ideário paulista e nacional (PIMENTA, 1993: 3)42 tal como era entendido então, com uma visão estereotipada do campo, crítica

42

"Em nenhum ponto da nossa pátria ainda encontramos reunidas tantas possibilidades, tantos fatores

para a elaboração de uma grande nacionalidade. É em São Paulo que está se formando a grande intuição, o grande conceito de pátria". Alceu Amoroso Lima, Memórias improvisadas, Petrópolis, Vozes, 1973. Citado por Lúcia Lippi Oliveira, "As raízes da ordem: os intelectuais, a cultura e o Estado", em Revolução de 30, Brasília, UnB, 1983, apud VELLOSO, Monica - A Brasilidade Verde-Amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 89112.

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Ao contrário deles, o tratorista e sua bem-amada são exemplares: merecerão o

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aos imigrantes e que exaltava os valores da ordem e dos poderes constituídos. No entanto, o desapego à própria obra destruída dez anos depois mostra a expressiva insignificância social e cultural do cinema brasileiro como uma forma de expressão entre os letrados. Certamente os bacharéis trouxeram um novo tipo de produção ao panorama das realizações cinematográficas de São Paulo no final dos anos 1920, mas não

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novas ideias.

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ALMEIDA, Canuto Mendes de. Cinema Contra Cinema. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1931. ARAUJO, Luciana Corrêa. “O Cinema em Pernambuco nos anos 1920”. In: Catálogo I Jornada Brasileira de Cinema Silencioso. São Paulo: Cinemateca Brasil, 2007. Páginas 33 a 41. BORGES, Vavy; COHEN, Ilka. “A cidade como palco de movimentos armados de 1924, 1930 e 1932”. In: PORTA, Paula. História da Cidade de São Paulo. Vol. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. Páginas 291 a 339. GALVÃO, Maria Rita. Crônica do Cinema Paulistano. São Paulo: Ática, 1976. MACHADO, Rubens. “O Cinema Paulistano e os Ciclos regionais Sul-Sudeste (1912-1933)”. In: RAMOS, Fernão – História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987 Páginas 100 a 120. MARTINS, Ana Luiza; BARBUY, Heloísa. Arcadas. História da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. São Paulo: Alternativa, 1998. MENDES, Edith Gabus. Octávio Gabus Mendes – Do rádio à televisão. São Paulo: Lua Nova, 1988. PROST, ANTOINE. “Les monuments aux morts”. In: NORA, Pierre. Les lieux de mémoire, Tome I. La République. PARIS: Gallimard, 2002. Páginas 195 a 228. QUEIROZ, Suely Robles. “Política e Poder Público na Cidade de São Paulo”. In: PORTA, Paula. História da Cidade de São Paulo Vol. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. Página 15 a 51. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso. São Paulo: Cia das Letras, 2002. SALIBA Maria Eneida F. Cinema Contra Cinema: O Cinema Educativo de Canuto Mendes de Almeida (1922-1931). São Paulo: Annablume, 2003. SCHVARZMAN, Sheila. “Travelogue e Cavação no Brasil Pitoresco de Cornélio Pires”. In: PAIVA, Samuel e SCHVARZMAN, Sheila (orgs.). Viagem ao Cinema Silencioso do Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2011. Páginas 46 a 64. SCHVARZMAN, Sheila. “Da crítica à imagem: a formação do olhar em Octávio Gabus Mendes”. In: FABRIS, Mariarosaria. Estudos de Cinema SOCINE V, p. 135 a 143. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. SILVEIRA, Miroel. A Contribuição italiana ao teatro Brasileiro. São Paulo: Quíron/Mec, 1976. SIMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo: Annablume:2008. TORRES, Aberto. A organização Nacional. Nova Edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1938. VELLOSO, Mônica. “A Brasilidade Verde-Amarela: nacionalismo e regionalismo paulista”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 89-112. Arquivos Consultados

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Referências Bibliográficas

Arquivo Cinédia. Rio de Janeiro

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Acervo Digital O Estado de São Paulo Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Submetido em 11 de agosto de 2014 | Aceito em 01 de março de 2015

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