FDC-12-2000-As quatro forças que comandam a guerra

August 16, 2017 | Autor: F. Dores Costa | Categoria: Portuguese Studies
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As quatro forças que comandam a guerra… (Um panorama sobre a Guerra da Restauração)

Fernando Dores Costa[1]

Embora não seja inevitável um desfecho inquestionável do afrontamento de dois exércitos – sobretudo quando é fraca a mobilidade das forças bélicas e consequentemente menor a possibilidade de extrair resultados militares e políticos das batalhas – é certo que em poucas horas o futuro dos contendores se pode decidir. Sobre os participantes nas batalhas paira inevitavelmente este perigo. Na verdade, as consequências de uma derrota são diferentes para os dois adversários em contenda durante a Guerra da Restauração ou da Aclamação (1641-1668). Para os castelhanos (retomando a designação que os portugueses utilizavam correntemente na época para os seus antagonistas, “nacionalizando-os”) são menores, pelo que, apesar dos vários desaires das suas campanhas, nomeadamente as de 1663 e de 1665, a paz só virá a ser obtida em 1668. Para os portugueses, pelo contrário, envolvem maiores riscos. Sendo certo que somente a tomada de Lisboa podia encerrar o conflito, a destruição do exército dos portugueses na fronteira poria a Corte em risco. A atitude predominantemente defensiva de D. João IV na década de 1640 poderia ser atribuída à fuga a uma tal ameaça. Isto porque os exércitos reunidos na fronteira do Alentejo, a mais crítica das zonas de guerra, não correspondem a uma força efectivamente permanente, composta pelas guarnições das praças da província, mas são antes o resultado de uma confluência episódica de forças, vindas de várias regiões e pertencendo a diversos tipos de vínculo à guerra: soldados pagos (ou seja, permanentes ou, como seríamos tentados a dizer, “profissionais”, se o termo fizesse sentido nesta época) vindos de outras províncias, da Corte, da Beira, do reino do Algarve, nalguns casos mesmo de províncias do norte, a par dos milicianos, os chamados auxiliares, elementos de segunda linha, chamados em situações de perigo, também eles de diversas origens, e mesmo (nalguns casos) de ordenanças, embora desde 1646 o rei tenha cedido ao pedido dos Povos em Cortes para que estas não sejam chamadas às fronteiras, ressalvando contudo as situações de invasão. É verdade que em 1659 é possível organizar um exército de socorro a Elvas, logo após os desastrosos efeitos do longo e inútil cerco de Badajoz. Sempre apresentada como prodigiosa, tratava-se no entanto de uma resposta a um cerco posto à mais importante praça do Alentejo e não de uma obstrução à progressão de um exército inimigo que se acharia no terreno sem oposição organizada. Em todo o caso, as batalhas pertencem ao domínio da contingência e são desse modo os momentos

cruciais da actividade militar. A desproporção entre as forças mobilizadas pelas partes pode determinar uma forte probabilidade de um resultado, mas não pode por si mesma garanti-lo. Muitos foram os que esperavam o esmagamento dos portugueses, sobretudo quando os seus inimigos pudessem deixar de dispersar as suas forças por várias frentes europeias. Mas esta perspectiva sombria, que domina os portugueses após 1659, não se concretizará com a evidência receada na década de 1660. A permanência de um equilíbrio (menos claro na cavalaria) deixava margem à incerteza e à possibilidade de empreender. O termo “empresa” é usado na época (surgindo frequentemente sob a forma entrepreza) e designa uma situação de “jogo” ou de “aventura”, ou seja, de assunção consciente de uma iniciativa envolvendo um risco e tendo em vista a obtenção incerta de um ganho ou de um feito. Por isso se diz, por exemplo, que Joane Mendes fez a el-rei em 1658 a proposta da “empreza de ganhar a cidade de Badajoz”, sendo esta “cabeça de provincia, praça darmas em que assistem os cabos maiores de guerra do inimigo”.

Duas forças impelem para essa “aventura militar”: a procura da glória pelos seus dirigentes máximos e, em geral, pelos cabos de guerra, por um lado; a estreita relação entre os feitos militares e os resultados diplomáticos através de um mais sólido crédito das armas, por outro. Duas outras refreiam, pelo contrário, essas empresas: o risco de, no momento decisivo, em vez da glória se encontrar a desgraça – e dos inimigos próximos, alguns dos seus pares, se espera que não favoreçam a primeira – e a enorme dificuldade que há em reunir as forças e os meios que permitam organizar a acção bélica.

A condução de um exército na guerra constitui uma ocasião excepcional para obter uma situação de preeminência na hierarquia interna da nobreza. Muitas casas se reforçam, obtendo títulos ou acrescentando-os, por esta via. Há uma estreita relação (como já assinalou Nuno G. Monteiro) entre a reestruturação de uma primeira nobreza, tornada instável perante a oposição de uma parte significativa à aclamação de D. João, no contexto da improvisação de uma nova Corte, e a guerra. Mas a glória que se procura não pertence apenas à esfera da opinião e da auto-satisfação. Traduz-se em mercês tangíveis, honrosas e económicas, que remunerem os serviços. O que guia a acção dos homens são os prémios e os castigos. Sobretudo das recompensas, já que os reis devem ser parcimoniosos na distribuição das punições, compondo a sua imagem como a de uma figura benigna, suscitando o “amor” (o reconhecimento e a obrigação) e evitando o ressentimento. O Conselho de Guerra lembra ao rei a necessidade de ser generoso para que os cabos de guerra regressem satisfeitos às fronteiras. Mas, como a emulação é um vício entre os portugueses, como frequentemente se assinala na época, dificilmente aceitando o reconhecimento de outros como seus

superiores, os conflitos perpassam pela primeira nobreza, em redes de amizades e de inimizades que são públicas. Deste modo, os que procuram a glória nas armas receiam não apenas o fracasso das suas empresas, mas também a falta de apoios e mesmo a hostilidade destes seus “inimigos” próximos. Receiam sobretudo que não lhes cheguem os soldados e os meios materiais pedidos aos governantes de Lisboa. As vitórias consagram os dirigentes como salvadores dos reis e da pátria. No panegírico do marquês de Marialva se afirma que fez obra perfeita pois não foi apenas aclamador em 1640 e depois defensor da Coroa, foi ambas as cousas. Depreende-se que a ele se deveria atribuir a sobrevivência da obra restauradora. Mas também a desgraça é possível: Joane Mendes de Vasconcelos comprovao em 1658, após o desastroso cerco de Badajoz. Preso e mantido em detenção durante mais de um ano, é acusado de ter agido para a perdição do reino. É certo que a gravíssima acusação se desvanece e não tem continuidade. Mesmo a desgraça não é definitiva e Joane Mendes integrará mesmo, em 1662, o Conselho de Guerra…

Uma outra força que impele para a acção é a necessidade de obter ganhos que se traduzam em capacidade de negociação diplomática. A mediação entre estas duas esferas faz-se através da evolução da opinião que se tem dos exércitos. Existe uma balança do “crédito das armas de Sua Majestade”, sujeita a flutuações em conformidade com os resultados das suas acções. Por isso o visconde de Vila Nova de Cerveira, governador das armas do Minho, por exemplo, recebia ordem para transmitir regularmente os resultados das acções militares (não se tratando aqui apenas dos grandes feitos) para que fossem divulgados junto dos embaixadores e dos gazeteiros, ou seja, dos editores das gazetas estrangeiras, que para tal estavam contratados. O propósito é evidente. Também por isso era factor de descrédito reunir um exército e este permanecer inactivo, como exemplificava um conselheiro em 1644: “por credito e reputação das armas de Vossa Magestade sempre convem sair logo, porque de o não fazermos considerarão nossos inimigos e as nações que por impossibilitados da batalha passada [a de Montijo] nos deixamos estar ociosos”. O mesmo acontece em 1664, quando o conde de Castelo Melhor impõe a saída sobre Valência de Alcântara do numeroso exército reunido na fronteira. Procura-se desse modo maior capacidade de negociação. Tal como referia Mazarino, primeiro-ministro de França, quando culpava D. João IV pela ausência de Portugal da negociação do tratado de Münster: ele não fizera nenhuma conquista em território de Castela… os feitos militares são a moeda da diplomacia. Um século mais tarde, um militar como o francês Dumouriez, viajante-espião em Portugal nos anos de 1760 e editor em língua francesa da parte da biografia de Schomberg respeitante às campanhas de Portugal, podia ver nestas uma espécie de “torneio medieval”, caracterização obviamente

excessiva, revelando, no entanto, a estranheza dos homens esclarecidos de setecentos perante a fraca mobilidade dos exércitos e pela obsessiva e monótona prática dos cercos de praças… Mas, se pelos meios envolvidos nas batalhas da Restauração, a desvalorização é desmesurada, os propósitos mais políticos do que militares dos sítios sugerem que o pensamento subjacente não estaria longe do do “xadrez diplomático”.

As batalhas que ficaram memoráveis não resultaram, contudo, de situações ofensivas dos portugueses. Os casos de Montijo e das Linhas de Elvas correspondem a respostas com êxito a contra-ofensivas inimigas resultantes de ofensivas portuguesas falhadas (a campanha fracassada sobre Albuquerque em 1644; o longo cerco de Badajoz de 1658). A batalha do Canal a uma situação puramente defensiva face à acção comandada por D. João de Áustria sobre Évora que, inovando tacticamente, se segue, em 1663, a um ano desastroso para as armas portuguesas. Também a batalha de Montes Claros constitui a quebra defensiva da acção castelhana de 1665, que pela tomada de Vila Viçosa procurava suplantar os erros da campanha de 1663, mantendo a comunicação com a retaguarda.

O resultado das batalhas está sempre marcado pela contingência. A capacidade evidenciada pelos cabos de guerra de reagir perante condições inesperadas é a essência da sua arte. O termo “arte” surgindo neste âmbito como adequado na medida em que mais do que um saber doutrinal, fixado em preceitos aplicáveis, é missão do capitão general usar da iniciativa e da imaginação táctica. Isto não implicando uma desvalorização da necessidade de cultura e capacidade técnicas dos dirigentes. De Schomberg se diz que, ao contrário dos generais portugueses, não precisava de engenheiros para fazer avançar obras de fortificação. Mas circunstâncias muito particulares e imprevisíveis da acção encontram-se decisivamente presentes no desfecho das batalhas da Restauração: nas condições que possibilitam o contra-ataque no Montijo, fossem estas a precipitação das forças castelhanas para o saque (como explica D. Luís de Meneses) ou o engano da cavalaria adversária perante a ausência da portuguesa (de acordo com outro testemunho), e consequentemente a reversão de uma manifesta derrota inicial; no nevoeiro que ilude a preparação do ataque sobre as linhas de cerco em Elvas… e que também conduz a erros de avaliação pelos dirigentes das forças sitiantes. Há também incontestável espanto geral perante a extensão da vitória obtida no Canal.

Mas a vitória é, mais do que um resultado da acção humana, é um sinal da presença divina. Cujo

favor se procura. Da adopção de Nossa Senhora da Conceição se afirma a certeza de que “com tal Protectora poderemos seguramente não só esperar continuadas vitorias de nossos inimigos mas ainda grandes prosperidades no Reyno”, como se promete na carta régia de 11 de Setembro de 1646 remetida aos Cabidos e às Câmaras. E a sua comparência detectada, como no relato do conde de Vila Flor faz da batalha do Canal: “marxando para o inimigo se comesou a tratar huma rija peleja, recebendose de huma e outra parte tão vivas cargas, que pareçe se vinha o mundo abaixo, hera o nome de Nossa Senhora da Conceição que asistio com o seu favor a toda a parte ” (carta de 8 de Junho de 1663). Frequentemente se declara nos textos coetâneos que “os successos da guerra dependem principalmente da Providencia divina”. Mas esta assistência transcendente não se situa num plano exterior ao do comportamento quotidiano dos homens. É nesse mesmo plano que actua. Por isso a confluência dos votos dos cabos que participam no conselho que precede a batalha das Linhas de Elvas – “sendo tão diversos os juízos dos homens” – não poderia ter nascido “de menos causa que da inspiração divina”. Um tal acordo não podia ser apenas humano. No mesmo sentido, um antigo combatente da guerra da Restauração recordava que se maravilhava por se ter visto capaz de resolver num instante coisas “muy duvidozas”, ou seja, que tinham incerta solução, e com a certeza de o fazer bem, o que apenas se explicaria por intervenção divina. Ou então porque “as experiencias pellos habitos que em varias occazioens se tem adquirido caminhão immediatamente ao aserto”. Deus governa através do hábito ou é a sombra explicativa dos caminhos imediatos criados pela experiência. Mas esta faz-se também confundindo os adversários, porque “proprio he da Providencia divina corromper os juizos daquelles a quem determina mudar a fortuna”. Por isso D. Luís Mendes de Haro resolveria, contrariando o parecer do seu conselho de cabos, que os sitiadores de Elvas não esperassem as forças portuguesas que se aproximavam fora das suas fortificações ou delas próximos. O favor divino encontra-se do lado dos portugueses.

Mas, no plano humano, agrupar um exército na fronteira era tarefa difícil. A representação gloriosa das batalhas ocultam necessariamente as numerosas contrariedades com que se confrontam os seus organizadores. Como já acima se aludiu, são os exércitos a reunião ocasional de forças de diversas origens e de vários tipos. Isto porque se verifica a impossibilidade de fazer permanecer nessas praças uma guarnição numerosa fora dos períodos de perigo bélico. Daí que, muitos anos depois do início da guerra, a força portuguesa apresente um efectivo predominantemente miliciano. O conde de Cantanhede, recenseando a gente militar de que dispunha quando saía em Janeiro de 1659 de Estremoz em direcção a Elvas, verificou, tal como faz notar uma fonte da época, ter um exército de

oito mil infantes, dos quais apenas dois mil e quinhentos eram soldados pagos, sendo os mais milicianos. O número de homens presentes no Alentejo flutuava deste modo em função do ritmo dos perigos de confrontação detectados a partir das notícias das preparações efectuadas do outro lado da fronteira. Nessas alturas, comissários eram enviados às comarcas para efectuarem novas “levas”, ou seja, acções de recrutamento de novos soldados, ou para fazer regressar aos seus terços e companhias aqueles que já tendo sido feitos soldados, tinham voltado para as suas terras. Trata-se neste caso das chamadas “reconduções” que se dizia nalguns casos destinarem-se a “reencher os terços”, forma expressiva de qualificar os movimentos das unidades de infantaria. Isto porque os soldados se encontram em permanente fuga das fronteiras. Durante o cerco de Badajoz, o exército perde quase três mil soldados em apenas dez dias. Este movimento explica-se por duas razões: uma prende-se com a própria subsistência dos indivíduos, que aí não se encontra assegurada, sendo numerosas as descrições da situação miserável dos soldados, famintos, rotos e descalços. Outra prende-se com a sua “liberdade”, ou seja, com a insubmissão das populações a uma mobilização de tipo permanente, destrutiva dos laços primordiais e da condição dos indivíduos e incompreensível dada a ausência da “interiorização” de uma ameaça “permanente”. A mais significativa consequência desta atitude colectiva releva-se na impossibilidade de manter no terreno o exército vitorioso e, consequentemente, de capitalizar o desequilíbrio noutras acções contra as posições inimigas. Evidenciada na posição assumida pelo conde de Vila Flor, contrária ao prosseguimento da campanha nesse ano de 1663. Defende o governador do Alentejo que é preferível desfazer o exército … para que ele se não desfaça: “sou de parecer que Vossa Magestade deve ser servido haver por bem que a gente se restitua a seus quarteis porque se o inimigo engrosar para o Outono com as tropas que espera de Italia, acharseha o exercito de Vossa Magestade descansado, e gostozo para lhe poder contra fazer todos seus intentos, e se Vossa Magestade assim o não ordenar, obrigará o cansaso, e continuação do trabalho, a fugirem os soldados e os mais constantes com o rigor das calmas adoeserão, e assim se desfará o exercito de maneira que o não haverá para quando mais necesitarmos delle” (carta do conde de Vila Flor de 26 de Junho de 1663, retomada na carta de 28, na qual se contraria expressamente a perspectiva de uma continuidade da campanha constante da carta régia de 26 a que responde - “para que o rigor do Sol e dezesperação dos soldados que estão dezejando terem algum alivio, o não desfasa”). Mais vale uma adaptação a reunião e dispersão do exército ao modo social predominante de representação da guerra do que um afrontamento que fomentará a “desesperação”. Pouco depois, aliás, o próprio conde pedirá licença para regressar à Corte… Note-se que há similitudes com os comportamentos detectáveis entre os nobres, para os quais ser chamado pessoalmente nas “ocasiões” pode ser honroso, mas ser mobilizado através das ordenanças

é aviltante, e entre os oficiais, também eles ausentando-se, muitas vezes sem licença, dos seus terços e negociando depois com a Coroa as benesses requeridas para retomar o exercício dos seus postos. Deste modo, a formação dos exércitos implica um esforço de imposição disciplinar que não encontra suporte numa rede administrativa (o envolvimento tentado de corregedores e de provedores, manifestamente pouco interessados nessas tarefas, terá sido um fracasso) e que se faz através do periódico vaivém entre as terras de origem dos soldados e as localidades da raia, protagonizado por mestres de campos e outros oficiais, mas também, significativamente, dado pelo rei a indivíduos da primeira nobreza, aos quais se dá a incumbência de dirigirem essas operações. Isto devido à sua grande “autoridade”, ou seja, à sua ampla influência social e capacidade de obrigar e de atemorizar, mas também porque, esperando outras remunerações mais elevadas, serão insensíveis (ou menos sensíveis) ao aproveitamento das acções de recrutamento e de recondução para obterem os proveitos que, com sofreguidão e desespero, lhes serão propostos através da cedência da liberdade dos que são quase soldados em troca de determinada soma em dinheiro, acusação que sempre recai sobre aqueles que se movimentam nessas acções.

Fernando Dores Costa Dezembro de 2000 (Colaboração solicitada no âmbito do projecto sobre a Sala das Batalhas do Palácio Fronteira)

[1]

Instituto de Sociologia Histórica da Universidade Nova de Lisboa

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