Feminismo, relações de poder e linguagem: um panorama

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul  Conceitos Básicos de Linguística/2014   

Feminismo, relações de poder e linguagem: um panorama  Ivana Isdra, Marina Alfano Cheffe      O  presente  ensaio  trata  de  uma  análise  dos  estudos  sobre  linguagem  e  gênero  social,  buscando  fazer  um  panorama  histórico  do  desenvolvimento  dessa  área   com  o  objetivo  de  demonstrar  e  enfatizar  sua  importância  para  outras  áreas  da  antropologia,  da  sociologia  e  de  estudos  de  gênero,  a  partir  da  abertura  dessa  discussão  por Robin Lakoff em 1973. Utilizaremos  como  base,  principalmente,  o  livro  ​ Linguagem.  Gênero.  Sexualidade:  clássicos  traduzidos​ ,  publicado  em  2010  e  organizado  por  Ana  Cristina  Ostermann  e  Beatriz  Fontana,   que  traz  traduções  para  o  português  de  importantes  artigos  que  analisam  e discutem diferenças na fala de  homens e mulheres, e as relações de poder dentro das interações linguísticas.  Os  primeiros  estudos  focados  em  linguagem  e  gênero  surgem  na  década  de  70,  com  a  publicação  do  ensaio  da  linguista  Robin   Lakoff,  “Language  and  Woman’s   Place”.  Sua  abordagem  revolucionária  da  língua  a  partir  de  uma  visão  feminista,  observando­a  como  instrumento  para  reforçar  as  diferenças  entre  homens  e   mulheres  e  a  inferioridade da linguagem  tida  como  feminina,  inaugura  as  discussões  específicas  sobre  gênero  na área da sociolinguística,  especialmente em interações entre homens e mulheres.  É  constatado,  no  ensaio  de  Lakoff,  que  há  uma  linguagem  específica  feminina  que,  ao  mesmo  tempo  em  que  é  uma   imposição  social  para  pôr  as  mulheres  em  seus  devidos  lugares   (falando  como  “damas”),  é  o  que  acaba  submergindo  suas  identidades  pessoais.  O  tipo  de  fala  feminina,  portanto,  é  o  que  mantém  as  mulheres  em  uma  posição  inferior  e  não  permite  que  sejam  levadas  a  sério   como seres humanos. Tipo de entonação, super polidez, léxico específico e  certas  regras  sintáticas  são  atribuídas  à  linguagem  das  mulheres.  Lakoff   (1973)  argumenta  que  não  são  dadas  às  mulheres  as  chances  de  participar  de  decisões   reais  da  vida  e  são  relegadas  a  elas  somente  trivialidades,  distrações  e  assuntos fora do mundo do trabalho dos homens, ou seja,  1 

tudo  o  que  não  diz  respeito  aos  homens  ou  não  envolva  o  ego  masculino.  A  distinção  mais  precisa  entre  as  cores  (​ malva,  lavanda,  bege1​ )  e  os  adjetivos  especificamente  femininos (​ divino,  doce,  adorável​ )  são  exemplos  de  vocábulos  considerados  triviais  e  pertencentes  ao  léxico  das  mulheres.  Esse  vocabulário   é  tão  marcadamente  feminino  e  percebido  como  sem  importância  que,  quando  utilizado  por   um  homem,  ele  corre  o  risco  de  ter  sua  reputação  manchada  ou  ser  considerado  homossexual  por  outros  falantes.  Por  outro  lado, a linguagem dos homens ­ o grupo  mais  forte  ­  é  adotada  pelas  mulheres  para  serem  levadas  a  sério.  Cabe  a  elas  possuir  uma  percepção aguçada de qual linguagem utilizar em diferentes tipos de interação.  Crianças,  ao  aprenderem  uma  língua,  são  tratadas  de  formas  diferentes.  Meninas  são  educadas a fim de serem mais dóceis e polidas em sua linguagem, um reflexo das expectativas da  sociedade.  Permitir   aos  homens  meios  de  expressão  mais  fortes  do  que  os  que  existem  para  as  mulheres,  aponta  Lakoff  (1973),  somente  reforça  a  posição  de  poder  deles  no  mundo  real,  pois  um  falante  que  não  é  tão  vigoroso  em  seu  ponto  de  vista  definitivamente  será  levado  menos  a  sério.  Lakoff,  portanto,  enxerga  a  língua  como  um  instrumento  social,  utilizada   para  reforçar  as  dinâmicas  de  poder  e   os  papéis  de  gênero  inerentes  à  estrutura  social,  aumentando  a  distinção  entre masculino e feminino e diferenciando o valor dado à fala de homens e mulheres  A  partir  do  ensaio  de  Lakoff,  diversos  estudos  linguísticos  foram  feitos,  buscando  observar  empiricamente  as  relações  de  poder  presentes  em  interações  entre  pessoas  de  gêneros  distintos  e as diferenças nos discursos de homens e mulheres. Pamela M. Fishman em seu ensaio,  “Interaction:  The  Work  Women  Do”  (1978),  analisa  conversas  gravadas  entre  casais  heterossexuais  no ambiente domiciliar (com a permissão dos mesmos), com o intuito de observar  a  forma  com  que  as  relações  hierárquicas  se  dão  no  âmbito  familiar  interacional.  A  autora  conclui,  através  das  gravações,  que  o  trabalho  feito na manutenção e continuação da conversa (o  que  ela  se  refere  como  trabalho  interacional,  ou  “trabalho  sujo”)  era  distribuído  de  forma  desigual,  sendo  as  mulheres  responsáveis  por  garantir  a  interação  através  de  marcadores  de  atenção  (utilizando  sentenças  como  “Você  sabia?”  ou  “Olha  que  interessante”,  assim  como  respostas  mínimas  para  demonstrar  interesse  e  encorajar  o  assunto).  O  homem,  por  outro  lado,  era  quem  escolhia   o   assunto,   pois  ele  que  decidia  se  a  “tentativa”  de  interação  da  mulher  seria  1

 Todos os exemplos provêm da tradução, por Adriana Braga e Édison Luis Gastaldo, do texto original de “Language  and Woman’s Place ” 



fracassada  ou  não,  enquanto  seus  comentários  sempre  obtinham  sucesso  (em   razão  do  trabalho  feito  pela  mulher).  Através  dessa  pesquisa,  é  possível  observar  que  a  linguagem   reflete  as  relações  de   poder  de  gênero,  ainda  que  de  forma  quase  invisível,  pois  o  trabalho  interacional “é  visto  como  um  aspecto  de  identidade  de gênero em vez de atividade de gênero” (Fishman, 2010,  p.  472),  considerado  parte  intrínseca  do comportamento conversacional esperado por mulheres, e  não  por homens. Reforçando a posição de Fishman (1978), West e Zimmerman (1983) fazem  um  estudo  sobre  interrupções   entre  pessoas  desconhecidas  de  sexo  oposto  e  constatam  que  “os  homens  recusam  uma  posição   igualitária  das  mulheres  enquanto  parceiras  conversacionais”  (West e Zimmerman, 2010, p. 57), interrompendo mais as mulheres do que o inverso.  A  teoria  mais  controversa  e  questionada  talvez  tenha sido a de Deborah Tannen, com seu  texto  “Who’s  Interrupting?  Issues  of  Dominance  and Control” (1990). A pesquisadora questiona  a  definição  que  temos  de  conversa  (a  de  que  somente  uma  voz   pode  ser  ouvida  por  vez)  e  redefine  interrupção  e  dominação,  baseada  na  alegação  de  que  são  os  diferentes  estilos  conversacionais  (alto   envolvimento  ​ versus  ​ alta  consideração)  ligados   a  diferenças  culturais  (como  gênero  e   etnia)  que  geram  toda  a  problemática  das   interações:  “​ A  chave  para  entender  o  que  está  acontecendo,  pelo  menos  em  parte,  é  a  distinção  entre  a  fala  tipo  relato  e  a  fala  cooperativa  ­  as formas linguísticas características que a maioria das mulheres usa para criar uma  comunidade,  e  a  maior  parte  dos  homens,  para  administrar  o  confronto”  (Tannen,  2010, p. 873)​ .  A  desconsideração  da  autora  com  as  questões  de  dominação  masculina  e  relações  de  poder  que  vinham sido discutidas anteriormente  e uma certa simplificação do problema, resumindo­o a uma  questão  cultural,  gerou  muitas  críticas.  Uma  das mais contundente delas desconstrói o binarismo  de  que  homens utilizam fala competitiva e mulheres, fala colaborativa. Deborah Cameron (1998)  afirma  que  é  o  próprio  discurso,  ao  tentar  explicar  o  padrão  de  diferença,  que  constrói  a  diferença,   e  que  o  gênero  é,  na  verdade,  uma  construção  social:  “os  estilos  “masculino”  e  “feminino”  de  se  falar, como identificados por pesquisadores, podem ser vistos como o resultado  “consolidado”  de  atos  repetidos,  realizados  por  atores  sociais  que  estão  esforçando­se  para  constituir­se  como  homens  e   mulheres  “adequados”.”  (Cameron,  2010,  p.1324).  Ao  analisar  a 

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 Tradução do inglês feita por Viviane M. Heberle a partir do texto original.   Tradução do inglês feita por Débora de Carvalho Figueiredo a partir do texto original.  4  ​ Tradução do inglês feita por Beatriz Fontana a partir do texto original.  3



gravação  de  uma  conversa  informal  entre  cinco  universitários  estadunidenses,  Cameron  aponta  para  as  formas  de  interação  consideradas  femininas  que  os  rapazes  utilizam  ao  “fofocar”  sobre  um  conhecido,  chamado­o  repetidamente  de  homossexual  ao  mesmo  tempo  em  que   o   definem  como  “a  antítese  de  um  homem”  (percebe­se  uma  grande  necessidade  de  reforçar  a  masculinidade,  porém  de  uma  forma  conversacional  tida  como  tipicamente  feminina).  A  pesquisadora  observa  inúmeros  marcadores  de  cooperação   na conversa, como os turnos colados,  ao  mesmo  tempo  em  que  analisa  a  hierarquização  e  a  competição  também presentes, mostrando  que  mesmo  quando  falantes  competem  em  uma  conversa,  eles  ainda  têm  o  objetivo  em  comum  de manter uma colaboração.  Outros  estudos  da  década  de 90 procuraram discutir a questão de linguagem  e gênero sob  perspectivas  diferentes.  Penelope  Eckert  e  Sally  McConnell­Ginet  (1992),  criticando  as  generalizações  (e,  como  Deborah  Cameron,  o  binarismo)  nos  estudos  de   gênero,  utilizaram  o  conceito  de  “comunidades  de  prática”  para  sustentar  sua  afirmação  de  que  atividades  conversacionais  devem  ser  contextualizadas,  já  que  o  gênero  é  ocasionado  e modificado a partir  da  situação  interacional,  assim  como  outros  elementos  que  formam  a  identidade  individual,  sofrendo  influência  do  contexto  social.  Outra  visão  crítica  desses  estudos  parte  de   Anna  Livia e  Kira  Hall  (1997),  que  condenam  tal  área  sociolinguística  por  limitar­se  a  interações  heterossexuais  e  por  não  levar  em  consideração  orientação  sexual  em  suas  pesquisas,  buscando  analisar linguagem e gênero a partir da perspectiva ​ queer​  em seu livro ​ Queerly Phrased​  (1997).  Atualmente,  sociolinguistas  que  trabalham  nessa  área  estão preocupados em desconstruir  mitos  que  somente  reforçam  e  justificam  preconceitos  de  gênero,  como  é  o  caso  de  Deborah  Cameron  em  seu  livro,  ​ The  Myth  of  Mars  and  Venus  (2008),  que  procura  acabar  com  estereótipos  linguísticos  sobre  diferenças  na  fala  de  homens  e  mulheres.  Eventos  acadêmicos  focados  em  estudos  de  gênero  e  linguagem  vêm  ocorrendo  anualmente,  como  o  ​ International  Gender  and  Language  Association  (IGALA),  fundado   em  1985  na  Universidade da Califórnia e  sediado  no  Brasil  em  2012  (e  que  já  teve  Ana  Cristina  Ostermann,  sociolinguista  e  uma  das  organizadoras do livro ​ Linguagem. Gênero. Sexualidade: clássicos traduzidos​ , como presidente).  Além  disso,  diversos  movimentos de conscientização em relação ao uso de linguagem sexista,  os 



gender  neutrality  movements​ ,  vêm  tornando­se  cada  vez  mais  presentes  no  cotidiano,  com  o  objetivo de criar uma linguagem inclusiva.  Percebe­se,  nesses  mais  de  40  anos  de  estudos  e  publicações  na  área,  uma  evolução  contínua  de  um  pensar  mais  focado  em  língua  e  gênero  como  construções  sociais  e  não  puramente  biológicos,  e  um  objetivo  claro  de  terminar  com  as  fórmulas  genéricas  de  fala,  que  são  somente  um  reflexo  das  nossas   noções  inflexíveis  de  papéis  feminino/masculino  na  sociedade.  Como  bem  aponta  Lakoff  (1973),  precisamos  de  mudanças  reais  nas  atitudes  dos  falantes  para  que,  então,  as  mudanças  linguísticas  tomem  forma:  “a   discrepância  nas  posições  que  homens  e  mulheres  ocupam na sociedade reflete­se nas disparidades linguísticas. Linguistas,  por  meio  da  análise  linguística,   podem  ajudar  a  apontar  onde  essas  disparidades  acontecem  e  também  quando  avanços  ocorrem.  Contudo,  é  preciso  considerar  que  mudanças  sociais  geram  mudanças linguísticas, e não o contrário(...)” (Lakoff, 2010, p.295).                                 

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 ​  Tradução do inglês feita por Adriana Braga e Édison Luis Gastaldo a partir do texto original. 



              Referência bibliográficas    CAMERON, 

Deborah. 

‘’What 

Language 

Barrier?’’ 

(2007).  ​

Disponível 

em 

.  Acesso  em:  21  de  junho  de  2014.  LAKOFF,  Robin  Tolmach.  ‘’Language  and  woman's  place’’.  Cambridge  University  Press:  Revista ​ Language in Society​  vol. 2. número 1 (Abril, 1973), pp. 45­80  OSTERMANN,  Ana  Cristina.  FONTANA,  Beatriz.  ​ Linguagem.  Gênero.   Sexualidade: clássicos  traduzidos​ . São Paulo: Parábola, 2010. 



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