Fenomenologia e existencialismo em Sinais de Fogo

May 31, 2017 | Autor: João Luís Almeida | Categoria: Fenomenologia, Existencialismo, Jorge de Sena, Romance Português Contemporâneo
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Fenomenologia e existencialismo em Sinais de Fogo João Luís Almeida para Elisabete M. Sousa, Educação Estética, Faculdade de Letras, 2016

Romance de formação artística, inacabado e vagamente autobiográfico, Sinais de Fogo não é um grande romance nem retrata a formação de um grande artista. Um jovem de classe média Lisboeta, recém-chegado à faculdade, passa o verão na Figueira, albergando-se em casa do tio. Em transição da adolescência para a vida adulta, verá a sua indiferente passividade perante o mundo transformar-se numa participação, acompanhada por insistentes monólogos de auto-reflexão que culminarão na visita da poesia. A chegada à Figueira coincide com o eclodir da guerra civil espanhola, um evento marcante também para o autor, que irá transformar a vila com a presença de inúmeros espanhóis, dois deles refugiados em casa do tio. A guerra terá, assim, dois paralelos: um, na poluída teia de dependências com que os amigos e o seu interesse amoroso, Mercedes, se envolverão numa planeada fuga dos espanhóis, e outro no seu interior fragmentado, onde procura uma identificação entre predeterminação e autonomia, tal como em Espanha. Da descoberta das várias pátrias dentro da pátria, das várias esferas da vida, longe da unidade perdida da infância, virá a procura da identidade, culminando com a implantação do Estado Novo em Portugal e com a aparição de uma personalidade madura, marcada e participativa, ambas trazendo a paz e a unidade à fragmentação. A Figueira é um lugar de passagem, viciosa e excessiva mas simultaneamente provinciana como qualquer terra portuguesa. Nela encontraremos o simbolismo da praia como espaço de transição, de parto, sujidade e sangue, para o mar que é sempre a alteridade, e a árvore no quintal dos tios, frequente nas sequências oníricas, como lugar de fuga e de vigia. Neste cenário, descobrirá um mundo fragmentado entre o público, o semi-público e o privado, numa rede de comprometimentos sociais em redor da fuga e de Mercedes, onde a sua multiplicação interior se perderá. O retrato social é secundário, subordinado à interrogação filosófica, e o romance não é ideólogo, já que o protagonista não escolhe lados. A ausência de uma longa viagem, uma expansão do espaço, distingue-o também do romance de formação clássico. Não há uma clara figura de mentor, nem para o despertar artístico, onde apenas recebe a visita das musas, nem para o despertar erótico, onde o libertino Rodrigues, bisexual e exibicionista, escravo do sensitivo, não o poderia ser, e apenas poderá figurar-se ligeiramente no tio, um cínico para quem a vida é uma grande pouca-vergonha, um guia para a maturidade social. Mas viverá, com todas as personagens do romance, relações duais intensas, próprias de quem busca a sua definição como sujeito contra o mundo, o outro. A sua procura como ser autónomo face ao determinismo e a descrença nas convenções ilustrará o traço fundamental de um romance de formação moderno. É a descoberta erótico-emocional no amor, a descoberta do eu no mundo e a consequente decorrência da vocação poética que irá constituir a Bildung do protagonista, e não um mero despertar cívico que tivesse como fim o melhoramento das instituições, das tradições e da sociedade. A desconfiança e o alheamento face àquelas, com que o protagonista inicia e conclui a sua Bildung, constitui um traço modernista do primado do eu em conflito não apenas com o mundo mas com a sua impressão e sensação de vazio perante o mundo, aproximando-se do existencialismo. Será a experiência estética a surgir como fim da vivência cívica, e não o contrário. Ainda assim, bastaria a passagem da ignorância para o conhecimento de si mesmo e da passividade para a acção, ainda que imersa num relativismo modernista, para permitir a sua classificação como romance de formação. A sua Bildung não é ilustrada por acções mas pelo recurso ao monólogo, tantas vezes aborrecido e previsível, ruminando interrogações existencialistas que alternam entre o

compenetrado e o nebuloso, uma oscilação que pode ser intencional ou provir da debilidade do autor. Ilustram uma construção auto-reflexiva da personalidade, onde o eu não é uma substância mas uma continuidade, resultando numa transformação interior visível a partir da segunda metade do romance. Alicerçados na procura da sua definição como ser autónomo, os monólogos abordarão os temas da pureza e da impureza, o determinismo, a síntese dos vários mundos que habita. Ao mesmo tempo, à cogitação juntar-se-á a dor da metamorfose e do nascimento, resultando em constantes inconstâncias de espírito. Sente saudades da vida programática de Lisboa, da infância. É assaltado por emoções vagas mas que aparentam intensidade, absolutizações do momento onde reina o sensitivo, como ensaios de emoções futuras. Surgem os impulsos animais: amar, possuir, matar. Imagina constantemente alegorias: a vida como sexo, como guerra, como um pão que se engole, como uma retrete, pretendendo encontrar a alegoria-mestre, sem o conseguir. A sua urgência não procura só excesso, mas também o moderado: mas mesmo aí a agonia da transformação é constante, originando ocasionais ataques de choro, como um recém-nascido, involuntários e alheios. Alternando a sua presença absoluta em várias esferas, sente-se mergulhado num delírio, que nada mais é do que a imprevisibilidade da vida a que se habitua como participante. Assim, incapaz de se realizar na totalidade que procura, nutre uma profunda indiferença perante o mundo, onde duvida que as coisas verdadeiramente o marquem. A sensação de tudo estar cruzado consigo é favorecida pelo provincianismo do meio, e esses pequenos mundos são como pequenos eus, ensaios de um eu futuro. Desejando a sua própria pureza, toma banhos prolongados, e cogita sobre a mistura turva entre beleza e depravação, amor e carne. Recorre à imagem da antropofagia, onde não se possui verdadeiramente ninguém e todos se possuem a todos, como se fossem personagens inventando-se umas às outras. Procura assim um equilíbrio entre predestinação e autonomia, encontrando frequentemente o relativismo moral em que a modernidade naufraga. Mas os acontecimentos, a violência da participação no mundo, irão forçar as fronteiras entre essas esferas, fazendo-o perder todas as purezas da infância e ganhando a pureza essencial. Assim, emergirá de uma violência, tal como a civilização, como mais tarde notará. Este despertar filosófico será acompanhado por um importante despertar erótico e emocional. O seu erotismo, em Lisboa, não era inocente, mas imaturo, vivido com criadas e prostitutas, numa solitária auto-satisfação ou brincadeira. Inicialmente, na Figueira, continuará com a mesma vivência, passando por uma uma orgia grotesca com os amigos, descrita hiperbolicamente. Mas, com Mercedes, emergirá um homem novo após cada mergulho, na aprendizagem da intimidade e do abandono. Esta é uma das personagens mais interessantes do romance, perfeita para o seu papel: serena por fora, perdida por dentro, tem o mesmo orgulho na paixão e na razão. O intenso erotismo que ambos vivem, na profusa fusão dos corpos, ultrapassando todas as repugnâncias, traz-lhe a descoberta do amor entre o baixo e o sublime. Ao início, a sua incerteza constante levá-lo-á a duvidar sobre a natureza do amor, vendo-o como uma ficção subordinada ao determinismo. Mas descobre a posse de si mesmo, mais do que a posse do objecto amante, como ensaio de uma alteridade e de uma liberdade maior, suspenso momentaneamente fora da vida, absolutizando um dos seus pequenos mundos: não lhe deixa nada com que a pudesse amar, conforme reconhecerá, pois tornou o corpo dela na encarnação viva do seu próprio amor. Mais tarde, em Lisboa, fecunda o corpo imaginário de Mercedes, na praia, como que nascendo de novo, e, logo de seguida, visitando uma prostituta, sente que o desejo já não chega ao sexo, tendo-se abstraído. Encontra assim o amor enquanto contradição, procura e destruição de uma imagem, numa dependência entre sujeito e objecto, constituindo uma fenomenologia.

Mas é para o despertar artístico que se encaminharão todos os eventos e é onde desaguará todo o conteúdo dos monólogos. A Erziehung é desvalorizada, pois a escola apenas o dotou de formação profissional: o destino do seu amadurecimento será mesmo a vocação poética. Sem experiência literária, irá produzir logo à partida, inverosimilmente, versos com a qualidade de um Jorge de Sena, abordando o tema da transição e da prisão transparente em que se sente viver. O que escreve é de tradição moderna, não clássica, e o impulso inicial não é racional mas inspirativo, onde do mesmo vago som poético emergirão palavras mutantes. Mas este impulso amadurecerá para ser conjugado tanto sensivelmente como formalmente, conduzido pela razão a uma realização no tempo e no espaço, evoluindo da inspiração involuntária para o domínio da vontade. Torna-se, assim, não apenas a voz de uma musa mas a descoberta de uma imanência já entrevista nos monólogos, numa aprendizagem progressiva compatível com a Bildung. Descobre nessa voz uma vida fora da vida, fundando a realidade na sua consciência, e não nos sentidos. Daí decorrerá um utilitarismo da sua literatura, e consequentemente da sua formação interior, que é, em primeiro lugar, fenomenológico: o aparecimento da sua voz poética possibilitará uma transformação do mundo que é fundada no eu, equivalendo, tal como para Sena, conhecer a transformar. Herdada de Kant e principalmente de Husserl, a fenomenologia de Sena opõe-se ao realismo estrito e materialista: para o autor, a arte, mesmo que testemunhal, opera sempre nessa dialética fenomenológica, e assim é sempre transformadora da realidade, já que forma e modifica as nossas impressões de um mundo que só existe através delas. Paradoxalmente, embora se confesse céptico quanto a todos os sistemas cognitivos, Sena encontrará nesse realismo fenomenológico um fiável equilíbrio entre o mundo exterior e liberdade interior, tal como o seu protagonista. Ocorre, assim, um progressivo despertar da solidão e do alheamento onde o objectivo e o subjectivo se encontravam distantes para um alheamento fenomenológico, tendente ao existencialismo, onde aqueles são interdependentes. Tomando consciência desta mudança, sentir-se-à também mais comprometido, descobrindo o irreversível do real, do passado, da morte, do acto, onde o que passa é que fica inscrito, e não apenas a consciência acrítica da infância. Na primeira metade do romance, pouco evolui: ensaia monólogos tímidos e confusos que se sucedem aos acontecimentos. Mas na segunda metade, adensa-se: descobre a sua vida como única e irrepetível, mesmo dentro da causalidade, o amor erótico como abandono e realização, e a participação violenta no mundo, o comprometimento, o eu como acto e não somente como sujeito ou substância. De regresso a Lisboa, após dormir dois dias de um sono febril e uterino, acorda outro, resignado com o determinismo e mais próximo da sua voz poética, a princípio estrangeira, depois equivalente à sua própria voz. Mas a indiferença, a náusea, solidificou-se: se a intenção, ao início, é apanhar o comboio da vida e não ficar a ver navios, é a ver navios que termina. Emergirá para uma Lisboa onde se instala um Estado Novo paralelo ao seu, pacificando a fragmentação e semeando um cenário fantasmagórico de desconfiança e de indiferença, onde a verdadeira surpresa já não será possível. Apesar disso, esta nova personalidade já não corresponderá à acefalia da infância ou à agonia da transformação. Assim, na resolução da fronteira entre o eu e o mundo, emergiu por duas vias: se com os outros a experiência foi sempre de sujidade, através de redes de dependências infinitas onde a unidade mínima é indeterminável, no amor viverá a experiência dual de imediata transcendência e absolutização física e moral. Em ambas o eu se dissolve, perdendo todas as purezas para ganhar a única pureza absoluta, regressando à descoberta da sua voz interior, onde ultrapassa uma fronteira cognitiva e conhece a experiência pré-lógica, descobrindo a sua voz poética como processo em construção e encarnando numa maturidade em que o mundo é fenomenologicamente dependente do seu olhar.

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