“Fernando Batalha: a actividade na Comissão de Monumentos de Angola e a relação com o Brasil (1935-1974)”

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Fernando Batalha: a actividade na Comissão dos Monumentos de Angola e a relação com o Brasil Vera Mariz Mestre / Bolseira de Doutoramento FCT, ARTIS - Instituto de História da Arte IJniversidade de Lisboa, Lisboa, Portugal, [email protected]

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RESUMO; A Comissão de Monumentos Provinciais de Angola foi criada no ano de 1922, tendo sido, depois de alguns anos de ctctividade e outros de inércia, substituída já durante o Estado Novo pela Comissão dos Monumentos Nacionais. O arquitecto Fernando Batalha, director deste servìço a partir de 1962, foi, neste contexto colonial, um dos indivíduos que mais e melhor pugnou em prol da salvaguardo dos monumentos de Angola. Numa luta constante contra a falta de interesse público e privado, contra a destruição em prol do progresso e afavor da criação de um organismo - e de todo um país - capaz de garantir a protecção destes monumentos, Batalha viu no Brasil um exemplo a seguir.

PALAVRAS-CHAVE: Monumentos de Angola, Monumentos do Brasil, Comissão de Monumentos Provinciais, Comissão dos Monumentos Nacionqis, Fernctndo Batalha.

DE COMISSÃO DE MONUMENTOS PROVINCIAIS A COMISSÃO DOS MONUMENTOS NACIONAIS A criação, em Angola, de um serviço público dedicado exclusivamente à salvaguarda dos monumentos históricos, remonta, como Veremos, ao ano de 1922. NO entanto, antes de aprofundarmos a criação e evolução desta Comissão de Monumentos Provinciais que foi, inclusivamente, o primeiro organismo do género na Áf.i"a Portuguesa, é importante salientarmos que o surgimento do çonceito de "monumento nacional" em Angola remonta ao ano de 1854.

Efectivamente, em 1851, um ano após o falecimento de Pedro Alexandrino da Cunha, os habitantes de Luanda formaram uma comissão com o objectivo de erguer um monumento em honra deste Governador-Geral. Deste modo, foi aberta uma subscrição pública e dois deputados pela província de Angola apresentaram uma proposta que viria a ser aprovada pelo Conselho Ultramarino e por D. Fernando II. Assim, em Lisboa, encomendou-se a estátua em bronze ao escultor Emesto Rusconi e, após uma série de peripécias ocorridas entre 1851 e 1871 e relacionadas com a falta de fundos, a obra foi enviada para Luanda. Neste âmbito, o aspecto que nos interessa destacar verificou-se ainda no ano de 1854, momento em que o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, da Marinha e Ultramar determinou, através de um decreto régio de 1854, que "o mesmo monumento seja considerado como Nacional, para os efeitos da sua guarda e conservação" []. Tratavase obviamente de um recoúecimento, por parte das autoridades públicas, do valor do

património históriço-artístico, neste caso uma escultura, como elemento de interesse nacional, cuja conservação teria que ser, por esta razão, assegurada. No entanto, neste caso a relevância do monumento, como aconteceria mais tarde, nada tem a ver com a Sua antiguidade ou qualidades estéticas mas com o facto de "perpetuar ali a lembrança" [1] daquela figura. De resto, refira-se que este episódio terá sido descoberto por Waldemar d'Orey, presidente da Comissão dos Monumentos Nacionais [2], revestindo-se, tal como Fernando Batalha notou, da maior importância para a história da protecção do património

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323

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cultural de Angola, sendo senão prçcursor

"m

África, pelo menos "mais um testemunho

de

pioneirismo da colonização portuguesa" [2].

teria lugar Como já dissemos, a criação da Comissão de Monumentos Provinciais de Angola

em lÇ22, integrando-se no conjunto de iniciativas tomadas por Norton de Matos

que.

como sendo enquanto Alto-õomissario, ,""oú""",, naquele ano os monumentos de Angola ea tempos, dos através portugueses, dos másçula "demonstrativos do valor e energia consaggado chão num homens, dos esquecimento e do despeito das vicissitudes dos séçuús pelà amor daPâtna, que os nossos maiores quiseram deixar-nos" [3]. Assim, numa altura qu" muitos daquèles monumentos não passavam, na verdade, de ruínas "abertasdestruição "desteihadas, entulhaãas, expostas à acção do tempo e das chuvas e ao espírito de

grande objectivo, através do Decreto n'161' a aàfËru dos "monumentos provinciais, relíquias históricas e artísticas" [3].

e de roubo" [3], estabeleceu-se como

protecção a " ncanaó o Estado responsável pela sua conservação, reparação e restauro' Para isso, caso ..conservação represente, pelo seu valor ou significado histórico ou pelo merecimento sua artístico, um interesie provinóial e nacional" [3], seria necessario proceder à classificação "nacionaldestes monumentos coÀo "provinciais", aparentemente uma adaptação do termo e artísticos serviços dos reorganizador decreto do sequência aplicado na Metrópole na arqueológicos de

l91l

[4].

Apesar de não termos oportunidade de aprofundar a análise dos primeiros anos destl t' cómissão, parece-nos intéressante destacar o facto de se ter previsto, logo em 1922. os Conselhor como tal de criar, mas também necessidadè de instalar em Luanda a sua sede, de Arte e Arqueologia da Metrópole, comissões distritais constituídas pelas repartições distritais de Obras públicas e pelo Presidente de cada uma das municipalidades [3]. Num território tão vasto como Angola' esta seria uma medida fundamental, tendo-se en6o necessárial estabelecido que a estas comissões distritais caberia a apresentação de medidas

para a protecção dos monumentos e de propostas de classificaçáo, a direcção e execução dc irabahts que tivessem lugar na sua jurisdição e o dever de ouvir as municipalidades sobrt assuntos relacionados com este tema [3]. que nessc aos resultados mais imediatos resultantes deste decreto de 1922, refira-se

euanto

uìo ," procedeu à classificação da ermida da Nazaré, "pelas recordações patrióticas

qr

e pelos "documentos de arte que contém e que são únicos" [5], como monumeffit

classificação da fortaleza e de outres dr Lonstruções de Massangano, onde foi fundado o "primeiro e mais çélebre dos Presídios e & XVI do século fins conquisia e que a ele sJprendem as nossas tradições de domínio de nossc dos "ligadas à história sécuio XVIf' 16l (lg23j; da fortaleza e igreja de Muxima, primeiros trabãhos em Angola e às lutas travadas, logo desde 1581 (...) e ainda m 'heróicos trabalhos da reconluista", do fortim de Quicombo, testemunho do sucesso dt ..páginas de glória da reconquista" l7l 0924ì; do conjunto de ruinas de cambambe. dr {eAíi"u de ferro de Nova Oeiias e dos vestígios do fortim e igreja de São José de Enctf

"rr""oui Nos anos seguintes teriam lugar provincial.

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(1e25) t8l.

Ao longo dos anos, a Comissão de Monumentos foi sobrevivendo mas sem se mosüir signifiúivamente activa, isto apesar de terem sido feitas algumas tentativas no sentido

dl

qualquer menção,i sua revitalização. Finalmente no ano de 1942, curiosamente sem se fazer neste sentiÒ tomadas hoje até providências comissão em causa mas afirmando-se que "as pela PorArb criada foi vista" em finalidade a [9], não foram ainda suficientes para se atingir tal com Reconhecendo-se, de Angola. Nacionais 4:057 anova Comissão dos Monumentos cn desigual luta e a sua Angola de patrimonial riqueza a no ano de lg22,simultaneamente

324

LABORATORIO NACIONAL DÊ ENCENHARIA CIVI.

DE VIOLLET.LE-DUÕ A CARTA DÊ VENEZA Ìl0FlA I PRAïltA 0[ R:"$ïAllSÜ ff0 [5PA[0 ì$ln['Âlü[nltÂüi] o ,.esquecimento, por vezes, dos homens e à acção constante do tempo" [9]' esta Portaria

ou, salieniou a necessiàade de proteger estes monumentos pelo seu valor artístico e histórico "Erguidos Afrnal, artística' [9]. se preferirmos, pelo seu 'isentiáo educativo e expressão fé nos pelãs virtudes dópassado, são lições vivas de trabalho, de energia, de tenacidade e de para o futuro" estímulo forte e presente para o àestinos daPâtrií,e por isso grande exemplo propor ao Governador-Geral a [9]. A partir de então, esta õmissão ficaria incumbida de relacionadas com este informações de tipo o todo fornecer clássifiôaçao de monumentos, projectos referentes às elaborar e conservação, reparação conservação, tema, velár pela sua também proibida a Ficava intervenções. destas execúção a e dirigir obras necessárias públicos realização de obras to, -lon*"ntos nacionais que estivessem na posse de serviços óbvia uma logo [9]. Quando em comparação com o decreto de 1922, notamos desde por "monumentos provinciais" àtt"ruçao ao nível ,no"ãb,rlu., substituindo-se "monumentos nacionais" o que, na nossa opinião, denuncia uma intenção de ir ao encontro da política colonial portuguesa, classificando e, por conseguinte, valorizando estes monumentos não e indivisível. apenas nâ coniexto da colónia mas de todo o Império Colonial Português, uno pìr outro lado, notamos que este documento é manifestamente menos minucioso do que quais as estratéaquele de l92i,ficando pór esclarecer quais os critérios de classificação e Em síntese, o protecção. de formas e das verbas das nível ao nomeadamente gàs de acção, Nacionais seria o de ressuscitar as Monumentos dos Comissão nova desta objectivo ftanOe o título dos monumentos classihcados, de fioHticas patrimoniais desta colónia e actualizat modo a que estes passassem a espelhar, comnitidez, as políticas coloniais do Presente.

Ao longo dos anos, e mais particularmente em 1946, 1950, 1953 ou 1972, foram sendo introduiidas alterações mais ou menos significativas à orgânica e funcionamento desta

como comissão, das quais podemos destacar, por exemplo: a insistência na sua apresentação .,órgão consultivì e orientador da restauração, reconstituição e conservação dos monuum mentos históricos de Angola" [10] que se encontrava adstrito à Direcção dos Serviços de gdifiçios e Monumentos Nacionais era responsável pela Obras Públicas, cuja repartição de execução das obras de conservação e restauro; a aplicação em Angola, com as devidas que, na verdade, adaptáções, do Decreto n"20:985 de 1932 da Metrópole, recoúecendo-se ;impõe.tornar mais eficiente a protecção do património arqueológico e histórico da

se Colóniã de Angola" [11]; o estímulo dado ao envolvimento das autoridades municipais

que nesta missão de salvaguarda dos monumentos naçionais, tendo-se para isso determinado aos quando chegamos Contudo, Angola a aplicada fosse [12]. aLein"2:032 da Metrópole

anos 70, notamos que a Comissãó dos Monumentos Nacionais não tinha, ainda, uma orgânicaprópria, raião pela qual, grande parte devido à insistência do arquitecto Fernando Bíaha, foi'publicado um Regulamento da comissão dos Monumentos Nacionals. Na fez nesta verdadq i"ito de síntese, refira-se que, em termos de conteúdo, o que se "" de 1932, n'20:985 Decreto no ocasião foi basicamente aproveitar as medidas incluídas as disposia Angola extensíveis aquele que, através da Portaria n'13:302 de 1950, tornava na Metrópole no que conceme aos monumentos nacionais, e esclarecer de "oorugradas qrre formaie procederia àiua apficãção nesta província ultramarina, onde a Comissão dos úonumentos Nacionais, adstrita à Direcção dos Serviços de Obras Públicas e Transportes, ..órgão consultivo para o serviço de restauro e conservação dos monumentos históriera um província e para a õriação de novos padrões". Dava-se assim início a uma "uma nova cos da desta instituição" [13], que na verdade acabaiapoÍ ser abalada pelo funcionamento fase no final do Estado Novo e,depois, pelos anos de guerra civil' çO^",

Lisboa' Portugal' 20-2'1 Novembro 2Ol4

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De resto, para terminar este capítulo, esclareça-se que ao longo dos anos a Comissão dos Monumentos Nacionais teve que lidar constantemente, como todas as outras províncias ultramarinas portuguesas, com a falta não só de fundos, mas também de recursos humanos. Ainda assim, não podemos desvalorizar o facto de Angola, e particularmente esta comissão, ter beneficiado da presença de arquitectos experientes na conservação e restauro de monumentos, tendo contado primeiro com Humberto Reis, e depois com Femando Batalha.

FERNANDO BATALHA E OS MONUMENTOS DE ANGOLA

A actividade na Comissão dos Monumentos Nacionais Se numa primeira fase de trabalhos de levantamento, inventariação, conservação ou restauro de monumentos - como a fortaleza de São Sebastião do Egito, o fortim do Quicombo, as igrejas de Nossa Seúora do Carmo e de Jesus (ambas em Luanda), ou o conjunto de Massangano, entre outros - foram dirigidos por Humberto Reis, a parttr de 1962 Fernando Batalha tornar-se-ia a figura mais proeminente neste universo patrimonial. Efectivamente, logo após a partida de Humberto Reis em Setembro de 1961, assistimos a uma série de esforços da Direcção de Obras Públicas e Transportes no sentido de garantir, para o seu quadro, um arquitecto especializado "sem o qual, se coÍre o risco de se provocar danos irreparáveis na execução de obras mal planeadas e conduzidas" [4]. O lugar seria ocupado por Femando Batalha em 1962.

Parece-nos importante esclarecer que o primeiro contacto de Femando Batalha com Angola

ocorreu no ano de 1935, momento em que, logo após ter terminado

o

seu curso

de

Arquitectura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa e de ter tirocinado no atelier de Pardal Monteiro, participou no l" Cruzeiro de Estudantes da Metrópole às Colónias. Já o início da actividade profissional de Batalha em Angola teria lugar em 1938, ano em que, a convite do Governador-Geral, assumiu a orientação técnica da I Exposição-Feira, seguindo-se a direcção tecnica das obras do Palácio do Comércio de Luanda (1939-1943), a colaboração com os Governos de Benguela (1945-1947), do Kwanza Sul (1957) e Luanda (1958-1960) na chefia de gabinetes de Arquitectura e Urbanízaçáo, o cargo de delegado e chefe do Gabinete de Urbanização do Ultramar em Angola (1950-1955), a chefia da secção de História e Arqueologia do Instituto de Investigação Científica (1962-1970), e a partir de 1962 a chefia da secção de Monumentos da Direcção de Obras Públicas e Transportes [15]. Segundo o próprio arquitecto, o interesse pela salvaguarda do património arquitectónico e cultural de Angola começou em 1938 "por iniciativa própria ou em desempeúo de funções

públicas" [15]. Efectivamente, não podemos de modo algum limitar a actividade de Femando Batalha em prol dos monumentos de Angola aos anos em que este chefiou. primeiro em regime de part-time (1962-1970) e depois emfull time (1970-1977), a secção de Monumentos. Isto porque, mesmo antes desta fase e sobretudo a partir da segunda metade dos anos 40, Batalha foi intervindo pontualmente na salvaguarda dos monumentos daquela colónia. A título de exemplo, refira-se o facto de Batalha no ano de 1947 e enquanto arquitecto do Gabinete de Arquitectura e Urbanização de Benguela, ter elaborado para a muito maltraÍada igreja de Nossa Senhora do Pópulo, único exemplo do Barroco Setecentista em Angola, uma Memóría justificatit,a da sua classificação como Monumento de Interesse Artístico e Histórico a apresentar à Comissão dos Monumentos Nacionais de Angola [16]. O aval a esta proposta de classificação surgiria no ano de 1949 e seria ainda acompanhado por uma grande campanha de obras [17].

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LABORATORIO NACIONAL DË ENCENHARIA CIVIL

DË VIOLLET-LE'TUC A CARTA

D:

VXNEZA

ïi0RiA ipRÁiltA r$ Rr$ïÂlJlìü l\l0 tsPAç0 lBlR0,Ali{tRlIAlìlü Certo é que ao analisarmos a documentação referente à actividade deste notável arquitecto conservador-restaurador, deparamo-nos com uma intensa actividade em prol dos monumentos de Angola: seja através da publicação de várias obras e artigos alertando para o seu valor e necessidade de intervenção; da elaboração de projectos de restauro ou de delimitação de zonas de protecção; da orientação e fiscalização de obras; da participação na desobstrução de ruínas ou em escavações; da apresentação de propostas de classificação; da recolha de peças; do estudo e investigação em arquivos e bibliotecas; da elaboração de legislação; da reunião de uma vasta documentação fotográfica, etc. Concomitantemente,

notamos eue,

ao longo de todos estes anos de

actividade, Batalha manteve-se

sistematicamente atento e extraordinariamente interessado no que se passava, tanto na Metrópole como no estrangeiro, em termos de conservação e restauro do património arquitectónico. E aqui notamos que para o arquitecto Batalha o Brasil era, sem dúvida, no contexto intemacional a nível patrimonial, o país mais interessante.

As relações com o Brasil A História de Angola é indissociável da História do Brasil,

sendo varios os pontos de

intersecção que, ao longo dos séculos, acabaram por ligar estes dois tenitórios outrora poúugueses. Naturalmente, a ligação que imediatamente ocorre a cada um de nós prende-se com o tráfico de escravos levados de Angola para as plantações de cana-de-açúcar do Nordeste brasileiro ou para as minas de ouro da região centro. Todavia, nesses mesmos séculos XVII e XVI[, associados ou não ao tráfiço negreiro, houve também outro tipo de intercâmbios ao nível da alimentação, de técnicas, costumes e, claro, da arquitectura e das artes. Fernando Batalha apercebeu-se desde cedo destas relações e pugnou pela sua valorização e

divulgação. A título de exemplo, recorde-se que, a propósito da memória justificativa da necessidade de classificação da igreja de Nossa Senhora do Pópulo de Benguela, o arquitecto, entre os vários argumentos apresentados, destacou o facto da obra ornamental mais valiosa deste templo ser o púlpito roçocó "que não terá certamente outro comparável em Angola" [6] e que tal como a teia abalaustrada colocada entre a nave e o cruzeiro, o anteparo do coro e a grade do baptistério, parecem ser oriundos da Bahia, "o que é de crer, dado o facto de ter existido outrora grande contacto entre esta colónia e a que lhe ficava fronteira na outra margem do Atlântico, e que só muito depois da independência desta última diminuiu de intensidade" [16].

No entanto, segundo nos parece, o interesse de Fernando Batalha pelo Brasil, não apenas pela sua arte barroca mas também pelas suas políticas patrimoniais, tornou-se particularmente enérgico a partir da década de 60. Isto coincide com o início do desempenho do cargo de dirigente da secção de Monumentos da Direcção de Obras Públicas o que, aliado à adaptação da legislação vigente na Metrópole e à sua aplicação em Angola, sobretudo aquando da elaboração do até então inexistente Regulamento da Comissão dos Monumentos Nacionais, nos permite afirmar que uma das grandes preocupações deste arquitecto era, sem dúvida, estar constantemente a par das mais recentes políticas de salvaguarda patrimonial. Efectivamente, numa fase em que o serviço de Monumentos estava moribundo, apesar de primeiro ter afirmado que "Mais racional seria que se acabasse totalmente com ele do que mantê-lo na situação desprestigiante de impotência em que vegeta" [18], Batalha sugeriu depois que fosse feita uma reformulação do mesmo. Para isso, em 1971, portanto nas vésperas da publicação do referido regulamento, o arquitecto sugeriu que, além de outras medidas, se estudassem os casos da Metrópole e do Brasil.

LÌsboa

. Portugai .20 21 Novembro2Ol4

327

Contudo, esta admiração pelo trabalho que

viúa

sendo desenvolvido no Brasil pelo Serviço

do Património Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) prendia-se, segundo nos paÍece, sobretudo com um único caso: Ouro Preto, a cidade redescoberta e dilulgada, particularmente a partir dos anos 20 do século XX, como o mais belo padrão da identidade brasileira. O interesse particularmente intenso de Batalha por Ouro Preto prendia-se com o facto de ali se ter promovido, a partir da decada de 30, uma série de trabalhos que, tal como a classificação da cidade no ano de 1933, denunciavam um entendimento da mesma como um todo. Na verdade, como Cláudia dos Reis e Cuúa salientou mais recentemente a

propósito do caso de Ouro Preto,

o Brasil foi "pioneiro no

tombamento de cidades

históricas" e na "preservação de sítios urbanos" [9], tendo-se assistido, ao longo dos anos de actividade estatal em prol do património, a um grande número de levantamentos de conjuntos urbanos. Por outro lado, nesta tentativa de explicar o interesse de Fernando

Batalha pelas políticas patrimoniais brasileiras, não podemos desvalorizar

o facto

dos

Preto se caracterizarem sobretudo

critérios de intervenção nos tais sítios urbanos como Ouro pelos trabalhos no dito "estilo património" ou unidade de estilo, ou seja, pela eliminação de

elementos que não fossem "originais"

em beneficio de uma leitura de

conjunto

esteticamente agradâvel e ilustradora do período histórico que se pretendia evidenciar [19].

Por estas razões, isto é, pelo entendimento de Ouro Preto como um sítio urbano a proteger, e pela sua recuperação dentro dos critérios acima mencionados, este conjunto de Minas Gerais tomou-se uma referência para Batalha, a prova que era possível salvaguardar não só monumentos isolados mas também conjuntos urbanos, cidades-monumentos, como o arquitecto sonhava que acontecesse também em Angola, no Dondo. O Dondo fora, no Passado, sede de uma conhecida feira seiscentista e o mais importante núcleo comercial do interior a partir da centúria seguinte. No entanto, no início do século XX, consequência da alteração das rotas comerciais com a construção do caminho-de-ferro Luanda-Ambaca [20], o Dondo acabou por entrar em declínio e, consequentemente, oS testemunhos arquitectónicos das épocas de prosperidade comercial (as típicas casas de sobrado) foram sendo abandonados ou destruídos. Assim, a partir do início dos anos 60 Femando Batalha pugnou intensamente pela defesa do Dondo, insistindo que a primeira medida a tomar seria classificar o sítio como "povoação de interesse histórico, arqueológico e turístico" [21]. Objectivamente, o que se pretendia com a çlassificação do Dondo era, tal como em Luanda,

travar o ímpeto construtivo que em determinadas oçasiões ditou, injusta

e

desnecessariamente, a destruição ou descaracterização de contributos arquitectónicos do Passado, cujo valor residia, neste caso, não tanto no seu requinte mas no seu carácter pitoresco, na "impressionante unidade de estilo, talvez fruste e embrionário, que the dá um cunho próprio e diferenciado" [21]. Assim, não é de estranhar que, desde o início dos anos 60, Batalha teúa frequentemente defendido ser importante "que se procedesse aqui como se fez na Metrópole com a cidade de Évora ou no Brasil com a de Ouro Preto, que foram classificadas como conjuntos monumentais de interesse nacional, com a protecção do Estado condicionando a sua evolução" [20], e se tenha dedicado à defesa das ideias "Ouro Preto - Exemplo para Angola" e "Brasil

Estímulo para Angola" [21]. Isto porque o arquitecto português tinha coúecimento dos trabalhos realizados em Ouro Preto, então um "motivo de orgulho e exaltação" [21], e da indigna diferença verificada em Angola no que concerne ao Dondo que pelas características da sua arquitectura, pela unidade do conjunto. "significa para Angola o que aquela cidade representa para o Brasil" [21]. Nesta verdadeira batalha contra a descaracterização e perda da vila do Dondo, Batalha enviou. no ano de 1961, o seu artigo "Ouro Preto - Exemplo para

-

328

LABORATORIO NACIONAL DE ENCENHARIA CIVIL

Angola" para Orlandino Seitas Fernandes, Director do Museu da Inconfidência de Ouro Preto,

e

para Rodrigo Melo Franco de Andrade, director do SPHAN.

Seitas Fernandes reconheceu que, perante o que foi possível constatar atraves das fotografias publicadas com o artigo em causa, "Será tarefa maravilhosa essa de fazer-se de Dondo um Monumento Nacional, como fizemos com esta nossa estimada Ouro Preto" 1221. No entanto, é interessante notar como o director do museu supracitado esclarece que, no Brasil, não existiam apenas casos de suÇesso, destacando o caso da cidade de São Paulo onde, tal como no Dondo, o progresso implicou o "sacrificio dos legados históricos" [22]. Mais tarde mas ainda no mesmo ano e na sequência de novo artigo enviado por Fernando Batalha, Seitas Femandes voltaria a mostrar-se satisfeito com o facto de o arquitecto português considerar o Brasil como um exemplo para Angola, destacando desta feita a necessidade de conquistar a

opinião pública, sobretudo a intelectualidade angolana, incentivando pintores, jornalistas e arquitectos a olharem para o Dondo como fonte de "inspiração nacional angolanaportuguesa" 123f, o que implicaria inevitavelmente visitas e estadias na antiga vila que, deste modo, beneficiaria não só da diwlgação mas também das receitas naturalmente geradas com a chegada destes visitantes. Por outro lado, o Director do Museu da Inconfidência de Ouro Preto alertou tambem para a necessidade de educar a população acerca do valor da vila e ainda dos benefiçios que poderiam, eventualmente, vir do envolvimento de grandes empresas, como a DIAMANG, nesta causa [23]. Por seu lado, Rodrigo Melo Franco de Andrade, na sua resposta ao envio do artigo: "Ouro

- Exemplo para Angola", mostrou-se bastante interessado não só na actividade desenvolvida por Fernando Batalha em prol da defesa do Dondo, mas tambem no facto dos edifïçios da antiga vila angolana denunçiarem, conforme o arquitecto português vinha defendendo, uma grande afinidade com as construções existentes nas cidades brasileiras do

Preto

período colonial. Por esse motivo, não é de estraúar que o director do SPHAN tenha solicitado ao arquitecto Batalha o envio de "documentação mais profusa e elucidativa de outros aspectos daquela vlla" [24]. Apesar de desconhecermos se Fernando Batalha chegou, realmente, a enviar a Franço de Andrade os elementos solicitados, sabemos que no ano de 1962 o director do SPHAN recebeu do arquitecto português um exemplar de um novo artigo, desta feita referente ao sucesso da adaptação de um edifïçio setecentista em sede da DIAMANG, e ainda a obra de 1950, A Urbanízação de Angola, na qual Batalha assinalou uma série de afinidades entre os casos angolano e brasileiro [25]. Para terminar esta breve análise açerça das relações de Batalha com o Brasil, refira-se que,

já no período pós-independência de Angola, entre 1975 e 1976 e numa altura em que

se

pensava na reestruturação dos serviços de Obras Públicas daquele país africano, o arquitecto

partiu para o outro lado do Atlântico numa grande missão que lhe permitiu estudar as instituições brasileiras responsáveis pela salvaguarda dos monumentos nacionais e, naturalmente, conhecer o património em causa.

Para çoncluir, interessa-nos sobretudo salientar duas ideias que julgamos fundamentais: Fernando Batalha, ao contrário do que a escassez de referências ao seu trabalho poderia sugerir, é sem dúvida uma das figuras mais importantes da História da Teoria e Conservação e Restauro em Portugal, assomando-se particularmente como um extraordinário dinamizador da salvaguarda dos monumentos de Angola a partir dos finais dos anos 30, uma antiga colónia portuguesa que de forma pioneira criou, logo no ano de 1922, a sua Comissão de Monumentos Provinciais. Em segundo lugar, será interessante sublinhar o facto de parte da excelência do trabalho desenvolvido - ou apenas sonhado - pelo arquitecto Batalha se dever, em grande pafie, ao perfeito entendimento da importância de conhecer, tanto quanto

329

ÕF VÏOLLËï.LE.DUC A LA CARï Pã VENECI 1iI|]i ï rnÁlï![|{ ]i l liiSÌÂlJRAii0tl i"l tt IsrÀl:l] l$lni]Âr.,}lIltÂfii] possível, outras realidades, e neste caso a do Brasil, um pais com o qual Angola tinha tantas e tão expressivas afinidades.

REFERÊNCIAS

lll

Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Angola. n" 463, "Decreto", l2l8l1854,p.l.

s/d. [2] ANBA, FFB, Cx.10, Pt.MN, doc.s/n lO primeiro monumento nacional de Angolal, pp. 137-138. l3l Boletim Oficial da Província de Angola. n" 21, Decreto no 161, 271511922,

[4] Diário da República. n" 124, Decreto n' I,291511911, pp. 2245-2247 ' 26,Portaria no 135, 81711922,p. 179. 15) Boletim oficial da Província de Angola. no 16l ldem. no 20, Portaria no 81 , 281411923, p. 211 -

l7l Idem. no I, Portaria n" 2,l2lll1924,p. l8l ldem.

no 20, Portari a

lglBotetim da Colónia

ll0l

ldem.

N'5 -

ll

I dem.

no

$

3

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Angola. no 31, Portarian" 4:057,l2l8ll942,pp.60l-602'

suplemento, Portaria n" 5:452, 11211946,p.49.

8, Portari a no 13 :302,

4I

l0 I 19 50, p.

79

4.

ll2] Idem. n" 47,Portarian" 14:602,9 de Novembro de 1953. F3] ANBA, FFB, Cx. 31, Pt. Regulamento dos Mon. Nac., doc.s/n fRevisão da composição da comissãol, 26110l 1972.

Cx. 33, SlPt, doc.s/n [Proposta], 1962. Cx. 41 Vida Profissional, Pt. s/n, doc. s/n [Cuniculum Vitae], s/d [anos 70]. |61ldem., Pt. 17, doc.s/n [A Igreja de Nossa Senhora do Pópulo], 1947. llTl Botetim Oficial da Província de Angola. no 5, Portaria n" 6:634,21211949,p.38.

ll4l ldem., ll5l ldem.,

[18] ANBA, FFB, Cx. 29 II,Pt.sln, doc.s/n [Esclarecimento complementaÍ ao documento Memoriall, Abril de 1968. [19] CUNHA, C.R. - Restauração: diálogos entre teorias e prâÍica no Brasil nas experiências do iphan. Faculdade de Arquitectura e Urbanismo. São Paulo, 2010.

[20] BATALHA, F.

- A Vila do Dondo. centro

de Informação e Turismo de Angol4

Luanda,l962.

- Em defesa da Vila do Dondo . Imprensa Nacional, Luanda' 1963 ' [22] ANBA, Cx.40 Vida Profissional, Pt. s/n, doc. s/n fCarta de Orlandino l21l ldem

Seitas

Femandesl, 29 de Abril de 1961.

[23) Idem, doc. s/n [Carta de Orlandino Seitas Femandes], 13/10/ 1961' l24l ldem, doc. s/n [Carta de Rodrigo Franco Melo de Andrade], 22151196l' f25l ldem, doc. s/n [Carta de Rodrigo Franco Melo de Andrade], 23141 1962.

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LABORATÓRIO NACIONAL DE ENCENHARIA CIVIL

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