FERREIRA, M. H. S. & FREITAS, S. P. R. Entre versos e acordes: uma escuta da canção “Choro Bandido” de Edu Lobo e Chico Buarque. IASPM AL 2015

June 8, 2017 | Autor: S. Paulo Ribeiro ... | Categoria: Harmonia, Música Popular Brasileira, Canção Popular Brasileira, Chico Buarque theatre
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XI CONGRESO IASPMAL • música y territorialidades: los sonidos de los lugares y sus contextos socioculturales

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ENTRE VERSOS E ACORDES: UMA ESCUTA DA CANÇÃO “CHORO BANDIDO” DE EDU LOBO E CHICO BUARQUE Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no Simpósio de Pesquisa em Música SIMPEMUS 6, realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Paraná – UFPR entre os dias 29 e 30 de novembro de 2013 na cidade de Curitiba, Paraná.

Matheus Henrique de Souza Ferreira

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

Matheus Henrique de Souza Ferreira, bacharelando em Música (Piano) pela Universidade do Estado de Santa Catarina, bolsista de iniciação científica (PROBIC - UDESC). E-mail: [email protected].

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas, bacharel em Música (Composição e Regência) pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas. Professor titular da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Florianópolis. E-mail: [email protected].

Inserido em uma investigação mais ampla que, a partir de autores como Leonard Meyer e Kofi Agawu, observa vínculos entre valores de fundo romântico e aspectos da música popular, este trabalho apresenta considerações analíticas acerca da canção “Choro Bandido”, de Edu Lobo e Chico Buarque, estreada na peça “O Corsário do Rei” de Augusto Boal. A canção recorre à mitologia grega e a um plano tonal traçado através do “poderoso complexo Ab-C-E”, caracterizado por Matthew BribitzerStull. Indaga-se aqui se a noção de “tonalidade associativa”, sugerida por Robert Bailey, pode ser contributiva para a crítica da canção. Para responder às questões levantadas, revisão bibliográfica, contextualização e dados obtidos através de rotinas de descrição harmônica reducionista são conciliados. Por fim, a partir de revisões acerca dos repertórios de concerto, do jazz e da MPB, observa-se que no trabalho de cancionistas como Edu Lobo e Chico Buarque ressoa uma conversa de que participam diferentes músicos que ressignificam unidades musicais.

Este trabajo, que forma parte de una investigación más amplia en la que, a partir de autores como Leonard Meyer y Kofi Agawu, se buscan los vínculos entre los valores de fondo romántico y aspectos diversos de la música popular, presenta consideraciones analíticas sobre la canción “Choro Bandido”, de Edu Lobo y Chico Buarque, estrenada en la obra “O Corsário do Rei”, de Augusto Boal. La canción recorre la mitología griega y un plan tonal esbozado por el “poderoso complejo Ab-C-E”, según la caracterización de Matthew Bribitzer-Stull. Nos preguntamos aquí si la noción de “tonalidad asociativa”, sugerida por Robert Bailey, puede contribuir a la crítica de la canción. Para responder a las preguntas planteadas, se concilian la revisión bibliográfica, la contextualización y los datos obtenidos a través de la descripción de rutinas armónicas reducionistas. Finalmente, a partir de la revisión de los repertorios de concierto, de jazz y de la MPB, es claro que en la labor de cantautores como Edu Lobo y Chico Buarque resuena una conversación en la que participan diferentes músicos que resignifican las unidades musicales.

PALAVRAS-CHAVE: Ciclo de terças maiores. Tonalidade associativa. Teoria e crítica da música popular.

PALABRAS CLAVE: Ciclo de terceras majores; tonalidad asociativa; teoría y crítica de la música popular

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1. APRESENTAÇÃO

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do tom original, C:, para a região da mediante, E:, para a região da mediante da mediante, G#:.1 Tal caminho aproxima-se daquilo que Bribitzer-Stull (2006a) trata como o “Complexo Ab-C-E”.

Em 3 de junho de 1711 partiu uma frota do porto de Brest, na França, rumo à Baía de Gua-

Como, no uso comum, Ab e E eram os tons [acordes, regiões ou tonalidades] mais distantes de C [na música centro-européia do século XVIII], as suas associações estavam entre as mais poderosas. Embora nunca tenha sido fixado um significado exato para essas associações, que, de resto, não são aplicáveis para qualquer obra, existe evidência de tendências expressivas gerais: Ab [4 bemóis] está ligado ao sono, trevas e morte, enquanto E [4 sustenidos] está associado a transcendência, espiritualidade e ao sublime. Assim, podemos conceber os Ab e E do século XVIII como pólos tonais dramáticos negativos e positivos a partir do centro C. O desenvolvimento do uso de E como uma tonalidade erótica no século XIX enriquece a oposição entre E e Ab através da criação de uma antítese [da teoria freudiana] Eros [conjunto de pulsões de vida]-Tânatos [pulsão de morte] (Bribitzer-Stull, 2006a:169).

nabara. Trata-se da companhia de Monsieur Duguay-Trouin, comandando um assalto ao Rio de Janeiro (Duguay-Trouin 2003:142). Duguay-Trouin (2003:148-164) conta que seu exército instalou-se em terra e iniciou as batalhas armadas e tentativas de negociação com o governador do Rio de Janeiro, que, sobrepujado, teve de ceder (Duguay-Trouin, 2003:163-164). Já em 1985, sob direção do ensaísta e dramaturgo Augusto Boal, estreou o musical “O Corsário do Rei”, cujas canções são fruto da parceria entre os cancionistas Edu Lobo (1943-) e Chico Buarque de Hollanda (1944-). O musical se passa no começo do século XIX, em um bar no cais da Baía de Guanabara. Certo dia uma frota chega ao cais com desejo de comércio e festa. “Teatro é festa!” (Boal, 1985, p.19), então os frequentadores do bar preparam uma peça para receber os comerciantes. Esta peça retrata alguns episódios da vida de Duguay-Trouin, dentre os quais está seu ataque a um navio inglês, que o levou à prisão na Inglaterra. Nancy, sua cercereira, era uma

Este e outros aspectos possibilitam a aplicação do conceito de “tonalidade associativa”2 na apreciação crítica desta canção. A leitura combinada, “Choro Bandido”, “Complexo Ab-C-E”

bela moça responsável pela boa aparência dos prisioneiros frente à corte e, buscando alguma forma de escapar da sua sentença, o corsário tenta seduzir Nancy cantando o “Chorinho

1

A noção de “região” tonal que perpassa todo o presente texto está ancorada na conhecida proposição de Arnold Schoenberg (1874-1951): “O conceito de regiões é uma conseqüência lógica do princípio de monotonalidade. De acordo com esse princípio, considera-se que qualquer desvio da Tônica ainda permanece na tonalidade, não importando se a sua relação com ela é direta ou indireta, próxima ou remota. [...] Em outras palavras, há somente uma tonalidade em uma peça, e cada segmento, considerado antigamente outra tonalidade, é apenas uma região, um contraste harmônico interno à tonalidade original. [...] Adquire-se, assim, a compreensão da unidade harmônica no interior de uma peça (Schoenberg, 2004:37).

2

Por “tonalidade associativa” compreende-se ‘um tipo de tonalidade referencial na qual um uma área tonal específica (p.ex., a tônica Db maior), uma sonoridade (p.ex., a tétrade meio-diminuta), ou uma função tonal (p.ex., a Napolitana) são consistentemente associadas a um elemento dramático específico’ (Bribitzer-Stull, 2006b:322). Trata-se de uma noção sugerida pelo musicólogo estadunidense Robert Bailey (1985) em seus estudos sobre a música de Wagner. Para ilustrar

da Abordagem” que, assim como outros ícones da MPB, ganhou vida própria como a exitosa canção “Choro Bandido”.

2. DAS CONVERSAS ENTRE O PLANO TONAL DE “CHORO BANDIDO” E O PERCURSO DO CICLO DE TERCEIRAS MAIORES EM OUTROS CENÁRIOS E REPERTÓRIOS No plano tonal de “Choro Bandido”, a partir das leadsheets publicadas por Edu Lobo (Chediak, 2009:64; Lobo, 1994:115-119), destaca-se o caminho harmônico percorrido por mediantes:

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e “Tonalidade Associativa”, desvela um diálogo entre Edu Lobo, Chico Buarque e demais mú-

efeitos a tonalidades no repertório europeu dos séculos XVII e XVIII comentando as obras

sicos que, repetindo e conservando-as, tiraram efeitos das célebres “vizinhanças de terceira

Così fan tutte (1790), de Mozart, e Tannhäuser (1845), de Wagner.

que envolvem transformações cromáticas” (Kopp, 2002).

No final do segundo ato de Cosí fan tutte, C: é a região tonal principal e está associada à

Bribitzer-Stull (2006a:170-174) nos fala que estes efeitos são culturalmente construídos

estabilidade, ao ponto de partida da trama3. As regiões tonais de Ab: e E:, por sua vez, reme-

desde o século XVIII e destaca dois fenômenos por trás deles: o “Dó-centrismo” e o tempe-

tem a afeições opostas. A região de Ab: associa-se a morte, noite e traição4, enquanto a re-

ramento. O musicólogo comenta o “Dó-centrismo” a partir de Ernst Kurth, que descrevera dó

gião de E: associa-se a pulsões excitantes, paixão e desejo (Bribitzer-Stull, 2006a:174-175)5.

maior como ponto de partida para o desenvolvimento sensível, considerando de que os es-

Bribitzer-Stull (2007:29) aponta que no segundo ato de Tannhäuser há um dueto amoroso

tudantes são iniciados pela escala de dó maior, de teclas brancas, sem alterações cromáti-

na tonalidade de Ab maior. Na seção central do dueto a região da dominante (Eb:) é atingida

cas. Assim os efeitos das tonalidades dependem das suas diferenças em relação a dó maior

e Elizabeth canta seus lamentos pela ausência de Tannhäuser, insinuando desejos secretos

(Kurth apud Bribitzer-Stull, 2006a:170).

por ele ao passo que o plano tonal atinge a região de E: (enarmonia de Fb:, região da Napo-

Sobre os temperamentos, o sistema mesotônico de temperamento favoreceu relações

litana de Eb:), novamente associada ao amor sensual, o “Venusberg” (Millington, 1995:478)6.

entre regiões tonais e afetos. Como nos disse Hora (2004:17), “A afinação mesotônica utili-

Outro musicólogo que nos auxilia em torno do ciclo de terças maiores é Richard Taruskin

zada pela habilidade do compositor resulta em mais um recurso composicional expressivo”.

(1996) que, em um trabalho sobre a música de Stravinsky, comenta a construção histórica

Bribitzer-Stull (2006a:174) argumenta que tal recurso expressivo ressoou na atribuição de

do ciclo na música de Beethoven, Schubert e Liszt, e também seu uso e seus efeitos em compositores como Glinka, Tchaikovsky e Rimsky-Korsakov, alcançando o universo de Stravinsky. Taruskin (1996:260-262) faz referência à abertura da ópera de Glinka Ruslan e Lyudmila

a noção, Millington (1995) resume algumas das “associações” (entre harmonias e elementos dramáticos) reconhecidas por Bailey: “O uso ‘associativo’ da tonalidade [...] evidencia-se em Lohengrin. O personagem principal e a esfera do Graal são representados por Lá maior [...]. [Para criar contraste Wagner] posiciona o Lá bemol maior (e menor) de Elsa contra o Lá maior de Lohengrin, de tal forma que é obrigado a executar hábeis – se bem que inquestionavelmente eficazes – manobras para equilibrar as duas tonalidades. [...] [Em Láb maior, Elsa canta], mas a sua antecipação da chegada de Lohengrin [...] eleva a tonalidade em um semitom: é um momento de transfiguração, no qual a música espelha graficamente a expressão radiante que toma o rosto de Elsa. Lá maior é então estabelecido firmemente como a tonalidade de Lohengrin [...] mas quando Lohengrin entra na esfera de Elsa, oferecendo-se como seu defensor, a música desliza de volta para Lá bemol, retornando prontamente para o Lá quando Elsa o reconhece como seu protetor. O relativo menor do Lá maior de Lohengrin é o Fá sustenido menor, que é a tonalidade primordialmente associada a Ortrud e seus maléficos atributos (Millington, 1995:323-324).

(1842), em Ré maior. Nela o leitmotif do feiticeiro Chernomor atinge, em três compassos, as três tônicas do ciclo (D, Bb e F#). Este trecho destacou-se e tornou-se um protótipo, associa3

Mattheson (1713) descreve a tonalidade de dó maior como “não estranha”; Rameau (1722) diz que a tonalidade é adequada para canções de passatempo; Vogler (1798) nos fala que é uma tonalidade de “pouco recurso”.

4

Schubart (1806) associa a tonalidade de Lá bemol maior a “morte, putrefação”.

5

Quantz (1752:203) diz que a tonalidade de Mi maior “expressa bem o afeto de amor”; Vogler (1779) associa a tonalidade de Mi maior ao fogo do amor e da paixão.

6

Bribitzer-Stull (2006a:174) aponta o estudo Gilliam (1991:68) que, ao abordar a obra de Richard Strauss, discute com mais profundidade a associação da região de Mi maior ao erotismo.

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do a personagens e situações assustadoras por artistas como Rimsky-Korsakov e Tchaiko-

que já havia percorrido o ciclo mais de vinte anos antes do Passos de Coltrane. Na seção

vsky (Taruskin, 1996:261).

B desta canção, a canção perpassa todas as tônicas de um ciclo de terças maiores a partir

A Wanderer Fantasie (1822), “certamente a composição de Schubert mais repleta de re-

da região de Bb: (subdominante do tom principal, F:). Os versos na seção A da canção, des-

lações de terceira”, também é comentada por Taruskin (1996:263). A peça é composta de

crevem o encontro entre o personagem e miss Jones. Ao passo que a região de Si bemol é

quatro movimentos que caminham7 pelas tônicas do ciclo de terças maiores: o primeiro mo-

atingida e o ciclo de terças maiores é percorrido, os versos revelam os desejos amorosos do

vimento inicia em C:, que define a tonalidade da obra. O segundo movimento inicia no diato-

personagem pela moça. Na canção “All the things you are” (1939), de Jerome Kern e Oscar Hammerstein II, o ciclo

nismo de E: e termina efetivamente nesta tonalidade. O terceiro movimento encontra-se na região de E:, buscando a modulação ao quarto movimento, que encerra a obra em E:.

é percorrido a partir da tonalidade principal Ab:. Os versos desta canção, ambientados pela

Com o auxílio de Demsey (1996) e Porter (1999:149) destacam-se interações entre a

transição entre as tônicas do ciclo, revelam uma declaração de amor à pessoa que “faz o so-

teoria musical de autores russos como Nicolas Slonimsky, e a ênfase da jazz theory em as-

litário inverno parecer longo”. Observa-se, então, que é notável também no repertório Tin Pan

suntos que, em reconhecimento aos esforços de John Coltrane, sobre tudo no album “Giant

Alley a associação do ciclo a afetos de pulsões excitantes.9

Steps” (1959), tornaram-se conhecidos por rótulos como “Coltrane Matrix” e “Coltrane’s three-

Aproximando-nos do campo das canções populares produzidas no Brasil, as leituras de

-tonic system”. “Giant Steps” é um tema de 16 compassos que logo se consagrou como um

Tatit (1996) oferecem critérios para a caracterização de uma “dicção dos cancionistas”, isto

“locus classicus dos ciclos de terceira” no jazz.

é, como cancionistas brasileiros associam texto e música, e o estudo de Freitas (2014) traz

Outra composição importante para o estabelecimento do ciclo de terças maiores no repertório jazzístico é “Countdown”, também gravado no disco “Giant Steps”. “Countdown”,

contribuições referentes ao emprego dos ciclos de terceira em canções produzidas no Brasil, como é o caso de “Choro Bandido”.

como se sabe, refaz os quatro versos do standard “Tune Up”, popularizado por Miles Davis (1926-1991)8. O ciclo de terças maiores em “Countdown” é explorado como um “estiramento da fórmula dois cinco” (Freitas:248-253), uma grande cadência que pretende repousar na

3. COMENTÁRIOS AO “CHORO BANDIDO”

tônica principal. Em outro contexto, na indústria do Tin Pan Alley, o ciclo de terças maiores também é no-

Para efeito dos apontamentos aqui propostos, a canção foi dividida em quatro seções. A Se-

tável. “Have you met miss Jones” (1937), de Richard Rodgers e Lorenz Hart, é uma canção

ção 1 compreende os compassos 1-9 e versos 1-5 e 15-19. Esta primeira seção compreende

7

Freitas (2010:594-599) mapeia as referências em torno das metáforas do caminhar e dos devaneios no âmbito das escolhas harmônicas.

8

Freitas (2010:248) lista uma série de estudos acerca de “Countdown”.

9

Freitas (2010:725-728) elenca outras ocorrências do ciclo de terças maiores no repertório Tin Pan Alley, dentre as quais “The Midnight Sun”, “Bess You is My Woman” e “If Ever I Would Leave You”, cujos versos também expressam desejos amorosos.

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a prolongação10 de um movimento harmônico “ii – V – I” que estabelece a tônica Dó maior

turas e aproximações cromáticas) da melodia pela qual o corsário canta estes versos figura

e arremata os versos de abordagem da canção. Os versos 1-5 tratam da apresentação de

a falsidade do corsário.

Duguay-Trouin, que aborda Nancy colocando-se como um falso, e afirma que os versos de

É notável a aproximação da Seção 1 de Choro Bandido ao conceito de “começo” comen-

poetas miseráveis (como ele, o falso) são bons, não possuem malícia. A tortuosidade (apoja-

tado por Agawu (2012:104-105). “Começo”, é a etapa retórica musical em que há o esclarecimento ou “estabelecimento de premissas” expresso por “um movimento prolongado I-V-(I)”,

10

A noção de prolongação (Dehnung) é, como se sabe, uma metáfora teórica procedente das contribuições teóricas de Heinrich Schenker (1868-1935). O vocábulo “Dehnung” escolhido por Schenker aparece traduzido nas ciências físicas e matemáticas como “deformação” (o comportamento de um material que sofre modificação mecânica), literalmente pode ser traduzido como “esticamento” (ato de estirar, distender, expandir, alongamento). Ou ainda, acentuado um pouco mais o tronco ou a raiz goethiana embutida na noção, “Dehnung” pode ser compreendido como “germinação” (o processo de desenvolvimento ou evolução de uma semente) ou “estirpe” (que, no sentido botânico, é aquela parte da planta que se alastra por debaixo da terra). Esta imagem poética da “estrutura orgânica (Organischen)” está subjacente em vários termos do vocabulário schenkeriano: acorde prolongado, prolongação melódica, prolongação harmônica, método (meio ou processo) de prolongação, prolongamento de função, prolongação das progressões harmônicas, implantação, desdobramento ou elaboração composicional (“Auskomponierung”), etc. Salzer (1990:37-39; 123-124; 165-166; etc.) explica a “Prolongação”: os diferentes acordes de um segmento musical “freqüentemente se movem dentro de uma única harmonia ou acorde”, p.ex., as vozes de um verso de um Coral de J. S. Bach realizam movimentos que “recheiam” o chamado “acorde estrutural” (ou o “acorde gramatical”, ou o “acorde significante” ou ainda o “acorde de origem harmônica”, algo comparável ao Urphänomene – o fenômeno originário ou fenômeno primevo de Goethe). “As raízes do acorde prolongado se acham no contraponto puro”. “A partir desse conceito melódico-contrapontístico [...] se chegou ao reconhecimento de que o valor estrutural de um acorde pode prolongar-se com a ajuda de vários acordes”. Esse “processo” resultante da “progressão linear” das vozes, que poderia ser chamado de “horizontalização do acorde” ou de “armação harmônica”, confere maior expressão a “um único” acorde. Os “acordes contrapontísticos”, ou seja, aqueles gerados pela condução das vozes, são “acordes de superfície” – são “uma ramificação orgânica de uma progressão harmônica de uma ordem estrutural superior” –, são acordes “subordinados” que, “circulando ao redor” ou “movendose dentro”, intensificam e possibilitam a desenvolução (crescimento, prosseguimento, revelação gradual, desenrolamento ou “pleno florescimento”) da “tônica estrutural prolongada”, o “lugar de chegada” ou a “região” que “governa” o verso.

que esclarece também a tonalidade principal (Agawu, 2012:104). A Seção 2 compreende os compassos 10-16 e versos 6-9 e 20-23. Trata-se da etapa argumentativa em que, percorrendo as regiões do ciclo de terças maiores a partir do tom original (E: e G#: a partir de C:), Duguay-Trouin remete a episódios fantásticos da mitologia grega para persuadir Nancy à sua sedução. Os versos 6-9 dizem “Mesmo porque as notas eram surdas quando um deus sonso e ladrão fez, das tripas, a primeira lira, que animou todos os sons”. Almeida (2008) nos conta que estes versos evocam o mito de Hermes, deus sorrateiro que teria inventado a lira com tripas de ovelha e pele de bois roubados do deus Apolo. Duguay-Trouin pretende a seguinte analogia: ora, se o “sonso e ladrão” Hermes, mesmo roubando os bois de Apolo, construiu uma lira que “animou todos os sons”, o “falso” Duguay-Trouin, mesmo sendo um corsário prisioneiro, poderia ter boas intenções entoando palavras de sedução à bela Nancy, sua carcereira. Duguay-Trouin entoa nos versos 20-23: “Mesmo que você fuja de mim por labirintos e alçapões, saiba que os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão”. Há dois mitos gregos evocados por estes versos: o labirinto de Dédalo, construído por ordem do rei Minos para malfeitores a serem mortos pelo Minotauro, e o mito do sábio Tirésias que, foi punido por deuses com a cegueira, porém foi recompensado com o dom de ver o futuro. A analogia é a seguinte: mesmo que Nancy tente resistir à paixão (“fugir por labirintos e alçapões”), ele, o poeta não a perderá de vista, não a deixará resistir à paixão (Almeida, 2008). Agawu (2012:104-105) nos fala que a “seção central” é uma seção de “menor claridade” e de “manipulação criativa das premissas”. Duguay-Trouin reserva a Seção 2 da canção para,

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através dos mitos, justificar sua falsidade e convencer a bela moça de que não há escapa-

rário e texto musical. Nada é deixado ao acaso, as nuances do poema são “traduzidas” em

tória para a paixão. Não é por acaso, que as áreas tonais atingidas nesta Seção 2 transitam

acordes. Tatit (1996:11) nos relembra que o cancionista compõe, isto é põe junto, elementos

pelo “poderoso” (Bribitzer-Stull, 2006a:173) complexo Ab-C-E: a solução tonal a associar-se

diversos que podem ser descritos, enquanto métrica, melodia, versos, acordes, pré trajetos

com a argumentação de Duguay-Trouin deveria ser tão surpreendente e interessante quanto

harmônicos, imagens simbolicamente pré-maturadas. Nos termos de Tatit, tais “tendências

as imagens mitológicas evocadas. O ciclo de terças maiores, por sua capacidade expressiva

contrárias” estão “compatibilizadas” em uma só entoação.

conservada há tanto tempo na música de concerto e na música popular, é uma escolha engenhosa para arrematar esta Seção 2.

Por fim, pode-se observar que a revisão acerca do repertório e da bibliografia aproxima a música de concerto, a música de jazz e a música popular produzida no Brasil, permitindo

Incorporada à “seção central” de “Choro Bandido” está outra noção sugerida por Agawu

observar que o discurso traçado entre versos e acordes em “Choro Bandido” por Edu Lobo e

(2012:116-137), o “ponto culminante”. A região de G#:, que arremata o apelo de Duguay-Trou-

Chico Buarque participa de uma conversa de longa data, de que participam diferentes músi-

in através dos mitos gregos, aproxima-se do que o musicólogo chama de “ponto culminante”,

cos, harmonizadores, arranjadores, improvisadores e compositores.

uma vez que esta “harmonia distante [...] serve para transmitir [...] algo extremo dentro de uma trajetória [...] de partida e regresso” (Agawu, 2012:118). A Seção 3, compassos 17-24, e versos 10-14 e 24-28, que colocam a sedução do corsário

REFERÊNCIAS

e a paixão de Nancy como consequência dos mitos evocados enquanto o plano tonal retorna do ponto culminante G#: à tônica principal C:. A Seção Final, compassos 25-30, abarca os versos 29-33 que reafirmam a sedução de Duguay-Trouin e são arrematados por uma longa cadência plagal. Assim, estas seções combinadas aproximam-se do conceito de “final”, uma seção que “cumpre com a obrigação harmônica exposta no começo” contando com “uma

Agawu, Kofi. 2012. La música como discurso: Aventuras semióticas en la música romántica. Buenos Aires: Eterna Cadencia. Almeida, André Albino de. 2008. “A Mitologia Greco-Latina na Canção Choro Bandido”. In: Revista Crítica & Companhia, vol. 4, p. 01.

claridade simulada para terminar” (Agawu, 2012:104-105).

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4. CONCLUSÃO

Boal, Augusto. 1985. O Corsário do Rei. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Bribitzer-Stull, Matthew. 2007. Richard Wagner for the New Millennium. New York: Palgrave Macmillan.

Com tais comentários, observa-se que, na canção “Choro Bandido” os versos narram a trama das funções harmônicas e que, a trilha das funções ambienta o sentido dos versos. Parafraseando Rónai (2000:18) pode-se dizer que a canção ilustra o imbricamento entre texto lite-

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