\"Festas de Orgia para Homens: territórios de intensidade e socialidade masculina\"

May 25, 2017 | Autor: Victor Hugo Barreto | Categoria: Masculinities, Rio de Janeiro, Práticas Sexuais, Orgies
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

VICTOR HUGO DE SOUZA BARRETO

FESTAS DE ORGIA PARA HOMENS: TERRITÓRIOS DE INTENSIDADE E SOCIALIDADE MASCULINA

NITERÓI 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

VICTOR HUGO DE SOUZA BARRETO

FESTAS DE ORGIA PARA HOMENS: TERRITÓRIOS DE INTENSIDADE E SOCIALIDADE MASCULINA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Antropologia.

NITERÓI 2016 2

Banca Examinadora __________________________________ Prof. Orientador – Dra Ana Claudia Cruz da Silva Universidade Federal Fluminense __________________________________ Prof. Co-Orientador - Dra Maria Elvira Díaz-Benítez Universidade Federal do Rio de Janeiro __________________________________ Prof. Dra. Laura Lowenkron Universidade do Estado do Rio de Janeiro __________________________________ Prof. Dra. Regina Facchini Universidade Estadual de Campinas __________________________________ Prof. Dr. Antônio Rafael Barbosa Universidade Federal Fluminense __________________________________ Prof. Dr. José Colaço Dias Neto Universidade Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes __________________________________ Prof. Dra. Fatima Lima (suplente externo) Universidade Federal do Rio de Janeiro __________________________________ Prof. Dr. Frederico Policarpo de Mendonça Filho (suplente interno) Universidade Federal Fluminense

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Resumo Neste trabalho, tenho a intenção de apresentar uma reflexão sobre determinadas práticas sexuais realizadas entre homens na cidade do Rio de Janeiro em reuniões de orgia, a partir de uma etnografia realizada em quatro desses eventos comercialmente organizados na cidade. O que a experiência da sexualidade nessas festas parece colocar em jogo são outros modos de subjetivação e corporalização, modos propriamente intensivos, onde ao mesmo tempo em que uma determinada forma de masculinidade é elaborada há também um modo singular de engajamento no mundo. Esta tese busca compreender essas interações a partir da análise daquilo que estou chamando aqui dos três “princípios” desses eventos: a “masculinidade”, a “discrição” e a “putaria". Também me detenho no debate sobre a metodologia de pesquisas em contextos de interação sexual.

Abstract In this work , I intend to present a reflection on certain sexual practices conducted among men in the city of Rio de Janeiro in orgy meetings, from an ethnography in these four commercially organized events in the city . What the experience of sexuality these parties seem to put into play are other modes of subjectivity and corporalization , properly intensive modes , where at the same time that a particular form of masculinity also is developed there a singular way of engagement in the world.This thesis seeks to understand these interactions by analyzing what I am calling here from the three "principles" of these events: "masculinity", "discretion" and "putaria." I also dwell on the debate on methodology of research in contexts of sexual interaction.

Palavras-chave: Práticas sexuais, Masculinidade, Orgia, Rio de Janeiro

Keywords: Sexual practices, Masculinity, Orgy, Rio de Janeiro

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SUMÁRIO Agradecimentos....................................................................................................................9

Primeiro mergulho................................................................................................................13 Introdução............................................................................................................................17 Do tema e de como cheguei a ele.............................................................................17 De alguns recortes.....................................................................................................26 Um(não) quadro teórico............................................................................................26 Subjetividade e políticas da singularidade.....................................................26 As questões e “os princípios”....................................................................................32 Algumas observações sobre o método.....................................................................36 Negociações..............................................................................................................40 Corpo e afetação.......................................................................................................43 Estrutura do texto.....................................................................................................49 PARTE I – OS PRINCÍPIOS Instantâneos de uma “putaria entre machos”.....................................................................52 Capítulo I – O princípio da masculinidade..........................................................................56 Entre iguais, só entre machos...................................................................................57 Entre diferentes, uma masculinidade hierarquizada................................................64 Caráter espartano X gaysmo......................................................................................71 Genealogia de uma masculinidade............................................................................73 O desejo pelo macho..................................................................................................81

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Penetrar e ser penetrado..................................................................................86 “Habitando a norma”, o exagero que (des)faz gênero......................................93 O show: exagero e grotesco..............................................................................96 O corpo do homem............................................................................................101 Fragmentos de interações sigilosas...............................................................................110 Capítulo II – O princípio da discrição............................................................................114 A química da orgia..............................................................................................115 Silêncio e escuridão.............................................................................................120 Erótica do anonimato..........................................................................................128 O devir-multidão da orgia...................................................................................142 “Lugares outros”..................................................................................................148 As festas...............................................................................................................157 Festa do Apê.............................................................................................157 Festa do Vale Tudo....................................................................................160 Clube Meetings.........................................................................................163 Black Hall...................................................................................................166 Um momento de efervescência.........................................................................................170 Capítulo III – O princípio da putaria.................................................................................173 Intensidade e experimentação...............................................................................174 O corpo na economia do prazer orgiástico............................................................176 A putaria..................................................................................................................179 Putaria X romance.......................................................................................183 Disposição....................................................................................................185 6

A repetição na orgia........................................................................................190 Novo mergulho................................................................................................194 O que pode o corpo?.......................................................................................196 Limites e fissuras.............................................................................................202 Prazer e risco...................................................................................................209 E não existe desigualdade?..............................................................................218 A fim de concluir..............................................................................................224 PARTE II – OUTRAS DOBRAS A orgia e a festa...........................................................................................................230 A orgia e a pornografia.....................................................................................230 A orgia na Antropologia....................................................................................235 A orgia como ritual: entre o sagrado e o profano.............................................243 A orgia como prática hedonista.........................................................................248 “Libertinos libertários”......................................................................................253 Sexo e transgressão...........................................................................................260 A festa................................................................................................................263 EPÍLOGO: Quando a pesquisa é o problema................................................................271 1. O sexo e a natureza......................................................................................274 2. O sexo e o bizarro.........................................................................................277 3. O pesquisador com “segundas intenções”...................................................281 4. (O riso)..........................................................................................................286 5. Escrita “erótica-científica” e seus perigos....................................................287 6. Fechando.......................................................................................................292 7

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................294 ANEXOS Anexo I – Cartazes das festas: imagens de uma masculinidade desejada..............319 Anexo II – “Manifesto Espartano” por Ricardo Líper..............................................330 Anexo III – Imagens do show....................................................................................343

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Agradecimentos

Ainda que a responsabilidade das coisas ditas neste trabalho sejam ao final toda minha, o percurso de sua construção não se fez sozinho. E esse é o momento onde devo/posso agradecer àqueles que, mesmo nos mais rápidos encontros, contribuíram de alguma forma para que essa tese fosse feita. Em primeiro lugar, quero agradecer a todos aqueles que durante os quatro anos de doutorado ocuparam a posição de meus interlocutores, tanto os que já eram conhecidos ou se tornaram mais próximos quanto aos inúmeros que permaneceram anônimos. Todos aqueles que seja dentro ou fora dos espaços das festas compartilharam comigo alguma informação, experiência, fantasia ou desejo que me ajudou a pensar sobre o tema da tese. Que durante o trabalho de campo me deixaram passear, observar e me permitiram atravessar seus desejos e corpos nem sempre sabendo que aquilo poderia contribuir para uma pesquisa. Obrigado pelos bons e mesmo pelos maus encontros. Agradeço especialmente a Chicão, Igor, Renato, Jack e Felipe por permitirem que seus eventos fossem espaços possíveis de etnografia, além da paciência e interesse com que receberam as minhas constantes perguntas. Três professores foram essenciais para que esse trabalho fosse realizado. Não digo que foram figuras inspiradoras, porque nenhum dos três possui vocação para totem, mas foram “estimuladores” das ideias que levaram a minha formação e a essa tese. Agradeço à Ana Claudia Cruz da Silva, minha orientadora, que mesmo não tendo uma intimidade com os debates específicos do tema, aceitou o desafio de me ajudar a pensá-lo e de orientar um objeto de pesquisa complexo em vários sentidos (e todas as configurações que a pesquisa tinha anteriormente até chegar a esse recorte final). Obrigado pela confiança, pela cumplicidade, pela leitura e comentários dedicados, pela disposição nos meandros burocráticos, pelas palavras de incentivo e os puxões de orelha necessários. A Maria Elvira Díaz-Benítez, minha co-orientadora, cujo acompanhamento nesse percurso foi essencial. Foi a partir de seus cursos, seus trabalhos e suas falas que tive contato com uma bibliografia e discussões que, até então, desconhecia. E foi com o convívio tanto nas salas de aula quanto nas divertidas saídas e reuniões que muitos dos insights

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dessa tese se produziram. Obrigado por ter me recebido, pelos comentários e indicações, além das incontáveis chamadas de atenção para coisas que eu teimava em deixar de lado. A Antônio Rafael Barbosa, professor presente na banca, cujo acompanhamento foi essencial em minha formação. Foi a partir de seus cursos e do contato com seus trabalhos que não só eu, mas toda uma geração de pesquisadores, foi afetada tanto no pensamento como na maneira de se fazer Antropologia. Agradeço pela amizade, pelos encontros e trocas durante esses anos, tanto pelas orientações anteriores quanto, principalmente, por ter me apresentado uma possibilidade de perspectiva e questionamento das coisas muito mais interessante e produtiva. Dois outros professores precisam ser mencionados na contribuição desse trabalho. Miguel Vale de Almeida, meu co-orientador em Portugal, por ter aceitado me acompanhar durante o período de estágio em Lisboa. Agradeço pela tranquila e confortável recepção num país estrangeiro, pelos comentários sobre as primeiras versões dos capítulos, pelas indicações de leitura e pelas conversas e cafés sempre com observações e trocas de ideia interessantes. Agradeço também ao professor Roberto Kant de Lima não só pelo interesse e disposição de ajuda durante os anos de doutorado, mas também por ter me proporcionado um espaço que foi essencial em minha formação de pesquisador desde a graduação nos núcleos os quais coordena. A Laura Lowenkron pelos seus importantes comentários durante a qualificação deste trabalho e por ter aceitado fazer parte da banca. Aos outros professores participantes da banca: Regina Facchini, Antônio Rafael Barbosa, José Colaço Dias Neto, Fátima Lima e Frederico Policarpo Filho já agradeço a disponibilidade e a leitura. Agradeço aos comentários e diálogos realizados com outros professores em eventos e congressos onde pude apresentar os desenvolvimentos iniciais dessa pesquisa, principalmente a Regina Facchini, Isadora Lins França, Júlio Assis Simões, Sergio Carrara, Fátima Lima, Luiz Rojo e José Resende. Do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, queria agradecer aos professores Ovídio de Abreu Filho, Simoni Lahud Guedes, Rolf Malungo de Souza, Carolina Grillo e José Colaço Neto pelos cursos acompanhados durante o doutorado e que contribuíram para as discussões da tese. A equipe administrativa na pessoa de Marcelo de Souza por ter me ajudado e aguentado com as questões burocráticas e constantes perguntas sobre a possibilidade de bolsas. Ainda aos amigos de vida, carreira e “correria” 10

Alessandra Freixo, Alex Machado, Eric Macedo, Flavia Medeiros, Rômulo Labronici e Vânia Nascimento pelas presenças, bares, almoços, viagens e constantes trocas. Aos colegas pesquisadores e funcionários do NUFEP (Núcleo Flumimense de Estudos e Pesquisas) e do INCT-InEAC (Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos) coordenados pelo professor Roberto Kant, pelo ambiente de socialização e incentivo à pesquisa. Do outro lado da Baía a composição de um novo território no PPGAS do Museu Nacional-UFRJ me foi uma das coisas mais ricas tanto pessoalmente quanto no agenciamento de diálogos. Agradeço aos cursos e falas de professores como Maria Elvira, Adriana Vianna, Laura Lowenkron e Luiz Fernando Dias Duarte. A todos os colegas pesquisadores componentes do NuSEX (Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade) pelo estimulante debate e troca sem os quais essa pesquisa definitivamente não teria sido possível. Agradeço especialmente aos novos e já queridos amigos Lucas Freire, Michel Carvalho, Everton Rangel e Barbara Pires. Do outro lado do oceano, um pouco antes do término do doutorado, uma outra importante composição territorial me foi possível. Agradeço ao Cnpq pelos recursos financeiros durante os nove meses de bolsa de doutorado-sanduíche realizado no ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa) sob orientação do professor Miguel. Aos professores José Resende e Bruno Dionísio da CESNOVA (Universidade Nova de Lisboa) pela disposição e disponibilidade de ajuda com as primeiras tentativas de pedido de bolsa. A Pedro Pinela com a ajuda burocrática. Aos colegas pesquisadores e funcionários do CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia) meu muito obrigado pela calorosa e afetuosa recepção e pela troca de ideias, principalmente a Antónia de Lima, Catarina Frois, Cristina Santinho, Mafalda Sousa, Fernanda Oliveira e Cecilia Luis. Aos “colegas de sanduíche” Felipe Viero, Normando Viana e Edyr Oliveira. A Gloria Martins pela amizade e atenção. E a Rodrigo Oliveira, melhor “rommie” que eu podia pedir. Aos colegas de trabalho e alunos do curso de Segurança Pública da UFF (durante os períodos de estágio docência), do Colégio e Curso PH e do Colégio Pedro II. Os dois últimos foram durante quase todo o doutorado a minha única fonte de recursos para essa pesquisa (realizada em sua maioria sem bolsa). Agradeço a meus alunos por terem me ensinado a gostar de dar aulas e a me esforçar para tentar ser um bom professor como os que tive e,

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principalmente, aos alunos do Ensino Médio pelas insistentes perguntas e curiosidades sobre a minha pesquisa depois que procuraram meu nome no Google. As minhas amigas desde o tempo de colégio Ana Pires, Luciana Ramos, Renata Raeder e Virginia Bitencourt pelas trajetórias que ainda permanecem unidas. Obrigado pelos cafés e o nosso ritual do fondue anual, cada vez mais numeroso com a vinda dos sobrinhos. A minha família, principalmente minha mãe e minha avó, eternas incentivadoras de minhas escolhas. A Nei Fonseca por ter acompanhado boa parte desse processo, agradeço ao incentivo e torcida incondicional e à paciência em incontáveis momentos. A Jôse Sales por ter me ajudado no equilíbrio e a pensar questões que estavam ali, mas que não me dava conta. A Erika Fraenkel pela “assessoria energética”. Do campo alguns bons encontros levaram a novas amizades. Obrigado Nelson, Ricardo, Diego, João, Everton, Halisson e Marcio. Durante o período do sanduíche em Portugal e das visitas a outras cidades, alguns bons encontros também fizeram toda a diferença. De pequenas ajudas, dicas e informações compartilhadas, apresentações da cidade, boas companhias, cafés e bebidas, ensinamentos e experiências que foram compondo meus trajetos. Em Lisboa, meu obrigado a Filipe, Vasco, Rui, Louke, Gonçalo e Nuno. Em Paris, Jean e Gilles. Em Barcelona, Matthew e Marko. Em Roma, Michele. Em Praga, Lubôs. Em Amsterdã, Javier. E em Berlim, Jann, Frank e Alexander.

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Primeiro mergulho

Desembarco das barcas e chego à Praça XV por volta das quinze horas. Nessa tarde de domingo o número de pessoas que fazem a travessia entre as cidades de Niterói e Rio de Janeiro pela Baía de Guanabara não chega perto do volume dos dias durante a semana. À primeira vista, até causa estranheza ver o Centro da cidade tão pouco movimentado como de costume. Ali perto do Paço Imperial apenas vendedores ambulantes, moradores de rua e jovens praticando acrobacias no skate. Nem cinco minutos de caminhada e numa rua estreita de paralelepípedos chego em frente a um dos principais locais onde, desde o início do ano de 2013, faço trabalho de campo, desenvolvendo minha pesquisa para a tese de doutorado sobre festas de orgia. Um cartaz na porta com a imagem de sombras de corpos masculinos e de espadas se cruzando indica: “Festa do Vale Tudo” e embaixo: “Apenas para homens”. Um segurança abre a pesada porta para mim e chego à pequena recepção, de onde ouço os sons abafados de música alta. Sou atendido pelo recepcionista que me pede um primeiro nome para o registro (esse nome não precisa ser conferido por nenhum tipo de documento) e para quem faço o pagamento adiantado do ingresso da festa (nesse dia quarenta reais no dinheiro ou quarenta e cinco reais no cartão) e também recebo uma chave numerada de um armário para guardar meus pertences. Ao mesmo tempo, um rapaz negro musculoso usando apenas uma apertada sunga branca coloca no meu pulso uma pulseira colorida numerada (o número da pulseira vai indicar no serviço computadorizado o que eu, porventura, consumir durante a festa) e entrega em minhas mãos duas camisinhas e um sachê de lubrificante. Enquanto abre uma segunda porta para mim, avisa que se eu precisar de mais camisinha posso voltar para pegar. O ambiente de entrada da festa é uma boate, o que faz com que já seja recebido por uma música eletrônica alta e por uma grande quantidade de luzes se movimentando rapidamente. A chave que recebi indica que meu armário fica no quarto andar, por isso passo rápido pela boate até alcançar a escada, já um pouco tonto pela mudança de ambiente e excesso de estímulos. Enquanto passo e subo as escadas, percebo os olhares de avaliação e curiosidade dos homens de sunga ou cueca já presentes no local. É um olhar

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característico que começa pelos olhos, desce percorrendo o corpo da pessoa, prestando atenção nas formas e nos volumes, e sobe para parar nos olhos novamente. Se houver interesse o contato visual permanece e se intensifica, se não, desvia-se em busca de outro. Os lances de escada são separados por longos corredores e por espaços com uma luz muito baixa, ou mesmo na penumbra. De início, até que possa acostumar meu olhar com a iluminação e o clima do local, faço esse percurso ainda tonto e com cuidado para não esbarrar ou tropeçar no caminho ou nas pessoas que estão em permanente movimento pela casa. Vejo espaços com luzes vermelhas, outras verdes e também azuis. Os outros sentidos começam a se aguçar. Passando pelo segundo andar, ouço gemidos vindos do “dark room" (espécie de “quarto escuro”, ambiente de completa penumbra onde ocorrem interações sexuais; é muito comum em boates e saunas). Na entrada do dark estão alguns rapazes parados encostados na parede. Meu olhar cruza com um deles, que ao repará-lo, abaixa a mão e pega no próprio volume do pênis marcado na cueca e fica ali massageando e me observando ao mesmo tempo. Quando passo por ele, o rapaz estende a mão e segura meu braço carinhosamente, mas com força suficiente para me puxar para perto. Aproxima-se e diz no meu ouvido: “Não gosta?” Roça o pênis já ereto na minha perna e me olha para ver minha reação: “Só de te ver... Olha como eu fico!” Os outros também observam a cena. Sorrio, me afasto devagar e continuo o caminho para o quarto andar. Passo rápido pela outra boate do terceiro andar também com música alta, mas de estilo diferente da primeira, pois aqui o repertório é de clássicos da MPB. Cruzo com outras pessoas que dão maior ou menor atenção à minha passagem. E finalmente consigo chegar à área dos armários do quarto andar. Tiro a camisa e a bermuda que estou vestindo, ficando apenas com sunga e tênis. O vestuário obrigatório dessa festa apenas permite sungas, cuecas ou nudez completa. No quarto andar é também onde ficam as “suítes”: são três quartos com camas coletivas iluminadas por uma luz vermelha baixa ou no escuro. Na primeira entro com certa dificuldade pela quantidade de pessoas que já estão ali dentro, chego a contar em torno de vinte homens. Demoro a conseguir distinguir alguma coisa na confusão de corpos, no cheiro de perfumes misturados, suor e umidade e nos sons de sexo e gemidos do ambiente. Consigo perceber uma pessoa deitada na cama, de barriga para cima, sendo chupada por um rapaz que está de pé e inclinado, enquanto um terceiro o penetra por trás. O que está sendo 14

penetrado interrompe às vezes o sexo oral para gemer alto, o que estimula outros a se aproximarem dele e também oferecerem o pênis para serem chupados. Outros apenas permanecem observando a penetração enquanto se estimulam. Toda a ação é feita no silêncio, ou melhor, na ausência de fala, já que os gemidos, suspiros, respirações ofegantes, e os barulhos do sexo são os únicos sons do ambiente. A linguagem utilizada aqui é a corporal e do desejo desencadeado por ela. Nesse agrupamento, a própria proximidade com outros corpos e o “roça-roça” característico é fonte de estímulo. Tentando visualizar melhor a interação da cama coletiva, levo um tempo para me dar conta que alguém ao meu lado tenta colocar a mão por dentro da minha sunga e alcançar o meu pênis. Retiro a mão da pessoa devagar, sem demonstrar “falta de educação” ou de “fairplay” com a interação e continuo observando as várias atividades que acontecem ao mesmo tempo ao meu redor. O rapaz que está deitado na cama sendo chupado goza, se levanta e sai do quarto. A multidão se desfaz por um momento com sua saída e toma uma outra configuração com outras pessoas. Saio do quarto também e vou olhar o que está ocorrendo nos outros espaços da casa. Sou atraído pelos sons vindos da suíte de luz vermelha baixa. Quando entro vejo apenas um casal transando. O que está sendo penetrado está de pé com as pernas afastadas e inclinado apoiando as mãos na borda de uma hidromassagem presente no quarto. Não consigo ver o seu rosto. O que o está penetrando está de pé, por trás dele e de frente para a porta. Assim que entro, ele me olha, mas não para o que está fazendo. É negro e carrega no pescoço um terço de cor branca com crucifixo que chama a atenção. Depois, conversando com ele, me disse que o uso do crucifixo é mais por motivos estéticos, “porque dá um contraste legal com a pele, o preto e o branco”, do que por motivos religiosos. Outros começam a se aproximar também e ficam ali vendo a interação. Mesmo assim, o rapaz do crucifixo continua olhando fixamente para mim. Fico sem saber o que fazer, se sustento ou desvio o olhar, desconfortável e interessado ao mesmo tempo com a situação. Um dos expectadores se aproxima de mim e fala no meu ouvido: “ele quer fazer o mesmo com você...”. Continuo sem saber se permaneço ou não observando a cena, mas penso que talvez manter o olhar e o interesse vai me permitir uma aproximação posterior com o rapaz, por isso escolho ficar.

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A observação dessas práticas sexuais ainda ia se estender por toda aquela tarde de domingo, pelas sete horas de duração da festa, que culmina, ao final, com a apresentação de um show de sexo ao vivo com atores na boate do primeiro andar. Essa festa voltada apenas para homens, uma nas quais desenvolvo a pesquisa, ocorre duas vezes ao mês, sempre aos domingos, nessa casa de cinco andares que também funciona nos outros dias como clube de swing. Soube que teve uma tentativa de uma festa de orgia voltada apenas para mulheres, mas que não deu certo por falta de público. Em comparação com os outros eventos que acontecem nesse local (o swing, as festas privadas e os eventos trans), a “Festa do Vale Tudo” é a que reúne o maior número de pessoas, de cento e cinquenta a duzentas, no caso aqui, de apenas homens.

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INTRODUÇÃO

“Enganam-se aqueles que pensam que erótico é o corpo. O corpo só é erótico pelos mundos que andam nele. A erótica não caminha segundo as direções da carne. Ela vive no interstício das palavras. Não existe amor que resista a um corpo vazio de fantasias. Um corpo vazio de fantasias é um instrumento mudo, do qual não sai melodia alguma” (Rubem Alves)

Do tema e de como cheguei a ele

Comecemos pelas apresentações. Esta tese é sobre a prática do sexo grupal/coletivo realizada entre homens em reuniões ou eventos de orgia. Mais especificamente uma etnografia de festas de orgia entre homens que acontecem na cidade do Rio de Janeiro. Note-se que esse primeiro recorte (o fato de ser um evento exclusivo para homens) não foi intencional. Foi uma característica dada pelo campo e que vai ser um dos pontos que irei explorar nesse trabalho. Algo que é importante já apontar é que a etnografia de práticas sexuais efetivas é um campo que vem se estabelecendo cada vez mais na antropologia brasileira. Os trabalhos com esses cenários etnográficos exploram como é possível produzir conhecimento das “práticas sexuais/eróticas que desafiam os efeitos políticos da repugnância e da transgressão”. São trabalhos que lidam com os limites daquilo que se naturalizou achar aceitável, correto ou normal. “Abordam ainda as maneiras como se constroem subjetividades e identidades coletivas a partir de práticas sexuais alternativas, identificando suas condições de produção, suas transformações e os discursos que os agentes utilizam para legitimá-las” (Fígari e Díaz-Benitez, 2009, 21). Esses estudos acabam por permitir não só o entendimento dos limites das práticas em si, mas também das nossas próprias ferramentas de análise ao colocarem esses temas em questão. Este trabalho pode ser entendido como uma contribuição a essa temática de pesquisa. Aqui dedico-me, por um lado, a mapear as orgias entre homens enquanto zona de intensidade, propondo-me a investigar antes territorialidades do que identidades, e, por outro, a descrever e analisar o funcionamento desses eventos tal como acionado pelos

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frequentadores dessas festas. Meu interesse é analisar a multiplicidade em relação aos jogos e às práticas sexuais desses eventos buscando entender o que dizem os corpos que interagem no sexo coletivo e que utilizam essas festas como territórios existenciais para a efetuação de suas práticas e a realização de seus desejos. Considero também, neste exercício etnográfico, os processos de construção da subjetividade dos atores e da micropolítica dos corpos gestada nesses contextos e cenários, levando em conta a molecularidade de seus desejos. Já dizia Deleuze que:

O desejo é o sistema de signos a-significantes com os quais se produz fluxos de inconsciente no campo social. Não há eclosão de desejo, seja qual for o lugar em que aconteça, pequena família ou escolinha de bairro, que não coloque em xeque as estruturas estabelecidas. O desejo é revolucionário, porque sempre quer mais conexões, mais agenciamentos (Deleuze e Parnet, 1998, 53).

Desejo é entendido aqui como vontade, como algo que nos coloca em movimento, o que constitui nossos interesses pelas coisas e que encadeia nossos afetos. E é isso o que procuro aqui: o desejo como “processo de produção de universos psicossociais. O próprio movimento de produção desses universos” (Rolnik, 1989, 25), já que

Não existe sociedade que não seja feita de investimentos de desejo nesta ou naquela direção, com esta ou aquela estratégia e, reciprocamente, não existem investimentos de desejo que não sejam os próprios movimentos de atualização de um certo tipo de prática e discurso, ou seja, atualização de um certo tipo de sociedade. (Rolnik, 1989, 58)

O analista social (ou o “cartógrafo”, nos dizeres de Rolnik) precisa estar atento às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da existência humana que se propõe perscrutar: sejam “os movimentos sociais, formalizados ou não, as mutações da sensibilidade coletiva, a violência, a delinquência” (idem), ou, como principalmente no caso aqui, as práticas sexuais realizadas em festas de orgia.

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Não é a primeira vez que adoto como estratégia de análise traçar o percurso dos desejos envolvidos em determinado campo. Explico-me: na minha dissertação de mestrado, defendida em abril de 2012, no âmbito do PPGA/UFF (e no prelo para publicação pela EdUFF), desenvolvi uma etnografia sobre a prostituição masculina junto a alguns garotos de programa, chamados de “boys”, a partir do trabalho de campo feito em algumas saunas da cidade do Rio de Janeiro (Barreto, 2012). As incursões iniciais e a exposição física nos espaços da sauna me fizeram perceber que as aproximações nesses contextos estão permeadas por expectativas que giram em torno do desejo. A estratégia adotada foi tentar mapear esse campo através desse elemento, tornando-o “objeto” e fio condutor da análise. O que fiz foi me aproximar, portanto, de uma “antropologia do desejo” (Perlongher, 1993), procurando compreender de que forma são compostos ou acionados os fluxos de afeto por um lado e o fluxo de dinheiro por outro, característica principal da prostituição. Após o término do mestrado e da aprovação na seleção do doutorado, pensei em enveredar pelo tema das novas configurações familiares e afetivas numa comparação entre Brasil e Argentina, acompanhando processos judiciais de adoção e casamento homoafetivos, um campo que, já que estamos falando disso, não me despertou tanto desejo. De saída já me incomodava um fenômeno que Handler (1994) aponta de que quanto mais próximo do aparelho de Estado, maior um processo de “endurecimento” das identidades, mais “identificações”, maior captura das formas de subjetivação. E o que está me interessando no momento é justamente a tensão entre esses “endurecimentos”, de como os atores demonstram um certo desejo pela norma e como buscam, ao mesmo tempo, uma dissolução dessas identidades, dos significados, da fuga de aparelhos de captura, estabelecendo, dessa forma, um campo que se pode chamar de “contrarepresentações” ou de uma própria socialidade contra o Estado (Barbosa, 2004)1 ou de “puro desejo”. 1

O uso do conceito socialidade aqui, ao invés de sociabilidade, é uma escolha consciente e metodológica. Já que, como vem demonstrando Strathern em seu trabalho na Melanésia (2006), ambas são formas distintas de se pensar a construção de relações sociais. A proposta que adoto nesse trabalho é a de entender as relações que se dão aqui a partir de um esquema de fluxos e de forças, nas quais se produzem formas específicas e singulares de se estabelecer vínculos interpessoais, suas socialidades. Não há aqui uma determinada moldura pré-existente que se referenciaria a um modelo de sociabilidade. Acredito que essa escolha conceitual e seu uso ficarão mais claros no segundo capítulo.

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Reconheço a especificidade (e dificuldades) da minha investigação. Entre muitas possibilidades de práticas sexuais, certamente estou olhando para uma das que costumam ser consideradas “extremas” (principalmente para quem olha de fora), no duplo sentido de uso intenso da prática e de um tipo de experiência realizada apenas por uma determinada parcela de homens que enveredam nesse universo (ainda que a quantidade de pessoas presentes nessas festas seja sempre significativa). O que me impede tanto de generalizar o que se passa aí quanto de tomar o tempo dessas festas como algo da totalidade da vida dessas pessoas. Não que pensar a “totalidade” seja a minha intenção aqui (ou que a Antropologia ainda reivindique para si esse papel). Mas de, justamente, pensar o local desses eventos, o desejo pela intensidade dessas festas, aquilo que é produzido nas orgias e na prática do sexo coletivo que fazem com que seus participantes a desejem e retornem a elas. Com todos os riscos envolvidos nessa opção, acredito que há, ao menos, a vantagem de trazer tal temática para o debate antropológico.

De alguns recortes

Antes de partir para as discussões teóricas efetivamente, algumas palavras sobre as minhas escolhas. Definido o tema, o primeiro recorte feito foi quanto aos espaços a serem pesquisados. A opção foi por centrar minhas observações em lugares comerciais que realizassem ou organizassem esses eventos periodicamente. Há todo um mercado voltado para a realização dessas festas que envolveria o arranjo de locais, a negociação de datas e valores, aluguéis, comidas e bebidas, materiais, formas de divulgação etc. Foi minha opção não estender a análise para as festas de orgia privadas, as chamadas “sociais”. Não que eu não tenha conseguido acesso a elas (foram constantes os convites) nem porque eu achasse que fosse atrapalhar os dados já produzidos (pelo contrário), mas sim pela volatilidade e “privacidade” desses eventos. Em sua maioria, essas sociais são combinadas ao acaso, sem um calendário fixo, entre pessoas já previamente conhecidas ou mesmo entre grupos de amigos fechados. Podem ser marcadas via email, aplicativos de celular, através de listas de eventos que circulam pela internet, ou mesmo acontecem espontaneamente numa saída de bar ou boate mais empolgada, quando a noite pode terminar numa orgia na casa de um dos presentes. Esses eventos trazem, portanto, algumas dificuldades maiores para uma

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pesquisa de caráter mais prolongado e assíduo, daí o recorte. As sociais irão aparecer no texto mais como comparação na fala dos próprios participantes2. Outro recorte que deve ser explicitado diz respeito ao fenômeno investigado. Ao falar para outras pessoas, seja ou não em ambiente acadêmico, que o meu tema de pesquisa para o doutorado está sendo realizado em festas de orgia, as perguntas das pessoas (passado o choque inicial) costumam apresentar a suposição de que estudo festas de swing. E mesmo uma busca por palavras-chave em arquivos de bibliotecas sobre “orgia” ou “sexo coletivo/grupal” direciona às pesquisas realizadas sobre a prática do swing. O swing possui princípios e todo um conjunto de regras bastante diferentes desses eventos onde fiz a pesquisa. Também conhecido como troca de casais ou troca de esposas, o swing é uma prática que ganhou força nos EUA a partir dos anos 1950 e atualmente pode ser encontrada em casas ou clubes espalhados por vários países (Bartell, 1972). É preciso dizer que eu nunca tive a oportunidade de fazer uma visita a algum clube de swing, nem mesmo durante a presente pesquisa para, quem sabe, poder fazer algumas possíveis comparações, afinal seria uma prática de sexo coletivo onde a presença das mulheres é não só permitida como necessária (já que parece ser a sua “troca” que baseia a prática). Estou me valendo aqui, portanto, da leitura de algumas etnografias e outras pesquisas que tiveram o swing como tema (Silvério, 2014; Von der Weid, 2008; Braz e Silveira, 2013;

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Desde o fim da pesquisa, começou a surgir uma nova “cena” na noite carioca que são algumas festas “eróticas” ou “liberais” que não só permitem como incentivam a nudez e a interação sexual entre os presentes. Fruto de uma influência da chamada “cultura queer" e de uma política de diluição dos gêneros, essas festas promovem um grande encontro (a princípio sem a regra exclusiva de um evento masculino) com indistinção de sexo, gênero ou orientação sexual com o intuito de uma “despudorização” ao som de música pop ou eletrônica. Uma das pioneiras nesse sentido foi a festa “PopPorn” em São Paulo. No Rio, desde o ano de 2015, já começaram a aparecer festas semelhantes como a “Flesh Lovers" e a “Hole”. Conferir matéria publicada em http://www.musicnonstop.com.br/a-galera-esta-tirando-a-roupa-e-transando-nas-festas-queer-maisdescoladas-do-brasil/. A descrição de uma dessas festas em sua página no facebook dizia: 69 FRANGO ASSADO CACHORRINHO PAPAI MAMÃE CAVALGANDO BORBOLETA DE LADINHO COURO LÁTEX RENDA PELE PELOS CUECA CALCINHA HARNESS JOCK MAIÔ SALTO MEIA CALÇA FIO DENTAL ANEL DILDO PLUG CHICOTE ALGEMAS BONDAGE FISTING MIJO PORRA BABA SUOR PERFUME PESCOÇO LÍNGUA PÉ BOCA OLHOS CU Sem frescura, sem censura, sem restrições, sem regras, sem padrões, sem caixa, sem normas, sem armário, sem nada, só buraco;

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Blanc, 2013; Nogueira, 2014). E o que esses estudos mostram, porém, é que o que se encontra nessas festas é nada mais do que o velho e conhecido comportamento tradicional: Pode-se pensar que o swing é uma tentativa para controlar um dos principais fantasmas que aparecem nos relacionamentos conjugais: a infidelidade. Praticar o “adultério consentido” seria uma maneira de se proteger contra o adultério nãoconsentido – “se você pode fazer na minha frente, por que fazer escondido?” (Von der Weid, 2008, 123)

O que esses autores dizem é que a prática do swing acabará por reafirmar os mesmos princípios que já regem as relações conjugais heterossexuais, monogâmicas e de “dominação masculina”. Em um ambiente de suposta liberdade sexual, onde homens e mulheres, casados ou com algum tipo de “compromisso”, relacionam-se sexualmente com outros casais, algumas premissas e regras fundamentais buscam estabelecer limites a essa liberdade e adequá-la a padrões aceitáveis para os participantes. Talvez o maior exemplo dessa estratificação fique com o lugar do homoerotismo no swing: Esse “poder tudo” esbarra em uma das principais “proibições” - talvez a única – que, explícita ou implicitamente, encontrei no meio swinger: “não tem homossexualismo (sic) masculino”. Ao tentar compreendê-la, pude perceber como, no Brasil, a construção da masculinidade é fortemente baseada no desempenho de determinado comportamento sexual. Provar que é “homem de verdade”, defender essa postura ativa, inclui se comportar de determinada maneira e não de outra, se vestir de certa forma e não ter sua imagem exposta ou exibida em fotografias para não ser acusado ou confundido com um ‘gay’. Já no caso feminino, ser mulher não depende de se relacionar sexualmente apenas com homens. Entre as praticantes de swing, relacionar-se com mulheres é muito comum e ter tido esta experiência não coloca em dúvida sua feminilidade nem para elas mesmas, nem para os outros. (op.cit., 123)3

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Ao longo da pesquisa, em encontros com amigos e outros pesquisadores, quando a conversa iniciada pela confusão entre swing e orgia se desdobrava, ouvi relatos de frequentadores desses clubes de swing expondo uma visão completamente diferente daquela que é predominante nos trabalhos aos quais tive acesso, principalmente no que diz respeito à agência da mulher nesses eventos. Ela seria muito maior do que esses trabalhos deixariam ver. Da mesma forma, o homoerotismo entre os homens não seria algo tão abominável apesar de, de fato, não ser uma prática constante.

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Portanto, ainda que seja comum as pessoas associarem orgia e swing, tratam-se de práticas diferentes. Da mesma forma, como disse antes, não foi possível encontrar festas de orgia voltadas apenas para mulheres - a única de que tive notícia foi uma ideia que não foi adiante por falta de público4. Sobre o fato de ser uma festa exclusiva para homens, é preciso se demorar um pouco mais. É possível afirmar que no Brasil as investigações sobre interações de sexo ocasional entre homens em lugares públicos e semi-públicos têm uma certa tradição nas ciências sociais. Já desde os anos 1980 aparecem pesquisas importantes, como O negócio do Michê, de Nestor Perlongher (1989), sobre prostituição masculina em São Paulo, e No escurinho do cinema, de Veriano Terto Jr. (1989), sobre a interação sexual entre frequentadores, em sua maioria homens, de um cinema de filmes pornográficos no Rio de Janeiro, dentre outras que serão citadas aqui. E é cada vez mais visível o crescimento desses estudos no Brasil, visto o aparecimento de mesas e grupos de trabalho em nossas reuniões e congressos anuais. A maioria desses trabalhos tem em comum o fato de tratarem de uma prática muito corriqueira nas grandes cidades que é a “pegação” entre homens. Em seu conceito mais usual, “pegação” é um termo empregado para designar a prática sexual anônima, efêmera e fugaz entre homens que exercem práticas homoeróticas, realizada em espaços simbolicamente demarcados nos grandes centros urbanos, como banheiros de shopping centers, parques, praias, saunas, cinemas e clubes de sexo, os quais são conhecidos por quem os frequenta como “locais de pegação”, informalmente apropriados para intercursos sexuais furtivos e sem prévia vinculação afetiva. São espaços onde se territorializam desejos, identidades e toda uma micropolítica dos corpos (sobre a “pegação” cf. pesquisa de Neto, 2008). Chama a atenção também o fato dos trabalhos que se dedicam a esses estudos encontrarem nas relações homoeróticas masculinas seu objeto privilegiado. Há como que um consenso de que em um “universo homossexual”, relações sexuais podem ser 4

Lembremos que estou falando aqui de espaços comerciais que são voltados para determinados eventos ou determinados públicos específicos. Minhas observação e análise estão excluindo eventos ou orgias que podem acontecer em ambientes domésticos, entre grupos de amigos e que podem ter configurações diferentes das que tive contato durante a pesquisa.

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estabelecidas sem a necessidade sequer de uma conversa. Embora muitos homens que se identificam como homossexuais tenham pouco ou nenhum interesse em sexo fora de um relacionamento íntimo ou estável, certamente outros indivíduos engajam-se em uma prática que podemos classificar de sexo casual e anônimo. Os trabalhos analisados mostram que a razão seria dupla: eles teriam tanto o desejo como a oportunidade para fazer isso. Ter o desejo aqui, creio, é muito mais entendido sobre o fato de estarmos falando sobre “homens” do que sobre uma determinada orientação sexual específica, “homossexual”. Entende-se que as pessoas variam no grau em que se gosta de sexo, na ausência de compromisso ou proximidade emocional. Porém, em nosso imaginário, é predominante a ideia de que os homens estão mais interessados do que as mulheres em ter sexo com alguém com quem não se sentem comprometidos. Sugerindo também que homens heterossexuais e homossexuais não seriam diferentes a este respeito. Estaríamos falando aqui de algo que seria da ordem de uma masculinidade compartilhada, ultrapassando as orientações sexuais. A prova disso seria a ausência desses espaços para uma “pegação” entre mulheres. Já em minha pesquisa para o mestrado sobre prostituição masculina em saunas (Barreto, 2012), sempre me deparava com a pergunta: “mas não existem saunas para mulheres?”; e, de fato, foi curioso não ter conseguido encontrá-las (a não ser aquelas onde o corpo que se prostituía era o delas). Um dos autores da coletânea Public sex, gay space (Leap, 1999), dá uma explicação para isso: diz que as mulheres não migram para locais públicos para ter sexo anônimo pelos seguintes fatores: pela dominação masculina nesses assuntos, pelo medo do estupro, e pelo fato da "sexualização da aventura” talvez não ser atrativo a elas; explicações que, a meu ver, não dão conta de toda a complexidade da questão. O outro motivo dado por esses autores para a “pegação” ser uma prática sexual quase exclusiva das relações entre homens seria a oportunidade. Quando o sexo envolve apenas os homens, a possibilidade de encontrar um parceiro para encontros casuais ou anônimos seria maior. Banheiros públicos, vestiários de academia, saunas, esportes coletivos praticados em clubes, quadras públicas, dentre muitos outros espaços: são diferenciadas as oportunidades em que os homens poderiam se expor a uma situação que possa ou não se tornar homoerótica. As razões disso ainda são um pouco nebulosas e normalmente se é usada uma justificativa tradicional: se lembrarmos da interpretação 24

referente aos domínios do espaço na sociedade brasileira, a casa e a rua, sendo o primeiro tradicionalmente relacionado ao feminino e o segundo ao masculino (DaMatta, 1997), ou seja, a acessibilidade maior dos homens ao espaço público, a rua, teria facilitado os encontros eróticos entre eles. O que parece subjazer a essa interpretação é, na verdade, um processo maior. Não só de uma invisibilidade do erotismo das mulheres, mas até mesmo um apagamento da sexualidade feminina, como seres considerados sem desejo (Trevisan, 2000; Figari, 2007). Além disso, os poucos lugares de interação erótica para mulheres que podem ser encontrados na cidade pressupõem a heterossexualidade como forma de relação, como as saunas de prostituição feminina e as casas de massagem onde as mulheres aparecem no mercado da prostituição, como os próprios clubes de swing ou os “clubes das mulheres” com apresentações de strippers e gogoboys5. As interações eróticas entre mulheres é algo que vem chamando a atenção aos poucos no Brasil em algumas etnografias interessantes como sobre a masculinidade lésbica em bares (Lacombe, 2005) e na tese de Facchini em que a autora descreve diferentes cenários de lazer (mesmo sexuais) lésbico levando em consideração a interseccionalidade como geração, raça, classe, gênero etc. (Facchini, 2008). Algumas pesquisas mais recentes vêm chamando a atenção para o surgimento de alguns clubes BDSM6, principalmente em São Paulo, onde poderíamos ver toda uma ritualização erótica em relações estabelecidas entre elas (Facchini, 2008; Gregori, 2010)7.

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Agradeço ao colega Lucas Freire por ter me chamado a atenção para este ponto. BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) é a sigla que agrupa um conjunto de práticas eróticas que ritualizam jogos de poder. 7 Sem querer me estender muito, já que esse tema não é o foco deste trabalho, é interessante perceber como a prática do BDSM entre mulheres não é algo novo e já foi o campo de análise teórica preferido das chamadas feministas lésbicas radicais ou feministas “pró-sex”. Tratam-se de autoras que apareceram nos EUA a partir da década de 1980 dentro de uma disputa com outras pensadoras mais conservadoras sobre o papel e a agência feminina nas relações eróticas. Dessa época ficaram famosas as críticas à pornografia como forma de objetificação da mulher e como essas feministas pró-sex buscaram mostrar a agência feminina em situações que antes eram consideradas de opressão e dominação, como no próprio BDSM. Entre elas estão nomes como Gayle Rubin, Pat Califia, Monique Wittig e De Lauretis, que muito vão influenciar a teoria queer. 6

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Um (não) quadro teórico É minha intenção agora apresentar, num debate mais denso, algumas questões teóricas na relação entre conceitos como subjetividade, sexo e singularidade. O que apresento aqui é um conjunto de questões que me interessam particularmente e que acredito serem contribuições para o debate teórico. Não é um “marco teórico”, no sentido de que não se propõe a ser um enquadramento das reflexões que irão estar presentes no restante do trabalho, nem um guia delas. Acredito que o campo das festas de orgia pode ajudar a pensar não só nessas problemáticas colocadas pelos autores que exponho a seguir, como também me permitiu perceber o que os próprios participantes dessas festas criam ali, na efervescência de suas interações. Apresento essa discussão, portanto, não para limitar ou recortar um “campo teórico” utilizado, mas sim alimentá-lo, estimulá-lo e mesmo desestabilizá-lo com a análise das práticas observadas durante o trabalho de campo. Subjetividade e políticas da singularidade

A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela subjetividade é apresentada então como direito à diferença e direito à variação, à metamorfose. (Deleuze, 1991, 113).

Essa tese fala de determinados processos de produção de subjetividade. Meu ponto inicial começa pela própria dessencialização da ideia de subjetividade. Pois, como afirma Paul Veyne sobre o papel da obra de Foucault, quem somos não é uma pergunta que se restrinja a um âmbito pessoal ou psicológico, mas a proposta de um deslocamento para a questão de como “viemos a ser com relação às práticas que nos constituem/subjetivizam, as quais organizam nossa relação conosco e com os outros” (Veyne, 1995, 175). A questão “quem somos?”, para Foucault, é ao mesmo tempo a oportunidade de perguntar como poderíamos ser de outra forma, como poderíamos estabelecer outra forma de convivência,

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como pensar de outro modo: “(...) saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente” (Foucault, 2009b, 14). A questão da subjetividade no pensamento de Foucault se faz “nos termos de sua produção, do governo de si e governo dos outros”, e “também da procura de estilos de existência tão diferentes quanto possíveis uns dos outros”(Paiva, 2000). Ou seja, “uma pesquisa crítica acerca da compreensão atual de si” (Rabinow, 1995, 283). A singularidade aqui é vista como um projeto político de resistência, de ruptura com as modelizações da subjetividade capitalística (Guattari e Rolnik, 2005). Guardemos esse ponto, porque voltarei a ele adiante. Guattari propõe que as “revoluções moleculares” perfaçam um movimento: da alienação e opressão pelos modelos da subjetividade à ousadia de inventar “subjetividades delirantes” (op. cit., 45) pelo processo de criação de singularidades. E é precisamente por causa desses movimentos de ruptura, de estratégias de se lidar com esses modelos, dessas linhas de fuga, que há espaço para o exercício de singularização. O pensamento de Deleuze sustenta que as linhas de fuga, no caso identificadas como campo produtivo de desejo, são os dados primeiros do campo social: (...) uma sociedade, um campo social não se contradiz, mas ele foge, e isto é primeiro. Ele foge de antemão por todos os lados; as linhas de fuga é que são primeiras (mesmo que “primeiro” não seja cronológico). Longe de estar fora do campo social ou dele sair, as linhas de fuga constituem seu rizoma ou cartografia. As linhas de fuga são quase a mesma coisa que os movimentos de desterritorialização: elas não implicam qualquer retorno à natureza; elas são as pontas de desterritorialização nos agenciamentos de desejo. (...) Encontro também aí o primado do desejo, pois o desejo está precisamente nas linhas de fuga, na conjugação e dissociação de fluxo. O desejo se confunde com elas. (Deleuze, 1996, 19-20)

Também para Rolnik, não há outra alternativa senão abandonar a reivindicação identitária em favor dos processos de singularização. Tais processos de singularização implicam abrir mão do vício em identidades, dos “kits de subjetividades”, de perfis-padrão que estão tão presentes em nosso cotidiano e que apenas se aprimoram com a globalização e as novas tecnologias (Rolnik, 1997, 20). Para Rolnik, cabe não tentar domesticar as forças

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de instabilização. Ao “biopoder” (poder(es) sobre a vida) responderia uma “biopotência” (poder da vida, da vitalidade social), esta última é onde residiria uma “força-invenção” que é continuamente vampirizada pelos poderes de controle. Uma primeira questão necessária aqui é cartografar essas forças em jogo. Compartilho com Foucault a ideia de que é na sexualidade, nos “usos do prazer”, que se encontra um território privilegiado onde poderemos ver esse exercício de uma singularização. Que fique claro que venho entendendo “singularidade” aqui não como uma singularidade individual, mas singularidade como um modo de ser, de existência e de estilo de vida (por isso partilhável na forma de relações sociais, discursivas, físicas etc.). E também, não estranhamente, vai ser na relação entre subjetividade, sexo e verdade que Foucault vai acabar por centrar a sua atenção. “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”, é o que pergunta Foucault em um artigo publicado em 1980. Em suas últimas obras, o autor se dedicou a mostrar como no Ocidente a “scientia sexualis”, ao contrário de uma “ars erotica” das sociedades orientais, prevaleceu enquanto pensamento e discurso (ou dispositivo) predominante. É devido a essa maneira, de uma “ciência sexual”, que deu forma a nosso dispositivo da sexualidade, que vem sendo feita a relação entre sexo e verdade. Tal dispositivo vem dando sentido a uma ideia de que é no sexo que se deveriam procurar as verdades mais secretas e profundas do indivíduo, que é nele que se pode melhor descobrir quem ele é, e aquilo que o determina, “e se, durante séculos, se acreditou que era preciso esconder as coisas do sexo porque eram vergonhosas, sabe-se agora que é o próprio sexo que esconde as partes mais secretas do indivíduo: a estrutura de suas fantasias, as raízes do seu eu, as formas de sua relação com a realidade. No fundo do sexo, a verdade” (Foucault, 2012, 84). É dessa maneira, inclusive, que a psicanálise irá se consolidar como um saber, justamente nessa relação entre sexo, verdade e subjetividade. Daí, para Foucault, o interesse nas relações complexas, obscuras e essenciais entre sexo e verdade e de como essa relação está longe de ser dissipada. E isso ficaria claro na análise das práticas que transgrediriam essas “leis”, e de como continuamos a pensar que algumas delas insultam “a verdade” e dá exemplos dessas transgressões como o homem “passivo”, a mulher “viril”, pessoas do mesmo sexo que se amam etc. Esses e outros exemplos demonstram que estaríamos sempre prontos a acreditar que há nelas algo como 28

um “erro”. “Um ‘erro’ entendido no sentido mais tradicionalmente filosófico: uma maneira de fazer que não é adequada à realidade (...) Despertai, jovens, de vossos gozos ilusórios; despojai-vos de vossos disfarces e lembrai-vos de que tendes apenas um verdadeiro sexo!” (op. cit, 84). O silêncio ou a “não-enunciação” acaba por ser o elemento integrante essencial a respeito dessas práticas “erradas”, “não adequadas”, melhor que se deixe sob o benefício da sombra aquilo que se tornaria perigoso à luz do dia, “doces prazeres que a não identidade sexual descobre e provoca” (op.cit., 87, grifo meu). Não à toa, por exemplo, a maioria das interações nas festas de orgia acompanhadas serem em um ambiente escuro ou de penumbra, onde também o silêncio, ou a ausência da fala, predominam. As conversas, os discursos sobre a vida cotidiana “lá de fora”, as explicações e interpretações para o antropólogo pesquisador são evitadas ali. Nome e sobrenome não interessam nada. Dizer o nome estraga o jogo. Falar qualquer coisa fora dos comandos convencionais aniquila o jogo. “Erótica do anonimato”. A comunicação ocorre pelos outros sentidos e pelo prazer/desprazer que eles causam. A diferenciação apresentada por Foucault entre “scientia sexualis” e “ars erotica” explicita isso. O que o autor faz é uma oposição entre as sociedades que tentam sustentar um discurso científico sobre a sexualidade, como fazemos na nossa, e sociedades em que o discurso sobre a sexualidade, ainda que igualmente abundante, não visa a instituir uma ciência. Busca, pelo contrário, definir uma arte, uma arte que visaria produzir, através da relação sexual ou com os órgãos sexuais, um tipo de prazer que se procura tornar o mais intenso, o mais forte ou o mais duradouro possível. No Ocidente não temos a arte erótica. Em outras palavras, não se ensina a fazer amor, a obter o prazer, a dar prazer aos outros, a maximizar, a intensificar seu próprio prazer pelo prazer dos outros. Nada disso é ensinado no ocidente, e não há discurso ou iniciação outra a essa arte erótica senão a clandestina e puramente interindividual. Em compensação, temos ou tentamos ter uma ciência sexual – scientia sexualis – sobre a sexualidade das pessoas, e não sobre o prazer delas, alguma coisa que não seria como fazer para que o prazer seja o mais intenso

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possível, mas sim qual é a verdade dessa coisa que, no indivíduo, é seu sexo ou sua sexualidade: verdade do sexo, e não intensidade do prazer. (Foucault, 2012, 60)8

Caberia a nós, portanto, no que concerne à nossa experiência de sexualidade, desprivilegiar a “teoria científica geral do sexo”, pela demonstração de que esta noção do sexo é invenção da verdade do poder e que se encontra na dependência histórica da sexualidade, maquinaria que constituiu uma própria experiência subjetiva (Paiva, 2000). Foucault aponta em sua História da Sexualidade que será preciso inventar uma “outra economia dos corpos e dos prazeres” (2009a, 147), promover uma insurreição contra a monarquia do sexo: partir dessa experiência majoritária de sexualidade e “atravessá-la para ir em direção a outras afirmações” (1990, 234): “(...) trata-se, não digo de ‘redescobrir’, mas de fabricar outras formas de prazer, de relações, de coexistência, de laços, de amores, de intensidades” (op. cit, 235). Vai ser dessas colocações de Foucault que muito vai se alimentar a teoria queer posteriormente. O próprio termo inglês “queer” - que significa algo como “estranho”, “esquisito” numa tradução direta - como forma de criar/fazer política. Uma política sem sujeito fixo ou definido e contra o Estado. O que esse pensamento põe em pauta é compreender as vidas e os modos de existência que elaboramos em nossos cotidianos não em termos de identidade, mas de identificações, de pertencimento, ou melhor ainda, de estratégias9. Voltemos ao ponto da singularidade como projeto político de resistência. Ou como também afirma Deleuze: “Resistir é criar”. Porém, é preciso não colar ou associar a ideia de 8

Ainda que o próprio Foucault tenha, anos depois, relativizado essa divisão justificando que era uma generalização necessária para a argumentação que ele propunha (Foucault, 2013), acredito que ela ainda possua rendimentos de análise e permanece fazendo sentido no tema que estamos tratando. 9 Talvez seja melhor “cercar” logo aquilo que estou chamando de teoria queer. Sáez a define como um conjunto de trabalhos que começam a aparecer nos anos 1990 influenciados pelas novas correntes filosóficas pós-estruturalistas (“que questionam as identidades essencialistas da subjetividade e destacam os efeitos produtivos do discurso”) e os desenvolvimentos críticos do feminismo sobre as noções de sexo e gênero (2004, 126). Alguns pontos centrais da teoria queer são resumidos pelo autor em: “1- Crítica dos dispositivos heterocentrados e do binômio hetero/homo; 2 - O sexo como produto do dispositivo de gênero; 3 - O gênero como tecnologia. Crítica da diferença sexual; 4 - Resistência à normalização. Importância de articular entre si os discursos de raça, sexo, cultura, identidade sexual e posição de classe; 5 - Produção contínua de ‘identidades’ diferentes. Nomadismo. Anti-assimilacionismo; 6 - Localizar os dispositivos de normalização de sexo e gênero que atravessam o tecido social e cultural; 7 - Performatividade de gênero e de sexo. Crítica da ideia de “original”. Suplemento e travestismo; 8 - Análise pós-feminista (questionamento da identidade da mulher ou da lésbica); 9 - O sexo como prótese. Práticas contrasexuais” (op.cit., 126150). Sobre a grande influência do pensamento de Michel Foucault e Judith Butler na teoria queer conferir, respectivamente, Spargo (2009) e Salih (2012). Para uma leitura crítica às contribuições trazidas pela teoria queer ver Coll-Planas (2012).

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resistência aqui com a de liberdade, transgressão ou resistência libertária, já que uma resposta ou reação reativa a algo nem sempre necessariamente se está contra e posta nesses termos (Lima, 2015, 24). Como as descrições etnográficas dessas festas deixarão mais claro, as coisas se dão de forma mais complexa. O movimento de “resistência criativa”, como coloca Deleuze, está na própria agência estratégica dos indivíduos em suas negociações cotidianas. O que interessa aqui é a produção de um novo jogo, de um novo campo de forças (mesmo que ele se restrinja às horas passadas numa festa de orgia); é desterritorializar no que se está e criar outro, um outro novo, uma reterritorialização do jogo de forças em um novo esquema que é preciso cartografar. “É ingressar em uma aventura sem modelo, perigosa, com todos os riscos de desmoronamento possíveis” (idem, 57). Indo na contra-mão de uma “investigação científica ou administrativa que determina quem somos”, a proposta de Foucault é, dessa forma, a de buscar uma ética (ou uma micropolítica), “enquanto relação a si, relação à produção de singularidades, muito menos afirmadora de princípios, que uma ética do desfazer dos modos estabelecidos de nossas subjetividades, uma ética do desprender-se, do despojar-se de si” (Paiva, 2000, 217). Uma ética, pois, “sem ideais”: “A ética foucaultiana não vislumbra um ideal, a partir do qual se possa pensar um mundo melhor; ele retoma a ideia de uma ética sem ideal, onde as pessoas lutam em situações concretas, sem que suas lutas sejam idealistas” (ibidem)10. A ética de que se trata aqui é a de “buscar novas formas de comunidade, coexistência e prazer, de reabrir virtualidades afetivas e relacionais”. Ainda que essas relações estabeleçam novas configurações de poder. O pensamento de Foucault parece se esforçar para esse “direito ao diverso” passando por uma outra política de subjetividade orientada pelos riscos da singularização, “por uma vida não-fascista” (op. cit., 217). É entender que a sexualidade aqui é vivida e mesmo “teorizada” pelos participantes das festas não como uma questão de verdade e identidade, mas sim em outros termos como, por exemplo, uma reapropriação da antiga teoria de humores, apetites, pulsões, instinto, 10

Um exemplo sobre a falsa oposição entre luta idealista ou “política” e “festa” é aquela analisada na etnografia de França sobre a Parada do Orgulho LGBT (2006). A autora mostra como as críticas de que um movimento que se pretendia político se diluiu em um “carnaval” seriam infundadas, já que o que se coloca em pauta ali, principalmente, é a visibilização de modos de existência e isso já é uma forma estratégica de se fazer política.

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química ou apenas a orgia como questão de esporte; entender e deixar passar, afinal, qual é a “teoria nativa”. Não é ignorar, por exemplo, numa das falas ouvidas de que “é no sexo que se conhece alguém, na intimidade do penetrar e no se deixar penetrar”. Ao invés de tratar isso como um senso comum sobre o sexo e como dentro de um paradigma moral onde “sexo é verdade” ou ainda como uma ideia de interioridade e intimidade, ver que as pessoas estão me chamando a atenção para suas construções próprias de sexualidade, que fogem e que reterritorializam os discursos de controle em outros termos. Portanto, as questões que vêm me norteando do que foi apontado até aqui são: Quais as indicações para uma “política de singularidade” (no sentido indicado por Deleuze e Guattari) que nos permita aquele exercício apontado por Foucault de nos deslocarmos de nossas experiências e de nossos vínculos? Como criar espaço, no pensamento e nas experiências, para o exercício de singularidades, para a experiência do diverso? Em que medida esta produção de subjetividades modelizadas pode ser alterada por processos singularizantes? E o que acontece quando nem sempre se deseja essa “revolução do singular” enquanto resistência e reação, mas sim a reafirmação da norma, do poder e dos modelos de dominação? O que acontece quando é justamente essa subjetividade modelizada (ainda que colocada em outros termos) que atrai, que excita, que dá tesão? Como se dá a tensão entre esses movimentos? Acredito que as festas de orgia sejam um bom campo para pensar essas questões.

As questões e “os princípios” A pergunta “mas qual é a sua questão nas festas de orgia?” foi uma das que me perseguiram durante a pesquisa. Era acionada toda vez que apresentava meu local de trabalho de campo e era principalmente feita pelos pares acadêmicos. “Ter uma questão” para se começar a etnografia ou como guia para se ter durante a pesquisa é sempre ensinado como prerrogativa metodológica, como algo necessário em nossos trabalhos. Do contrário, corre-se o risco de um trabalho de pesquisa vazio, desacreditado, em que o não comprometimento com as regras do método científico questiona a própria integridade não só da pesquisa como do pesquisador. Não é necessário dizer que essa “desconfiança” ou

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mesmo descrédito alcança níveis maiores quando estamos falando de uma etnografia de práticas sexuais. Digo que isso foi um problema para mim, porque durante boa parte do trabalho de campo não tinha como dar uma resposta exata a essa questão por não ter previamente qualquer projeto de pesquisa em mente e não saber ao certo em que resultaria esta experiência. Quando decidi me aprofundar no estudo das práticas sexuais, procurei visitar e interagir em vários espaços e eventos onde diversas formas dessas práticas podem ser encontradas. Há um “circuito do sexo” que perpassa a cidade, nem sempre estabelecido por uma rede de mercado e comercialização, e que se diversifica a depender dos estilos e daquilo que se deseja: sexo anônimo em lugares públicos, cinemas pornôs, cabines eróticas, saunas (de prostituição ou de pegação), estacionamentos, parques, banheiros, clubes, praias, ruas, enfim a lista é grande. Como até então só conhecia os espaços voltados para a prostituição masculina, quis dar preferência às práticas sexuais que não se estabelecessem a partir de uma troca monetária. No campo anterior (da prostituição) realizado durante o mestrado, percebia-se a estrutura de um mercado, de um negócio, que condicionava os encontros e as interações. Havia uma série de desejos que correspondia a uma série monetária (não necessariamente dinheiro). Aqui não há esse elemento “sustentador” estruturante. Por mais que se objetifiquem os corpos (ou partes deles), não há necessária correlação com troca monetária, nem cabe nesses espaços essa prática. As trocas aqui se dão em outros termos. Há o “ter disposição” e o “se jogar” por sua própria vontade. As festas de orgia me chamaram a atenção por diversos motivos. Logo de início fiquei muito surpreso pela quantidade de homens que se reuniam nesses espaços para se engajar em uma forma de sexo totalmente avessa aos modelos tidos como padrões e onde o que importava era aquele encontro e a mistura de corpos anônimos e desconhecidos, o puro prazer que o corpo do(s) Outro(s) pode proporcionar ou não. Onde a palavra falada quase desaparece, a linguagem toma outros meios como os toques e os gestos, onde a visão pode ser desprivilegiada pelo tato, e o cheiro e a audição tornam-se mais sensíveis e são estimulados pela multidão de corpos misturados no sexo coletivo. Foi grande a surpresa e também a sedução (por que não?) da riqueza do material de campo que tinha para explorar. Entretanto, comecei a frequentar as festas de orgia sem ainda ter muita clareza sobre como 33

dali conseguiria “tirar” uma tese antropológica. O que quero dizer é que decidi ir a campo sem questões. Ir sem questões não quer dizer ir a campo “sem conhecimento” ou não ter uma leitura teórica sobre as práticas, mas sim estar aberto ao encontro do pensamento, e nesse caso do corpo mesmo do Outro. Este foi o “exercício etnográfico” que me propus aqui. Através de um intensivo trabalho de campo entender quais são as questões que importam nesse contexto e as que, por consequência, geram mais conflitos. O esforço inicial não era em pensar sobre o sexo e as práticas que aconteciam ali imediatamente, mas sim pensar através delas (Holbraad, 2007). A questão era então como e o que pensar através do sexo orgiástico que acontecia nesses espaços? Procurar saber afinal, o que é importante para esses homens que se reúnem nesses eventos e como se dão esses encontros e, aí sim, do que deles podemos pensar sobre as práticas sexuais e outros elementos. O esforço não é novo, já Evans-Pritchard dizia que ao começar seu estudo sobre o povo Zande se deparou com a necessidade de falar sobre coisas que não tinha pensado ou escolhido (ou nas quais nem mesmo acreditava), como a bruxaria, por exemplo, já que eram essas as questões colocadas como problemas pelos Azande (2005). Nem sempre essas recomendações básicas são levadas a sério, em preferência por uma abordagem de explicação da sociedade e dos fatos sociais como uma forma de engenharia, um domínio particular e primeiro da realidade. (...)a ‘sociedade’, longe de ser o contexto ‘no qual’ tudo se enquadra, deveria antes ser concebida como um entre muitos conectores que circulam pelo interior de estreitas condutas [tiny conduits]. Esta segunda escola de pensamento poderia adoptar como slogan, com alguma provocação, a famosa exclamação da Senhora Thatcher (mas por razões diferentes!): “A sociedade não existe”. (Latour, 2006, 5)

A proposição central de Latour é o abandono da sociologia como ciência da sociedade e a adoção de uma ‘ciência das associações’. Argumenta o autor que a tarefa da sociologia é traçar as “associações”, “reassociações” e “reconfigurações’” entre “agentes humanos e não humanos” que compõem o mundo. Autores mais contemporâneos vêm retomando a importância de pensar o social não como um enquadramento externo, mas sim colocando o nosso olhar naquilo que é “de fato” do social, ou seja, no que se passa nas 34

relações entre os seres (Latour, 2006; Callon e Law, 1997; Strathern et.al, 1996; Ingold, 2011). A tarefa aí, portanto, é seguir os agentes, mapear as relações, perceber as controvérsias e analisar o campo a partir daquilo que de fato importa naquele contexto. “Não é metodologia, mas sim guia de viagem”(Latour 2006,16) A tarefa já não é a de impor uma ordem, de limitar o leque de entidades aceitáveis, de ensinar aos actores o que eles são, ou de acrescentar alguma reflexividade à sua prática inconsciente. Para retomar um slogan da Teoria do actor-rede, é preciso ‘seguir os próprios actores’, quer dizer, tentar lidar com as suas inovações muitas vezes indomáveis, de modo a aprender com eles o que a existência colectiva se tornou nas suas mãos, que métodos é que elaboraram para a ajustar, e quais são os relatos que melhor definem as novas associações que foram obrigados a estabelecer. (Latour 2006, 11)

Essa foi a maneira que adotei para encontrar as tais “questões”. Desde o início do trabalho de campo procurei perceber em torno de quais elementos se centralizava aquilo que os participantes da festa tinham como importante para a prática do sexo coletivo nesses espaços. Foi assim que cheguei no que estou chamando de “princípios” dessas festas. Os princípios funcionam como pontos nodais aqui, eles dão diretrizes não só de performance, mas da própria ética local, balizando as relações entre os participantes. São eles que potencializam as interações sexuais, que são fontes de conflitos, que dão conteúdo e expressão a essas festas e que, ao mesmo tempo, podem se apresentar tanto como norma quanto como possibilidade de linhas de fuga a elas. São três: o princípio da masculinidade, o da discrição e o da putaria. Nesse contexto, portanto, são produzidas algumas formas de subjetividade específicas: o macho, o discreto e o puto. Lembrando que elas não são tratadas como algo que se encontraria em separado, mas sim são buscadas em conjunto, como fluxos que funcionam agenciados para uma mesma figura de indivíduo desejado. Portanto, nas festas de orgia, o macho, o discreto e o puto não são só subjetividades, são também dentre outras coisas, roteiros de desejo, formas de relação, maneiras de se portar, éticas locais etc. Percebi que era dos princípios que a minha descrição tinha que partir para o entendimento desses eventos, já que esses eram os conceitos “nativos” elaborados ali. É preciso ter em mente o aviso de Viveiros de Castro: 35

Agora não se trataria mais, ou apenas, da descrição antropológica do kula (enquanto forma melanésia de socialidade), mas do kula enquanto descrição melanésia (da “socialidade” como forma antropológica), (...) constituindo ela própria um dispositivo de compreensão. (...) É preciso transformar as concepções em conceitos, extraí-los delas e devolvê-los a elas. Os conceitos nativos são os conceitos do antropólogo. (Viveiros de Castro, 2015, 225)

Algumas observações sobre o método O desenvolvimento desse trabalho deu-se do acompanhamento durante dois anos e meio (do início de 2013 à metade de 2015) de quatro dessas festas de orgia que acontecem periodicamente no Rio. Elas acontecem em torno de uma ou duas vezes ao mês em diferentes locais da cidade: Praça XV, Praça Tiradentes, Lapa, Botafogo, Campo Grande, Barra, seja em clubes, saunas, apartamentos comerciais, ou mesmo em um sítio ou em um barco (a chamada “Orgia em Alto Mar”). Dessas quatro festas, duas fazem o que eles chamam de processo seletivo, isto é, há uma escolha ou avaliação do público que pode entrar no evento (a festa “Clube Meetings” e a festa “Black Hall”). E as outras duas são abertas a quem quiser ir, desde que corresponda à exigência de ser homem e a um perfil que corresponda aos três princípios, é claro (a “Festa do Apê” e a “Festa do Vale Tudo”). O número de participantes varia muito, mas fica em torno de 150 a 200 homens naqueles eventos que não exigem seleção e no máximo 50 naqueles onde há o processo seletivo. A flutuação e o fluxo de pessoas nesses eventos são muito grandes. Isso fez com que essa pesquisa não contasse com “interlocutores privilegiados”, muito menos o estudo de um grupo fixo de participantes dessas festas. Ainda que, apesar destas especificidades, tenha sido possível observar e acompanhar durante a pesquisa de campo alguns atores mais “constantes” em suas idas nas festas, seja na mesma ou nas outras. Foi possível, em resumo, acompanhá-los em seu nomadismo, de certa forma por um determinado circuito de eventos voltados para esse tipo de orgia. Foram muitos os homens que conheci, que conversei, que vi nas práticas sexuais as mais variadas e que nem sempre sabiam que eu era um pesquisador. E mesmo que soubessem não havia diferença, pois eu era apenas mais um corpo a compor aquele evento de orgia. A maior parte do material de análise utilizado neste

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trabalho está pautada, dessa forma, tanto nas minhas observações diretas e “corporais” das interações nos espaços das festas, quanto das informações advindas das conversas informais que tive durante minhas idas a esses espaços. Tive que aprender a arte de fazer pesquisa sem perguntar. Num campo como esse não existe pergunta aberta nem fechada, os dados vêm da convivência, do diálogo, da troca, até do estabelecimento de relações ainda que só no nível da pele. Uma outra forma que também utilizei foi participar dos grupos de conversa no aplicativo de mensagens WhatsApp. Cada uma dessas festas criava grupos para seus participantes e quem quisesse ser adicionado era só dar o número de celular que era incluído na conversa. Assim que fosse adicionado você precisava se apresentar aos restantes mandando fotos de rosto, de corpo e pelado. Daí poderia participar das conversas que versavam, em sua maioria, claro, sobre os desejos e as atividades sexuais dos participantes, ilustradas com uma grande quantidade de fotos e vídeos. Porém, as conversas no grupo se tornaram bastante úteis justamente por explicitar em palavras os conflitos que já tinha percebido no decorrer das festas e como também era um canal de “reclamações e sugestões” direto com os organizadores. Claro que pelo tempo de duração do trabalho de campo, uma maior intimidade com os frequentadores habituais me permitiu uma abertura cada vez maior, a ponto de obter a confiança de alguns para que encontros pudessem ser marcados depois, fora do espaço da festa, onde conversas um pouco mais formais, com apenas alguns pontos pré-definidos para perguntas, foram feitas. Outra oportunidade de conversa era do próprio acaso de encontrálos em outros espaços de lazer que costumo frequentar na cidade, como livrarias, cinemas, shoppings e boates. Todos osorganizadores dessas quatro festas também foram procurados inicialmente para autorização da pesquisa e convidados para uma entrevista. Todos aceitaram de bom grado ambas e sempre se mostraram abertos e simpáticos a minha presença, além de pacientes com as minhas constantes perguntas. Apesar de não terem um conhecimento sobre o que era uma pesquisa etnográfica, entendiam que aquilo era algo que se diferenciava de uma matéria jornalística ou de alguém “escrevendo um livro sobre a festa”. Assim como aconteceu com Pocahy em sua tese sobre a interação erótica de corpos abjetos em saunas (2011, 39), o processo de escrita dos diários de campo foi responsável por integrar grande parte desse trabalho, principalmente em campos onde a 37

experimentação física é tão presente. Eles tornaram-se aqui “instrumento” fundamental em todos os momentos da pesquisa. E, de fato, foi no exercício mental e físico de relembrar, de colocar em frases e no papel o relato das experiências vividas que essa tese foi se construindo. Nem sempre o fazia no mesmo dia: precisava de um tempo para que absorvesse as sensações e percepções e pudesse transformá-las em palavras. Procurei também uma forma de escrita onde “o importante é a despreocupação com as fronteiras entre o discurso citado e o narrativo – mesmo que elas em alguma medida e inevitavelmente permaneçam, o que inclusive pode ser desejável e necessário em alguns momentos” (Caiafa, 2007, 165). Ao final dos dois anos e meio de pesquisa, eu tinha preenchido completamente quatro cadernos com as descrições mais detalhadas possíveis de minhas idas a campo e muitas reflexões a partir delas. Ao final do terceiro ano do doutorado, com o trabalho de campo já concluído e começando o período de escrita da tese, apareceu a oportunidade de uma bolsa de estágio na cidade de Lisboa, em Portugal. Os dez meses passados lá me deram a oportunidade de conhecer outros lugares onde também acontece a prática do sexo orgiástico, não só em Lisboa, mas também em outras cidades da Europa11. Aviso que as análises desta tese não virão da comparação entre esses diferentes contextos nacionais, apesar desse “trabalho de campo” aparecer eventualmente como ilustração em notas de rodapé, fruto de uma percepção superficial de minhas visitas em outras cidades da Europa. O tempo no exterior foi mais dedicado a leitura, contato com uma literatura internacional, organização dos dados, discussão dos mesmos e troca de conhecimentos com os alunos e professores do ISCTE-IUL e do CRIA em Lisboa. Sobre a questão dos nomes na escrita do texto. No decorrer da tese não procurei trocar os nomes das festas, dos organizadores (que já são pseudônimos ou “nomes artísticos” escolhidos pelos próprios) nem da localidade desses eventos. Por dois motivos: primeiro porque me foi autorizado pelos mesmos para que assim o fizesse e, segundo, 11

Essa casualidade foi interessante porque as festas e orgias “da Europa” eram sempre remetidas como algo emblemático pelos interlocutores aqui do Brasil. Seja pela curiosidade em conhecer, por ouvir histórias e relatos, seja pelo fato de alguns já terem de fato ido em algumas quando viajaram ou mesmo quando moraram lá por um período. Isso sem contar que a figura do estrangeiro, quando presente nas festas do Brasil, sempre acaba por atrair a atenção pelo exotismo da situação. A Europa parece ter essa imagem de um lugar mais permissivo e onde essas festas alcançariam uma intensidade muito maior do que as que acontecem aqui, ainda que os próprios estrangeiros digam o contrário.

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porque uma rápida pesquisa na Internet revelaria esses dados. Foi minha escolha mantê-los, portanto, tendo um cuidado em não identificá-los apenas quando houver comentários que possam gerar conflitos, desconforto ou for alguma fala que prejudique esses espaços. A história sobre o surgimento desses eventos na cidade aparece aqui como contada por eles. Procurei informações em jornais e revistas quando eles mesmos me indicaram matérias que já tinham sido feitas e entrevistas já realizadas por esses meios jornalísticos. A minha preocupação com o anonimato foi em relação aos participantes e em como descrever suas práticas. Não por acaso, os meus relatos e narrativas do campo serem pautadas pela descrição dos corpos dos “nativos”. Ao me deparar com a óbvia dificuldade em se descrever uma orgia, fui percebendo que, ainda que viesse a nomear uma ou outra pessoa (com pseudônimos), os participantes seriam apresentados por suas características corporais. O que estou dizendo é que isso não é apenas um recurso narrativo pelo qual estou me valendo, é pelo corpo (e seus encontros) que essas pessoas se constroem e se dão a conhecer nesse contexto. Uma outra dificuldade foi sobre a escolha do uso da linguagem no texto. Numa orgia não existe pênis, existe o “pau”, a “rola”, da mesma forma não se penetra, você “mete”, “põe”, “fode”, “coloca lá dentro”. Não se trata de uma naturalização, mas de que esses é que são os termos que operam as ações aqui. Aparentemente pode parecer uma escolha que se coloca em termos de estilo, mas que na verdade obscurece uma discussão maior que é a da própria construção do texto num campo que tem como objeto as práticas sexuais. Qual é o limite (ou a fronteira) entre um “conto erótico” e uma “tese científica”? Esse ponto é algo que eu procuro me aprofundar no epílogo desse trabalho. Por ora, minha escolha foi a de procurar um equilíbrio onde esses termos apareçam quando forem necessários para as descrições mais detalhadas. Para meus interlocutores uma tese é mais do que necessária para se contar e saber o que são e o que se passa nessas festas (mesmo que traga explicações para eles mesmos, coisas que dizem não conseguir perceber por estarem “dentro”). Do que costumo ouvir de pessoas que não são próximas do meu tema, os comentários depreciativos insistem em dizer que minha pesquisa é apenas uma desculpa para falar sobre (e fazer) sexo. Um tema “menor”, “fácil”, “moralmente condenável” e em última instância um “desperdício de tempo e recursos públicos”. Acredito que há alguns motivos “estruturais” para isso e são deles que irei me ocupar no epílogo ao final da tese. Um outro desafio me foi colocado ao 39

mesmo tempo pelos próprios interlocutores. Como me disse um dos organizadores: para de fato “explicar” o que acontece nessas festas eu não tinha só o compromisso, mas o desafio de não apenas fazer uma “tese sobre sexo”, mas uma “tese erótica”. Tentei comprar o desafio. Ambos.

Negociações

“Olá Victor, terminaram bem suas peripécias na festa? Conseguiu se libertar ou permaneceu como um legítimo voyeurista?” (Mensagem de texto enviada por Fábio para o pesquisador)

Como aponta Braz (2010), parte da riqueza dos estudos sócio-antropológicos sobre sexualidades está presente justamente nos desafios epistemológicos e metodológicos que implicam para a reflexão e a prática antropológica. Não que o tema da sexualidade seja algo novo na disciplina, mas a questão de saber como os nativos organizam a sua sociedade de acordo com o sexo ou o gênero dos sujeitos e também o que eles pensam sobre as relações sexuais é muito diferente de, de fato, etnografar as práticas sexuais tais como elas são praticadas pelos nativos. Já nas primeiras incursões exploratórias a campo, em que direcionava minha atenção principalmente para a observação mais que para o estabelecimento de conversas com os frequentadores, tive uma primeira ideia do tipo de tensões que podem emergir nesse universo de orgia entre homens. Olhar aqui não é simplesmente “ver”, ato de apreensão cognitiva, tampouco apenas ferramenta de trabalho etnográfico (Cardoso de Oliveira, 2004): sujeito à percepção e à avaliação de outros atores na interação, o movimentopostura dos olhos aqui é um gesto corporal carregado de outras intenções. Vários trabalhos que se debruçaram sobre a socialidade entre homens que têm relações eróticas com outros homens chamaram a atenção para a importância que o olhar tem nessas interações (Oliveira, 2006). Segundo o autor, o olhar é integrado aos códigos da paquera entre homens de pelo menos duas formas. Ele pode comunicar uma “identidade sociossexual” tida como “desviante”, possibilitando reconhecimento mútuo com baixos 40

riscos em situações em que essa identidade não esteja explicitada aos demais atores (Guimarães, 2004, 76; Pollack, 1986, 59-60). Pode ser empregado também para explicitar interesse erótico por um sujeito específico nos contextos em que outros elementos, por exemplo o cenário, conduzam à sugestão de que o outro é um parceiro sexual em potencial, como nos locais de “pegação” (Humphreys, 1970; Neto, 2008). Mesmo tendo-as separadas aqui, para fins de análise, essas práticas do olhar podem ser complementares ou mesmo simultâneas, dependendo do contexto onde elas estão ocorrendo e do desejo dos atores que estão interagindo. Esse uso do olhar torna-se tão característico das relações homoeróticas que alimenta e dá sentido a um senso comum muito difundido de que os homens que transam com outros homens possuiriam um chamado “radar gay” próprio (ou mesmo “gaydar”). Esse atributo os possibilitaria identificar, apenas no olhar, outra pessoa que compartilhasse dos mesmos desejos, independente do contexto em que se encontrassem, já que essa “percepção” e “comunicação” por olhares não seria perceptível àqueles que não possuíssem o tal radar. No contexto de que estou tratando, das festas de orgia entre homens, olhar ou corresponder ao olhar é externar interesse sexual pela pessoa. O problema dos usos do olhar levanta uma questão metodológica relevante: como “observar”, em um espaço onde a observação é gesto sujeito a ser avaliado como coisa distinta? (Lacombe, 2005) Não foram poucas as vezes em que estando presente, observando as interações sexuais que acontecem durante essas festas, fui alvo de aproximações que, após serem recusadas (sempre lenta e educadamente, como manda a etiqueta local), ouvi me dizerem: “achei que você tava querendo... tava me olhando...”, ou então: “vai ficar só olhando? Não vai aproveitar, não?”. Mas para além de uma “simples” confusão entre a observação etnográfica e um olhar de paquera, vou descrever um fato ocorrido em campo que acredito que possa ser demonstrativo dessas “tensões” e das negociações em campo pelas quais passei. Com a intensificação de minhas idas a campo, tentei contatos e aproximações sistemáticas com alguns dos frequentadores dessas festas que se dispunham a dialogarem comigo no âmbito da pesquisa. Um deles foi Pedro, que talvez por já ter um certo conhecimento do que seja uma pesquisa etnográfica, se tornou um dos interlocutores com

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quem mais tive contato e conversei sobre as coisas que apareciam durante o trabalho de campo, por ter uma rede própria de contatos de organizadores e frequentadores desses eventos, e por sua disponibilidade em responder às minhas perguntas. Mesmo assim, Pedro foi um dos mais insistentes em uma aproximação erótica com o pesquisador. Chegou a colocar isso como uma das condições para participação na pesquisa, o que logo foi descartado por mim. Porém, como já percebi em pesquisa anterior (Barreto, 2012), manter um certo jogo de sedução é mais proveitoso etnograficamente do que se colocar numa postura de “austeridade” e “neutralidade científica” . Em uma das festas, por exemplo, ao procurar por Pedro, subi até o terraço da casa no quinto e último andar. O terraço é um espaço semiaberto, com um bar próprio, churrasqueira, televisão, sofás e algumas mesas espalhadas. Mais usado para aqueles que são fumantes, é um dos ambientes menos frequentado durante a festa para as interações eróticas, talvez pela claridade ali, ou pela exposição com o “mundo externo” (fica no mesmo nível dos carros que passavam pela Perimetral, depois demolida durante a pesquisa, e aberto aos prédios executivos do Centro da cidade que existem pelo entorno). Quando cheguei ao terraço, encontrei apenas Pedro já em uma interação com outro rapaz. Estava de pé, com as costas encostadas no muro do terraço, com o rapaz ajoelhado na sua frente, chupando-o. Quando me viu parado observando a interação dos dois, me chamou fazendo um gesto com a mão. Tive um momento de hesitação se deveria me aproximar

ou

não

(de

início

o

fato

de

ter

estabelecido

uma

relação

“antropólogo/interlocutor” com Pedro me deixou desconfortável para vê-lo numa situação erótica), mas me dei conta que, naquele momento, se mostrou importante para Pedro e para o estabelecimento dessa “relação” que eu o assistisse, que estivesse presente naquela performance, que “passasse no teste” que ele estava me colocando. Assim que me aproximei, Pedro sorriu, levantou o rapaz, fazendo-o se inclinar com as mãos no muro, abaixou a sunga dele, molhou os dedos com a saliva e começou a penetrar o rapaz com os dedos. Alternava as ações ainda me olhando, prestando atenção em minhas reações à cena. O rapaz, ainda inclinado, me chamou com a mão para que eu me aproximasse mais, “pode chegar perto, aqui é uma festa de orgia, é pra isso mesmo!”, me disse olhando ao redor. Ainda que só estivéssemos nós três no terraço naquele momento, acredito que ele se referia à exposição ao ar livre, à de qualquer olhar externo. 42

Ao me aproximar mais, Pedro estava colocando a camisinha e passando o lubrificante no rapaz. Ao ser penetrado, quis segurar em minha mão e apertou forte. Enquanto a ação se desenrolava, os dois alternavam olhares entre si e comigo e o rapaz ficava passando a mão pelo meu corpo. Quiseram mudar de posição, Pedro deitou no chão enquanto o rapaz sentava em cima dele. Ao perceber que este queria que eu participasse mais efetivamente da interação, me afastei um pouco. Outra pessoa se aproximou da gente, talvez atraído pelos gemidos, e rapidamente se juntou aos dois, deixando ser chupado pelo rapaz que sentava em Pedro. Como achei que tinha “participado” o suficiente da interação e sentia que tinha passado no “teste” que Pedro me tinha feito, me retirei do terraço quando percebi a aproximação de outras pessoas. Todo esse acontecimento chamou a minha atenção para os tensores de diversas ordens, os quais venho apresentando aqui e que podem atravessar a observação nesse trabalho de campo específico (tensores libidinais, de poder, do fazer antropológico, do olhar...). Aproximo-me sem me misturar, sem dar-me conta de que já estou dentro e de que não há do que escapar. Ali não existe o fora (...) estar lá é fazer parte de uma cena pornográfica, como coadjuvante ou figurante (Pocahy, 2011, 49)

Não pretendo esgotar essa discussão aqui. Aviso que outras questões metodológicas estarão mais diluídas pelos capítulos na medida em que as questões subjetivas do pesquisador podem ser objetificadas para pensar problemáticas do campo. Da mesma forma no final da tese proponho voltar a fazer uma discussão que poderíamos também relacionar às de “metodologia” em alguns pontos, já que estarei pensando sobre as problemáticas da pesquisa sobre o sexo em geral. Mas ainda algumas palavras precisam ser ditas sobre a relação do corpo do pesquisador e a afetação em campo, para fecharmos essa parte introdutória de apresentações, que já está ficando mais longa do que deveria.

Corpo e afetação Se aprendemos que não existe receita exata de como se fazer uma etnografia, se cada tema, contexto ou situação pede ou reinventa métodos próprios, essa não poderia ser 43

diferente. No caso, essa pesquisa exigiu que o principal recurso utilizado fosse o próprio corpo do pesquisador. Eu não pude me invisibilizar nesse trabalho em nenhum momento. Tanto durante a fase de pesquisa em campo quanto na da escrita. Pela maneira como fui construindo o texto e as análises, o pesquisador acabou por se tornar aqui também um personagem12. Um personagem que não se pretende protagonista, que fique claro. Houve um esforço aqui de que o tema dessa tese não fosse “um antropólogo nas festas de orgia”, mas sim a etnografia delas. Um parêntese com relação a isso. Num primeiro momento de avaliação deste trabalho, durante a defesa de projeto, fui questionado sobre a importância de uma problematização da minha figura física e “simbólica” em campo. É importante que se saiba que eu sou umhomem cisgênero, branco, loiro, classe média, jovem (na faixa dos 20 anos durante a pesquisa), com uma aparência e estética que se esforçam por se aproximar de um determinado padrão de beleza e com uma performance heteronormativa. Essas minhas características, sem sombra de dúvidas, facilitaram o meu acesso a esses espaços, principalmente naqueles onde havia uma seleção de participantes. Da mesma forma a aproximação com os interlocutores também era facilitada pelo fato de ter uma aparência que se aproxima dos padrões normativos de atratividade. Fatores de privilégio socialque se somam a já discutida relação de poder que se estabelece entre “nativo” e antropólogo em nossas construções etnográficas (Clifford, 1998). Porém, como percebi em campo e procurarei mostrar em capítulo adiante, esses indicadores do que a gente chama de interseccionalidade tomam nesse contexto uma complexidade maior do que apenas como marcadores sociais de diferença. Dito isso, podemos voltar à discussão sobre a afetação.

Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista do nativo, nem aproveitar-se da experiência do campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o 12

Proposta semelhante à elaboração do texto etnográfico feita por Lima (2005) em sua pesquisa junto ao povo Yudjá. A autora se coloca como personagem dentro do texto ao perfazer o percurso de suas interações e como ponto de perspectiva possível. Suas descrições do ritual da cauinagem também são interessantes para pensar outros modos de uma busca por momentos de intensidade como a orgia.

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projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível. (Favret-Saada, 2005, 160)

Toda e qualquer forma de interação tinha como meio o meu próprio corpo, ali, exposto, na maioria das vezes nu, em contato com a pele nua do outro, escorregadio com o suor do ambiente e dos outros corpos misturados, sendo tocado, apertado, beijado, lambido, mordido. Não houve aproximação durante todo o trabalho de campo que não passasse por eu deixar que o meu corpo fosse utilizado de alguma forma. Isso pode soar como uma espécie de “prostituição” por dados de pesquisa, “eu deixo você se aproveitar do meu corpo enquanto me passa aquilo que eu quero saber” (e confesso que às vezes tinha essa sensação, principalmente quando havia momentos em que não estava disposto a tanta aproximação corporal), porém era preciso entender que é através desse corpo que as relações se dão ali. Sejam elas quais forem, se exclusivamente sexuais ou de produção de dados acadêmicos. Logo percebi, portanto, que era preciso colocar o meu corpo em experimento também. Fazer ciência com o corpo. Em uma obra bastante interessante, Preciado resolve fazer um experimento teórico e sensorial com o próprio corpo: submeter-se a protocolos de intoxicação voluntária à base de testosterona em gel. Seu corpo (na perspectiva de um “regime político heterocentrado que estabelece relação natural e necessária entre sexo e gênero”) foi assinalado como feminino. No entanto, a utilização da testosterona sintética realizada por Preciado não é pela intenção de convertê-la em homem ou de transexualizá-la. Trata-se, antes, de uma “traição ao que a sociedade quis fazer dela”, "para escrever, para foder, para sentir uma forma pós-pornográfica de prazer, para acrescentar uma prótese molecular na minha identidade transgênero low-tech feita de dildos, textos e imagens em movimento, para vingar tua morte (G.D.)" (Preciado, 2008, 20). Trata-se de “um ensaio\experimento de desidentificação”. Preciado prefere a incerteza que leva à utilização do corpo próprio como "plataforma ativa de transformação vital" (Preciado, 2008, 251), única filosofia possível frente aos dispositivos contemporâneos de controle do corpo e da sexualidade que fazem do corpo individual sua extensão e lugar de aplicação das tecnologias de normalização.

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Não que eu tenha me disposto a transformações radicais no meu corpo como Preciado, mas que eu tenha percebido que era preciso me servir dele para o andamento e entendimento desse campo das festas de orgia. Era isso que aquelas pessoas me indicavam. E o que às vezes aconteceu até contra a minha vontade. Como, por exemplo, quando numa interação observada em um dos dark rooms numa festa onde se reuniam cerca de cinquenta homens num mesmo espaço, alguém subiu numa cama na qual estava próximo e gozou no meu rosto atingindo esperma em minha boca e dentro do meu olho. Para os padrões da festa, o que essa pessoa fez está totalmente contra as “regras locais” de consentimento, uma gafe arbitrária e inconsequente que me obrigou a fazer um tratamento de seis meses com a profilaxia pós-exposição ao HIV, a PEP13. A decisão de tomar o coquetel veio de uma sensação de pânico imediato, de não saber as reais chances de uma contaminação com esse ato e de saber que ali era um local também frequentado por soropositivos, alguns conhecidos. Além da preocupação angustiante de alguma contaminação por uma pessoa da qual sequer cheguei a ver o rosto, quanto mais saber a sorologia, passei semanas sob os efeitos colaterais agressivos da medicação como estafa, enjoo, dores de cabeça e diarreia que me fizeram perder oito quilos nesse processo. Para mim, a experiência com o coquetel funcionou como uma espécie de fronteira durante o trabalho de campo. Serviu para que eu saísse da fase “de sedução” e encantamento que todo e qualquer campo de trabalho nos proporciona inicialmente (ainda mais num campo que lida com excitação o tempo todo), e que começasse a perceber, afinal, os riscos e os perigos que ele envolve também. Riscos e perigos de várias ordens, não só

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A PEP é uma forma de prevenção da infecção pelo HIV usando os medicamentos que fazem parte do coquetel utilizado no tratamento da Aids (Zidovudina + Lamivudina) , para pessoas que possam ter entrado em contato com o vírus recentemente, através da exposição ocupacional, no caso de profissionais de saúde com ferimentos em objetos cortantes e contato direto com material contaminado ou pela exposição não ocupacional (sexual), ocorrida em casos de sexo sem camisinha, rompimento da mesma, contato com possível material contaminado ou de violência sexual. Esses medicamentos precisam ser tomados por 28 dias, sem parar, para impedir a infecção pelo vírus, sempre com orientação médica. A duração total do tratamento é de seis meses pelo acompanhamento dos resultados de exames contínuos para a detecção do vírus ou de outra DST como sífilis e hepatite. Fonte: http://www.giv.org.br/HIV-e-AIDS/PEP-Profilaxia-P%C3%B3sExposi%C3%A7%C3%A3o/index.html

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morais como também físicos. Não que eu não tivesse conhecimentos sobre eles anteriormente, mas eles não haviam passado pelo meu corpo14. Da mesma forma que a experiência angustiante da possível contaminação me fez perceber e sentir os riscos, a sensação da excitação e do tesão anteriormente já tinha me feito perceber, afinal, quais os sentidos de e para uma festa de orgia. O trabalho de campo realizado proporcionou-me uma perspectiva íntima, tal como proposta por Herzfeld, o que, segundo este autor, resulta da experimentação sensorial propiciada pela etnografia, enquanto forma de investigação (2001). A prática etnográfica tem priorizado aquilo que se pode ver e a análise do discurso que se ouve do “nativo”, deixando de lado análises baseadas em dimensões como o tato, o olfato, o gosto e a escuta (ainda que seja por meio desta última que se tem acesso ao “discurso do nativo”)15, enfim, os sentidos a partir dos quais muitas sociedades organizam suas experiências e constroem seus mundos (DíazBenítez, 2008). Herzfeld chama a atenção que essa seria a premissa por trás de uma “antropologia dos sentidos”, a que as percepções sensoriais são tão “culturais” quanto os atos físicos. É preciso uma antropologia que use os sentidos, “já que toda a experiência sensorial é potencialmente conectável com o passado próximo ou distante, podendo a história ser dançada, sentida, falada, cheirada etc..” (Grillo, 2013,19) E, de fato, foi só quando senti a excitação despertada pelas práticas da festa pulsar em meu corpo que eu pude acessar a dinâmica sensual daquelas festas de orgia e compreender o que afinal se operava ali para aqueles homens. Aprendi a distinguir o clima de cada evento, a saber diferenciar quando uma festa está boa ou não; a ler as posturas corporais e saber o que cada um está disposto e com desejo de fazer ali através de pequenos gestos e toques; a perceber interesses, desinteresses, desconfortos; a reconhecer os “novatos”; as posturas e comportamentos corretos ou não,; aqueles que estão dispostos 14

Em conversa com o professor Roberto Kant de Lima quando lhe contei sobre o ocorrido, ele me falou sobre como vivemos em uma sociedade da imprevisibilidade e como no campo das festas de orgia isso é ainda mais presente, e os riscos, portanto, mais latentes e atraentes. A “administração de conflitos” fugiria aos meios comuns pela especificidade do contexto. Mostrou-me, como exemplo, um caso que foi julgado recentemente na Justiça do Rio sobre um sujeito que, ao aceitar participar de um sexo grupal com outro casal, se sentiu lesado ao ser “forçado” a ser passivo com o outro homem. Processou, não ganhou, e na sentença o juiz quis deixar claro que a reclamação não cabia, já que “quem aceita participar de uma suruba deve estar disposto a tudo”. 15 Ingold (2008) chama a atenção, entre outras coisas, que na antropologia é preciso preparar o ouvido para outros sons que não apenas a fala do outro.

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a uma maior intensidade das práticas; a reconhecer pessoas pelo cheiro, o sentido de alguns gemidos, a sentir em mim o frisson durante as festas em percorrer os espaços continuamente através de novos estímulos16. Se é verdade, como afirma Pierre Bourdieu, que nós “aprendemos pelo corpo” e que “a ordem social inscreve-se no corpo por meio desse confronto permanente, mais ou menos dramático, mas que sempre abre um grande espaço para a afetividade”, então impõe-se que o sociólogo submeta-se ao fogo da ação in situ, que ele coloque em toda a medida possível, seu próprio organismo, sua sensibilidade e sua inteligência encarnadas no cerne do feixe das coisa materiais e simbólicas que ele busca dissecar, que ele se arvore a adquirir as apetências e as competências que tornam o agente diligente no universo considerado, para melhor penetrar até o âmago dessa “relação de presença no mundo, de estar no mundo, no sentido de pertencer ao mundo, de ser possuído por ele, na qual nem o agente nem o objeto estão postos como tal”, e que, no entanto, os define aos dois como tal e ata-os com mil laços de cumplicidade, mais fortes ainda porque são invisíveis. (Wacquant, 2002, 12)

A afetação decorrente desse processo é óbvia, para além do campo toda a minha relação com o meu próprio corpo foi transformada de alguma forma. Quando em um contexto como esse, onde você só tem o seu corpo nu exposto para todos os presentes ali verem, tocarem, sentirem e avaliarem, todas as suas (in)seguranças físicas e emocionais são colocadas à prova. Se chamar a atenção tem seus efeitos, não chamar e passar despercebido num contexto como esse também tem. Minha experiência pessoal com a nudez após esses anos de pesquisa é que me tornei muito mais consciente e aprendi a ficar satisfeito com a minha própria forma corporal e suas vulnerabilidades, seus defeitos, poderes de sedução e possibilidades de prazer.

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Também Grillo (2013) chama a atenção em como foi importante para seu entendimento sobre o que é a “vida no crime”, a experiência e consequentemente transformação corporal pela qual passou ao frequentar os bailes e o cotidiano nas favelas e comunidades no Rio.

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Estrutura do texto Aviso ao leitor que a maneira como escolhi dividir esse trabalho é uma experimentação e não muito usual. O texto que segue está organizado em duas partes. A primeira dividi-se em três capítulos a partir do que eu estou chamando aqui dos princípios dessas festas de orgia entre homens. O primeiro e, talvez, o principal deles, é o princípio da masculinidade. É sobre essa figura de “macho”, suas práticas, sua construção nesse contexto, seus paradoxos e tensões com outros elementos, que pretendo falar um pouco aqui. O foco desse capítulo vai ser na discussão de gênero. O que é e como ser homem “macho” nesse contexto de práticas sexuais entre eles? Quais são as capturas do desejo quando se tem esse elemento em destaque? Que tipo de masculinidade é construída aqui e como ela gera conflitos e tensões. O segundo capítulo vai se deter no princípio da discrição. O foco principal vai ser na maneira de como se dão as relações entre esses homens nesses espaços, da importância do anonimato (que vai além de saber ou falar o nome, mas também de um esforço de “desidentificação”), do silêncio, da invisibilidade, do escuro. Afinal, o que é essa “erótica do anonimato” que circunda, é necessária e que é matéria de desejo nesses espaços? Como se forma e qual a necessidade desses espaços no meio urbano? Aqui também apresento um pequeno “histórico” de cada uma das quatro festas pesquisadas a partir dos relatos de seus respectivos idealizadores. No terceiro capítulo, me volto para o último princípio que é o da putaria. Este vai ser o capítulo mais focado nas práticas sexuais e onde acredito se centrar a singularidade de “invenção” dos atores com quem interagi durante a pesquisa. Da mesma forma, acredito que aqui pode se centrar a singularidade desse trabalho, ao propor a putaria como um conceito. É a partir dela que se centram as práticas presenciadas nesses espaços e é a partir dela que entendi a ida a essas festas como uma forma singular de engajamento no mundo. É ao final desse terceiro capítulo, também, que apresento algumas conclusões sobre a análise etnográfica realizada nas festas de orgia. Terminada a discussão etnográfica da primeira parte, apresento uma digressão que se constituiu como uma segunda parte (menor) do texto. Proponho ali um mergulho um pouco mais denso no fenômeno das orgias, outras dobras que foram se apresentando

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durante o percurso etnográfico. Procuro, através de algumas entradas como a pornografia, o movimento libertino, a teoria antropológica, dentre outros pontos, apresentar uma discussão teórica que circunde o meu tema de pesquisa e paralelamente apresentar algumas propostas de análise que trago para contribuir com o entendimento da prática. O mergulho no campo das festas de orgia exigiu de mim um esforço de cartografia do tema e das ideias que se (des)dobraram em várias camadas e cujo percurso me ajudou a elaborar as discussões apresentadas nessa tese. É dessa composição teórica de que trata essa segunda parte. Não tratarei dos dados etnográficos ali e a ordem de leitura (primeiro a discussão etnográfica e depois essa digressão) é apenas uma sugestão que o leitor pode seguir ou não (ou mesmo dispensar essa segunda parte, se o interesse se concentrar na análise etnográfica). Por fim, um epílogo que não vai cumprir o já costumeiro papel conclusivo nesse trabalho. Não há conclusão a se chegar aqui além da apresentação etnográfica e das análises feitas nos capítulos anteriores. Escolhi terminar esta tese com uma proposta de discussão mais geral (quase como um artigo separado) e que não se restringe ao tema das festas de orgia: afinal, qual é o tabu do estudo do sexo? Após anos pesquisando coisas relativas ao tema das práticas sexuais, fui percebendo reações e questões que sempre se repetiam e que o próprio fato delas serem postas já era indicativo de uma necessária discussão sobre um determinado entendimento da sexualidade. Quis enumerar e analisar aquilo que percebi serem os pontos de tensão no estudo do tema.

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Parte I Os princípios

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Instantâneos de uma “putaria entre machos”

Mais um domingo indo fazer trabalho de campo e ao chegar na porta do local da festa tenho uma surpresa ao ver uma viatura da polícia militar parada em frente com as luzes de sinalização ligadas. O que à distância me pareceu como um alerta de que alguma coisa tivesse acontecido, era apenas uma conversa informal entre os dois policiais que estavam dentro da viatura e outros dois homens de pé em frente ao espaço da festa. Um era o “segurança” que sempre está sentado ali e o outro era um dos organizadores do evento. Estava na rua, usando uma camisa com o logo da festa e apenas de cueca, já que costuma usar o vestuário do evento. A viatura tinha parado para saber afinal o que é que acontecia ali dentro, já que os policiais estavam curiosos com o grande movimento de homens entrando e saindo do estabelecimento, da música abafada que podia-se ouvir e do cartaz com as espadas se cruzando dizendo que é um evento apenas para homens. A conversa era descontraída, o organizador explicava a proposta da festa de uma orgia entre machos, tudo com muitos risos, até que um dos policiais não resiste a fazer a pergunta: “Posso entrar para dar uma olhada e ver como é?”. O organizador responde: “Olha, poder você pode, mas você sabe que vão te agarrar ali dentro se você entrar assim com essa farda, ficam doidos com machos assim, vão achar que você faz parte. Quer vir mesmo?”. Antes que o policial respondesse, o outro que o acompanhava agradeceu rindo e saiu dando a partida com a viatura. O organizador vira para mim e o segurança e diz: “Vocês sentiram que aquele que perguntou ficou curioso né? Deve curtir uma putaria. Duvido que ele não apareça algum dia aqui. Conheço homem assim...” *** Numa das festas, o banheiro localizado no quarto andar do evento, foi tomado por uma interação numerosa. É o maior banheiro da casa, já que é onde ficam os chuveiros dispostos em toda uma parte das quatro paredes e sem divisórias para que todos possam ver quem está ali e o que estão fazendo. Aqui não é um lugar de intimidade e privacidade, apenas os vasos sanitários tendo uma pequena porta de proteção. Compõe o ambiente um espaço central amplo refletido num espelho grande em cima de uma pequena mesa. Esse banheiro não costuma ser utilizado para as práticas sexuais por vários motivos, primeiro pela claridade das luzes e segundo por ser mais um local de “preparação” para a entrada ou

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saída das festas. Mesmo assim, hoje formou-se uma multidão ali. A interação era centrada em um rapaz negro, alto, com dreads no cabelo. Ele se recostou nu na mesa que tem ali e começou a se masturbar mostrando uma grande ereção. Em pouco tempo se formou uma roda imensa de homens em volta da área central do banheiro onde o centro das atenções era o rapaz negro de dread que desafiava a todos a “encararem o seu pauzão”, queria saber “quem era macho o suficiente para aguentar”. Havia um revezamento naqueles que o chupavam e nos que, mais corajosos, sentavam no pênis de grandes proporções. Ele não se movia, se mantinha sentado na mesa, mantendo a ereção, provocando os demais enquanto a ação se desenrolava ao seu redor. Como aqueles que o chupavam tinham que se inclinar para a frente, alguns dos outros homens da roda aproveitavam também para chegar por trás e manipular ou mesmo penetrar neles. O rapaz negro de dread, apesar do discurso de provocação e desafio, não tinha uma “pegada” agressiva. Apenas se mantinha parado mesmo quando se aproximava alguém para sentar nele. O ritmo e a profundidade era dada pelo próprio passivo, o “quanto ele aguentasse”. Havia muitas falas e piadas, uma diferença da maioria das interações aqui que se desenrolam no silêncio. Para quem chegasse naquele momento, a roda de homens se parecia com uma roda de amigos se zoando como em qualquer ambiente de socialização masculina. Brincavam entre si, se desafiavam, se comparavam. O “clima de putaria” não se perdia e muito do seu estímulo vinha não só do exibicionismo do rapaz negro de dread, mas de seu discurso “putão” e, penso eu, ainda que não tivesse uma performance agressiva, mas até carinhosa, conseguia manter a ereção do seu pênis grande, mesmo com a bagunça ao redor. Ou seja, tinha um discurso que se coadunava com aquilo que demonstrava. A ação até durou bastante, até uma das pessoas cometerem a gafe de trazer um celular para o banheiro e querer filmar a cena. As pessoas da roda começaram a reclamar, o que trouxe o celular afirmou que teria o cuidado de “não mostrar nenhum rosto”, mas rapidamente a roda se dispersou. O rapaz negro de dread ainda se despediu: “Vamos para a bagunça então que a putaria está só começando!”. *** Durante o show de sexo ao vivo que encerra uma das festas há a apresentação de dois atores que convidam pessoas que estão na plateia para transarem com eles no palco ou em um colchão que é colocado no chão entre a plateia, o “tatame”, como é chamado (e não penso que a referência ao tapete onde se realiza esportes de combates seja inocente). Os dois atores são sempre os mesmos: um negro que possui um tipo de corpo que chamamos 53

de “parrudo”, ou seja, forte e volumoso, mas não musculoso. E o outro um moreno, baixinho, com o corpo definido por músculos e que todos aqui o chamam de “marrentinho”, pela “cara de poucos amigos”. Ambos na faixa dos 20 anos e com pênis de tamanho acima da média e que precisam ter uma performance destacada durante os shows. Hoje, enquanto o ator negro desceu do palco para interagir com a plateia no chão, o outro baixinho marrento se manteve no palco chamando as pessoas que quisessem subir para transarem com ele. Na trilha sonora, um funk alto tocava. O primeiro que subiu no palco foi um rapaz branco, com cavanhaque da mesma altura que o ator. A interação foi rápida. O ator trocou alguns beijos de língua com o rapaz, colocou ele de joelhos para chupá-lo, se inclinou para a frente e alcançar a bunda do rapaz e conseguir lubrificá-lo com o gel. Rapidamente levantou o rapaz ajoelhado, o virou de costas, colocou uma camisinha e sem perder tempo o começou a penetrá-lo rapidamente. A dor e desconforto era visível no rosto do rapaz de cavanhaque que tentava sair, mas era segurado pelos dois braços voltados para trás. A interação não durou muito, o rapaz fez um movimento brusco para se desvencilhar da penetração, a camisinha inclusive tinha visivelmente se rompido na interação, mas o ato não foi entendido como um conflito. O rapaz de cavanhaque pediu desculpas ao ator, disse que não aguentava ele, deram um beijo e ele desceu. O ator então continuou no palco chamando alguém que quisesse subir, para “dar para ele”, que “tinha que aguentar”, que “ser macho”. Em mais alguns minutos subiu um segundo. Era branco, mais alto e parecia ser mais velho que o ator, na faixa dos 40 anos, e tinha o detalhe curioso de estar com um cordão de corrente grossa no pescoço. O ator já estimulado pela interação anterior e pelos gritos e aplausos da plateia pouco tempo perdeu nas “preliminares” com o rapaz da corrente. O colocou de quatro e logo o começou a penetrar no mesmo ritmo forte que anteriormente, já com uma nova camisinha. O rapaz da corrente, apesar de também fazer algumas feições de dor, não pedia para parar, pelo contrário se mantinha ali e pedia para continuar. Isso fez com que o ator intensificasse a interação. Aumentou o ritmo da penetração, forçou as costas do rapaz até ele ficar com o rosto encostado no chão do palco, voltado para a plateia. Ao ver a reação animada do público, o ator ainda puxou com força a corrente do pescoço do rapaz ao mesmo tempo que colocou o pé em cima da cabeça dele, sem deixar de penetrá-lo com força, numa cena de dominação e submissão completa. Durou mais um tempo e logo se despediram com o ator chamando um terceiro e último para subir no palco. Nos intervalos das interações as pessoas que ficavam na boca do palco se revezavam e brigavam para 54

chupar o ator, era o “microfone que todo mundo quer cantar”, como me disse um dos participantes certa vez, “se pinto fosse grafite esses homens estavam fodidos, com o pau todo gasto, de tanto esses veados chuparem”. Um terceiro rapaz finalmente decidiu subir. Era um rapaz negro, alto e bem magro, o que aumentava a percepção de ser ele muito jovem. Tinha os cabelos loiros oxigenados. Pelo visto estava acompanhado de um grupo de amigos que fizeram bastante barulho animados com a sua decisão de subir ao palco. Alguém comenta do meu lado: “Meu Deus, esse daí, fraquinho assim, vai ser destruído”. Não foi o que aconteceu. O rapaz magrinho, apesar de estar desempenhando o papel passivo naquela situação sexual, teve uma performance tanto ou mais agressiva e dominadora daquela que o ator estava tendo até o momento. Começaram na mesma posição de quatro que as anteriores, mas logo o rapaz magrinho levantou, fez com que o ator deitasse de costas no chão e começou a sentar nele com a mesma violência na penetração. Em nenhum momento demonstrou estar sentindo alguma dor, pelo contrário, seu rosto e sorriso era de desafio para com o baixinho “marrento”, aumentando o ritmo das sentadas. O refrão do funk que tocava ajudava a dar o tom da intensidade da cena: “Fode, fode, fode…”. A plateia se empolgava cada vez mais e o rapaz magrinho ainda alcançou um novo nível quando chamou o outro ator que ainda estava no meio da plateia para se juntar à cena no palco e pedir para ser penetrado pelos dois ao mesmo tempo. O ator rindo do desafio subiu ao palco, trocou de camisinha e se postou ajoelhado atrás do rapaz magrinho atendendo ao pedido da dupla penetração que se desenrolou entre os gritos de estímulo de todos e da aproximação do palco para conseguir ver mais de perto. Toda a ação alcançava um clímax de intensidade até o apagar das luzes geral demarcando o fim do show e o incentivo à orgia final.

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CAPÍTULO I O princípio da masculinidade

“Venha se você for homem” é o slogan usado na propaganda de uma das festas de orgia entre homens que acontece na cidade do Rio de Janeiro. Segundo o organizador dessa festa sua intenção foi embutir nessa frase-convite dois sentidos de homem para o perfil desejado na festa: primeiro que tivesse um tom de desafio, de um evento que precisasse de coragem para participar, e segundo que deixasse claro que estivesse falando de homens másculos, de algo para macho. Nesse capítulo, pretendo me deter sobre o primeiro dos princípios dessas festas de orgia e, talvez, o principal deles, que é o da masculinidade. É sobre essa figura de “macho”, produzida e desejada nesses eventos que quero apresentar. O que é preciso para ser homem aqui, que performance é necessária, quais são as práticas, que paradoxos e tensões com outros elementos se apresentam? Como essa figura de macho se relaciona com uma maneira de construção de modelos de masculinidade estabelecido em contextos de interação erótica entre homens? Pretendo também mostrar o quanto esse princípio elabora uma determinada forma de conceber o corpo masculino a partir da observação das práticas sexuais realizadas nessas orgias. Minha intenção é definir\cercar o masculino do “macho, discreto e puto” e a sua produção desejante nessas festas. O verdadeiro macho aqui não é qualquer homem e vai além das configurações de gênero dominantes a que estamos acostumados. Outros fluxos se acrescentarão nos outros capítulos, já que a masculinidade aqui funciona agenciada e atravessada pelos outros dois princípios (o da discrição e o da putaria), mesmo assim procurarei me nortear pelo debate de gênero, apesar dele fugir por algumas vezes.

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Entre iguais, só entre machos De uma forma geral é possível definir o perfil de masculinidade que é desejado nessas festas a partir das seguintes falas dos organizadores encontrados em seus blogs de propaganda: 1º fala: Não é nossa intenção fazer uma festa apenas para pessoas consideradas "perfeitas", pois, além da perfeição não existir, beleza é algo muito subjetivo. Sendo assim, buscamos, acima de tudo, perfis com os seguintes pré-requisitos: Masculinidade, Discrição, "Conjunto da obra" interessante, Ousadia. Vale ressaltar que a busca pela masculinidade não se trata de preconceito com os ditos afeminados, e sim uma adequação ao tipo de perfil que os próprios clientes dessa festa buscam. 2º fala: Homens másculos (jeito, voz e atitude de homem), discretos e não afeminados independente de serem ativos, passivos ou versáteis são bem vindos. Bissexuais e alguns "Heterossexuais" (assim mesmo com aspas) também participam dessa orgia. 3º fala: Para aqueles que gostam de dar pinta, gritinhos e outras frescuras, favor deixá-las do lado de fora. A festa é para sexo grupal entre machos. Ninguém gosta de, na hora em que está fodendo, que apareça uma pintosa perguntando se está tudo bem com a amiga. Sejamos conscientes, por favor! O local é para foder, mas não com a paciência.

Um dos clientes definiu o perfil das festas da seguinte forma: “é como se fosse o local onde Super-Homem se encontrasse com o Batman para curtirem uns lances enquanto Louis Lane e Batgirl vão ao shopping. Já o Robin ficaria de fora. Ele é até gostosinho, mas dá muita pinta”. O perfil de homem desejado, portanto, corresponde à essas imagens de masculinidade que capturam os desejos dos frequentadores dessas festas. Espera-se que os clientes que compareçam ali, tanto nas festas abertas, mas mais ainda naquelas onde há processo seletivo, correspondam ou que, mais importante, saibam performatizar, a esse perfil. Percebe-se que a discussão não passa, inicialmente pelo menos, por fatores como beleza, aparência estética ou preferências de papéis sexuais, mas sim por serem todos ali, a

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princípio, machos. Por serem e estarem entre iguais. E que é essa masculinidade compartilhada principalmente no gosto e\ou no desejo de estar entre outros machos que diferencia essa reunião de homens e a existência dessas festas. A performance aqui também não está só na preocupação de um afastamento do feminino, de não “dar pinta”, de um gestual “afetado” característico (ainda que essa seja uma diferenciação primordial), mas está também na corporalidade e no uso disso nas próprias práticas sexuais. Existe um desafio contido nesses eventos que é o de que é preciso ter coragem no sexo entre homens machos, como me explicam. Essa “coragem” se demonstraria na disposição durante as interações sexuais. “É preciso aguentar”, e esse aguentar aqui se refere a vários dos elementos da festa: suas horas de duração, o sexo ininterrupto, os cheiros característicos que exalam na orgia, a força do ritmo das penetrações, os “paus e as bundas” que se oferecem, aguentar “caçar” os parceiros para as interações. Está, por exemplo, no desafio e a coragem de “aguentar o pau” que é mais fortemente presente. Numa das interações presenciadas, alguém julgava o fato do rapaz que estava sendo penetrado fazer muita cara de dor: “Qual a necessidade de fazer essa cara? Nem é tão difícil assim. Eu já dei pra ele, é meu amigo. É grande, mas não precisa fazer essa cena!”Como diz um dos organizadores: “A bunda tem que ser guerreira, corajosa e que o seu dono não fosse do tipo que fica repetindo ‘ai, para, tira, vai devagar’, não é só aparência e beleza, é pelo desempenho”. Claro que para aqueles que “comem” também se coloca o desafio tanto na quantidade de pessoas com quem consegue interagir quanto na manutenção de uma excitação constante e satisfatória. Numa das suítes uma estranha conversa se desenrolava, enquanto era penetrado alguém pergunta: “você não cansa de comer meu cu não?”, o outro responde aumentando o ritmo: “não, sou casado e minha esposa não deixa eu comer o cu dela, tenho que aproveitar”. Pergunta-desafio com uma resposta que alia a justificativa para sua interação com o acionamento de uma figura de masculinidade “clássica” desses espaços: do homem com esposa. As imagens e modelos de performance acionados são aqueles que já estão presentes dentro de uma imagética usualmente utilizada e que nos acostumamos à associar a modelos de masculinidade. Como no exemplo dos super-heróis e do “homem casado” acima. Lembro de um momento em que ao tentar sair de um dos quartos escuros da festa fui barrado e imprensado na parede por um rapaz moreno de cerca de 30 anos e bem mais 58

alto do que eu. Engrossava a voz e dizia: “Polícia, meu irmão! Documento! Não está trazendo nada? Vou ter que te revistar, fica de costas!” A minha reação à abordagem foi o riso e enquanto o rapaz colava mais ainda o corpo dele ao meu, ainda continuou: “Polícia não, sou bandido! Perdeu playboy, pode passar tudo!”. Duas figuras, o policial e o bandido, figuras que se posicionam em extremos opostos “na vida real” (ou pelo menos deveriam) e que aqui são acionadas em conjunto e quase ao mesmo tempo como figuras exemplares de masculinidade, que acionam e capturam desejos e que constituem determinados roteiros. Para eventos que não permitem que o vestuário nas festas vá além de uma sunga ou cueca, é curioso perceber como determinadas fantasias e imagens de homens são acionadas para compor uma determinada representação masculina. Isso fica mais claro ainda se olharmos com mais atenção os cartazes e flyers de propaganda dessas orgias com os temas de cada mês, além dos shows que podem acontecer nesses eventos: de sexo ao vivo, strippers e gogoboys. As imagens e temas jogam com a erotização de figuras como de jogadores de futebol, militares, policiais, bandidos, operários, os ursos, os negros, e etc. Fortalecimento de estereótipos em imagens de homens que nos acostumamos a associar uma virilidade latente (Mosse, 1996)17. Uma virilidade que é demonstrada na maioria das vezes pelos mesmos signos e gestos corporais do modo de “ser homem” encontrado em outros espaços de socialidade masculina. Tomemos um dos gestos masculinos por excelência: o pegar ou coçar “o saco ou o pau”. Fato para o qual várias etnografias sobre a sociabilidade masculina já chamaram atenção (Vale de Almeida, 1995 e Souza, 2011). E que aqui, nesse contexto, se aprofunda com seu excesso e toma outros contornos com um aspecto homoerótico. Aperta-se e pegase a todo momento no “pau e o saco” sempre para o outro, para demonstrar como se é macho, nas academias, nos jogos de esporte, no bar, na rua ou em qualquer situação de interação masculina. Já no universo das relações eróticas entre homens também aperta-se “o saco e o pau” como forma de reconhecimento no outro do mesmo desejo e aqui além dessas características, aperta-se o “pau” para oferecimento, para manutenção do tesão,

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Para que o leitor possa ter ideia de como se dão essa interação entre discurso e imagem na produção do ser macho nessas festas, reproduzo no Anexo I, alguns cartazes representativos das festas acompanhadas.

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para ajeitar a ereção, para chamar a atenção. E, não raro, nos intervalos da efervescência das interações, os homens nessas festas se reunirem em volta de alguma televisão presente nas áreas de descanso, para acompanhar algum canal de esporte, assistir à alguma partida de futebol que esteja acontecendo naquele momento, jogar algum jogo de mesa que a casa tenha disponível, beber alguma latinha de cerveja ou outro drink enquanto fumam um cigarro e discutem sobre o time para o qual torcem18. A masculinidade aqui, portanto, persegue algumas características gerais que valorizam determinados roteiros já estabelecidos de virilidade. Aproxima-se daquilo que podemos chamar de “roteiros sexuais” (Gagnon, 2006) presentes em nossa sociedade. Acredito que mais do que roteiros sexuais, mas roteiros de gênero, que seriam primeiros. O conceito de “roteiro” aparece nas ciências sociais nos anos 1970, elaborado por Simon e Gagnon como uma forma de desnaturalizar a sexualidade e mostrar que, ainda que o “impulso sexual” exista, ele existe dentro de um roteiro construído socialmente e apreendido a depender do contexto. A ideia de que as motivações, as expectativas, as respostas e os passos de uma interação sexual estão dentro de convenções roteirizadas, de “scripts” que entendemos como sexuais. São planos de ação, de orientação, de fantasias, de expectativas (daí flexíveis, já que não são normatíveis), mas de esquemas cognitíveis, coletivos e culturais a depender de cada contexto. A definição de uma cena como erótica ou sexual, os signos e sinais para essa interpretação, viriam desses roteiros de gênero e sexuais com os quais nos socializamos, que aprendemos e absorvemos ao longo da vida19.

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Em obra sobre as “práticas homossexuais” entre “homens heterossexuais”, Ward lista uma série de atos como os selinhos, os trotes de universidade ou de iniciação em grupos, as apostas e as modas de vídeos como “chicken kiss” (dois homens se aproximam para dar um beijo e aquele que se desvia primeiro é o medroso, o covarde ou o “chicken”) e os testes de excitamento (em que um homem fica tocando e roçando o corpo do outro com o objetivo de deixá-lo excitado, se o outro ficar “perde” na brincadeira) dentre muitas outras. Segundo a autora a linha desenhada pelos homens heteros para classificar essas práticas como “realmente gays” ou como “a brincadeira”, “o trote”, “a experimentação” e etc é feita a partir das circunstâncias em que elas se realizam. O cenário (“setting”) seria central para essa definição (2015, 193). 19

Estou fazendo aqui uma utilização muito livre do conceito de “roteiros sexuais” de Gagnon para pensar essas imagens representativas de masculinidade homoerótica. Chamo a atenção de que é livre pelo fato do conceito não me servir em toda a sua dinâmica de composição. Suas concepções sobre o que compreende como os três níveis que compõem os roteiros sexuais: os níveis intrapsíquicos, os interpessoais e os cenários culturais, poderiam recair em um certo funcionalismo, risco já apontado por alguns autores (Facchini, 2008, 203).

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Esses roteiros de masculinidade e de desejo são importantes como configuração dessas festas. Pensemos isso aplicado à três situações: primeiro no próprio uso mercadológico desses roteiros de gênero usado pelos organizadores e idealizadores desses espaços eróticos na cidade, um deles me explicou, “Faço festa para homem, não para gays, se você rotular, as pessoas acham que vai bichinhas, afeminados, isso espanta”. Conta o exemplo de um amigo que quis abrir uma locadora erótica e colocou o nome de “Cine Gay”, “ninguém aparecia, e se alguém ia era justamente o público que ele não queria trabalhar: bichinhas. Eu falei para ele: troca o nome da locadora, ‘Cine Gay’ não funciona para o que você quer, os caras não vão, coloca ‘Cine For Man’. Dito e feito, os caras começaram a aparecer”20.

Uma segunda situação na qual esses roteiros aparecem está justamente relacionado aos modelos de “projetos” de vida desses indivíduos, “Esses caras não querem se relacionar ou se identificar com alguma coisa do meio gay, são caras normais, pais de família ou não, mas que não estão interessados em levantar bandeira, são caras que querem ter a vida deles normal, mas que gostam de uma putaria de vez em quando”.

Numa terceira situação, os roteiros entrariam como substituição de uma forma de psicologização ou edipianização da explicação de seus desejos, “Eu sei lá porque que esses caras gostam de fazer isso. Não sei se precisa ter alguma explicação também, mas eles fazem. É a putaria pela putaria, a emoção da coisa. Veja você, se não gostassem não tinha tanta sauna nessa cidade, cinema pornô, o Aterro não ficava tão cheio à noite, minhas festas não dariam tanto homem...porque são só nesses lugares que esses caras podem curtir isso”.

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Esse recurso de uma chamada apelando à um roteiro de masculinidade também foi possível observar em uma das festas visitadas em Lisboa. A festa que acontecia em um cruising bar chamado “The cock” também usava uma chamada-desafio semelhante: “Are you man enough?” (Você é homem o suficiente?) O uso do inglês, muito comum no mercado desses eventos, poderia trazer um estranhamento a princípio ou a se pensar em uma absorção ou atração por “estrangeirismos”. Acredito que, para além disso, a escolha se assemelha à estratégia de muitos produtores brasileiros em dar um ar “não afeminado” e “moderno” a esses eventos, aponta para a busca de um determinado perfil de clientes com um corte de classe e de gênero.

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*** Ao que percebo, os espaços dessas reuniões de orgia funcionam como verdadeira “casa dos homens”, ou seja, aquele “conjunto de lugares aos quais os homens se atribuem a exclusividade de uso e/ou de presença” e que “estrutura o masculino de maneira paradoxal e inculca nos pequenos homens a ideia de que, para ser um (verdadeiro) homem, eles devem combater os aspectos que poderiam fazê-los serem associados às mulheres” (Welzer-Lang, 2001, 462). Welzer-Lang está falando aqui do costume presente em algumas culturas de criarmos lugares onde a homossocialidade pode ser vivida e experimentada em grupos de pares. Não é só um lugar onde os homens conviveriam entre iguais, mas também onde aprenderiam a ser homens. Espaços de homossocialidade e de pedagogia. “Nesses grupos, os mais velhos, aqueles que já foram iniciados por outros, mostram, corrigem e modelizam os que buscam o acesso à virilidade. Uma vez que se abandona a primeira peça, cada homem se torna ao mesmo tempo iniciado e iniciador” (idem). O mesmo acontecendo aqui, a dinâmica de uma “putaria entre machos” (e mesmo seus roteiros) é algo que aos poucos se aprende entre aqueles que já são “veteranos” na prática e os que estão começando a experimentar. Vejamos, por exemplo, um quadro explicativo que é enviado sempre que algum membro é adicionado no grupo de conversas do WhatsApp de uma das festas: O Homem que transa com outro Homem Não precisa:

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Falar manhoso

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Usar calcinhas

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Vestir saias

Usar batom

Requebrar feito uma mulher no cio

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Expor sua opção sexual

Levantar bandeiras separatistas

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Nem achar que o mundo é Hetero

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Abrir as pernas para todo mundo

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Achar que o mundo é gay

Dizer que mulher não presta

Perguntar qual o tamanho do pau do outro no MSN

Usar termos como olááá, inhaí, deu a elza, mona, babado, racha e etc. Visitar lugares tachados de alguma forma com bandeiras Heteros ou GLS. Um Homem que transa com outro Homem Pode:

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Manter a voz de Homem Manter seu jeito de Homem

Manter suas amizades sem precisar expor sua vida sexual

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Manter sua família sem ela saber o que ele faz na cama

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Jogar futebol

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Falar gírias

Não ser tão educadinho o quanto pedem que seja

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Surfar

Manter sua personalidade

Não ter preconceitos com os afetados de pai e mãe

Mesmo que não transe com mulheres saber que elas: são necessárias e que não precisa imitá-las para conquistar outro Homem!

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A ideia de um local onde “se fazem” homens pode ser vista no exemplo das idas em grupo à essas festas. É muito comum ouvir de alguns dos participantes que eles tinham mais do que receio, mas um certo medo de ir as orgias sozinho nas primeiras vezes. Eram levados por amigos ou conhecidos que já frequentavam, alguns acompanhados de seus namorados ou maridos, e a maneira como se comportavam na festa deixava clara sua inexperiência21. Uma curiosa analogia no comportamento dos homens de práticas heterossexuais dentro de um modelo heteronormativo que vão entre amigos para bordéis, clubes ou “puteiros”, ou mesmo nas saídas às boates “para pegar mulher”, “para a guerra” e etc. Percebe-se a mesma empolgação infantil, risos, conversas próximas para convencer os indecisos. Percebi isso variadas vezes quando na entrada das festas havia a presença de grupos de amigos decidindo se entravam ou não, ou mesmo lá dentro. Se assemelham aos ritos comuns de iniciação sexual tão característico do universo masculino (mesmo em contextos não urbanos) e constantemente representado em filmes e livros, por exemplo. Há a preocupação, portanto, de um certo caráter pedagógico nessas festas para aqueles que estão começando a frequentar, para que saibam como agir, como se portar, como ser homem ali. O esforço de que seja um evento entre iguais. É claro que a busca pelo igual ou “semelhante” esbarra na multiplicidade de participantes que pululam durante as festas e acaba sendo fonte de tensão e conflitos, onde determinadas hierarquias e normas se apresentam com força.

Entre diferentes, uma masculinidade hierarquizada O princípio da masculinidade nessas festas é atravessado o tempo todo por fatores interseccionais e outros. Há tempos e espaços de masculinidade, há fatores externos que aumentam ou diminuem o desejo entre esses homens. Fica difícil tentar, por exemplo, traçar um perfil dos participantes das festas relativo à classe, raça, idade ou forma corporal. Isso talvez fique mais fácil nas festas com processo seletivo, mas naquelas onde não há, 21

Pode-se perceber mesmo uma certa erotização da figura do “jovem inexperiente” principalmente se for atrelada à uma apresentação corporal juvenil, os chamados “twinks”, “novinhos” ou “lekes”, caracterizados por um corpo magro, sem pelos, de aparência adolescente. Um dos participantes que conheci, apesar de ser frequentador fiel de uma das festas, tinha como forma de sedução se apresentar aos homens mais velhos como alguém que precisasse ser ensinado nas práticas eróticas ali, performatizando um gestual, um tom de voz e um discurso que o fazia aparentar uma idade muito menor da que realmente tinha.

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onde qualquer um pode ir, se torna quase impossível. A percepção dos próprios participantes não é unânime com relação às quais festas são as das “pessoas mais bonitas”, ou a que “tem mais fortinhos”, a que “tem mais negros”, ou a que “tem mais velhos e gordos”, ou a que “dá mais pobre”, essas percepções mudavam entre eles e se distanciavam da que eu mesmo tinha sobre cada uma. Ao que parece a percepção sobre o público e da qualidade das festas tinha a ver com o tipo e o perfil de homem que se desejava, que mais atraia, e ao mesmo tempo, por exclusão, os que tinham as características que mais incomodavam, daquilo que era abjeto para cada um. E o primeiro recorte sempre lembrado tem a ver com o papel do feminino nesses lugares. O tempo todo o que se evita aqui é a figura da “bichinha”. Em pesquisa sobre clubes de sexo paulista para homens, Braz alerta que a masculinidade nesses espaços não se opõem necessariamente a feminilidade, mas sim à “bichice” (2007, 187). Já que esses eventos partiriam de uma exclusão da figura da mulher, o que incomodaria e a todo momento se esforçaria a se distanciar seria essa figura ambígua do homem afeminado. A preferência generalizada é por homens “straight acting”, ou seja homens que, ainda que façam sexo com outros homens, não sejam afeminados, que supostamente “passem por” heterossexuais, que sejam “palpavelmente masculinos” (Amico, 2001)22. As lógicas que embasam essas hierarquias presentes nesses espaços corresponderiam tanto à uma heteronormatividade já constituinte de uma matriz de pensamento heterossexual, quanto aquilo que Braga (2013) chama de “machonormatividade” elaborada em contextos assim. Os exemplos são inúmeros e vão desde uma preocupação dos próprios organizadores: “coloco o preço da festa mais caro para nivelar e para evitar as bichinhas ralé, que fazem escândalo”; até de uma vontade dos participantes: “não gosto de homem que se demonstra assim…tem que ser homem. Desmonta na hora, não antes!”. Um dos participantes compartilhou uma crítica comigo, que apesar da grande quantidade de gente na festa não estava gostando: “muita bicha afeminada, bêbada e quá-quá”. Os comentários 22

As pesquisas que se debruçam sobre algumas performances de gênero que tem como ponto importante o conseguir “passar por” podem trazer profundidade a esse aspecto. Como o esforço das travestis em suas dinâmicas públicas “passarem” por mulher, ou seja, de serem identificadas como mulheres “biológicas” e não “montadas” (Benedetti, 2000). Garfinkel também explora a questão do “passar por” em texto clássico sobre a descrição de um dos primeiros casos de transexualidade (2006).

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desses interlocutores citados se desdobram em várias questões: do autocontrole tanto para não dar pinta quanto para o ponto da bebida e de uma associação entre afeminado e um corte de classe (a “bicha quá-quá”, ou seja, pobre), mas que também leia-se no eixo do autocontrole, já que a esse tipo de “bicha pobre” associa-se o não saber se comportar, se conter, se segurar, o escândalo, o chamativo e o afeminamento. É curioso perceber como a questão de classe poderia aparecer num local como esse no qual pouco se conversa e com todos os participantes praticamente sem roupa ficando difícil ter marcadores que denotem um pertencimento de classe. Ainda que poucos sinais possam ser dados como os detalhes das marcas de cueca ou sunga mais ou menos caras, o cheiro (seja de suor ou do tipo de fragrância do perfume reconhecido como importado ou não) e do uso de alguns acessórios, o recorte de classe vai corresponder a determinados estereótipos compartilhados e, principalmente, no comportamento e no autocontrole apresentado nos eventos23. Tão radicais quanto, seriam os fatores relativos a idade e a forma corporal. A imagem e a crescente presença dos “velhos gordos” seriam sempre acionadas para denotar a decadência de alguns lugares ou para dizer quando uma festa foi boa ou não. “Nossa, a última festa estava horrível, só velho gordo, parecia um baile da terceira idade isso daqui ou uma clínica geriátrica”24. Para além de uma questão de que esses corpos não seriam desejáveis para a maioria dos participantes, o que eu percebia era que um dos incômodos estavam no fato de sua presença deixar aparente e lembrar a todos ali de um inevitável envelhecimento e “desgaste” físico natural a qualquer um desses homens: “eu nem gosto de ver, já imaginou chegar nessa idade e ficar desse jeito, tendo que vir aqui...eu teria muita vergonha, ninguém ia me querer…”25.

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A questão do autocontrole e de uma apresentação performativa masculina dentro de um padrão generificado estereotipado também é pensado por Carrara e Saggese (2011) como elementos que atravessam determinados casos de violência homofóbica em nosso cotidiano. A “postura masculina” pode ser tanto uma estratégia para evitar se expor à agressões (físicas e simbólicas) quanto à própria internalização e reprodução de um modelo machista e homofóbico. 24

Em uma das festas de orgia visitadas em Roma, “Porcelli Romani” (algo como “porcos romanos”), não era permitida, por exemplo, a entrada de participantes maiores de 45 anos. Além disso o único “dresscode” exigido era: “masculine attitude” (atitude ou comportamento masculino). 25

O que não impede uma significativa quantidade de participantes idosos nas festas e mesmo de pessoas com deficiência, sejam aquelas que apresentam algum tipo de deficiência visual ou auditiva, física como amputações ou mal formações e até mesmo de mobilidade reduzida como usuários de cadeiras de rodas.

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Ao que percebo a questão da idade aqui está colada não tanto a um peso de uma faixa etária específica, mas sim à questão da manutenção da forma corporal e da evitação de uma imagem de deterioração física. Essa imagem negativa atrelada ao envelhecimento poderia ser revertida caso fosse acompanhada por uma cultivação do corpo e de uma “atitude de macho”. Há, por exemplo, uma dinâmica de valorização da maturidade entre esses homens a partir dos 40 anos, já apontada por Simões, em que a experiência e a idade são sinais de prestígio. O autor fala de uma mudança do estereótipo relacionado ao “velho” como símbolo de decadência física e sexual para a construção do “coroa”: “um homem maduro de modos viris, que tem saúde, disposição física, apresentação pessoal e dinheiro suficiente para frequentar alguns espaços e também tentar a sorte no mercado da paquera” (2004, 420). O envelhecimento acompanhado de um trabalho de autocultivação e da apresentação de uma determinada imagem, principalmente através do cuidado físico, poderiam ser fatores de prestígio ao invés de um estereótipo negativo. Assim, foi possível perceber em campo outros termos que denotavam essa valorização como: “coroa gostoso”, “maduro em forma”, “paizão” e etc; termos que se distanciavam de uma imagem mais estigmatizada e depreciativa como: “bicha velha”, “velhos gordos”, “cacura” e do “velho tarado”26. Um exemplo dessa valorização do homem mais velho a partir de elementos que indiquem uma autocultivação e de um cuidado de si é Antônio. Antônio não me diz a sua idade exata, mas “confessa que está lá entre os 40 e 50 anos”. É advogado, trabalha num escritório próprio no Centro do Rio, possui um apartamento também próprio na Zona Sul e em algumas segundas-feiras mais empolgantes diz que gosta de vir às festas de orgia do club privé para “começar a semana bem”. Toda a sua apresentação corporal demonstra um cuidado estético: do corpo forte com os músculos definidos por musculação (“mas não em excesso, não gosto de tomar bomba, fica parecendo falso, é que nem mulher com muito silicone”), não se depila, mas mantém os pelos do corpo aparados e com fios grisalhos (“quando estiver tudo branco decido se pinto, por enquanto é charmoso”), costuma ir se exercitar na praia, o que o deixa com uma tonalidade bronzeada que se destaca com uma 26

A questão do envelhecimento e das práticas sexuais entre homens nessa faixa etária ainda é tema de poucos trabalhos nas ciências sociais. Ver por exemplo Pocahy (2011) e Mota (2015). A valorização do “coroa” também é apontada em pesquisa de Braga (2013, 77).

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marca de sunga aparente, além de procurar manter um corte de cabelo “moderno”. Na primeira vez que o vi andava pelo espaço da festa usando uma cueca de marca cara, um relógio que também denotava um certo capital, uma aliança grossa na mão esquerda e também usava óculos de aros escuros grossos (“nem preciso tanto, mas as pessoas dizem que fico bem”). Sua presença chamava a atenção dos demais que buscavam o tempo todo uma interação com ele. Antônio não “se jogava” muito no início, preferia se aproximar e ficar observando as interações que aconteciam enquanto inalava vapores do vidro de poppers que carregava na cueca. Se deixou ser puxado por dois homens que estavam deitados numa das camas, um mais jovem e outro que parecia ter a mesma faixa etária que Antonio com a mesma preocupação de cuidado corporal. Quis me aproximar para ver ele penetrando os dois. Com o primeiro usou preservativo, mas com o segundo não, e enquanto estava ali, Antônio me ofereceu várias vezes o vidro de poppers para cheirar e segurar para ele. A interação se desfez sem que nenhum dos três tenha gozado. Ainda vejo Antônio se aproximar de um outro rapaz na festa que chamava a atenção por ter um pênis muito grande. Ele deita o rapaz em uma das camas, senta em cima dele e inicia uma penetração mesmo sem camisinha. Uma multidão se volta em torno deles. O rapaz coloca uma camisinha e eles continuam a penetração, que não chega a ser completa pelo tamanho do pênis, até Antonio gozar. Quando estou pegando o elevador para ir embora do prédio Antônio também aparece arrumado para ir embora. Estava de terno e gravata, provavelmente de alguma marca cara também, além de uma pasta de trabalho. Me ofereceu o refrigerante que tomava e disse que tinha acabado de receber uma mensagem de sua irmã que estava na maternidade e que tinha acabado de dar a luz à seu sobrinho e futuro afilhado. Sua esposa e filhos já estavam lá esperando por ele, “Eu devia ter ido direto do trabalho, mas como ainda não tinha nascido, resolvi passar aqui antes. Nossa, nem deu tempo de tomar um banho direito, vou pra maternidade sujo da putaria mesmo…”. A hierarquia dos corpos baseada numa estética, portanto, também é um elemento que atravessa a masculinidade gestada nesses espaços. Parece que o trabalho de si, gera uma valorização que o impede de ficar com qualquer um e sim com aqueles que também apresentem uma mesma autocultivação no cuidado do corpo. Se valorizam no capital erótico. Nesse contexto seja a beleza, a musculatura, ou mesmo atributos físicos como o tamanho do pênis ou da bunda podem ser fatores que são levados em conta na seleção dos

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parceiros com quem interagir. João mesmo me disse: “Agora eu não fico mais com qualquer um, porque eu tô malhando, seleciono mais”. A descrição de uma interação com um dos interlocutores que vou chamar aqui de Felipe talvez deixe mais clara a hierarquia de masculinidades nesse local. Felipe é moreno, alto, não apresenta um corpo musculoso, mas deixa claro que costuma se cuidar para não ficar muito fora de forma. Ele tenta uma aproximação comigo e eu digo que o via sempre ali, mas que nunca tínhamos conversado. Ele se surpreende com o fato de alguém ali o reconhecer pelo rosto: “Estou acostumado aqui a ser reconhecido pelo pau. As pessoas pegam no meu pau e lembram de mim” (refere-se à característica da grossura de seu membro, elemento que o próprio usa também como forma de aproximação e sedução no escuro, levando logo a mão da pessoa à seu pênis ereto). “Teve uma vez que ri muito, no meio do dark o cara pegou no meu pau e disse: ‘Ah, eu lembro de você. Dei para você na última vez que vim aqui. Impossível esquecer, porque depois que dei pra você fiquei umas duas semanas sem querer transar, me senti completamente satisfeito e dolorido’”. Continuava a aproximação dizendo que eu fazia “o tipo” dele. Pedi que me explicasse melhor e ele foi falando tudo o que não gostava nem curtia e de suas preferências: Isso aqui já foi melhor. Hoje está muito caído. Parecendo até baile da terceira idade! Cheio de negro também...nada contra, mas não curto muito. Não é preconceito não, é que eu não tenho tesão, vou fazer o que? (nesse momento entra no quarto um senhor que aparentava uns 60 anos e que usava uma cueca bem apertada e fina que, segundo Felipe, mais parecia uma calcinha fio dental) Eu acho meio deprimente, cara. Vir aqui nessa idade, nessa situação, ficar ouvindo não, ouvindo fora...eu tento não ser grosso, mas eles são abusados! Espero chegar nessa idade com dinheiro para pagar e não precisar vir nesses lugares, ou então estar casado com alguém. Não ficar agarrando o pau dos outros em dark room e ouvindo desaforo. Porque eles pegam à força quase. Tem um negão que vem aqui...e eu já não gosto de negro...que nem no grupo do whatsapp que sempre vem um falar comigo. Já falei que não curto, converso numa boa e ele diz que é porque eu não experimentei um direito. Besteira, você vê que eles mesmos não se atraem. É tão difícil ver casal de dois negros. O mais comum é um negro com um branco, se for loiro ou loira então! (Tento instigar dizendo

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que ali no escuro e na orgia talvez fique meio difícil manter isso e selecionar dessa maneira e ele concorda) Ah sim, tô te falando das minhas preferências, todo mundo tem né. É que nem negócio de dar. Eu sou ativo, não curto dar. É muito difícil chupar alguém ou dar para alguém aqui. Eu precisaria estar com muito tesão na pessoa. Você, por exemplo, eu chuparia fácil. Só não te daria porque você é muito baixinho para me comer. Acho muito sujo dar para qualquer um aqui. É que nem um loirão gringo que veio aqui uma vez. O cara era lindo, lembra dele? Porra, mas dava para qualquer um que chegasse nele, principalmente para os negões. Era só chegar perto que ele dava para a pessoa!

O mais curioso nessa fala, para mim que já reconhecia Felipe de muitas outras festas, foi saber que eu já o tinha observado fazer tudo isso que ele disse nesse longo discurso não gostar\curtir\ser contra ali: interagir com negros, mais velhos, afeminados e chupar e “dar” para outros caras na frente de outros. Mas o fato dele justificar com “pelo menos não é minha preferência nem prioridade” é característico de como as interações aqui também podem ser atravessadas por esses fatores de hierarquia e exclusão. Ainda que num plano do discurso, ou melhor, ainda que como primeira opção27. Mesmo a hierarquia presente não impede ou barra capturas do desejo outras, já que a intensidade da efervescência nas interações realizadas nesses espaços pode embaralhar essas divisões e hierarquias como procurarei mostrar no terceiro capítulo. Ainda assim, é preciso atentar melhor para o padrão de macho que é definido aqui. Esse valor de masculinidade elaborado nesses espaços fica mais claro na busca e construção de um determinado modelo de masculinidade que é chamado em uma das festas acompanhadas de “caráter espartano”.

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As negociações em torno das frases comuns de “preferências” relativas ao desejo, como “não curto”, “não sou”, “não gosto”, “procuro”, é fortemente presente no uso estratégico de aplicativos de celulares para encontros eróticos entre homens como Grindr, Hornet e Scruff, muito usados inclusive pelos participantes dessas festas. O uso desses aplicativos, as negociações em torno de figuras de homens desejadas e de uma “gestão de visibilidade” vem sendo objeto de alguns trabalhos como os de Miskolci (2015), Braga (2013) e Padilha (2015).

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Caráter espartano x gaysmo Há uma elaboração específica que é apresentada nesses espaços sobre a ideia e o princípio da masculinidade que é naquilo que eles chamam de “caráter espartano” que se contraporia o tempo todo à outra forma que é chamada de “gaysmo”. Vai ser sobre essas elaborações de ser masculino que quero me deter mais detalhadamente agora. A figura do homem de caráter espartano me foi apresentada em uma das festas de orgia que acompanho. Como seu organizador faz questão de diferenciar, a sua proposta de evento seria muito mais que uma festa de ou para a putaria, mas sim um clube, um clube prive, ou seja aberto apenas a um seleto grupo de pessoas, um clube espartano, como ele o define. Justifica que primeiro o objetivo ali não é o sexo, e sim o flerte, a sedução, a experiência de cobiçar e ser cobiçado. Além disso, o clube não é aberto para qualquer um. Lá só entraria clientes aprovados por ele. E para ser aprovado não seria o dinheiro que o cara estaria disposto a pagar na entrada, me assegura, mas sim o corpo e o dote. Para ser sócio do clube o cliente tem que ser fisicamente atraente, não necessariamente sarado e preferencialmente dotado. Meu objetivo é que os sócios do clube sejam atraentes para que eles curtam a experiência de cobiçar e serem cobiçados com discrição, conforto, sofisticação e segurança. Por isso esses pré-requisitos são importantes. Além do mais sexo é um detalhe. O objetivo é que o cliente relaxe, curta um som maneiro, beba um drink bem feito e saboreie uma comida gostosa. Sem falar que a decoração é bem diferente de um clube convencional. Aqui não tem cheiro de eucalipto!

Sobre a questão da seleção, tanto o organizador e alguns clientes afirmam ser um ponto complicado. Havia três formas de avaliação: uma ser convidado, a segunda mandar fotos de rosto, de corpo e nu via email ou whatsapp e a terceira era ir e ser avaliado na recepção mesmo do evento. A última, inclusive, foi a avaliação pela qual eu mesmo passei. Digo que havia essas formas, porque com o tempo percebi que a organização estava abrindo mão desse processo. “Causava muita confusão e era muito estressante para mim ter que barrar a entrada de alguém, dizer que ele não corresponde ao nosso perfil. Hoje faço algo mais cruel: eu deixo entrar, porque acaba que a seleção vai

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ser feita ali na própria interação naturalmente. O público vai dizer se ela é dali ou não, a própria pessoa vai perceber que não faz parte do lugar, não vai conseguir fazer nada com ninguém, vai ser rejeitada, etc etc.”28

E vai ser justamente sobre a apresentação ou não de um caráter espartano que vai se gestar o princípio da masculinidade nesses espaços. A ideia de uma masculinidade espartana aqui é uma leitura particular das relações entre homens na antiga Esparta e divulgadas no Brasil numa interpretação dada pelo professor Ricardo Líper em textos publicados na internet e de fácil acesso29. Os textos publicados pelo professor são utilizados como base não só da organização e seleção de público nesse espaço, como também na elaboração dos anúncios de propaganda escritos pelo organizador que a todo momento nas conversas com os participantes divulga e indica a leitura dessas ideias e mesmo traz textos para grupos de discussão. Ser um homem de caráter espartano, tal como entendido aqui, é recuperar uma masculinidade que, de alguma forma, teria se perdido nos dias de hoje. Um jeito de ser homem e que só é possível entre outros homens, entre iguais. Daí, inclusive, uma justificativa para a existência de lugares como esses que funcionariam como uma determinada “casa de homens”, de enclaves onde se poderia vivenciar e experimentar essa forma de masculinidade, no qual se poderia ser “homem de verdade”. Aqui ao mesmo tempo se aprenderia e se forjaria uma forma de ser homem baseado nesse caráter 28

Exemplo de “falha” ou “erro” na seleção foi observado por mim quando um dos participantes se aproximou e disse: “A seleção aqui está cada vez pior” e apontava para um rapaz que tinha acabado de chegar. Era branco, baixo, meio corcunda, bastante magro, com um cabelo preto liso e longo que ele trazia num coque, tampouco era “dotado” para os padrões da festa. Sua aparência junto com os traços do rosto (sombra de um bigode ralo e as sobrancelhas juntas) lhe rendeu o apelido de “Frida Kahlo” entre os outros participantes, pela semelhança com a pintora mexicana. De fato ele não mais apareceu nas festas do club privé, mas passou a ir às orgias que não tinham seleção. As pessoas continuavam a se queixar de sua aparência, mas nem por isso ele deixava de conseguir algumas interações. 29

Ricardo Líper é pseudônimo do professor Ricardo Calheiros Pereira do Departamento de Filosofia da UFBA. Com esse nome ele publicou duas obras sobre o tema: Sexo entre homens e a Tradição Espartana (2005) e Os fundamentos do sexo espartano (2006). Ricardo divulgou esses trabalhos e suas ideias na Internet, principalmente através do site: www.espartano.org. Nele, inclusive, podemos encontrar um “Manifesto Espartano” (que ainda contém uma lista de Dez Mandamentos, indicações de bibliografia e de filmes para ter conhecimento sobre o conceito) disponível em http://www.espartano.org/ser%20espartano%20e.htm. No Anexo II reproduzo o texto desse Manifesto.

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espartano. É entendido aqui como uma espécie de filosofia, de liberdade de expressão, liberdade de um desejo e de um jeito de ser, de ser homem e se bastar como homem, algo muito diferente e oposto quase do que se entende, nessa lógica, de ser gay e do gaysmo. Um dos cartazes de propaganda distribuídos durante o evento chega a funcionar como um código de ética. Enumera-se: Caráter espartano é ser simplesmente homem; é gostar e se admirar como homem; é ter virilidade; é se bastar como homem; é gostar sexualmente de outro homem sem deixar ou renegar sua masculinidade. Se veste como homem, fala como homem; anda como homem; age como homem; não é separatista; não é colorido; não levanta bandeira; não vive o gaysmo; não é feminino; não curte o afeminado. Sexo entre homens é de homem para homem. Não se droga, não bebe, não perde seu eixo. Tem vida saudável, cuida do corpo, vive bem. É inteligente, discreto, não gera tumulto. Ser um homem de caráter espartano é ser um homem de verdade.

Apesar do tom essencialista há uma diferenciação que se faz nas falas dos participantes entre ser homossexual e ser gay. Todos ali seriam “homo ou bi” ou até mesmo “heterossexuais” (assim mesmo com aspas) pela questão do direcionamento do desejo (ainda que esse seja um ponto que raramente seja levantado), mas, definitivamente, eles não seriam gays, já que isso corresponderia a uma questão de postura, de comportamento. Até poderiam ser gays lá fora, mas ali dentro, durante o evento, teriam que se comportar de outro jeito. A ideia de gaysmo, portanto, é entendida como todas as “obrigações e separações impostas pelo mundo gay hoje em dia”, à uma agenda política de identidades que não os representa e que não é da vontade da maioria ali seguir nem acompanhar, comparada inclusive à um processo de “lobotomização” que pregaria a futilidade e no qual se afemeniza a estética masculina e se perde os valores viris.

Genealogia de uma masculinidade

Talvez esse seja um bom momento para propor uma pequena genealogia dessa figura de macho produzida durante essas festas. Não se trata aqui de uma “história da

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masculinidade” ou uma “história dos homens”30, mas sim de apresentar alguns momentos chaves que acredito terem dado possibilidades para o aparecimento e a produção de uma determinada figura subjetiva de macho como a encontro nesses eventos. Da mesma forma meu recorte recai sobre a masculinidade pensada a partir das relações que se estabelecem entre os homens, que ao meu ver, são singulares do ponto de vista da produção de uma determinada forma de subjetividade. Como afirma Foucault, a relação estabelecida apenas entre homens se dá em termos mais específicos, onde uma “relação entre indivíduos do mesmo sexo que provoca um modo de vida em que a consciência de ser singular entre os outros está presente” (2013, 147). Principalmente naquelas relações estabelecidas a partir do desejo do outro do mesmo sexo:

A relação entre dois indivíduos do mesmo sexo é uma coisa. Mas gostar do mesmo sexo que o seu, ter um prazer com ele é outra coisa, é outra experiência, com seus objetos e seus valores, com a maneira de ser do sujeito e a consciência que ele tem de si mesmo. Essa experiência é complexa, é diversa, muda de formas. Deveria fazer-se toda uma história do ‘outro do mesmo sexo’ como objeto de prazer (op.cit, 153)

Vai ser sobre a masculinidade gestada nessas relações eróticas estabelecidas entre os homens e em diferentes contextos históricos que quero falar rapidamente aqui. Meus interlocutores chamam a atenção que nosso percurso deve começar pela Antiguidade, na maneira como na antiga Grécia e Roma se davam as relações entre os homens. Nessa época, a “homossexualidade” (se é que podemos usar esse termo anacrônico para caracterizar essas relações num contexto onde as interações eróticas entre pessoas do mesmo sexo não era entendida nesses termos nem como um “problema”, Ariés, 1987) era de caráter institucional, prescrita nos códigos e manuais de ética e comportamento, fazendo parte e sendo necessária na composição da educação dos jovens seja como em sua formação militar ou como etapa para se tornar um cidadão. Em Esparta, por exemplo, uma sociedade tida como tradicionalmente guerreira, os casais de amantes homens faziam parte 30

Essa proposta já foi feita conjuntamente por alguns autores com resultados irregulares como os três volumes organizados por Alain Corbin, Jean-Jacques Coutine e Georges Vigarello (2013) e no caso brasileiro a coletânea de Mary del Priore e Marcia Amantino (2013).

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da prática de treinamento e da formação militar. Essas relações eram incentivadas por eles por acreditarem que os soldados lutariam com mais bravura para que nada acontecesse com seus parceiros e amantes, dando mais força, ligação e união às tropas. Eram através das relações entre homens que os valores e as características de uma masculinidade eram passadas: a honra, a coragem, a força, o desafio, a dominação sexual e o autocontrole (Veyne, 1987; Sartre, 2013). A relação deveria se dar entre um homem mais velho, maduro, cidadão reconhecido, e com um parceiro mais jovem, em formação, que juntamente com os prazeres eróticos teria uma aprendizagem necessária ao seu papel como futuro cidadão no ambiente público. O “amor entre homens” era, portanto, uma relação de pedagogia e de erotismo (já que estava livre das obrigações ligadas à reprodução e ao ambiente doméstico da casa). Ao homem maduro com título de cidadão era dado o direito de se relacionar com aqueles que não compartilhassem da mesma posição que ele, ou seja, os mais jovens, os homens livres (desde que não fossem da mesma idade ou mais velhos), escravos e as mulheres (Foucault, 2009b). Alguns autores veem a polaridade ativo\passivo como algo fundamental na instituição das relações eróticas entre homens no mundo Antigo. O homem que tinha o título de cidadão jamais poderia se rebaixar a ser passivo, a se deixar penetrar por outro homem que tivesse a mesma ou uma menor posição social que a sua. Não que a passividade sexual fosse um problema, ela era permitida (e mesmo necessária) nos códigos de ética e conduta da época para aqueles que ainda não tinham alcançado a idade necessária ou para aqueles que não tinham a posição social reconhecida no domínio público. Porém, como coloca Foucault, as relações entre homens, e da masculinidade que era gestada naquele contexto, estava muito mais colocada em termos de autocontrole, de domínio de si mesmo, do que de posições sexuais:

Na Grécia e Roma, você não tinha uma arte erótica, mas sim uma “arte de viver” (tekhne tou bio), a noção segundo a qual era preciso exercer um domínio perfeito de si mesmo tornou-se o problema central. A grande diferença não estava entre as pessoas que preferem as mulheres e a que preferem os rapazes, ou então, entre os que fazem amor de uma maneira e os que fazem amor de outra

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maneira, mas era uma questão de quantidade, de atividade e de passividade. Você é escravo ou mestre dos seus desejos? (…) O problema não é o do desvio e do normal, mas o do excesso e da moderação (2013, 220-221)

Da Antiguidade, em que as relações entre homens não era vista como um problema e tinham um papel institucional, até a colocação dessa prática em termos de uma patologia médica e de criação de uma determinada “espécie”, o homossexual, em fins do século XIX. É no contexto de estabelecimento das ciências psi que a distinção entre homo e heterossexualidade vai ser formada e todo um “dispositivo da sexualidade” é elaborado a partir da constituição de uma ciência sexual, organizando e classificando a multiplicidade de desejos.

(...) a distinção entre homossexualidade e heterossexualidade, longe de ser uma característica fixa e imutável de certa sintaxe universal do desejo sexual, pode ser entendida como um particular giro conceitual no pensamento sobre sexo e desvio que ocorreu em certos setores da sociedade do norte e noroeste da Europa nos séculos XVIII e XIX. A nova conceitualização, além disso, parece coincidir com a emergência, no mesmo período (ou nos séculos imediatamente precedentes), de alguns novos tipos sexuais – a saber, o homossexual e o heterossexual, definidos não como pessoas que performam certos atos, ou que aderem a um ou outro papel sexual, ou que são caracterizados por desejos fortes ou fracos, ou que violam ou guardam as fronteiras de gênero, mas como pessoas que possuem dois tipos distintos de subjetividade, que são intimamente orientadas em uma direção específica, e que, portanto,

pertencem

a

espécies

humanas

separadas

e

determinadas. (Halperin, 1990, 43, ênfase do autor. Tradução retirada de Braga, 2013)

A figura do “homossexual moderno” era tida em termos médicos da época de “inversão sexual”, ou seja, homens que desejavam outros homens tinham em sua

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constituição biológica e mental uma aproximação com o sexo feminino, por isso apresentarem sinais explícitos de feminilidade. Eram “desviados”, fugiam de uma normalidade e, no limite, eram pessoas doentes. Médicos, políticos, advogados, intelectuais e artistas da época retrataram o que seria o estereótipo mais resistente na associação entre homossexualidade e afeminação. Os “sodomitas” modernos seriam identificados como aqueles homens afeminados que praticavam sexo anal como elementos passivos e, em geral, aparecem retratados com elementos ligados ao mundo feminino: muito pó-de-arroz, carmim, maquiagem, alguns acessórios como lenços de seda, flores na lapela, postura e trejeitos exageradamente femininos para chamar mais a atenção (Fígari, 2007, 317). É nesse momento que, como assinala Carrara (1996), a masculinidade se coloca como problema do ponto de vista estatal, social e moral em nossas sociedades. Num contexto de aumento do controle e medicalização dos corpos, em que as epidemias e a saúde da população se tornava uma política de Estado, buscou-se formas de disciplinar esses corpos. Se, por um lado, há no imaginário desde o século XIX, que os homens são aqueles que não controlam seus próprios desejos, contrariando sua posição no polo racional, o que teria gerado o aumento do controle sobre as prostitutas, ou as mulheres em geral, já que não se conseguiria controlar os homens; por outro lado a construção de um modelo de masculinidade começa a tomar tons nacionalistas que valorizem elementos do trabalho, do esporte, da honra, da iniciativa, enfim elementos que contribuem para o estabelecimento de um modelo “capitalista-burguês-patriarcal”. Em texto clássico nos estudos de gênero e sexualidade no Brasil, Fry (1982) aponta que esse modelo “médico” é apreendido aqui, não em termos de uma divisão entre homo e heterossexualidade, mas na elaboração de um determinado “modelo hierárquico” onde o que vai importar é a correlação entre uma forma de apresentação social e a posição tomada durante as interações sexuais. Um homem, que se apresente e performatize um padrão ou um “papel” de masculinidade pode se relacionar com outros homens, desde que seja o ativo durante o sexo, dessa forma não sendo atribuído a si o diagnóstico e o estigma de “homossexual”. Entenda-se que o que é visto como “doença” e problema nesse modelo, é esse comportamento social (características femininas) atrelado a uma posição sexual (passiva) e a um determinado desejo (homossexual). De um diagnóstico clínico e doença a identidade homossexual passa a ser tomada como bandeira no surgimento dos movimentos sociais de afirmação na metade do século 77

XX. Começando a estabelecer o que Fry chama de um “modelo igualitário”, no qual as distinções a partir de posições sexuais na cama não deveriam ser levadas em consideração na atribuição de uma identidade. O que caracterizava ser ou não homossexual (ou “gay” como começa a ser usado) era o desejo pelo mesmo sexo, não importando “quem dá” e “quem come”. O que acontece é que o fortalecimento dos movimentos de liberação sexuais, começou também a prescrever uma determinada identidade de “homossexual ou gay contemporâneo” que se esforçava por se afastar e se diferenciar da imagem anterior. Esforços “homonormativos” de higienização que se combinaram para associar homossexualidade à elementos como amor, domesticidade, constituição de famílias, do “bom homossexual” e de fugir de estereótipos como a promiscuidade da “bicha” e que relacionava o homossexual a um invertido, a um doente, enfim, ao senso comum que associava homossexualidade e afeminação:

Compreende-se que, no momento em que a opressão cedia, os militantes homossexuais tenham tentado antes de mais nada redefinir a identidade homossexual, liberando-a da imagem que faz do homossexual, na melhor das hipóteses, um homem efeminado, e, na pior, uma mulher que não deu certo. Em reação contra essa caricatura, o homem “superviril”, o “machão”, tornou-se o tipo ideal no meio homossexual: cabelos curtos, bigode ou barba, corpo musculoso. E, enquanto o tema da emancipação dos heterossexuais está quase sempre ligado à indiferenciação dos papéis masculinos e femininos, a emancipação homossexual atravessa atualmente uma fase de definição muito estrita de identidade sexual. (Pollak, 1987, 6869)

Esse fenômeno de retomada de valores ligadas à masculinidade e de uma figura do “homem de verdade” dentro do universo homossexual é etnografada por Levine (1998) tendo como cenário o final dos anos 1960 e início dos 1970, principalmente em São Francisco nos EUA. O autor trata da ascensão da figura do “gay macho” e de uma “subcultura dos clones”, definidos por Levine como:

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Um gay clone era uma constelação específica de padrões sociossexuais, afetivas e comportamentais que surgiram entre alguns homens gays nos centros urbanos da vida americana gay (...) Eu argumento que homens gays ordenaram a sexualidade hipermasculina como uma forma de desafiar sua estigmatização como homens que falharam, como ‘bichinhas’, e que muitas das instituições que se desenvolveram no mundo gay masculino dos 1970s e início dos 1980s apoiavam e atendiam a esse código sexual hipermasculino – desde as lojas de roupa e butiques sexuais, a bares, balneários e ginásticas onipresentes (Levine, 1998, 5-7).

Dessa época ficaram associadas às imagens relativas ao uso de roupas de couro, aos bigodes, ao lenço pendurado no bolso de trás da calça que pela sua cor indicava as preferências sexuais, à grupos musicais como Village People, à uma década dedicada à experimentação sensorial em vários níveis: drogas, quantidade de parceiros sexuais, idas à clubes sadomasoquistas, saunas e etc., e ao uso de figuras e valores relativos à uma masculinidade clássica, bruta, que fosse o mais distante possível de alguma forma feminina. O adjetivo de “clone” para o autor tinha uma importância fundamental no sentido que deixava claro o tom de paródia e exagero que aquela representação masculina tinha:

O que importava era a duplicidade do estilo clone - sua autoconsciência numa quase paródia em referenciar o estereótipo de masculinidade tradicional, e seu abraço consciente desse mesmo estereótipo ao mesmo tempo. O estilo clone era tanto paródia quanto emulação ( op.cit , 59)

Segundo o autor seria justamente esse modelo de masculinidade valorizada entre os homens gays na época que seria um dos fatores que tiveram maior influência na disseminação do vírus HIV na década de 1980 e na resistência em adotar práticas sexuais “mais seguras”. O auge da epidemia marcaria o fim da figura do “gay macho clone” e de sua estética, apesar dela permanecer como exemplo de figura fetiche dentro do universo das relações homoeróticas e de ser continuamente reatualizada em diferentes contextos. A masculinidade entre homens sofre um impacto com o advento da epidemia da Aids, como apontada por alguns autores (Halkitis, 2000; Ward, 2000; Peterson e Anderson, 2012). Esses autores falam dos efeitos na expressão de gênero tanto de homens homo 79

quanto de heterossexuais a partir dos anos 1990, pós-epidemia. Começa se formar um determinado modelo de “masculinidade gay” que continua a valorizar elementos tradicionais da masculinidade atrelado a todo um cuidado do corpo e das atitudes que se afaste de qualquer estereótipo gay. Todo um processo de separação entre orientação sexual e identidade de gênero, ou seja, homossexualidade e adoção de comportamentos ou atributos de gênero convencionalmente tidos como do “sexo oposto”. Logo, como pauta atual “cria-se a imagem do “bom homossexual” que é discreto, quer constituir família e cuja única diferenciação do “bom heterossexual” é o sexo para quem direciona seus desejos e paixões” (Facchini, 2008, 245). Viria dessa época, inclusive, a expressão “fora do meio gay”, já que a associação entre bares e boates gays à contaminação, à um comportamento promíscuo e afetado era comum. Como afirma Peterson e Anderson (2012, 15), é desse período também que emerge um determinado modelo corporal hegemônico: o do homem malhado ou “sarado” ou não doente. “A suspeição relativa ao status sorológico funcionando como forma de policiamento corporal” em vários níveis. A ansiedade e o pânico relativos à doença fizeram com que se elaborasse todo um trabalho corporal para se “dissociar das marcas de virilidade dos gays anteriores, como o cabelo e bigodes dos anos 1970 e 1980” que significariam agora o velho e a possibilidade de infecção. “A economia sexual dos anos 1990 é a teoria de que quanto mais novo, mais musculoso e liso você é” mais saudável e longe de um quadro associado à magreza, debilidade e doença (idem). Esse corpo forte, liso e idealizado servia para mostrar que não se era doente, afeminado e gay. Para Miskolci, os corpos sarados também são associados à discrição, a não serem reconhecidos publicamente como homossexuais:

A disciplina corporal que envolve exercícios, dieta e hábitos supostamente saudáveis distancia esses homens de estereótipos ainda correntes de homossexuais como sem disciplina, desviantes sociais adeptos de hábitos reprováveis ou perigosos e doentios (2015, 82-83).

Ainda que ter traçado um percurso desses modelos de masculinidade faça sentido para ajudar a compreender a figura subjetiva do macho gestada nessas festas, percebo que o que é produzido aqui é uma forma de ser homem que não se entende enquanto uma identidade. Não é uma “masculinidade gay” no sentido de que não há uma procura de se

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classificar como um modelo identitário seja ele derivado de um modelo médico, seja aquele propagado por determinados movimentos sociais, já que pouco se percebe esses eventos como algo ligado a um universo exclusivo homossexual ou gay31. Esses modelos estão presentes também, claro, atravessam as festas o tempo todo, dão sentido à heteronormatividade e “machonormatividade” desses espaços e servem como tensores em vários níveis. Mas talvez a ideia de ser macho, da forma como vejo que é colocada em discurso e prática pelos participantes nessas festas esteja mais próxima da forma como Foucault caracterizou as relações entre homens na Antiguidade: a de uma técnica de existência, uma dietética, um autocontrole e domínio de si. Ser macho é dominar essa arte. E não à toa a elaboração de um modelo de masculinidade espartana, que na leitura particular feita pelos participantes, seguiria esses princípios. No próximo item pretendo caracterizar mais essa questão do desejo em torno da figura de macho descrita até aqui e da busca de um afastamento do que é chamado de “gaysmo”.

O desejo pelo macho Se como posso perceber em campo o princípio da putaria na efervescência das interações tem a potência de borrar ou mesmo fazer com que determinados marcadores sociais da diferença percam seu peso e seu poder de hierarquia,o mesmo não pode ser dito para o princípio da masculinidade. Inclusive vai ser nesse ponto que as diferenças e desigualdades vão ser mais marcadas e desse modo, motivos de alguns conflitos32.

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Nem muito menos “bissexual”. Como mostram as poucas etnografias sobre o tema, a bissexualidade costuma ser uma prática vista sempre com uma certa desconfiança ou como uma negação em se “assumir” uma “verdadeira” identidade ou orientação sexual. Durante muitos anos, inclusive, a bissexualidade esteve associada acusativamente a maiores chances de contaminação de doenças sexualmente transmissíveis (Lago, 1999 e Seffner, 2003). 32 O princípio da putaria é tema do terceiro capítulo, mas um pequeno exemplo de como ele pode desestabilizar a própria masculinidade foi observado por mim numa das festas em que conheci Fernando. Fernando era um dos funcionários responsáveis pela limpeza. Tinha uma apresentação corporal e performance que podemos ler como feminina para esse contexto. Era baixinho, magro, cabelos longos, sobrancelhas feitas, “voz fina”, usava calças apertadas (os funcionários não podem andar seminus, estão sempre de calça ou bermuda e com uma camisa uniformizada). A figura de Fernando ainda traz mais paradoxos por ele assumidamente gostar de se “montar” e de, naquele momento, ter começado a tomar hormônios para compor uma figura mais feminina, o que se percebia pelos seios que começavam a despontar embaixo da camisa. Meu contato com Fernando não foi o suficiente para saber se ele se identificava com um discurso ou uma identidade travesti ou transexual, mas o fato é que sua figura ali era lida nos termos de “a menina da limpeza”. Numa das

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O que parece demarcar mais profundamente as tensões aqui é o esforço em produzir uma masculinidade que, à princípio, poderia ser entendida como minada em sua base, já que se trata de práticas sexuais entre homens, colocando como contradição a ideia de ser homem (e a posição privilegiada que decorre desse fato em nossa sociedade) e a de ser homossexual (figura subalterna e estigmatizada). O que causaria problema nesse contexto não é o desejo homossexual (o desejo ou vontade erótica com o outro do mesmo sexo), é o medo da homossexualidade (enquanto categoria classificatória e identitária agregada a valores desprestigiados). Isso que é atualizado na tensão caráter espartano X gaysmo. Duas situações presenciadas por mim exemplificam o desconforto mais geral que pode gerar essa diferenciação entre homem espartano e homem gaysta. Uma foi uma discussão entre o organizador da festa e um cliente que se dizia ativista gay. Ele acusava o organizador de homofóbico e de promover reunião de homofóbicos, de querer negar que era gay. O organizador se defendia dizendo que não era homofóbico, apenas não queria seguir as “regras cagadas pelo movimento” e que se ele achava que ali era uma reunião de homofóbicos por que continuava a frequentar o espaço? Outra situação foi durante a apresentação de um show em uma outra festa. Nessa, as festas de orgia sempre terminam com uma série de apresentações em um palco improvisado onde tem performances dos chamados shows de drag queens com dublagens ou uma espécie de humor stand up. Seguese shows de streap tease de modelos contratados e uma performance de sexo ao vivo, onde em determinado momento os atores se misturam com a plateia e a orgia volta a acontecer. Tudo narrado ao microfone por um dos organizadores. Em uma dessas apresentações, um cliente incomodado com as piadas referentes ao gay ou ao afeminado, subiu ao palco e disse que achava absurdo as zoações e xingamentos que tinha ouvido ali naquela tarde. Disse: “pra que isso? Vamos deixar claro, aqui todo mundo é gay, não importa o que digam, não tem que se fazer essas separações e muito menos ter preconceito”. Toda sua fala foi festas vejo Fernando saindo ofegante e seminu de uma das suítes e pergunto: “Nossa, o que que aconteceu?”. Ele responde: “Menina, fui sugado ali para a muvuca. Que loucura! Olha, até perdi as minhas calças! (dizia cobrindo a nudez com a camisa) Não consigo encontrar naquela bagunça. Me ajuda? Não posso voltar pra lá senão vou me perder! Não queriam me deixar sair, dei para um monte! Tô no trabalho, não posso fazer um negócio desses”. As interações sexuais entre funcionários e participantes são comuns nessas festas, mesmo assim Fernando já não estaria presente nas seguintes.

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acompanhada por risadas, um princípio de vaia, e gritos de “não atrapalha, para de falar, continua o show”. O rapaz desceu do palco e o organizador disse no microfone: “depois do horário político vamos voltar com nossa programação normal”. É complexa uma discussão identitária nesse contexto, porque ainda que ela não se faça, no sentido de que não se busca um determinado modelo identitário, esses outros modelos já existentes e possíveis atravessam e convivem nesse espaço causando essas irrupções de tensão. Ao falar sobre o contexto homossexual argentino dos últimos 30 anos, Meccia (2011) cunha o termo de “gaycidad” para falar da forma como se dão as relações sexuais entre os homens atualmente naquele país. Gaycidade não tem nada a ver com gaysmo, é seu oposto. Meccia conta que o mundo e as relações homossexuais tais como se davam décadas atrás, ou seja, interações baseadas em lugares específicos, quase guetificadas, onde indivíduos compartilhavam uma determinada identidade baseada em seus desejos sexuais, está desaparecendo para dar lugar a uma lógica da gaycidade, que seria um esforço de desidentificação com essa imagem anterior e mesmo a qualquer imagem “gay”. Um esforço por uma apresentação de homem macho e discreto que não perturbe as convenções de gênero e que não chamasse a atenção para nenhum tipo de rotulação estigmatizante ou bandeira de luta política, que passasse por um “homem normal”. O mesmo “desejo pela cultura heterossexual e seus privilégios” ou “a premissa de que a heterossexualidade é, em parte, uma fetichização do normal” (Ward, 2015, 35), que é possível perceber no contexto que estamos tratando. Um desejo de não ser marcado sexualmente e que só pode ser possível na medida em que se reproduz a generificação heteronormativa. A própria produção e a erotização dos corpos tidos como mais masculinos, viris e discretos vêm desse desejo de se relacionar com outros homens sem que isso implique a exposição pública do seu desejo, “fato compreensível em uma sociedade que tem acolhido homossexuais nos espaços públicos demandando que não sejam reconhecíveis como tais” (Miskolci, 2015, 69). O centro de toda essa questão nas festas parece ser o lugar que o feminino pode ocupar ali. Percebe-se que apesar da força de exclusão ele não está totalmente ausente. Está presente na insistência de performance de alguns dos clientes, nas apresentações de drag queens e mesmo na decoração de uma das casas que eu apresentei anteriormente. Ao chegar pela primeira vez no ambiente altamente decorado, um dos clientes comentou 83

comigo: “nossa, mas aqui é muito... fashion, né?”, “Fashion?”, perguntei, “É... colorido...”. Esse estranhamento de fato é criado, justamente porque os outros espaços costumam ser despidos de qualquer forma de “decoração”. Paredes nuas, escuras, luzes baixas, nada muito exagerado. Para o organizador, isso é bom, porque até impede que os frequentadores ultrapassem algumas barreiras. De comportamento, de higiene etc. A masculinidade aqui envolve, portanto, todo um controle principalmente na performance máscula e viril que evite qualquer coisa que lembre o feminino. Até mesmo o silêncio em que as interações acontecem contribuem para isso. Não foram poucas as vezes que ouvi reclamações de alguns participantes que após terem transado com uma pessoa em total silêncio, foram para outro espaço conversar melhor e ali, mais à vontade e falando demonstraram uma “pinta” que decepcionava a imagem anterior. “Antes no escuro e sem abrir a boca”. A performance masculina, portanto, não só é passível de falha como também pode ser manipulada pelas pessoas que se reúnem ali. Aquele que acaba por não corresponder ao perfil ou que ali dentro não tem o controle de si para performatizar a masculinidade desejada é deixado de lado nas interações sexuais, motivo de comentários e lido na chave do humor. E esse controle do princípio da masculinidade é gerido a todo momento, do auto controle do corpo para que não se empolgue muito ao dançar com a música pop ou eletrônica do ambiente, da bebida “para que não se solte muito”, mas principalmente durante as interações sexuais. Acho primordial a masculinidade. A pessoa que vem aqui pode, por exemplo, dar para todo mundo na festa, ser passivo o tempo todo, mas ele tem que ser másculo, não precisa ser afeminado só porque dá.

Quando, por exemplo, alguém se altera durante o sexo e começa a gemer muito alto, muito fino, de uma forma muito “aviadada”, é logo chamada a atenção pelo restante do público, seja pelos pedidos de silêncio, seja pela zoação mesmo. No dark room, por exemplo, um gemido mais agudo pode ser repreendido com alguém imitando uma voz afetada: “Para de gemer! Até parece que tá doendo assim, sua larga!” Brigas, discussões e xingamentos são comuns durante a festa justamente pelo fato de alguns participantes não saberem se portar naquilo que é ser homem nesses espaços. A performance do macho 84

nessas festas é a manutenção da “respeitabilidade” nesse contexto, de saber se portar diante desse público, de saber responder às expectativas desses eventos. A feminilidade, ou a bichice que seja, é um desrespeito à essas orgias. Fere as regras locais33. Uma “respeitabilidade” que envolveria principalmente, claro, uma performance máscula, viril, mas que, ao mesmo tempo, engloba também todo uma ética de comportamento específica desse contexto e que eu pude enumerar algumas aqui anteriormente. A manutenção do princípio da masculinidade funcionaria, portanto, quase como uma dietética, tal como colocada por Foucault para pensar a maneira como as pessoas conduziam a própria vida na Antiguidade (2009b). A “bicha” e qualquer coisa que lembre a “bichice”, portanto, é a figura de abjeção maior que precisa ser afastada e negada o tempo todo para que se mantenha estável o princípio da masculinidade nesses eventos. Como vimos no início do capítulo há um fator que o frequentemente atravessa que é a relação entre gênero e classe. Como explica Miskolci, “uma das marcas associadas à ‘bicha’ é a origem nas classes populares”: A “bicha” é o homossexual reconhecido em sua feminilidade, portanto aquele que teria fracassado em gerir o segredo sobre sua sexualidade. Um fracasso frequentemente associado ao espalhafato, uma forma supostamente inconveniente de se comportar expressa em gestos e voz “femininos” ou, ao menos, insuficientemente viris para os padrões da masculinidade hegemônicos (2015, 84-85).

Há aqueles que não se importam, de fato. Um grupo de quatro ou cinco amigos, por exemplo, que sempre ficam em uma das festas reunidos na entrada do dark room. Demonstravam ser o contrário do que os princípios da festa buscam. Eram femininos, faziam muito barulho, falavam o tempo todo, usavam gírias “do universo gay”, chamavam a si e aos outros no feminino e ficavam ali “xoxando as pessoas”34 que entravam e saíam do dark: “nossa, mas esse pinto é muito pequeno, parece mais um grelo! Esse daí tira onda de ativo, mas a gente sabe que é passiva”. Comentários na maioria das vezes depreciativos,

33

Agradeço ao professor Sergio Carrara por ter me chamado atenção a esse ponto.

34

“Xoxar” ou “gongar” é o mesmo que zoar alguém.

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mas também elogiosos para aqueles que despertavam interesse em algum deles. Todo o grupo em si representava algo que justamente não é bem vindo ali. Ficavam concentrados num lugar limiar entre a claridade e a penumbra do dark onde acontece a maior parte das interações nessa festa usando um humor ferino para toda a situação e a todos que passavam inclusive a eles mesmos. Ouviam várias respostas: “Nossa, estão derrubando o armário hoje, hein!” ou “Quanto miado!” e até algumas imitações exageradas. Quando perguntei por que não entravam no dark, me responderam que não podiam entrar “todas juntas senão daria confusão. Tinha que ser uma de cada vez”. Sabiam que não podiam ter o mesmo comportamento lá dentro, que poderia gerar alguma briga mais séria, mas mesmo assim dali se faziam perceber e incomodar quem passava, chamando a atenção com o humor.

Penetrar e ser penetrado Em crônica publicada em 2008, Carrara se pergunta sobre a valorização erótica atual, dentro das relações sexuais e amorosas entre homens, por aqueles que apresentem uma figura que mais se aproxima do “homem heterossexual”, que não destoe ou fuja de uma conformação heteronormativa: “Afinal, apenas os homossexuais viris, discretos e bem comportados merecem o paraíso?”. E o que sua pesquisa demonstra é exatamente isso: como nas relações atuais entre homens, o desejo pode até ser “homo-orientado, mas ele tem que parecer hetero".

O desejo pelo “homem de verdade”, ou seja, pelo padrão de masculinidade idealizado no contexto brasileiro, é o que guia o negócio. O “homem de verdade” é o homem heterossexual. Seu culto demonstra como o desejo por alguém do mesmo sexo pode se associar a um conformismo à ordem heterossexual, às suas normas de gênero, aos seus padrões estéticos e até à gramática das relações sexuais. A díade ativo-passivo, ou mesmo o sintético “versátil”, toma como definidora a relação penetrativa, forma canônica da sexualidade voltada para a reprodução. No código dos homo-orientados, o “homem de verdade” seria o padrão a ser seguido – assim, alça-se o

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parceiro másculo e “ativo” ao topo da hierarquia interna dessa cultura sexual. (Miskolci e Pelúcio, 2008, 12)

A divisão de papéis sexuais relativo à posição durante a relação sexual é tida como constituidora de nossas relações de gênero e sexualidade em vários contextos. Vários autores já chamaram a atenção de como o estigma com relação ao passivo sexual, do corpo que se deixa penetrar, é constitutivo de nossa sociedade e das relações estabelecidas tanto entre homens e mulheres, quanto entre pessoas de mesmo sexo (Misse, 1978; Fry, 1982; Parker, 1992; Kulick, 2008)35. Não é minha intenção com esse trabalho compor algum tipo de modelo geral de explicação sobre a sexualidade brasileira, mas sim de apontar a forma como percebo que os participantes dessas festas de orgia elaboram essas relações. A principio a divisão entre ativos e passivos não é um problema aqui, no sentido de que não há uma preocupação com a questão e mesmo a existência de um desconforto quando ela é colocada. Como no show de humor de uma das drags e do estranhamento causado pela brincadeira feita por ela: “Quem é ativo e quem é passivo aqui? (silêncio) Nada? Levanta a mão então quem deu muito hoje? (silêncio) Ah, vai dizer que todo mundo é ativo aqui agora?! Quem gosta de piroca?!”. Ou da gafe cometida por um casal de turistas espanhóis que chegaram no dark causando tumulto, falando alto, rindo e gritando: “Alguma passiva disponível?”, gerando um silêncio constrangedor como resposta, tanto pelo alarde desnecessário quanto pelo uso de uma categoria (e ainda no feminino) numa pergunta que não costuma ser pronunciada nessas interações. Pelo princípio da masculinidade produzido nessas festas de orgia entre homens, a diferença entre aquele que penetra e aquele que é penetrado não está posta em termos de hierarquia, de alguma posição valorativa. Não se é mais ou menos homem se você se deixe penetrar, desde que, é claro, você “dê como um macho”. Dentro de uma lógica de “machonormatividade”, como afirma Braga

35

A divisão ativo/passivo para se pensar gênero, sexualidade e construções de masculinidade não é uma característica exclusiva brasileira como apontam algumas etnografias realizadas em outros contextos como na Argentina (Sívori, 2005), México (Guttman, 2000), Portugal (Vale de Almeida, 1995) e Espanha (Sáez e Carrascosa, 2011).

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A dicotomia ativo\passivo tende a deixar de ser correspondente a masculino\feminino,

em

um

esforço

de

concentração

da

masculinidade nos componentes simbólicos de “jeito”, “atitude”, “voz”, “postura”, atualização de certos valores masculinistas clássicos, que passa a incluir não só o sexo entre homens, como a própria posição do passivo, bastando para isso afirmar sua condição de macho, amparado pelos indicadores acima. Assim “macho passivo” deixa de ser uma impossibilidade, através do alinhamento desses dois quadros de referência: o da masculinidade convencional e o da posição sexual dessencializada, por assim dizer. E essa possibilidade se dá através da substituição da dicotomia ativo\passivo como fronteira da “macheza” para uma nova oposição, desta vez entre machos e afeminados (2013, 30)

De certa forma, o valor que é apregoado nesses eventos é o de uma versatilidade entre os papéis, ou seja, de que se seja hábil e competente tanto em “comer” quanto em “dar”, ou melhor ainda de que essa questão de divisão nem seja colocada, que ficaria implícita na máxima: “numa putaria entre machos vale tudo”. A versatilidade é apregoada no discurso dos organizadores e presente nas práticas observadas: “Eu não faço festa só pra ativo, nem só pra passivo. Afinal, alguém tem que dar e alguém tem que comer. Eu costumo dizer, inclusive, que quem vem na minha festa pra dar acaba comendo e quem vem todo ativão acaba dando”. E de fato, uma versatilidade é observada em várias situações, como a de um rapaz negro sentado num dos sofás do dark se deixando tocar e manipular por um outro moreno baixinho de descendência oriental. Sem nenhuma reação ou gesto do rapaz sentado, além da ereção, o baixinho o chupou, colocou camisinha nele, passou gel no membro e em si e sentou de costas para o rapaz negro que continuou sem se mover. A ação durou até o rapaz negro se dar conta de um outro rapaz branco, magro e de pênis grande sentado a seu lado. Logo empurrou o moreno baixinho, tirou a camisinha e se agachou para chupar o rapaz magro perfazendo o mesmo roteiro que o outro tinha feito com ele, mas agora nessa outra posição. Ou no inusitado da situação em que ao mesmo tempo em que era penetrado por trás um rapaz perguntava a outro na sua frente com quem beijava: “O que você gosta? De dar? Não tem problema, eu sou versátil, quero muito te comer então” e levava a mão do rapaz até o seu pênis ereto embalado pelo ritmo da penetração que 88

recebia. A um afastamento do outro ele ainda disse: “Não vai embora não, fica aqui. Eu quero ficar com você, nem queria dar para esse cara… já saio daqui e vou te comer”. A versatilidade também pode ser entendida em termos de uma vontade inesperada, de algo que acontece no calor do momento, como com Rodrigo numa festa. Rodrigo me diz que apesar de já ter sido ativo algumas vezes, gosta de ser passivo mesmo e para isso sempre vai às festas com uma cueca jockstrap (um tipo de cueca que deixa a parte da bunda a mostra), “para deixar bem claro” sua preferência. Ainda sim quando o vi sendo ativo numa das interações, ele me explicou: “Menino, me deu uma coisa. O cara começou a pegar no meu pau, eu comecei a pegar na bunda dele, estava gostoso, quando eu vi tava comendo ele. Só que foi sem proteção né, se eu colocasse a camisinha acabaria brochando”. Além de uma vontade inesperada, a versatilidade pode trazer uma ideia de cosmopolitismo em contraposição a um comportamento tradicional ou retrógrado:

“Essa divisão não existe mais! Cara, só aqui no Brasil que você ainda vê isso. O tempo que eu morei fora aprendi que isso é uma besteira. Você é bonito? Me atrai? É gostoso? Então eu faço tudo com você! Dou para você, te como, o que der vontade...Essa coisa de ser só ativo ou só passivo é muito antigo e uma besteira. Não só aprendi lá fora. Aqui mesmo namorei anos um casal. Um era ativo e o outro passivo. E eu no meio. Aprendi a gostar de tudo para fazer com os dois”.

A divisão entre ativo e passivo, apesar de ser constantemente desconstruída nesses eventos, não é eliminada. É, como percebo, entendida em outros termos. É uma divisão que se faz necessária em termos de “compatibilidade”. Como me explicam: uma vez num lugar onde todos estão dispostos\disponíveis para o sexo, o negócio é só a “química” bater, “é só encontrar alguém compatível”, “que encaixe”.

Uma elaboração de um determinado

“modelo químico” de relação (ou de ligação) que eu procurarei explorar no segundo capítulo, mas que já aponto aqui para mostrar como ele opera de fato nas relações e interações. A ligação “compatível” é necessária para as interações (não só em termos de “encaixe” como plugs, tomadas e buracos, mas também de “química”). Apesar da necessária relativização da ideia de papéis sexuais, mesmo as exercidas no ato sexual, a prática no sexo do ativo\passivo é importante nesse contexto, já que cria a polaridade no

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sentido até “químico” ou “físico”, necessária às ligações. Não é o estabelecimento de identidades, valorizações, hierarquia ou pré-essências, o jogo ali na conexão pode mudar isso, ser negociado\experimentado (ativo em passivo, passivo em ativo ou no revezamento), mas o jogo da interação não se faz sem a polaridade, sem a compatibilidade (ainda que momentâneas e contextuais) ali faz-se ou está aberto à experimentações, a “coisas que eu não faria ou normalmente não faço”, pessoas que eu não pegaria etc.36. Outros fatores de “estímulo” podem ser dados para que o desejo de uma determinada posição no ato sexual apareça, como nesse diálogo que tive: -

Meto pra caralho. Curte dar chapadão?

-

Chapado de quê?

-

Se me pergunta é porque não curte…

-

Não. Sou mais tranquilo. Você, pelo visto, curte uma barra mais pesada rs

-

Claro que não. Pra meter tenho que estar careta.

-

Entendi. E usa o quê?

-

Você não entendeu. Sou ativo. Mas tenho que ficar careta. Quando rola de tekar37 (sic) de leve minha pica brocha. Aí rola tesão na bunda, fico com tesão em dar.

-

Ah tá, entendi.

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Uma outra proposta de festa organizada em Amsterdã utiliza da divisão ativo\passivo para criar uma cena mais fetichizada. O evento que se chama “Meat Market” (mercado de carne) possui a seguinte proposta: os passivos chegam na primeira hora da festa, ficam totalmente nus à exceção de um capuz que cobre totalmente sua cabeça impedindo a visão e se posicionam à espera dos ativos que podem entrar a partir da segunda hora. Os passivos não podem mudar de sua posição e não podem recusar nenhum dos ativos que são livres para caminhar pelos espaços da festa e escolher seus parceiros. O uso de camisinha vai ser indicado pela cor do capuz que os passivos usam. Capuz branco: apenas com camisinha e capuz vermelho: não é necessário o uso do preservativo (a não ser que o ativo queira). Seguranças estão distribuídos pela festa para assegurar que as regras sejam seguidas. A cada transa o passivo ganha uma marca. Ao final da noite aquele que tiver mais marcas não pagará a próxima entrada na festa. O local onde acontece a Meat Market tem o irônico nome de Club Church (igreja) e recentemente foi feito um documentário chamado “Churchroad” (2016) sobre o espaço e as festas que ele promove. 37 “Tekar” ou “tecar”: ato de cheirar cocaína.

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O uso da droga aqui agenciaria o prazer específico em uma determinada posição no ato sexual. Há também, muito presente, o fator do tamanho do pênis: “Só gosto de dar quando o cara tem pauzão. Não curto dar para pau pequeno. Tem que ser igual ou maior do que o meu. Muito difícil eu ser passivo. Mas quando eu vejo um cara com pauzão, fico com vontade de dar”. Para aqueles que chamam a atenção pelo fato de possuírem um pênis acima da média contam-me de uma certa dificuldade em conseguirem ser passivos em alguma interação sexual, mesmo que tenham vontade. Um deles, cientista social, com quem conversei disse que carregava o “fardo do homem bem dotado”, já que todos os que se aproximavam dele e percebiam o tamanho do seu membro automaticamente adotavam uma performance passiva na interação. Mesmo que ele quisesse e tentasse ser passivo também,

“dando sinais como pegando bastante no pau do outro, me agachando pra chupar ou mesmo oferecendo a minha bunda, o cara dá um jeito que eu tenho que comer ele. Não estou querendo dizer que sou um coitado não, tipo ‘pobre brinquedo sexual objetificado num pau grande’, até porque eu me aproveito muito disso, mas que às vezes é um fardo é”.

Pedro, um dos participantes também concorda e diz passar a mesma coisa, com “um agravante” pelo fato de ser negro:

“Essa coisa do fardo do bem dotado é verdade, principalmente quando eu quero ser passivo com alguém, porque automaticamente eu sou tomado como ativo. Ainda que o passivo dotado possa ser tomado como uma imagem fetichizada também...só que no meu caso tem a coisa da cor que é um agravante. Homem negro de pau grande só serve pra ser ativo”38.

Da mesma forma foi possível observar alguns discursos nos quais o passivo também pode ser uma figura problemática aqui. Pode ser encarada como uma prática dentre outras, como um uso do corpo, mas também pode entrar numa lógica contraditória marcada pela

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A interseção entre raça e gênero com implicações no posicionamento das interações sexuais é explorada por Díaz-Benítez (2005) , Green (2008a e 2008b) e Simões et al (2010).

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reprodução de um discurso sobre a passividade que está presente na sociedade de forma geral, reverberando (mas também levando ao seu paradoxo) esse discurso machista, heteronormativo e misógino39. A desvalorização do passivo enquanto figura estigmatizada, pode aparecer nesse campo na ideia de que o “passivo tem que se dar o valor”, não tanto da passividade enquanto ato, mas da necessidade de um autocontrole maior para o passivo. Há a reprodução de um discurso de que o passivo não deve “dar para qualquer um” e nem “dar de qualquer jeito”. “Dar” muito, sem ver a quem e para todo mundo assistir parece que de alguma forma desvaloriza a pessoa e também mostra uma disposição para outras práticas mais ousadas e mesmo “perigosas”. Com esses poderiam “meter de qualquer jeito, na pele (sem camisinha), com força, gozar dentro, na cara, usar e abusar”. Isso se percebe seja na fala de Felipe com o “gringo loiro bonitão dando para qualquer um que chegasse nele” até o desconforto em uma apresentação onde o stripper se colocava em posições “passivas”: “Porra, stripper passiva? Esse cara tá sentando no colo ao invés de colocar para sentar!”. Os recursos para que o passivo “se dê o valor” iriam numa atenção e cuidado a certos atos como: você pode ser chupado ostensivamente, mas se for para chupar ou dar,

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Em uma entrevista, ao ser questionado sobre a presença de uma misoginia dentro da filosofia do macho espartano, Ricardo Líper defende: O que existe é sexo entre homens. Se se altera esse fato se cria outra coisa. Sei que pode ser mal interpretado mas nada tem a ver com misoginia. O que os espartanos querem é manter o gênero masculino como ele é com todas as suas características porque não querem androginizar-se. Tornar-se um gênero neutro que é o que os moralistas ou oportunistas querem. O receio dos espartanos é que por culpa ou modismos culturais se imite sempre o sexo entre pessoas de sexo e gênero diferentes, perdendo assim sua característica essencial que é ser sexo entre pessoas do mesmo sexo e gênero. Ele acha uma opressão, se ele gosta de se relacionar com outros homens, alterar sua masculinidade. Entende que a androginia é compreensível entre um homem e uma mulher para ela não ser oprimida por ele, mas entre dois homens é perder a razão de ser. Seria misoginia se criticasse o fato de uma mulher depilar-se. O que se critica é um homem depilar-se em excesso ou afeminar-se. Por que o homem teria de deixar de ser homem? Porque é politicamente correto isso atualmente. Confunde-se masculinidade com patriarcalismo. Esse é um grande equívoco. É não saber o que é o gênero masculino. (Fonte:http://178.79.155.229/kk2011/index.php/Main/EntrevistaCom RicardoLiper)

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procure alguns recursos que o “protejam” ou “escondam”, em algum canto escuro ou se tampando pelo corpo do outro, não fique de bunda virada para as pessoas, não faça sons ou ruídos espalhafatosos, evite fazer no meio da multidão, não dê muito, escolha bem para quem você vai dar e também onde, dê preferência a dar nos banheiros ou nas cabines se tiver, e mesmo só faça à dois, evitando participação de muita gente.

“Habitando a norma”, o exagero que (des)faz gênero Ainda que a maioria dos participantes dessas festas tenha um conhecimento geral do circuito de eventos de orgia que acontecem pela cidade, não chegam de fato a acompanhar ou frequentar todos. Quando, por exemplo comentei sobre a existência de uma festa que acontecia em um “club prive” onde para entrar tinha essa exigência de um perfil de “homens magros, sarados, boa pinta, em boa forma física e dotados” fui interpelado, “nossa, me explica mais como funciona esse clube de arianos bombados”. Na hora, esse comentário me causou uma surpresa muito grande, porque primeiro não tinha conseguido entender como da minha fala ele tinha compreendido que ali poderia ser um lugar exclusivo para pessoas brancas e musculosas. Mas, segundo e mais importante, me chamou a atenção para que percebesse que, ironicamente, a maior parte dos frequentadores desse club prive são, na verdade, de negros e ursos. Essa predominância de negros e ursos, segundo eles, não era à toa. Tinha tudo a ver com a filosofia do caráter espartano. Porque o que é entendido aqui é que são justamente os negros e os ursos os grupos que seriam os últimos guardiões dessa masculinidade perdida, tomada pelos valores do gaysmo contemporâneo. Os negros, pelo entendimento já muito apontado por outros autores de que há um fascínio e um mito em torno do corpo negro ou moreno e seus atributos sexuais. A masculinidade do homem negro provém de uma associação entre negritude e animalidade, apontada por Perlogher como uma “herança da época da escravidão onde era negada a humanidade do africano e o destinava exclusivamente ao trabalho braçal. Daí o folclore do negro forte, machão, violento, e que possui o pênis de proporções gigantescas” (1987, 152).

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Daí também a dificuldade em se pensar no homem negro que corresponda a esses estereótipos e que possa desejar ser passivo nesses eventos. Os ursos, segundo Carlos Figari (2007), é uma determinada forma de representação masculina que apareceu no final do século XX e início do XXI que procurou se contrapor a uma estética “gay”, principalmente chamada de “Barbie”, que seriam os homens muito musculosos, depilados, de roupas justas e coloridas. Os ursos se diferenciariam pela busca em preservar características que são tidas como mais viris e mais másculas: corpo volumoso, peludo, barba, roupas sóbrias, enfim a projeção de uma imagem masculina de aparência bruta, não afeminada40. Venho entendendo o espaço das festas de orgia em meu trabalho como o que Foucault chamou de “heterotopia” ou mesmo, nos termos de Preciado como “pornotopia”. Pretendo me aprofundar sobre esse uso conceitual no segundo capítulo, mas por ora diria que a ideia de que existem na cidade “lugares outros” onde representações e normas podem ser suspensas, contestadas e/ou invertidas encaixa muito bem no que à primeira vista pode-se perceber desses homens que se reúnem periodicamente para se engajar em uma interação de sexo grupal e coletivo. Acontece que o princípio da masculinidade como colocado aqui não é algo muito diferente daquilo que é colocado como no restante da sociedade. Como vimos não há uma busca transgressora no sentido de se buscar formas revolucionárias de ser homem. Muito pelo contrário, há uma busca pela figura normativa de homem, de uma “natureza própria e verdadeira” desse homem, seja ela entendida e chamada de “heterossexual”, de “macho” ou de “caráter espartano”; é essa figura que é desejada e que se busca forjar aqui.

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Um bom exemplo de como essas subjetividades e categorias de pertencimento a partir de modelos de masculinidade se constituem em um atravessamento entre consumo, identificações e as diferenças de gênero, cor/raça, geração, classe e sexualidade é a da apresentada na etnografia de França (2012). A autora analisa como diferentes subjetividades são construídas a partir da explosão de um mercado específico para as diferentes homossexualidades na cidade, mais especificamente os processos de reificação dos lugares, tornando-se eles próprios produtos consumíveis. A etnografia se centra na comparação de três espaços: uma grande boate de música eletrônica e a figura da “Barbie”; uma festa voltada aos “ursos”; e um samba popular GLS.

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A questão é que esse valor de masculinidade funciona nesses espaços como uma caixa de ressonância. Ele amplia-se e é elevado a outras potências. Espera-se que você aja/seja mais homem que a imagem do homem másculo e viril comum no cotidiano. Alguns autores marcam isso como valorização de uma “hipermasculinidade” ou “hipervirilidade”. Eu prefiro dizer que aqui, no contexto das festas de orgia, o que se pratica é uma masculinidade exagerada. A escolha do adjetivo de exagero é para que se perceba que o ser macho aqui é tão grande que pode alcançar níveis paradoxais e que deixa abertura para aquilo que Butler chama de “paródia de gênero” (2003). Assim como Pocahy (2011), busco de alguma forma em minhas análises fugir um pouco da ideia de “masculinidade hegemônica”41, ainda que reconheça o valor desses estudos, mas o que percebi em campo foi um confronto diferenciado entre práticas de reiteração das representações de masculinidades agenciadas a práticas de prazer. Pego duas ideias de autoras que vem pensando de forma inovadora a ideia de agência em gênero e sexualidade e que acredito renderem na análise das festas de orgia entre homens que acompanho. Se como quer Welzer-Lang a “casa de homens” é um local de construção de gênero, de forjamento de homens, concordo com Judith Butler quando diz que toda construção de gênero também é uma possibilidade de desconstrução (2004, 67-88). Se é na performance que se “faz” um sexo/gênero, como diz a autora, um gênero também pode ser desfeito, ou seja, na agência performativa dos indivíduos abre-se a possibilidade de (re)produção onde as normas do sistema sexo/gênero e da própria matriz heterossexual podem ser subvertidas ou reconsideradas (2003, 185-201). As práticas de exagero, afetação e paródia, apontadas pela autora como “subversões performativas”, são possibilidades que revelam a mutabilidade dessa construção e linhas de fuga àquilo que é colocado como próprio princípio das festas e do que é ser homem na sociedade em que vivemos.

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O conceito de masculinidade hegemônica foi elaborado no início dos anos 1990 por Connell (1995) para pensar a relação entre construção de gênero e hierarquia social. Influenciou toda uma geração de pesquisadores que se debruçaram sobre os estudos de masculinidade e de gênero ao pensar a existência de modelos generificadores que são tidos como legítimos em estruturas de poder e ao mesmo tempo os chamados modelos de masculinidade “subordinados” ou “alternativos”. A própria autora buscou fazer uma releitura crítica do conceito e um levantamento dos trabalhos que o utilizam em Connell e Messerschmidt (2013).

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Mas é importante frisar que esses espaços não são livres de toda e qualquer produção normativa. Muito pelo contrário. Como espero ter demonstrado com as descrições do campo a relação entre norma\transgressão não é estática, é contextual e contingente. É preciso perceber em que medida há transgressões e em que medida há reiteração das normas. A norma até pode desaparecer por instantes, mas reaparece, causa disputas, conflitos, entretanto na maioria das vezes coabita e ressoa nesses eventos. Nem sempre numa lógica de resistência como o grupo que se posta na porta do dark fazendo piadas ou das falas “politizadas” que irrompem isoladamente, mas muito mais em termos do que Saba Mahmood chama de habitar a norma, “os modos pelos quais os sujeitos agem no interior das normas que os mesmos habitam” (2005, 15). Para a autora, as “normas não são só consolidadas e/ou subvertidas, mas, como gostaria de sugerir, são performadas, habitadas, e experienciadas em uma variedade de maneiras” (op.cit., 22). Se o grupo da porta do dark incomoda com a performance afeminada e o humor ferino, quando vão procurar isoladamente os outros corpos para as interações sexuais, buscam no outro e em performatizar em si mesmos justamente aquele modelo normativo que estavam pondo à nu e criticando ainda há pouco. Sabem que essa é a forma pela qual vão ter sucesso nas interações ali e que é assim que funciona o princípio da masculinidade nessas festas entre machos. E, inclusive, foi por desejar interagir sexualmente com essa figura de macho nesses termos que eles foram ali. Desejo reiterativo pela norma, desejo do macho de caráter espartano, mas que a meu ver também pode acabar por apontar, em suas perfomances exageradas, paradoxos, manipulações e fugas dessas mesmas normas. Uma produção desejante que exacerba a figura do homem e que na intensidade da “putaria entre machos” leva-a a seus limites. Nas festas de orgia entre homens a masculinidade é tanta que transborda, e pode transbordar não só no seu “contrário”, mas em outras possibilidades.

O show: exagero e grotesco Numa das festas que são abertas, que não fazem uma seleção do público, e que ao mesmo tempo apresentam uma das maiores quantidades de participantes, há a apresentação de um show de sexo ao vivo sempre perto do final da festa. O show sempre é

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lembrado com destaque nos cartazes como um forma de propaganda e diferencial apresentado nesse evento42. A base do roteiro do show costuma sempre ser a mesma. Começa-se com algum número de dança e\ou de humor. Alguma drag queen ou dançarino pode apresentar uma performance de stand up, de dublagem ou de dança. Segue-se algum número de striptease com algum gogoboy convidado. E, então, tem-se o show de sexo ao vivo. Dois atores chegam ao palco com um participante convidado (esta participação é acertada anteriormente com os organizadores, até porque aqueles que entram como convidados nas apresentações não pagam a entrada na festa). A interação é centrada nos três no palco inicialmente, e depois os dois atores começam a interagir com o restante da plateia, podendo inclusive descerem do palco para se misturarem às interações que já estão acontecendo ali embaixo estimuladas pelo show43. Todas as apresentações são demarcadas pela narração de um dos organizadores que, ao microfone, vai estimulando com palavras de incentivo e de ordem as ações do palco e na plateia, além do papel da música sempre alta e do gênero funk cuja batida vai demarcando o ritmo das interações. Em determinado momento há um apagar das luzes, para que os atores possam sair sem serem agarrados e a cena ainda continua por um tempo com os restantes44. Durante um período que pude acompanhar, os organizadores usavam o recurso dos “Anacondas Ninjas” para facilitar a retirada dos atores. Eram um grupo de quatro ou cinco homens, todos negros e bem dotados (a chamada para fazer parte dos Anacondas Ninjas enfatizava bastante isso), que 42

Uma outra forma de eventos especiais que volta e meia aconteciam em algumas dessas festas eram os concursos que tinham uma periodicidade mais ou menos anual. Um exemplo deles é o do “Garoto Vale Tudo”, um concurso que como me explicam não é para premiar “modelos”, mas sim o conjunto da obra de corpo, aparência, atitude e simpatia. Também a Black Hall apresenta agora um concurso com os “melhores do ano”: melhor neca (pênis), bunda, peitoral, perna, negão, twink, comedor, foda e surpresinha (“Gente, surpresinha é quando você olha pro cara, não dá nada, acha que dali não vai sair nada de interessante... E quando menos se espera tá berrando "tira, porra, tira que tá me machucando””). 43 Há também um jogo de rodízio entre os atores baseado na ereção: aquele que estiver com o pênis mais ereto se coloca no centro da cena para performar a penetração, o outro que estiver com mais dificuldades para manter a excitação (“meia bomba”) coloca para chupar ou outras práticas que são tidas como preliminares. 44 Uma curiosidade nessa performance dos atores no show é que eles nunca gozam nesses eventos. Muito diferente das representações pornográficas em que as cenas de orgasmo e ejaculação são tidas como essenciais e vistas em closes detalhados (as chamadas money shot). Aqui, não há um momento de orgasmo e/ou “finalização” em suas atuações, seja porque suas performances são entendidas dentro de uma dinâmica maior da festa e também mesmo pela dificuldade prática da ejaculação naquela situação (que é dificultada pelo uso de remédios para manter a ereção).

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subiam nus no palco, apenas com as cabeças encapuzadas (daí o “Ninjas”) e ficavam enfileirados na beira do palco para serem chupados pela plateia. Isso “distrairia” as pessoas e os atores poderiam sair de cena mais tranquilamente45. Os elementos que mudavam no show eram mais ligados a uma temática. Não raro os atores podiam vir fantasiados com algum tema específico. Vestidos como jogadores de futebol, lutadores de artes marciais, alguma figura de exaltação da masculinidade que já falamos, ou simplesmente chegavam de cuecas e até mesmo já completamente nus46. A dinâmica do show mudava poucas vezes. Como me explicaram os organizadores, essas mudanças viam da informalidade de como essas apresentações eram acertadas. Não há nenhum tipo de contrato de trabalho com as pessoas que se apresentam ali, tudo seria combinado “de boca”. E por isso nem sempre as apresentações combinadas e anunciadas nos cartazes apareciam, da mesma forma os atores nem sempre conseguiam cumprir o horário, às vezes o show começava com um só e o outro chegava atrasado e já ia tirando a roupa com que chegou da rua no palco mesmo, adentrando a cena já iniciada. Durante o tempo de pesquisa o que não mudou foram os dois atores. E para os organizadores isso tinha um motivo específico: “a dificuldade em encontrar caras que conseguissem ficar de pau duro durante um tempão naquela situação e que curtissem foder de verdade”. Os dois atores sempre eram os ativos nas interações encenadas e para os organizadores se apresentava uma segunda questão que era: “conseguir passivos que aceitassem entrar com eles. Nem sempre é fácil, sabe. Depois que eles já estão lá fodendo, alguns ficam mais a vontade para subir. O negócio é que alguém tem que começar, tem que ter coragem de

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Em datas comemorativas como Natal, Ano Novo, Páscoa e aniversário da casa uma ceia especial também é servida logo após o fim do show. De qualquer forma, a organização costuma montar uma pequena mesa de petiscos e biscoitos ao final de todas as festas para aqueles que ainda estão lá. 46

O show é o único momento em toda essa festa no qual se tira fotos ou se gravam vídeos. Os organizadores seriam os únicos autorizados a usarem as câmeras para fazerem esses registros que depois são usados como propaganda da festa nas divulgações pela internet. Apesar do organizador avisar várias vezes que todos os rostos serão apagados ou tampados (exceto dos artistas que se apresentam), o uso das câmeras já causou vários momentos desconfortáveis com alguns participantes. No Anexo III, reproduzo alguns desses registros dos shows, que apesar de não conseguirem passar toda a intensidade das dinâmicas observadas podem ajudar o leitor a visualizar melhor as descrições feitas nesse capítulo.

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subir lá e dar na frente de todo mundo. Se você soubesse o convencimento que a gente tem que fazer”47. O show demarca, se posso colocar assim, o clímax da própria festa. É quando há uma reunião daqueles que ainda estão espalhados pela casa, devidamente chamados pelo organizador que vai no dark e de quarto em quarto avisando: “gente, não quero atrapalhar não, sei que o negócio tá bom, mas o show vai começar”; e às vezes recebe como resposta: “o show está acontecendo aqui!”. Ou então o aviso de que com a “sessão de descarrego” (como também é chamado o show) as luzes do dark se acenderiam para se fazer uma limpeza. O dark sendo o espaço principal das interações nessa festa, de luzes acesas, acaba por perder muito de sua magia. Na claridade, o que chama a atenção são as pilhas e pilhas de lixo pelos cantos e espalhados no chão. Camisinhas usadas, suas embalagens rasgadas, papel toalha usados, sachês de lubrificantes, embalagens de chicletes e alguns vidros de poppers vazios. Mesmo já um pouco claramente cansados das seguidas interações tidas ao longo das mais de cinco horas de festa, os participantes se empolgam para descer à boate central onde fica o espaço do show. De fato, o show é o momento onde a maioria dos participantes se reúnem em um mesmo espaço para a apresentação de um novo nível nas interações. A meu ver é quando o exagero ou o excesso que determina as performances nesses espaços, alcança o ponto de um limite com o grotesco. O grotesco apareceria aqui como uma forma de representação que vai além dos limites do exagero48. O tema da representação grotesca se tornou um clássico na análise feita por Bakhtin da obra de Rabelais (1993). O sentido de grotesco, segundo o autor, refere-se a um estilo de representação que se caracteriza pelo “exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso” (op.cit, 265). O corpo grotesco é aquele que toma contornos específicos diferentes de uma determinada representação clássica, ou melhor ainda, que dilui o seus contornos:

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E, de fato, “subir no palco” também era usado como uma forma de piada entre eles. Recorrentemente quando estava me arrumando e colocando minha roupa para ir embora e algum dos organizadores via, soltava a piada: “Mas já vai? Logo agora que eu ia te colocar no palco para o show!” 48 Acho importante frisar que uso “grotesco” aqui sem o peso pejorativo que o termo costuma carregar. Não aparece nesse trabalho como uma acusação ou valoração moral, mas sim como uma categoria de análise estética.

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Ao contrário dos cânones clássicos, o corpo grotesco não é representado em isolamento, com seus contornos completamente definidos, mas em contato e interpenetração com outros corpos. Expressão de um mundo inacabado, em constante transformação, o corpo grotesco representa (muitas vezes simultaneamente) o processo de nascimento, alimentação, excreção, atividade sexual, morte e nascimento (Nuto, 2000).

Tomemos o exemplo das festas que caíram nos domingos de Páscoa. O tema nos cartazes era : “Caça aos ovos” e nada durante o evento tinha alguma coisa que pudesse se relacionar à Páscoa a não ser no momento do show. Durante as performances muita calda de chocolate foi usada nas interações com a plateia. Escorrida pelos corpos, lambuzada nos rostos, lambida e tomada pelos outros. Os atores também chegaram fantasiados de coelho. Orelhas de papel, maquiagem com nariz vermelho e fios de bigode, além de um pompom de algodão branco preso na parte de trás. Tudo ao som de uma trilha de músicas infantis, ao invés do costumeiro funk. Traziam cenouras grandes na mão e no auge das interações no palco eles colocaram camisinhas nelas para serem usadas nas penetrações. Toda a ação gerava muito riso, mas não foram poucos os que deixaram se penetrar com a cenoura, que a comiam depois, que aproveitavam o restante do chocolate…“Como resultado do procedimento grotesco, você tem uma forma de representação que, em geral com fins satíricos, abuse da figura de corpos misturados, da fusão do corpo humano com o corpo animal e\ou com outros elementos” (op.cit.). Uma representação de um corpo “festivo”, “orgiástico”, onde são expostas e satirizadas uma própria fisiologia desse corpo e suas (im)possibilidades. Bakhtin também destaca que é comum na representação do corpo grotesco o enfoque no que chama de “baixo corporal: orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz” (1993, 23)49. É como se todo aquele sexo praticado em excesso durante as longas horas da festa chegasse nos shows a um ponto limite. Não a um ponto de saturação, mas a uma fronteira (de prática, de intensidade, de representação e mesmo de materialidade dos corpos) onde 49

Essa relação com o corpo, sua superfície e funções corporais no caso masculino irão ser trabalhadas a seguir no próximo item.

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os próprios participantes pudessem ver do que se trataria uma festa de orgia, que funcionasse como um espelho, uma representação para a plateia (com a participação dela), daquilo que ela fez o dia inteiro. Onde o sexo e performance excessiva é devolvida em forma de grotesco.

O corpo do homem Há um uso e uma elaboração do corpo masculino muito próprio que percebo no desenrolar dessas festas. As atribuições e sentidos dadas aos orifícios, extensões, substâncias e secreções da multidão de corpos na orgia tomam aqui atribuições que tentarei explorar nesse item. Que as extensões e partes do corpo ganhem agência e tomem “vida” aqui, me parece ser a primeira coisa que chame mais a atenção. O corpo masculino nesses eventos é dividido e capturado por seus fragmentos, há uma dissolução de formas constituídas (característica do erotismo, segundo definição clássica de Bataille), um corpo decomposto, em pedaços que possuem vida própria, um “corpo impossível” (Moraes, 2002). “Queria dar para os 22 centímetros dele”, agência do pênis, você não quer “dar” para o outro indivíduo, você quer “dar” para o membro dele, um membro que toma vida e persona aqui. A extensão do pênis como um corpo único, separado e de agência própria aparece durante as interações no tratamento dele como se fosse um ser com vontade própria, referenciado na terceira pessoa, alguns com nomes ou apelidos, olhados, tocados e desejados como o elemento único de apreensão do outro. Isso pode chegar até o uso de algumas “tecnologias” como o anel peniano, um acessório feito de plástico ou metal, colocado na base do membro (alguns incluem o escroto também) que prende a circulação do pênis, mantendo a ereção. Para quem usa, a sensação parece ser de uma excitação constante, “parece que alguém está apertando o meu pau o tempo todo”. Para o outro a sensação é mais complexa. O toque, a manipulação do pênis, causaria uma relação\sensação estranha pela percepção até de uma temperatura diferente, ele fica mais frio\gelado do que o restante do corpo, como um membro dormente, apesar de intumescido e que acaba aumentando a sensação de uma separação de corpos, de objetificação de uma parte, de um membro, “eu gosto e desgosto: gosto porque o pau tá ali sempre duro, mas é estranho ao mesmo tempo porque fica parecendo uma carne morta”.

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Formação de um corpo “outro”, um exercício de transformar partes do corpo em “dildo”, nos termos de Preciado50. Mesmo o próprio pênis, no caso, poderia virar um dildo. E ainda que tenha visto poucas vezes isso acontecer nas festas que acompanhei havia outras formas de objetificação ou de “deslocamento do dildo” para outras partes do corpo como dedos, mãos, braços e pés51. Interações sexuais nas quais essas partes é que penetravam numa forma de relação sexual desgenitalizada ou que não girava em torno da penetração do pênis. Práticas como o fist fucking (penetração das mãos e punhos) ou foot fucking (dos pés) foram observadas por mim ainda que esses espaços não tenham uma preparação específica necessária e que se costuma ter à essas formas de interação sexual (como cadeiras suspensas, luvas, grande quantidade de lubrificante e etc.). Eram coisas que surgiam na intensidade das interações e que chamavam bastante atenção justamente por sua raridade ali. Apesar disso, a centralidade do pênis como objetificação do outro permanece hegemônica, ainda que com usos que possam relativizar ideias generalizadas. Comecemos pelos sentidos que são dados ao ato que comumente é tido como um sinal de perda da virilidade: o “brochar”. A primeira vista, num espaço onde o ato sexual e a masculinidade demonstrada entre machos e performatizada de uma forma tão exagerada, não conseguir ter ou manter uma ereção poderia ser lida de uma forma desastrosa. Não é o caso52. O “brochar” aqui é relativizado e entendido de outra forma: Rodrigo se aproxima de mim depois de ter transado e falou sobre o cara que foi ativo com ele:

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Em seu “Manifesto contrassexual”, Preciado propõe uma série de exercícios e “práticas de subversão” que possam desconstruir sistematicamente a naturalização e função reprodutora das práticas sexuais e de nosso sistema de gênero. Para Preciado o “dildo” desestabiliza as lógicas instituídas pelo pênis e pelo falo, já que o dildo não imitaria o pênis, por ser primeiro, mas sim o suplementaria (2014, 23). Para isso, propõe uma mudança de perspectiva no qual “a prótese” enfatiza a necessidade de pensar o corpo e o sexo como “tecnologias” que reformulem o uso heterossexual. Esse princípio torna-se um ato reflexivo fundamental na história da “tecnologia contrassexual” proposta em seu Manifesto (op.cit, 25). 51 Até mesmo o olho aqui torna-se um órgão sexual, na medida em que, como já vimos, olhar é estabelecer uma forma de interação erótica e sexual. O Professor Antônio Rafael Barbosa me lembrou a ironia de ter sido justamente no olho onde recebi um jato de esperma que me obrigou a tomar uma profilaxia para o HIV. 52 Ainda que para evitar essas situações ou para se intensificar a performance a própria organização de uma das festas busca lucrar vendendo na recepção comprimidos como Viagra. Um dos cartazes na entrada dizia: “Temos Diamante Azul- R$10,00 (falar com X)”

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“Meio decepcionante. Às vezes você vê o cara assim e tal, maior pinta, mas aí na hora nem manda tão bem assim. É diferente do cara que brocha. Quando brocha sempre dou uma segunda chance. Hoje ele pode não estar bem, mas quem sabe numa próxima? Ou então só não me curtiu”

A fala de Rodrigo explicita o que, de maneira geral, encontrei no campo, não conseguir ter uma ereção não só não é um grande problema, como até acontece com regularidade. Além do mais, engana-se quem acha que a “obrigação” da ereção estaria restrita àqueles que seriam apenas ativos. Como já ouvi aqui: “passivo que é passivo dá o cu com o pau durinho do início ao fim e ainda goza dando sem nem colocar a mão”, uma máxima que de fato pouco vi acontecer ali. Há um frouxamento ou uma maior compreensão com relação a isso. Como não há um compromisso com o outro, brochar não parece causar maiores constrangimentos. Aliás, a qualquer momento pode-se abandonar a interação, sem maiores ou mesmo nenhuma explicação. A camisinha pode incomodar, a falta de uma posição confortável, a dificuldade de penetração do passivo, as pessoas falando muito ao redor, ou “atrapalhando” querendo passar a mão e participar de alguma forma. Ou simplesmente o encontro desses corpos desconhecidos não funcionar, não “encaixar”, não “dar liga” ou não “ter química” de alguma forma naquele momento. Enfim, são inúmeros os fatores que podem levar a uma desconcentração e perda de estímulo. O que comumente se entende como uma “fraqueza”, aqui é apenas resultado de um mau encontro. Do brochar poderíamos passar para a questão do “cheque”. Afinal, como me disse um dos participantes: “o brochar está para o ativo, assim como o cheque está para o passivo”. O “cheque” ou “passar o cheque”, é o aparecimento de fezes durante o sexo anal, que costuma ser evitado pela prática da “xuca”, uma ducha higiênica para retirar os resíduos do intestino, evitando uma situação constrangedora durante a penetração anal53. A “xuca” é um dos recursos possíveis que são tomados como atenção a uma alimentação específica antes de ir para a festa ou mesmo a simples ida ao banheiro. Cada participante possui métodos próprios a partir de um conhecimento do funcionamento do seu corpo.

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Todos os organizadores pedem em seus sites dos eventos que as pessoas que forem ser passivas durante as interações na festa tenham o cuidado de fazerem a lavagem já em casa antes de ir para as festas. A preocupação aqui é não sujar os banheiros do evento com “água de xuca”, que é o que normalmente acontece.

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Porém, muito comum, é durante as várias interações que acontecem durante as festas alguém “passar cheque”, o que faz com que o cheiro de fezes recorrentemente apareça e tome conta de determinados espaços por alguns momentos. As reações são várias, pode-se ignorar e continuar a interação, com ninguém se importando com o odor e a “sujeira”, principalmente se a intensidade da interação for alta, as fezes ali até podendo entrar como elemento erótico na cena. Ou começar a se ouvir reclamações e denúncias, “Porra, quem passou cheque aí? Vai se lavar, meu irmão. Fica cagando no pau. Bando de gente porca!” Se as fezes, enquanto excremento, possuem esse valor ambíguo nesses espaços, o mesmo não pode ser dito do sêmen. O sêmen é um liquido costumeiramente impregnado de significados simbólicos que são associados à valores ligados à masculinidade, à força, à reprodução, à própria vida e, da mesma forma à riscos e perigos que podem ou não ser erotizados (Miller, 1997 e Pelúcio, 2009). O aparecimento do sêmen é sempre algo buscado, desejado e do qual gera atenção. Sempre que alguém vai gozar há como que uma suspensão dos que estão em volta para acompanhar a expulsão do sêmen, mesmo que ele não seja visível. A excitação e o prazer que muitos sentem em ver, tocar, sentir ou mesmo beber a “porra”, “tomar o leite”, é nítida e perfaz a ideia de uma relação pela troca de fluidos que só é possível entre homens54. Herdt também conta como entre os Sambia as relações masculinas passam através do semên (1993). Para eles esse fluido corporal não é apenas uma coisa, ele tem um valor transcendental que o autor vai mostrar através das “transações seminais” entre os homens Sambia. Naquilo que o autor chama de “homossexualidade ritualizada” homens mais velhos doam sêmen para os mais novos através dos ritos iniciáticos de masculinidade. Os mais novos tomam o sêmen em rituais de sexo oral como forma de aumentar sua força, de “empoderamento” de sua masculinidade e como “manutenção” espiritual daquele grupo. A troca de sêmen é indispensável aos rapazes para que eles se tornem homens, para adquirir força e separar-se do mundo das mulheres55.

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O prazer aqui mais relacionado ao fluido seminal produzido e oriundo de um homem do que ao ato de ejacular propriamente dito, já que como me lembra a Professora Maria Elvira Díaz-Benítez, as mulheres também ejaculam. 55 Em troca desse “dispêndio seminal” haveria o prazer sexual para os mais velhos, algo que para esse povo não haveria no relacionamento conjugal heterossexual que seria voltado apenas para a gravidez e formação das crianças.

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Essa prática, para Herdt, teria criado entre os Sambia uma arte que poderia ser chamada de “semenology” (op.cit, 210), ou seja, um conhecimento das formas, texturas e sabores do sêmen, que é debatido e analisado como apreciadores de vinhos, entre os jovens que o tomam. Eles mesmos criam seus favoritos, assim como aqui. A urina, enquanto um elemento também produzido pelo homem, tem o seu valor nesses eventos como força erótica. “Gosto de tudo que sai do pau. Não tenho nojinho nem frescura de nada: porra, mijo, sebo…”. As interações com urina não foram muito observadas por mim, também eram raras, mas eram sempre lembradas e marcadas com desejo. A imagem de “um macho mijando” são acionadas como forte componente erótico e não à toa os olhares e toques trocados durante o ato nos mictórios das festas. Um dos quartos coletivos de uma das festas possuía uma banheira de hidromassagem sempre vazia que, segundo um dos organizadores, era justamente para ser usada na prática da “chuva dourada”: “Isso daqui é para alguém ficar ali dentro e o pessoal mijar nele ou encher ele de porra, eu sempre digo isso, mas o pessoal não usa muito. Imagina que delícia, você ali dentro e um monte de homem em volta mijando ou gozando em você”56. Essa relação com o corpo masculino em suas partes e substâncias, de fato gera uma arte, como Herdt chama, de conhecimento e apreciação em tamanhos, formas, gostos, sabores, cheiros e texturas. De uma exacerbação dos sentidos e constituição de um conhecimento próprio a partir desses elementos corporais57. Esse “conhecimento”, essa “arte”, é produzida aqui em vários níveis e mesmo na própria prática sexual. Daqueles que gostam e sabem dar e mais presente ainda daqueles que sabem comer, os que se dizem “viciados em” ou “apreciadores de cu”58. Para esses, “comer cus” é como não só um esporte, mas também como comer um bom prato, como um gourmet. Há técnicas, há um gosto e um sabor refinado que é preciso ter para se apreciar e para se comer bem. Daqueles que elevam essa “putaria” a uma arte e conhecimento Fora do Rio de Janeiro percebi que a prática ou mesmo as “piss parties” (festas do mijo) são mais comuns. Na cena paulista algumas já são organizadas e durante o período na Europa pude acompanhar como a prática já é incorporada na cena das orgias entre homens, na “Lab.oratory” de Berlim, por exemplo, homens ficam ajoelhados entre os mictórios de boca aberta pedindo para tomarem a urina durante o ato. As posições durante esse ato, quem urina em quem, em que lugar do corpo e em que momento compõe toda uma linguagem específica. 57 E ao mesmo tempo uma circulação de fluidos e fragmentos corporais e uma erotização específica dos quais falarei com mais detalhes no terceiro capítulo. 58 A ideia ou categoria de “vício” utilizada nesse contexto irá ser melhor trabalhada por mim no terceiro capítulo. 56

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comparáveis a apreciadores sofisticados. Isso é valorado mesmo entre aqueles que não preferem ser passivos nos intercursos sexuais: “Eu não curto muito dar, esse cara é o único pra quem eu dou aqui. Nossa, ele é profissional! Viu o que ele fez? Chupou meu cu como se chupasse uma manga”, e mesmo usado como forma de diferenciação entre os ativos:

Sou um ativo experiente em fazer o parceiro ter extremo prazer, tenho um pau de 17cm duro e que sabe penetrar sem dó e sem dor. Já experimentei ser passivo, pois para saber comer tem que conhecer como é a sensação de ser muito bem comido, mas são raros os que verdadeiramente sabem comer, por isso sou o ativo quase sempre. Sou excelente dominador. E quando venho procurar um cara aqui não fico nessa de beleza. Não precisa ser modelo, pois esses transam muito mal. Adoro quando o cara se diz hétero e também de comer outros ativos.

Que o pênis tenha uma centralidade inegável nas interações sexuais em uma festa de orgia entre homens já deve ter ficado perceptível a essa altura. Porém é importante também destacar o papel central que o ânus recebe nesses espaços. A própria negociação de quem vai ser ativo ou passivo naquela interação não se dá, surpreendentemente, pela figura ou centralidade do pênis, mas sim pelo orifício do ânus. É na dinâmica de quem vai alcançar o ânus do outro primeiro e na recepção deste, em sua abertura ou fechamento, que vai estar a definição de papéis situacionais nesse contexto. É maior do que a do pênis, já que não é quem fica “pegando no pau” ou quem chupa e é penetrado oralmente que faz essa definição, mas aquele que primeiro tenta colocar o dedo ou o pênis no “cu do outro”, ou daquele que “oferece a bunda” e, mais importante, na decisão deste em se deixar penetrar ou não. A centralidade e agência do ânus pode ser vista em discurso nas mensagens trocadas nos grupos de conversa das festas. Assim como você tem os “viciados” ou “apreciadores de cu”, você tem também a figura daqueles que querem ser “detonados” ou “arrombados”. Mensagens como: “mija no meu cu”, “procuro metedores de cu pra fazer de buceta e deixar bem rasgado” ou em outro que diz: “Me arrombe! Me satisfará…”. Às vezes, categoria em sites de vídeos pornôs gays, “cuceta” e mesmo como palavras de ordem ditas nessas festas

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colocam a figura de um ânus que está longe de um local ou de um portal para a passividade. Mas sim de um ânus ativo, agente e desafiador. O papel e a localização do ânus como âmbito definidor e estratégico diante de nosso sistema de gênero e sexualidade é algo que deve-se às problematizações trazidas pela teoria queer. Vão ser esses trabalhos que mais vão chamar atenção para o fato de que em nossas sociedades O sexo é uma tecnologia de dominação heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino), fazendo coincidir certos afectos com determinados órgãos, certas sensações com determinadas reações anatômicas (...). O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados

ou

riscados.

A

(hetero)sexualidade,

longe

de

surgir

espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais (Preciado, 2014, 25-26).

Inspirado nas elaborações de Deleuze e Guattari, Hocquenghem (2009), na efervescência dos anos 1970, foi um dos primeiros a chamar a atenção para o papel e potência do ânus como indiferenciação de modelos de desejo. Argumenta que o prazer anal não se restringe a uma prática especificamente homossexual, mas se trata de uma forma de minar todas as categorizações sexuais. O uso sexual do ânus em sua visão é revolucionário não só no sentido de embaralhamento das categorias sexuais, mas também como de questionamento ao poder patriarcal capitalista ocidental estabelecido sobre o que esses autores chamam de um “fechamento” ou “privatização do ânus”59. De uma evitação constante do corpo penetrado. 59

Ficou famosa a sua frase: “O buraco do meu cu é revolucionário”. Um uso próximo dessa ideia é a retratada no filme brasileiro Tatuagem (2013) sobre um grupo de teatro nos anos 1960/1970 que brinca com essas noções de gênero e sexualidade. Uma das apresentações musicais presentes no filme é a “Polka do cu” no qual os atores entram em cena nus de costas cantando uma música

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Segundo Kemp (2013) o advento da Aids na década de 1980 lançou uma sombra sobre esse discurso de prazer que começou a ser visto de forma pejorativa, como altamente utópico e, naquele contexto de epidemia, como irresponsável. O ânus volta uma vez mais ao lugar significativo da negação, dissolução e morte (op.cit, 6-7). Ainda levaria uma década para que os trabalhos da teoria queer colocassem novamente o ânus em um novo lugar. Em um posfácio à reedição da obra de Hocquenghem, Preciado afirma que esse “terror anal” é justamente derivado de uma potência política do ânus: “Podemos dizer que as políticas do ânus são contra-biopolíticas. Portanto, políticas do corpo, redefinições da espécie humana e seus modos de (re)produção” (2009, 148). O que está mais em jogo aqui, e que nos interessa mais de perto para pensar essas festas de orgia entre homens, é como a construção social do ânus, sua abertura, seu fechamento, sua penetração e seus significados está recoberto de relações de poder:

Se poderia dizer que o cu cumpre um papel primordial na construção contemporânea da sexualidade, na medida em que está carregado de fortes valorações sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, o que é ser um corpo valorizado e um corpo abjeto, um corpo “bicha” e um corpo hetero, sobre a definição do masculino e do feminino (Sáez e Carrascosa, 2011, 172).

Não por acaso o ânus ser o local central de um trabalho de mudança dos paradigmas de nosso sistema de sexo\gênero como colocados por Preciado em sua proposta de contrassexualidade:

O ânus apresenta três características fundamentais que o transformam no centro transitório de um trabalho de desconstrução contrassexual. Um: o ânus é o centro erógeno universal situado além dos limites anatômicos impostos pela diferença sexual, onde os papéis e os registros aparecem como universalmente reversíveis (quem não tem um ânus?). Dois: o ânus é uma zona primordial de passividade, um centro produtor de excitação e de

louvando o cu como forma de deboche das diferenças impostas “A única coisa que nos salva, a única coisa que nos une, a única utopia possível é a utopia do cu…”.

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prazer que não figura na lista de pontos prescritos como orgásticos. Três: o ânus constitui um espaço de trabalho tecnológico; é uma fábrica de reelaboração do corpo contrassexual pós-humano. O trabalho do ânus não é destinado à reprodução nem está baseado numa relação romântica. Ele gera benefícios que não podem ser medidos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o sistema tradicional da representação sexo/gênero vai à merda (Preciado, 2014, 32).

É importante perceber, da mesma forma, que se a construção social do ânus está recoberta de relações de poder, não se pode deixar de notar que esse ânus (assim como qualquer parte do corpo nesse e em outro contexto) está atravessado por uma estrutura social que condiciona os comandos e os significados que o modelam em função de outros eixos e demarcadores como o sexo, a classe, a raça ou a religião (Sáez e Carrascosa,2011, 13). Nem todo ânus é igual, assim como nem todo pênis e as substâncias produzidas por esses diferentes corpos masculinos estão numa situação de igualdade. E muitas das frases soltas que ouvia nas interações observadas dão conta disso: “Está gostoso dar para esse pau preto?”, “Esse cuzinho rosinha vai aguentar esse pau?”, “Tá a fim de tomar porra de macho?”, “Gosta de rabo de novinho?”, “Vim aqui achando que ia dar para um negão e tô comendo um cu branquelo”. Um último ponto que queria apontar aqui rapidamente, já que pretendo falar mais sobre a questão dos riscos no terceiro capítulo, é que o ânus (mais do que o pênis e o sêmen), ainda permanece entendido como um lugar de vulnerabilidade e de entrada principal para o perigo e as doenças, com uma preocupação principal sobre a Aids. Ele que é tido como o lugar principal de contaminação e é sobre aquele que se deixa penetrar que, sem dúvida, pesam mais os valores de abjeção presentes em nosso sistema heteronormativo.

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Fragmentos de interações sigilosas

Mais uma vez no dark, sou rodeado por interações que se acumulam. Em meio ao escuro, só vejo silhuetas de corpos que se movimentam de um lado a outro criando e desfazendo agrupamentos com a velocidade dos gemidos que são ouvidos. A temperatura é alta, os cheiros são percebidos por mim como em camadas, como se a cada momento fosse atingido por uma onda de odores específicos que iam conformando uma densidade maior. Os cheiros faziam com que gostos específicos viessem à minha boca, com sabores doces de perfume, salgados do suor ou azedos dos odores de outras secreções corporais. Minha salivação aumentava ou diminuía a depender das minhas reações imediatas de nojo ou prazer. Ao meu redor vou capturando alguns fragmentos de interações. Em uma percebo um conflito gerado por uma aproximação não desejada. Um rapaz que atuava como ativo em uma interação estava de pé, com as costas voltadas para o público do dark, enquanto penetrava outro rapaz posicionado de quatro no sofá. Ao receber um repetido toque em sua bunda não desejado de uma terceira pessoa, o ativo acaba gritando em voz alta: “porra, sai daqui caralho!”. Aquele que tentava a aproximação com o toque responde na mesma altura: “ih, quer brincar sozinho? Tá no lugar errado! Vai pro motel então, porra! Quer o que vindo pra putaria?” E é acompanhado por gargalhadas pelo dark. O ativo não treplicou e permaneceu em silêncio, mas claramente aborrecido, bufando em som alto e continuando com os movimentos de penetração, só que agora com mais força pela raiva. Aquele que tinha tentado a aproximação continuou sorrindo debochadamente, se aproximava e tocava rapidamente o ativo de novo, indo e voltando. Mas o outro, apesar de visivelmente contrariado, não reclamava. Outra dinâmica também atraía a atenção no dark. Era uma tentativa de encaixe entre dois corpos que quebrava de certa forma um senso comum generalizado que é o de dividir os ativos e passivos por formas corporais, ou seja, homens grandes e fortes “sempre” seriam ativos e vice-versa. Nessa interação acontecia o contrário: era um “grandão” tentando ser passivo para um outro rapaz, bem mais baixo e menor que ele. Os dois tentavam encontrar uma posição para a penetração e já estavam rindo com a dificuldade. O baixinho dizia: “eu não vou conseguir te comer, olha o meu tamanho! Não alcanço!”. As pessoas ao redor assistiam curiosas e com sorrisos esperando para saber se os dois

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conseguiriam ou não. O “grandão” precisou achar uma posição, que parecia desconfortável a ele, mas que finalmente conseguiu ficar à altura da penetração. A interação não durou muito tempo, pois os corpos não tinham o “encaixe” necessário. Um interlocutor conhecido se aproxima de mim e comenta que a festa está barulhenta demais hoje. “Nossa, não consigo me concentrar! Galera não para de falar! Como é que conseguem foder desse jeito?”. Quando depois conversamos sobre esse assunto do silêncio na putaria, ele me explicou melhor: disse que duas coisas o brochavam: uma eram os grupos de amigos que vinham ali e ficavam conversando o tempo todo, “aqui é um lugar para fazer putaria, não se traz amigo ou namorado, acho muito estranho quem faz isso, prefiro vir sozinho. Imagina, não transo com amigos, muito menos na frente deles! Minhas transas é que viram amigos”. A outra coisa que o brochava eram os gritos exagerados durante o sexo, não gostava de “bichices” nem de ouvir “um grito de gozo que não é seu”. Gritos mais altos, para ele, eram atribuídos a alguma forma de recalque, “gritos mais altos, mais histeria”, “mais problemas consigo mesmo”. De fato, naquele dia tinha percebido um número maior de grupos de amigos presentes. Amigos ou conhecidos em grupos de 3 a 5 pessoas. Normalmente se mantinham muito juntos e brincavam bastante entre si, se “zoando”, alguns com uma performance feminina, “desmunhecando”, rindo, chamando uns aos outros de “passiva” - no feminino mesmo (afinal, as zoações e brincadeiras sobre o feminino e a passividade entre homens constituem a homossocialidade heteronormativa por excelência) - causando barulho e destoando da situação. Ainda que seja claro que este não é o comportamento esperado: presenciei um desses grupos chegando e vi quando um dos amigos “apresentou” a casa para os outros (talvez já veterano de outras festas) e disse: “agora cada um pro seu lado!”. Percebi, no decorrer da festa, que este grupo não se manteve junto o tempo todo, mas os amigos se encontravam nos intervalos de suas interações. ***

João foi um dos rapazes que conheci em uma das festas. Tinha mais ou menos a minha idade, era moreno, capixaba e trabalhava como farmacêutico. Quando nos conhecemos ele me disse que “me queria, mas não naquele lugar”. Disse que quase não ia “nesses lugares” e que não gostava muito da prática da orgia. Quando veio se despedir insistiu: “Eu queria te encontrar lá fora, não vou te dar meu número agora, melhor te dar 111

meu skype, é mais discreto para mim, prefiro assim”. Encontrei João outras vezes em festas seguidas. A princípio, percebi que ele se sentia na obrigação de justificar a sua presença ali para mim: “te juro que a minha essência é boa, sabe? Minha conduta nesse momento aqui é que está desviada. Mas no fundo não pertenço a esse lugar”. Queria deixar claro para mim que havia uma separação, que se via como diferente dos outros que iam ali, que, eles sim, são “sujos”, “viciados”, “vivem em gueto”, enfim, toda uma carga negativa em sua fala, “não pertenço a esse lugar, aqui é putaria demais”. Gostou de mim porque tinha percebido que “eu era diferente”. “Eu poderia até te namorar! Taí, acho que eu posso te apresentar à sociedade”, mas, segundo ele, para isso eu teria que ficar fora daqueles espaços e começarmos a nos encontrar “lá fora” para beber, assistir um filme, sair, enfim, passar por todo um ritual de pureza para ele. Como ficávamos conversando juntos por muito tempo, alguns conhecidos que se aproximavam perguntavam se éramos namorados e ele respondia: “ainda não. Mas quem sabe? Ele é quietinho, rapaz de família, está aqui só porque está safado hoje”. Em outra festa, percebi um rapaz de altura mediana, negro e que vestia uma sunga vermelha puxar pela mão um outro rapaz de mesma altura, branco, loiro que vestia uma sunga azul. Os dois tentavam sair de uma multidão de corpos em uma das suítes e procuravam um espaço mais isolado. Sigo os dois. O de sunga vermelha levou o de sunga azul para uma outra suíte onde já estava aguardando o seu namorado, um rapaz também negro e que vestia uma sunga branca. Os dois namorados ficaram meio que avaliando o de sunga azul, pegando ele pela mão, levantando os braços e fazendo-o girar para olhar melhor o corpo todo. O de sunga vermelha dizia: “Olha o que eu trouxe para a gente. Olha como ele é bonito. Nós somos agora os seus namorados. Tão bonitinho e branquinho!”. Colocaram o rapaz entre os dois e iniciaram uma interação a três, com muitos beijos e se despindo aos poucos. Quando tentaram uma penetração, o de sunga azul disse que não queria. O casal insistiu, mas ele disse que não queria mesmo. O de sunga branca disse: “você está certo. Tem que se valorizar… Se te virem fazendo isso aqui, iam falar o que de você?”. Se despediram com um beijo triplo e ele ainda disse: “Não fica com qualquer um aqui dentro não!”

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Trecho de email que recebi de um dos organizadores após uma das entrevistas realizadas:

Olá, Victor! Poxa, fico feliz que a entrevista tenha ajudado. Sabe, tem um lado que pouco falo sobre essa coisa de fazer as festas, que é o ideológico. Óbvio que por motivos óbvios o que fica mais claro é a ideia da putaria pela putaria. Porque é isso que vende. Mas para mim tem outro lado, que é o de fazer as pessoas se soltarem. Sabe, as pessoas são muito reprimidas com a sexualidade. E a meu ver isso desencadeia alguns problemas. Essa situação de "adoro putaria, mas não posso assumir" faz com que as pessoas busquem alternativas até mesmo perigosas. Aterro do Flamengo, Arpoador, Reserva. Acaba que as pessoas se expõem a riscos desnecessários. Enfim, esse é o lado que o público das minhas festas não sabe (e nem sei se quer saber). Só acho que a pessoa que está realizada com seus devaneios sexuais é mais... Como dizer?... Tranquila.

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CAPÍTULO II O princípio da discrição

Uma das principais exigências para a participação nas festas de orgia é que você saiba ser discreto. Ser discreto pode ser entendido aqui de duas formas: uma, no controle da masculinidade, ou seja, em “não dar pinta” (o que já discutimos no capítulo anterior), o “macho discreto” sendo aquele que não chama a atenção em sua performance para uma sexualidade ou desejo identitário específico e que, muito menos, perca a sua imagem de “macho”. O que se evitaria é a ambiguidade trazida pela imagem do homem feminino ou afeminado, que não só não “passaria por” ou não convenceria como homem como também desestabilizaria uma ordem ou o desejo de uma interação sexual exclusiva entre “homens”, de “uma putaria entre machos”. Porém, ser discreto também pode ser entendido como o estabelecimento de uma forma específica de relação. O que percebo é que há a produção de uma socialidade própria na maneira como esses corpos interagem nesses espaços, de uma socialidade baseada na “erótica do anonimato” e na impessoalidade dos “laços sociais”. As relações seriam anônimas e, de preferência, realizadas no escuro e em silêncio. Daí o discurso de que as coisas ali precisam ser realizadas em “sigilo”. Quanto mais “discreto” você for ou quanto mais a promessa de saber guardar as coisas em “segredo” ou em “sigilo” se performatizar, mais valorizado você é e mais acesso a outros circuitos eróticos com propostas semelhantes poderá conseguir, tanto em espaços comerciais quanto nas festas privadas, as “sociais”. Neste capítulo começarei a apresentação desse princípio pela análise daquilo que, para meus interlocutores, baseia as relações e interações nessas festas, aquilo que faz com que os corpos se “encaixem ou não”; trata-se da elaboração de um modelo químico de relação social e de explicação dos estímulos e desejos. Essa ideia vai desembocar na formação de um movimento de “multidão” presente nas orgias. A seguir passo a explorar os elementos principais que compõem esse princípio de discrição: o anonimato, o silêncio e a escuridão. Ao final, faço uma reflexão sobre a questão dos espaços da festa relacionando-os a um debate sobre a conformação de territórios “outros” na cidade e concluo com uma apresentação das “histórias” de cada uma das quatro festas pesquisadas, tais como me foram contadas por seus respectivos organizadores tanto em entrevistas pessoais quanto 114

em matérias jornalísticas indicadas pelos mesmos. Ali, eles me contam como surgiu a ideia de se lançar nesse negócio e como veem o mercado do sexo voltado para esses eventos.

A química da orgia

É preciso saber fazer os encontros que lhe convêm (Deleuze, 1978).

Um pouco antes de iniciar o trabalho de campo e as minhas idas às festas de orgia, tive uma conversa com um amigo que de vez em quando participava delas. Nessa conversa ele me falou que ao observar os homens andando pelo dark room dessas casas procurando interações sexuais uns com os outros, lembrava-se de cenas dos filmes de terror de zumbi, em moda atualmente. Assim como os zumbis, ele via aqueles homens na orgia como seres sem vontade própria, sem personalidade, com um andar constante na penumbra local, apenas respondendo a um instinto e se alimentando com a carne e a vida alheias. Durante o trabalho de campo percebi que a imagem dos zumbis podia ser acionada de duas formas: uma como crítica, pela qual as pessoas ali só estariam em um interesse primário e redutor pela “carne” (não por acaso costumava ouvir essas críticas de pessoas que, de alguma forma, se sentiam excluídas naqueles espaços, seja por não corresponderem a algum padrão normativo de atratividade ou por não conseguirem performatizar o “macho, discreto e puto” dessas festas, como era o caso de meu amigo); a outra forma de uso da imagem do zumbi foi em algumas propagandas feitas pelos organizadores, principalmente para trazer a ideia de uma grande “apetite” ou fome por “carnes frescas”. Em uma delas, o organizador postou na comunidade do facebook do evento: “Sempre me perguntam: ‘Oi, Felipe, tudo bem? É a primeira vez que vou à festa. Tô meio nervoso. Como é lá?’ Vou explicar…” E abaixo vinha a seguinte foto:

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Figura 1. Fonte: https://www.facebook.com/groups/festablackhall/?fref=ts Em pouco tempo percebi que a imagem dos zumbis não era a mais adequada para dar conta do que acontecia naquele espaço durante as festas. Aquelas pessoas estavam longe de serem seres apáticos ou sem consciência que se consumiam. Paralela ou concorrente a essa imagem negativa, outra era acionada pela maioria dos participantes; uma imagem que, acredito, seja mais adequada para a deriva das pessoas e suas interações nesses eventos, que são as ligações e reações químicas entre os elementos. As próprias relações estabelecidas ali, naquele contexto, entre os participantes, fossem sexuais ou não, eram “explicadas” em termos de uma conexão “química”, de um encaixe “físico” que podia acontecer ou não. O modelo químico era acionado e dava conta das fortes sensações de atracão ou rejeição entre eles. Aqueles homens parecem muito mais átomos que procuram se ligar (e, de acordo com a química, existem diferentes tipos de ligação), em que se pode trocar, doar ou compartilhar elétrons, formando assim moléculas. Não há consumo unilateral da “vida” do outro, o que há são composições, ligações, afecção dos corpos, encontros.

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Modelo “zumbi”:

Figura 2. Fonte: https://www.google.com.br/imghp?hl=pt-PT

Modelo “químico”:

Figura 3. Fonte: https://www.google.com.br/imghp?hl=pt-PT Em uma de suas aulas sobre Espinosa, Deleuze explica que para esse pensador o mundo é uma construção ou um movimento permanente feito a partir dos encontros dos corpos, tudo o que existe se constituiria a partir do encontro. Para o filósofo, esses encontros nos constituem na medida em que tem a potência de, a cada encontro, transformar os corpos, compor ou decompor, e até mesmo produzir um novo corpo. Aqui, como na analogia que trouxe das ligações e reações químicas, “no encontro não existe aquele que afeta e o que é afetado: alguma coisa acontece em ambos (ou nos vários) elementos envolvidos” (Silva, 2004, 9). Daí, para Espinosa, um bom encontro ser aquele em que os homens se sentem alegres quando potencializam seu agir e existir, quando compõem com outro corpo,

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aumentando sua vontade de potência. O oposto se daria num mau encontro, em que há diminuição dessa potência ou mesmo destruição. Tudo se dá a partir dos encontros dos corpos e de como somos afetados por eles. Viver seria oscilar, portanto, entre bons e maus encontros, entre a alegria e a tristeza, entre o prazer ou não. Como não há nada que permita prever se o encontro vai ser bom ou ruim, apenas a experiência, o encontro efetivo, é que o dirá. O que não quer dizer que não se possa construir todo um saber, ou toda uma técnica, baseada em encontros anteriores, os quais permitam controlar, um mínimo que seja, o resultado destes visando efeitos positivos. Mas ainda assim, mesmo com toda a “técnica” utilizada, o momento efetivo do encontro é do acaso. E talvez possa residir aí, nesse se arriscar e se colocar no acaso dos encontros, que esteja um dos maiores prazeres encontrados em algumas práticas, como uma aposta no jogo, o uso de uma droga, uma “pegação” em local público, a ida em uma orgia etc. Cabe a pergunta: o que faz um encontro ser bom ou ruim em um contexto de orgia? No nosso caso, já sabemos que o respeito aos três princípios seria o primeiro passo, ainda que não o suficiente. Como saber organizar bons encontros nesse contexto? No caso da orgia, me parece ser a intensidade, caracterizada e performatizada pela “putaria”, que determina os bons ou maus encontros. É nesse sentido que entendo que os homens reunidos nessas festas produzam uma socialidade própria, uma determinada forma de se relacionar que se produz pelos fluxos de troca e de intensidade só possíveis nesses espaços; uma “maquinaria corporal” destinada à satisfação conjunta dos prazeres que se agenciam ali se ligando, encaixando, numa experimentação de composições em conexões e reações (que podem ser catalisadas por diversos fatores relativos aos princípios) formando, portanto, compostos diferentes e únicos a cada encontro. São corpos que conseguem se encaixar ou não, que podem “dar liga” ou não, práticas que têm a capacidade de formar relações, a partir das experiências compartilhadas nessas práticas sexuais 60 . Uma forma de se relacionar a partir da sexualidade e que se quer exclusiva entre homens61.

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A concepção do conceito de “socialidade” é fruto da produção e dos questionamentos de autores como Strathern et. al(1996) e Gell (1999). Ao falar em “socialidade”, esses autores estão enfatizando a matriz relacional que constitui a vida das pessoas:

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É importante lembrar que a analogia com a química e os encontros dos corpos que estou propondo aqui nada tem a ver com um essencialismo ou uma natureza imutável “dada”. Pelo contrário, ela pode não só ser modificada como também está ao acaso do conjunto de diversos fatores. Pessoas podem causar interesse, deixar de causar, as posições sexuais como ativo e passivo são jogadas ao sabor dos encontros, técnicas são aprendidas, usadas, modificadas,

cheiros e gostos atraem ou causam ojeriza, performances são

realizadas com sucesso ou falham, limites são atingidos e causam rupturas ou “fissuras”, enfim, infinitas possibilidades. As interações são verdadeiros arranjos desses elementos heterogêneos. São multiplicidades (de pessoas e fatores, humanos e não humanos) que ligam esses diversos elementos nos encontros e interações sexuais. Isso se percebe no próprio jogo de visibilidade e invisibilidade para o outro que acontece aqui. Interessante constatar como só em um determinado dia ou momento específico é que era percebido por uma determinada pessoa, como se só naquele momento ela me “visse”, me notasse apesar de ter estado em várias festas em que ele esteve presente. Mas naquela situação específica, por variados fatores, posso me tornar alvo de seu interesse. O que faz as pessoas chamarem a atenção em um evento e em outro passarem despercebidas ou até invisíveis? Mauro, por exemplo, veio comentar comigo que estava atrás de um cara que o tinha interessado desde o início da festa. Mas que esse cara simplesmente “não o via”. Toda vez que Mauro tentava chamar a atenção dele de alguma forma, era sem sucesso, já que o outro não só não o reparava como estava sempre cercado de muita gente, “o que dificulta ainda mais eu me “É, ao mesmo tempo, um conceito mais modesto e mais extenso que o conceito de ‘sociedade’. É mais modesto pois não parte de nenhuma grande dedução transcendental para sua definição, mas apenas da dedução empírica de que as pessoas se relacionam, e que as relações constituem a vida das pessoas. É mais extenso, por outro lado, por sua capacidade de metaforizar outros sentidos (particularmente, os sentidos melanésios de ‘sociedade’) e de conceber a relação como intrínseca, e não extrínseca, à constituição das pessoas. (Gordon, 2005, 1). 61 Uma produção cinematográfica recente vem cada vez mais centrando a sua atenção sobre essa maneira de constituir relação dentro do universo masculino. Destaco, como exemplo, aqui dois diretores que dedicam um olhar mais “etnográfico” em suas produções: o primeiro é o americano Travis Mathews que fez uma série documental com homens de diferentes países revelando aspectos de sua intimidade (“In their room: San Francisco”, 2009; “In their room: Berlim”, 2011 e “In their room: London”, 2013). O segundo é o diretor português Antonio da Silva com uma obra de quase 20 filmes documentários voltada para o universo do homoerotismo masculino, dentre eles “Mates” (2011) sobre encontros anônimos a partir de contatos online, “Bankers” (2012) sobre interações sexuais em um banheiro público de um prédio de bancários, “Praia 19” (2014) sobre a pegação entre homens em uma famosa praia portuguesa e “Doggers” (2015) também sobre a pegação em um estacionamento público da cidade de Lisboa. Boa parte da obra de Antonio da Silva também é sobre fetiches (como homens ruivos, “paizões” e mesmo quatro filmes dedicados ao Brasil).

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destacar”. Mauro só conseguiu interagir com o cara que desejava em um momento no dark: “aproveitei que ele estava sozinho, ali no escuro, e consegui pegar. Não fizemos muita coisa, não deu muita liga, mas peguei”. Outro exemplo vem de uma segunda conversa que tive com Bernardo: ele dizia não se lembrar de mim, mesmo eu afirmando que o via sempre ali e que já tínhamos conversado e se surpreendeu com o fato de alguém ali o reconhecer pelo rosto: “estou acostumado aqui a ser reconhecido pelo corpo. As pessoas veem meu tamanho e lembram de mim”. Mais ainda em um lugar que privilegia a escuridão e o silêncio, outros fatores (e sentidos) nem sempre lembrados, como toques, gostos, sons e mesmo cheiros são fatores que entram na percepção e “visibilidade” do outro62.

Silêncio e escuridão

Já chamei a atenção em outros momentos dessa tese para como as interações entre os participantes dessas festas se dão em espaços que valorizam a escuridão e o silêncio. São locais onde nada ou pouco se fala e onde as luzes são reduzidas ou mesmo apagadas para que se estimulem as relações sexuais entre esses homens. Nesses espaços, outros sentidos, normalmente não privilegiados, tomam uma importância maior e uma linguagem própria, entrando como fatores que influenciam as interações sexuais. É como define Díaz-Benítez em sua pesquisa realizada no dark room de uma boate no Rio de Janeiro:

Se em muitas sociedades e coletivos utiliza-se a visão como maneira de conhecer e apreender o mundo, no dark room a visão é só um dos elementos que compõem o ritual de interação. Nesse contexto, o tato é privilegiado. As palavras são comumente substituídas pela linguagem

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A importância do cheiro nesses lugares me fazia sempre lembrar do romance “O perfume”, de Patrick Suskind (1995), no qual o personagem principal é descrito como alguém que nasceu com o olfato extremamente desenvolvido, o que permitia uma percepção particular do mundo, mas que, paradoxalmente, não tinha odor próprio, não exalava nenhum cheiro. Essa ausência de cheiro fazia com que o personagem não fosse percebido nem notado pelos outros a seu redor, passando totalmente despercebido e invisível, já que, segundo o autor, "o odor é a essência, e o que não tem essência não existe". Também não é de admirar em que uma festa visitada em Berlim tinha uma placa colocada na entrada da casa com uma lista de regras em que constava: “No perfume” (sem perfume). A regra era no sentido tanto de uma valorização de um cheiro de “homem natural” quanto na importância do odor único e particular de cada um.

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corporal: as coisas que se desejam dizer e fazer, explicitam-se mediante gestos, poses e localização dos corpos no espaço. Se no restante da boate os códigos de relacionamentos permitem o contato verbal, no dark room os contatos começam com os toques, no ato de apalpar e se deixar ser apalpado pelos outros. Permitir ser acariciado ou impedir uma carícia é um método mais eficaz que as palavras para começar ou terminar uma aproximação. Em poucas palavras, são o silêncio, a escuridão, os gestos, o tato e a alteração das emoções que, muito além das palavras, preenchem o ritual de significados (Díaz-Benítez, 2007, 95-96).

A linguagem do corpo e dos sentidos valorizada e elaborada nesses espaços compõe um vocabulário próprio que se faz necessário apreender e saber fazer uso para que se obtenha o sucesso nas interações e para que se evitem as gafes e alguns conflitos:

Na escuridão nada ou poucas coisas são pronunciadas: os signos que transitam são determinados pelo contexto da situação, pertencem a uma natureza distinta das palavras (silêncio, movimentos, localizações, senhas, toques, corpo). Estes signos são compartilhados na situação da pegação e só ali fazem sentido. As pessoas que participam do ritual de pegação no dark room sabem perfeitamente como manipular os signos, conhecem o poder que os signos têm para expressar vontades e criar ações, existindo uma manipulação ciente deles e nada arbitrária (op.cit., 105)

Como afirmei no capítulo anterior, a “casa de homens” ou a “casa de machos” que são essas festas de orgia, além de funcionarem como territórios de homossocialidade exclusiva no qual esses homens podem se reunir para se “jogarem” em intensivas experimentações de prazer, também são espaços de pedagogia, onde iniciantes ou novatos são forjados nessas figuras de “macho, discreto e puto” que se deseja. Daí ser importante trazer a ideia de “ars erotica”, tal como trabalhada por Foucault, para diferenciar a maneira como determinadas sociedades entendem seus corpos e os prazeres, já que essa “arte erótica” tem um princípio de experimentação e aprendizagem não existente na “ciência sexual”:

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Na arte erótica a verdade é extraída do próprio prazer, recolhido como experiência, analisado segundo sua qualidade, seguido ao longo de suas reverberações no corpo e na alma, e esse saber quintessenciado é, sob o selo do secreto, transmitido por iniciação magistral aos que se mostram dignos e que saberão dele fazer uso no próprio nível do seu prazer, para intensificá-lo e torná-lo mais agudo e mais acabado (2013, 4).

Alguns autores já chamaram a atenção para ideia de uma “aprendizagem dos prazeres”, em que o poder da palavra dita, da visão e explicações científicas dão lugar a uma pedagogia sensorial e dos afectos que se desenrolam em meio ao silêncio, na escuridão e na busca de uma forma de invisibilidade, de algo secreto. Como a famosa escritora de contos eróticos, Anais Nin, anotou em seu diário: “As coisas são desfrutadas em um certo nível de silêncio e consciência. Essa talvez seja a lei do prazer: não pensar. Eu aprendi isso em silêncio. Eu não fiz perguntas” (Nin apud Bair, 1995, 219). Ou como o próprio Foucault se mostra entusiasmado na maneira como se dão as relações nos clubes sadomasoquistas que visita nos Estados Unidos, do estabelecimento de relações onde pouco ou nada se fala: “O silêncio pode ser um modo de relação tão mais interessante! (…) O silêncio é, eu penso, algo que merece ser cultivado. Sou favorável a que se desenvolva esse ethos do silêncio” (2013, 193). O silêncio e a escuridão são elementos importantes para a composição do princípio da discrição, já que eles podem ajudar a “mascarar” ou “relevar” elementos que, em outro contexto, são considerados fatores negativos, tais como características físicas ou performances que não sejam “masculinas o suficiente”. Contribuem de certa forma na manutenção dos princípios da masculinidade e da putaria. Como falaram-me repetidas vezes meus interlocutores, o “escurinho” favorece e estimula a excitação; as pessoas se sentem mais livres, seja para interagirem sexualmente com pessoas que não fariam em outro contexto, seja pelo conforto da escuridão para fazerem determinadas práticas sexuais que a claridade impediria e mesmo do próprio fato de estarem fazendo sexo na frente ou em conjunto com outras pessoas. Da mesma forma, o silêncio e a escuridão encobrem uma possível feminilidade não desejada nesses ambientes:

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“eu fico chocado com alguns caras aqui, ali no dark é todo mundo macho, pega com força, geme grosso, o cara manda bem e faz tudo direitinho... aí depois você vai ver na luz, é só decepção! Ou o cara é feio pra caralho ou é uma moça! Abre a boca e só mia, vira a mão, rebola… Já viu como algumas soltam a franga na pista das boates?”

“Imperfeições” não são notadas e detalhes que chamariam a atenção na claridade são deixados de lado para um jogo em que o que importa é o prazer na sensação. A escuridão e o silêncio jogam, portanto, com certo limite entre fantasia e realidade. Em algumas etnografias sobre interações sexuais em cinemas pornográficos, alguns autores chamam a atenção para a “magia” da experiência do cinema, por exemplo, de um “estado alterado de consciência” que as salas escuras e silenciosas proporcionam ao espectador, deixando-os entre um limiar de sono e vigília, entre o sono, a fantasia e a realidade (Terto Jr, 1989 e Vale, 2000). Porém, é importante destacar que as performances acionadas por esses homens nesses espaços de escuridão não podem ser entendidas como uma mentira, uma ficção, ou mesmo um “teatro falso”, “é uma outra realidade que não é menos real” (Schechner apud Ligiéro, 2012). Ali não se quer se aproveitar e “encobrir” uma realidade que seja mais “verdadeira”, mas sim uma estratégia consciente em manipular os elementos que se sabem ser os mais desejados nesses espaços. Em acionar e por em prática, afinal, aquilo que se aprendeu ali. Não é a toa que o dark room seja o espaço favorito para as interações nesses eventos, mesmo que eu tenha acompanhado interações em todo e qualquer espaço das casas, os darks realmente concentram a maior parte do público. E que fique claro que quando estou falando de escuridão aqui, nunca é de um breu completo onde não seja possível distinguir o que acontece nos espaços, ainda que eu mesmo já tenha ficado momentaneamente perdido e dado alguns encontrões, seja nos outros corpos presentes no ambiente, seja nas paredes ou portas do dark: A escuridão na sala do breu é similar à sensação de ver onde não se vê, como quando apagamos a luz do quarto antes de dormir e não encontramos nossa cama. No entanto, alguns segundos depois, quando nossos olhos se acostumam à escuridão, conseguimos percebê-la entre as sombras mesmo que não possamos distinguir nitidamente sua aparência. Desta maneira, é

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na sala do breu onde os outros sentidos – tato, olfato e paladar – começam a operar com mais efetividade do que a visão (Díaz-Benítez, 2007, 100).

No dark da Festa do Vale Tudo, por exemplo, uma fina fita de luz led (que podia ser verde, vermelha ou azul) contornava todo o espaço numa altura bem baixa, próxima ao rodapé. Essa iluminação difusa vinda de baixo, contribuía mais para uma atmosfera erótica onde os rostos e as formas corporais se tornavam difusas e o reconhecimento vinha de outros sentidos. Claro que parte da fruição vinha de estar aberto a uma sensação nova de um corpo desconhecido, mas era muito comum entrar no dark já com algum “alvo” ou pessoa de interesse em vista, alguém com quem já tenha trocado olhares nos ambientes mais claros ou mesmo pela oportunidade de uma aproximação facilitada pelo escuro e pelo silêncio. Nesse sentido, detalhes corporais eram sempre memorizados para que não se perdesse o “alvo” no dark, como formato das pernas, o tipo de calçado ou a cor da sunga, altura, barba, tatuagem, adereços, volume do pênis… Felipe comentou comigo que no dark achava que as pessoas ficavam “bem loucas”, principalmente “nessa de transar no escuro completo com alguém que você nem vê direito como é”. E continuou: “Eu me jogo, venho, faço e aconteço e tal, mas tem um limite, vou até certo ponto. Não consigo me misturar ali. Essa escuridão demais me incomoda, só venho aqui se eu tiver visto o cara antes e sigo ele até aqui, já venho com um foco”. Nas suítes, a presença de iluminação ou não é da escolha dos participantes, já que os ambientes possuem interruptores e não por acaso o apagar e acender das luzes (que já é difusa) é motivo de alguns conflitos. Certa vez, uma interação entre quatro homens sobre a cama coletiva chamava bastante a atenção das pessoas reunidas no quarto. Em torno de trinta homens se apertavam para rodear a cama e poder observar o que acontecia ali. A interação na cama estimulava o contato entre aqueles que se amontoavam ao redor. Até que alguém apaga as luzes do quarto que estavam até aquele momento acesas, um dos quatro da interação na cama reclama: “deixa acesa, porra! Aqui é pra isso mesmo, pra ver!”. A luz volta, mas poucos minutos depois torna a ser apagada e o rapaz é mais enfático: “acende a luz, caralho!” O conflito com relação à luz chegou num clímax com a intervenção de um dos organizadores em outra festa também motivada por alguma discussão. O organizador explicou que ali, nas suítes do quarto andar, as luzes deveriam ficar acesas: 124

Tem gente que gosta de foder no escuro e tem gente que gosta de foder no claro para ver a piroca entrando. Eu gosto mais no claro, inclusive. Então por causa disso e para evitar confusão a gente decidiu, e até avisou no grupo do whatsapp, que quem gosta de escuro tem o dark do segundo andar e quem gosta no claro fica por aqui. Ok? Essas luzes são para ficar acesas! O problema é que não tem como isolar o interruptor. Dá vontade de colocar merda aqui, pra ninguém ficar botando a mão. Tem que pegar merda dessas que vem e passam cheque aqui, sabe? Que não fazem a xuca em casa. Aí pega delas e coloca aqui para ninguém ficar apagando a luz!

Com a intervenção ao mesmo tempo ríspida e bem humorada do organizador, a regra das luzes acesas nas suítes passou a ser mais respeitada, o que causou um certo esvaziamento do quarto andar. A preferência pelos lugares mais escuros para as interações chega a ser motivo de reclamação para aqueles que preferem a claridade: “poxa, aqui em cima tem um espaço tão legal, tão bonito, mas as pessoas preferem ficar enfurnadas naquele lugar apertado, escuro e fedorento lá de baixo! Não entendo isso!”. E um outro interlocutor já conhecido e que se sentia à vontade para “se soltar e dar pinta” toda vez que conversava comigo (já que eu não era mais seu objeto de interesse como inicialmente), ao esbarrar por mim entrando no dark e ele saindo, me disse: “ai, menino, dá licença que eu não malhei que nem uma cachorra para me esconder no escuro. Sou abençoada, vou para a luz. Beijos”. Se a questão da escuridão tem as suas particularidades, o mesmo pode ser percebido em relação ao silêncio. O silêncio que se “sente” assim que você entra em algum desses espaços de orgia é algo que possui uma certa densidade, um peso. E, imediatamente, exige que você entre em ressonância com o som ambiente, que o seu corpo se module à frequência e ao ritmo daquilo que está sendo praticado ali. A percepção do som nesses ambientes é peculiar porque ela não se centra nos ouvidos, a sua ressonância e vibração são sentidas pelo corpo todo. Exige uma certa disciplina ou “atitude de corpo” àquilo que está sendo praticado coletivamente. É como a definição de Caiafa sobre o “silêncio denso” dos meios de transporte coletivos:

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O silêncio desses ambientes é um silêncio denso porque se dá num meio coletivo heterogêneo onde mundos estranhos se expõem em algum grau para nós, compondo a nossa experiência. Ali somos parte dessa cena e nos expomos também como mais uma descontinuidade nesse meio diverso em que estranhos se encontram (...) O silêncio não é a falta de contato, mas algo que se cultiva, em que se investe dadas o contexto. Um silêncio povoado de presenças, de curiosidade e de contemplação (2013, 63).

E que fique claro que quando falo em silêncio nas orgias não quero dizer que haja ausência de som. Muito pelo contrário, a “putaria”, em alguns momentos, pode chegar a ser até “barulhenta” para quem está de fora, mas permanece silenciosa para quem está nela. A sensação é de tempo suspenso, sua concentração cria uma espécie de distensão espaço temporal, onde o que prevalece é a sensação. Os ambientes das festas possuem, portanto, uma “paisagem sonora” (Reis, 2007) particular e muito própria63. A ideia de paisagem sonora tem a ver com um determinado conjunto heterogêneo de fontes emissoras de som, mas que, mais importante, são percebidas e sentidas, de forma singular por cada um dos presentes no espaço:

(...) um ambiente sonoro multifacetado que envolve os diferentes sujeitosreceptores. A paisagem sonora é, assim, fundamentalmente antropocêntrica já que, ao contrário do que sucede com o campo sonoro, não é um agente emissor indiferenciado – humano ou material – mas o sujeito humano concreto que, na sua qualidade de receptor, constitui o seu centro. Dito de outra maneira, enquanto os campos sonoros fazem destacar a acção da produção/emissão de sonoridades, as paisagens sonoras referem-se ao acto da sua apropriação/recepção e parecem, assim, capazes de reterritorializar e tornar específica a acústica indiferenciada do campo sonoro (op.cit., 10).

Numa orgia, há uma definição inicial muito clara sobre os sons que são permitidos e aqueles que não são. As falas, as conversas, o “papinho e as risadas dos grupos de amigos que ficam fazendo algazarra e soltando pluma” são vistas como gafes aqui:

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Agradeço ao professor Miguel Vale de Almeida por ter me chamado a atenção para este ponto.

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“porra, neguinho vem pra cá pra fazer bagunça! Você tá lá fodendo e fica gente batendo papo, debatendo, chamando pela amiga... Cara, quer conversar vai lá pra fora, primeiro que aqui não é lugar pra conversar né. Mas se quer falar sobe, vai para o terraço, sai do dark, ou vai embora, vai para um bar, entendeu?”

Os únicos sons permitidos seriam aqueles vindos da interação e das práticas sexuais. Mas mesmo nesses pode-se perceber um limite muito fino de aceitabilidade. A mecânica dos movimentos no sexo geram os sons mais diversos: as paredes que tremem, portas que batem, o movimento de entrada e saída das cabines, o som do choque entre os corpos (ou como dizem “do saco batendo na bunda”) e seus diferentes ritmos e velocidades, dos corpos em atrito nos colchões, dos “peidos involuntários” devido à entrada de ar nos corpos com as penetrações formando gases, do som de molhado da saliva e do gel lubrificante, além de alguns tapas e cuspes e mesmo do som abafado da música de outros ambientes e do ar condicionado. Já os gemidos, gritos e falas têm uma tolerância muito diferente e mesmo curta. Têm a ver com o tom e a “veracidade”. Agudos ou finos, porém involuntários até podem passar, mas preferem-se sons graves, de “machos” e sem exageros. Nas falas, apenas o necessário, “ouvir uma ordem de comando ou um xingamento bem dado no momento certo, mesmo que não seja comigo, já me deixa excitado”. Do contrário, os efeitos das gafes cometidas geram risadas, comentários depreciativos e reclamações. Dois exemplos contrastivos sobre a tolerância dos barulhos podem ilustrar isso o que foi dito acima: o primeiro relativo ao excesso de um casal que transava no dark. Aquele que era passivo na interação estava inclinado de quatro no sofá do dark enquanto era penetrado por trás pelo outro. A interação dos dois era bastante barulhenta com tapas e gemidos altos, às vezes finos do passivo, além de ficarem falando bastante (“sua piroca é uma delícia”, “vou te arrombar”, “gostoso para caralho”, “me come assim”, “rebola no meu pau”, “delícia de cu” etc.). A interação que no início chamava bastante a atenção e era interessante àqueles que estavam ao redor, começou a gerar um incômodo, a soar falsa e exagerada, e até a atrapalhar as outras práticas, o que levou a reclamações e a imediata interrupção e separação do casal. Um segundo exemplo observado contrastivo a esse em outra festa também aconteceu em um dark. De longe podia-se ouvir um rapaz gemendo

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num crescendo, guturalmente. “Gente, estão matando alguém ali dentro!”. Quando consegui me misturar na multidão e alcançar o que estava acontecendo, esse rapaz que gemia estava de joelhos na cama coletiva e um outro rapaz estava tentando enfiar o punho em seu ânus. O que no início era apenas uma “dedada” foi crescendo de intensidade até uma sessão inesperada de fistfucking. O rapaz já tinha conseguido enfiar os cinco dedos e agora tentava passar o punho. Além dos cuspes que ele dava para ajudar na lubrificação, outras pessoas ao redor abriam seus sachês de lubrificante e passavam o gel contribuindo para a continuidade da interação. Apesar dos gemidos altos, havia um silêncio em volta, uma certa suspensão para o desenrolar da cena. O punho conseguiu entrar, mas aquele que estava sendo fistado não aguentou muito tempo, sem dizer nada nem reclamar afastou vagarosamente de dentro de si o braço do outro e ficou deitado respirando ofegante. Todos ao redor respiravam ofegantes junto com ele, de certa forma, sentindo em nossos próprios corpos a intensidade da interação. O outro sorriu e se despediu com uma sonora palmada na bunda do que estava deitado e se afastou desfazendo a multidão em volta.

Erótica do anonimato

O elemento que sustenta o princípio da discrição nessas festas, sem dúvida nenhuma, é o da erótica que gira em torno do anonimato, que se realiza pela possibilidade de encontros sexuais com pessoas que lhe são estranhas, desconhecidas, quase indiferentes, que não lhe conhecem e não ocupam alguma posição de importância ou de proximidade com outros círculos sociais de sua vida. Mas, além disso, pela aparente contradição de viver práticas tidas como íntimas e privadas realizadas de forma coletiva entre estranhos, porém resguardadas pela sensação de proteção e guarida que esses espaços comerciais acabam por criar, promovendo e compondo, dessa forma, a união de pessoas “anônimas”, na base do sigilo e da discrição, para a fruição e experimentação de prazeres e desejos específicos. A relação dos participantes com os espaços da festa, dessa forma, é marcada por uma dubiedade e mesmo contradição de um desejo que se quer e que precisa permanecer de uma certa forma secreto e, cuja graça – ou uma delas - é justamente que esse “segredo” seja compartilhado. E isso não necessariamente passa por questões de orientação sexual. Não são apenas aqueles que se identificam com uma vida social “heterossexual” que 128

sentem vontade ou necessidade de “esconder” dos outros as idas às festas de orgia e aquilo que acontece nesses eventos. O princípio da discrição independe e ultrapassa uma hetero/homossexualidade, ainda que o “armário” seja um ponto ao qual voltaremos ao final desse capítulo para analisar melhor. Porém, antes de falar sobre a erótica do anonimato propriamente dita, quero me deter com mais detalhes sobre esse desejo ambíguo pelo/contra o lugar das festas. Em repetidas situações durante o trabalho de campo percebia que um dos discursos acionados por alguns participantes com quem conversava era o do: “quase nunca venho aqui” ou “é a minha primeira vez num lugar desses”, mesmo que a minha ida frequente às quatro festas acompanhadas me permitisse perceber a presença deles também em quase todos os eventos. Esse discurso não era novo para mim: em pesquisa anterior sobre a prostituição exercida em saunas era recorrente ouvir esse tipo de enunciação. Naquele contexto, o ineditismo trazia uma ideia de algo novo, fresco e mesmo puro, em certo sentido, elementos que se tornavam importantes para a negociação do programa. Ainda que aqui, nas orgias, a ida aos eventos não seja negada, há sempre a preocupação em reduzir a sua “importância” dando ares de algo casual ou mesmo raro: “nossa, tem um tempão que não venho, estava de bobeira hoje e resolvi vir para ver as novidades” ou “sério que já conversamos? Não lembro... Deve ser porque venho muito de vez em quando…”. Por que essa ideia de que não se pode frequentar ou ser assíduo nessas festas? Apenas ir como se fosse algo excepcional ou casual? Seria visto como um vício ou algo “sujo”?64 A relação com o “cartão fidelidade” é exemplar nessa ambiguidade entre os participantes com a festa. O “cartão fidelidade” ou “fudelidade” é uma promoção criada pelos organizadores da Festa do Vale Tudo. Trata-se de um cartão que você recebe na primeira ida à festa e onde é marcado com um carimbo ou assinatura cada uma das idas seguintes. Quando você completar os oito quadradinhos no verso do cartão, ganha uma entrada VIP, ou seja, a gratuidade para o próximo evento. 64

Em entrevista com um dos organizadores, ele me relatou da dificuldade de se organizar eventos de orgia em que se precise de uma certeza da presença e de um pagamento com antecedência dos participantes: “você sabe que fui eu que comecei essa coisa da festa em alto mar. Só fiz duas, não funcionou muito, porque as pessoas gostam de decidir as coisas em cima da hora, não conseguem se planejar quando o assunto é sexo. Eu não podia alugar um barco para 150 pessoas se não estivesse já com o dinheiro na mão, pelo menos um mês antes”. Atribuía isso a uma ideia da necessidade do acaso no acontecimento do sexo. A putaria não seria algo que se programasse, pelo menos não com tanta antecedência.

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Figuras 4 e 5. Fonte: tiradas pelo próprio autor

Em pouco tempo percebi que mesmo as pessoas indo com frequência ali e as seguidas lembranças dos organizadores sobre o preenchimento, esse cartão não parecia ser muito usado. Usar é assumir uma “fidelidade”, um compromisso ou mesmo uma conexão a algo a que não se quer ser fiel. No final de uma das festas, quando estava entregando as chaves do armário na recepção e pedi outro “cartão fidelidade”, já que o meu anterior tinha acabado naquele dia, fui olhado tanto pelo rapaz da recepção quanto pelos que estavam ao 130

meu redor com um misto de surpresa, zoação e certo julgamento. Como se, através do meu pedido, tivesse ficado claro que eu vinha demais àquele lugar e isso, de certa forma, trazia um certo peso (como se eu fosse puto demais? viciado ou sujo demais?). Mas achei interessante a reação e me fez atentar para essa relação. Particularmente, utilizava o cartão como fins de pesquisa e interessado na promoção mesmo, na economia de ganhar uma entrada depois de oito idas, já que ia sempre. Qualquer oportunidade que eu tinha de poupar os gastos com a pesquisa era de meu interesse e, durante os dois anos e meio de trabalho de campo, consegui completar cinco “cartões de fidelidade” da Vale Tudo. Meu uso era diferente, de fato. Para aqueles que procuram ir para esses eventos “por prazer”, por desejo, essa ideia do “cartão fidelidade” traz embutidos outros encargos, daí a grande maioria dos interlocutores não se importarem, não usarem, esquecerem de marcar, perderem seus cartões, não exigirem, não lembrarem, nem reivindicarem essa “fidelidade”. Os próprios organizadores se surpreendiam a cada vez que levava meus cartões quase todos marcados ou quando ganhava a entrada vip. A partir de uma ideia semelhante àquela que observei na questão da prostituição, percebi que ir demais às festas é se gastar demais. Não só gastar uma imagem e uma “reputação”, mas ao mesmo tempo ficar com o corpo “gasto”, muito “usado”, “batido”, com muito acúmulo de fluidos ou restos dos outros65. Não é só a frequência e a ida às festas que não devem parecer excessivas, mas também a quantidade de festas promovidas e organizadas também precisa ser comedida. A ideia é que festas demais fazem a qualidade do evento cair, perdem a graça e a “vibe” de algo novo e diferencial; torna-se algo comum e cotidiano e, pior ainda, favorece a participação de qualquer um. Durante um determinado mês de férias no verão, três das festas acompanhadas resolveram montar um calendário de orgias semanais. Esse fato foi comentado por um interlocutor:

Cara, quando começa assim, festa toda hora, o nível começa a cair. Você vê, algo que é só uma ou duas vezes por mês, meio na encolha, dá um tom especial, mas aí arreganha desse jeito, começa a aparecer qualquer um… Acho que não vale a pena estragar uma coisa bacana que você montou só

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Essa ideia de uma “circulação de fluidos” presente nas orgias será mais detalhada no próximo capítulo.

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porque quer ganhar mais dinheiro, sabe? Aí aquela galera interessante que costuma vir some…

Porém, é preciso notar que uma das características dessa relação ambígua com os espaços da festa são os comentários constantes sobre uma “decadência anunciada”. A frase “isso aqui já foi melhor, a qualidade caiu muito” e uma certa mania em rebaixar o lugar ou os seus participantes estão presentes desde que eu iniciei a pesquisa. Dizer que os espaços estão cada vez mais sujos, descuidados com a limpeza, que os frequentadores estão cada vez mais velhos, mais gordos, mais afeminados era algo comum em todos os eventos. “A festa até que está cheia hoje, mas não sei, tenho a impressão de que não tem mais o público atraente que tinha antes, popularizou demais…”66 E mesmo o fato das pessoas saberem que eu fazia uma pesquisa sobre festas de orgia era motivo para me perguntarem: “você que sabe dessas paradas, qual outra festa ou lugar está bom ou melhor do que esse?” Para eles, eu havia me tornado um especialista, mais entendido e informado sobre a cena que eles próprios.

Eu não sei se você está percebendo, mas agora aqui só aparecem uns viados velhos, gordos e sem noção. Ficam te pegando toda hora, mesmo você recusando. Fora que muita gente suja, sem noção de higiene também... Vem pra cá sem se preparar, sabe? Coisas básicas: passar um desodorante, um perfume, tomar um banho, escovar os dentes, fazer a xuca... Porra, fica esse lugar todo fedendo! Antes só aparecia um pessoal lindo, interessante, até sarado, e olha que não sou muito ligado ou exigente nessas coisas. Mas tem que ter um mínimo, cara… Você sabe, você vem aqui desde o início. Tô falando alguma mentira?

Resta saber se essas constantes reclamações eram uma forma de “discurso padrão” para o pesquisador e aqueles de fora ou se, de fato, há uma sensação de decadência inerente a esses lugares e à prática da orgia entre homens. O contato sempre com a sujeira, ou a distensão dos limites das noções de higiene, pode ser um dado a ser levada mais a 66

E “popularizar” aqui entendo tanto no sentido de um fluxo maior de pessoas (não mais um público “selecionado”) quanto também num sentido de corte de classe, que é lido pelos interlocutores como de “qualidade do público”.

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sério. Faz parte do lugar, da prática, das pessoas? Afinal, como higienizar uma orgia? Como transformar ela em algo “mais limpo”? Mais “de classe”? É possível transformar a mistura de corpos em algo asséptico?

Que exista uma certa “cosmética” ou “estética da

dissidência” nesses espaços é algo inegável e pretendo desenvolver essa característica no que ela se relaciona com uma excitação específica com o princípio da putaria no próximo capítulo. Porém, é preciso destacar um esforço empreendido pelos organizadores para que se equilibre essa ideia de impureza ou sujeira, considerando que esses elementos são muito mais elaborações culturais do que qualquer outra coisa (Douglas, 1976). Durante o tempo de trabalho de campo, todos os espaços das quatro festas acompanhadas passaram por algum tipo de melhoria uma ou mais vezes. Eram obras e mudanças constantes de/no lugar e que eram justificadas como a busca de uma repaginada na imagem da festa, de um “ar mais clean”, “moderno”, “confortável” e mesmo “mais limpo”. A intenção era a de se evitar o aspecto precário, meio sujo e de “caverna” ou “submundo” que tinha anteriormente e de se “renovar” para que “os clientes não cansassem”. ***

Gostaria de atentar mais detalhadamente agora para como funciona a questão do anonimato nesses eventos e a forma como ele compõe o princípio da discrição. Muitos trabalhos já chamaram a atenção para a característica do segredo, do sigilo e da discrição como componente permanentemente atrelado às relações homoeróticas. Como o estigma sobre essas relações é estruturante de um “amor ou desejo que não ousa dizer seu nome” e de como o segredo aparece como estratégia para o estabelecimento dessas interações67. Penso que outra entrada possível a esse debate é perceber como esse segredo não funciona só como uma estratégia, mas também como um componente erótico forte que é essencial a esse desejo. Há, de fato, uma preocupação com que a ida a esses lugares seja a mais discreta e invisível possível. E isso se pode perceber com os cuidados que os participantes tomam para não serem vistos entrando nas casas nas quais as festas acontecem. Buscam sempre uma maneira de disfarçar, seja indo rápida e diretamente até a porta ou caminhando em ziguezague pela rua, rondando o local, procurando reconhecer o entorno e evitar pessoas 67

Conferir Eribon (2008) e Paiva (2009).

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conhecidas ou mesmo dando voltas no quarteirão se o movimento da rua está muito cheio, esperando uma oportunidade ou criando coragem para finalmente entrar. Filas são evitadas definitivamente: em hipótese nenhuma eles querem ser vistos em uma fila de homens que aguardam a entrada para uma festa de orgia68. Os organizadores, conscientes disso, organizam uma espécie de “fila interna”, dentro da casa, quando nos dias mais cheios acumula-se a entrada de participantes e eles “não podem ficar expostos lá fora”. Os organizadores também são atentos à questão do problema da identificação. Nenhum documento oficial é pedido na entrada das festas. As poucas vezes que vi isso acontecer foi quando se duvidava da idade de um ou outro participante e a preocupação de que o mesmo fosse menor de 18 anos. Mais para confirmar a idade, portanto, sem a necessidade de algum tipo de cadastro ou registro onde a documentação seja necessária. A única coisa que se pergunta é que nome deseja que seja colocado na comanda para o serviço de bar. E esse nome pode ser qualquer um, mesmo fictício, não precisa ser o seu necessariamente69. Da mesma forma, as interações dentro das festas, por mais “íntimas” e “próximas” que sejam, abrem mão de uma necessidade de nome ou identificação do outro. Muito pelo contrário: se nomear ou dar muitas informações de si mesmo é como romper com um determinado pacto implícito de anonimato e impessoalidade das relações que se estabelecem nesse contexto. O apelo com relação ao anonimato foi explorado em algumas pesquisas relativas à dinâmica de grupos de ajuda ao comportamento compulsivo com álcool, drogas, sexo, amor etc. (Frois, 2010; Ferreira, 2012) nos quais se trabalha com uma ideia de que não existem indivíduos (pelo menos não em um sentido burocrático e legal do termo), mas sim sujeitos que se colocam dentro de uma suposta igualdade perante uma determinada experiência. 68

Uma diferença muito grande de quando fui visitar uma festa em Berlim e tive que esperar durante uma hora e meia numa fila com centenas de outros homens (fui o cliente de número 600 a conseguir entrar) e que não pareciam nem um pouco desconfortáveis de estarem à espera ali. 69 A Festa Black Hall, uma das duas que fazem um processo seletivo dos participantes, foi a única que, por determinado período, pedia o link do perfil do facebook dos participantes para que se pudesse comparar as fotos enviadas e comprovar a veracidade da aparência. Felipe, seu organizador, me disse que recebia seguidas reclamações dessa exigência, que as pessoas não queriam se expor, que estavam procurando uma putaria “discreta e no sigilo”. Ele tinha consciência que muitos deixavam de participar da festa quando esbarravam com essas exigências, mas justificava que era a maneira que tinha de manter o padrão de qualidade de seus eventos e que assegurava a todos que ele era o único que tinha acesso a todas as fotos e informações e que só mantinha esses dados temporariamente, deletando-os depois. Com o tempo percebi que Felipe foi abrindo mão da exigência do perfil do facebook, fazendo com que as fotos enviadas ou uma conversa por câmera já fossem o suficiente para a avaliação.

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Todos ali se reuniriam e seriam iguais perante um problema em comum, “o anonimato como forma de anular as distinções entre membros, isto é, como os próprios dizem, chamar a atenção para aquilo que os une, e não para o que os diferencia”(Frois, 2010, 170). Esse apelo é forte nas orgias que colocam como objetivo principal a reunião de machos e discretos para a curtição de uma putaria. A obrigatoriedade de se tirar a roupa, por exemplo, vai além de uma regra de jogo erótica. A ideia também é uma proposta de se “despir” de variados pertencimentos sociais a que somos classificados e constrangidos “lá fora”, na “vida real”: ali não deveria existir família, formação, profissão, local de moradia, roupas da moda etc. Trata-se de colocar esse ser com variados pertencimentos sociais como “apenas” um corpo (o que não quer dizer que esse corpo não seja atravessado por várias significações informadas por estereótipos). E não deixa de ser interessante perceber a multiplicidade de participantes que se reúnem e interagem nos eventos das festas de orgia (pertencentes a diferentes profissões, “mundos sociais”, regiões da cidade, geração, classes, cor da pele etc.), cujos encontros seriam improváveis em outro contexto, especialmente partilhando entre si esse nível de contato pessoal, mas que ali se esbarram em função de certos desejos. E que são esses mesmos desejos que não podem ser mencionados ou revelados para fora dali.

“Para mim, essa é uma das graças de vir para a putaria: essa bagunça que vai do pedreiro até o professor universitário. Aqui o taxista come o playboyzinho da Zona Sul, o morador de comunidade interage com o gringo turista de sei lá de onde... Fora as misturas de raças, eu acho incrível. E, na maioria das vezes, você nem sabe com quem que você tá fazendo as coisas!”

Logo, o que essas pesquisas mostram é que o anonimato, embora seja definido como a ausência de nome e a impossibilidade de identificação, atua nesses espaços em uma situação presencial, de interação e contato “face a face”. Daí que o que definiria mais essa forma de anonimato seria o poder de gestão sobre a divulgação e ocultação de informações pessoais, a possibilidade tanto de se imiscuir e “fazer fugir” seus “dados” e pertencimentos quanto o de, se aproveitando do anonimato, dar outras informações (mesmo que algumas delas sejam falsas) e assumir diferentes “papéis” e “identidades” a seu bel prazer.

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Para Frois, muito da atração e busca por espaços de anonimato seria uma forma de fuga de uma sociedade de controle cada vez maior. Nos dias de hoje o direito ao anonimato, à privacidade e à confidencialidade estaria em risco (2010, 166); a necessidade de identificações exigida por um controle exacerbado aumentaria o apelo por espaços de interação em que é possível gerir a sua identificação e as suas ações, preservando o seu anonimato e mantendo privadas determinadas esferas da sua vida. No que tange à sexualidade, essa questão tomaria outros contornos, já que faz parte de nossa sociedade uma determinada forma de regulação dos desejos que acabou por elaborar aquilo que Miskolci chama de “regimes de visibilidade”:

Na esfera da sexualidade, regime de visibilidade é uma noção que busca sintetizar a maneira como uma sociedade confere reconhecimento e torna visível certos arranjos amorosos, enquanto controla outras maneiras de se relacionar por meio de vigilância moral, da coibição de sua expressão pública, em suma, pela manutenção dessas outras formas amorosas e sexuais em relativa discrição ou invisibilidade. Um regime de visibilidade traduz uma relação de poder sofisticada, pois não se baseia em proibições diretas, antes em formas indiretas, mas altamente eficientes, de gestão do que é visível e aceitável na vida cotidiana. Assim, um regime de visibilidade é também um regime de conhecimento, pois o que é visível e reconhecido tende a estabelecer as fronteiras do pensável (Miskolci, 2014, 62).

A necessidade do segredo ou o desejo pela discrição existem, portanto, também pela vontade de sensação de total controle de si e capacidade individual de criar uma socialidade ou mesmo uma rede social ajustada a seus interesses e desejos. Daí a ideia de que essas relações se dão dentro de um pacto, nem sempre expresso em palavras, mas cuja regra é esse segredo compartilhado, de homens que procuram esses espaços para colocarem em prática desejos que evitam que sejam expostos ou que “vazem” para fora dali. Por isso um cuidado e certo medo de recursos tecnológicos que se tornaram instrumentos nessa sociedade de controle como celulares e câmeras. Durante as festas de orgia eles tendem a desaparecer, o que até causa certa estranheza se pensarmos o quanto eles já estão presentes em nossas relações atualmente. É raro não só, acredito, pela regra 136

de não se fazer registros do que acontece ali, mas também por uma socialidade que não passa por essa tecnologia, ao contrário de outras formas de interação erótica, apesar de já ter visto alguns desavisados caminhando com celulares na mão pelos espaços da festa (o que até fica difícil pelo pouco vestuário obrigatório). Algumas vezes no dark, por exemplo, já vi usarem o celular para iluminar alguma interação ou algumas filmagens em outros espaços e mesmo durante a apresentação do show de sexo ao vivo (alguns desses registros clandestinos podem ser encontrados, por exemplo, em sites de vídeos pornográficos na internet como xvideos.com), todos acompanhados de reprimendas e reclamações dos outros participantes. Os celulares, portanto, costumam (ou pelo menos deveriam) ficar guardados nos armários com idas espaçadas para conferir mensagens e ligações. Certa vez, enquanto conversava com um interlocutor numa área mais isolada da festa, percebi que ele ficou muito incomodado com outro rapaz próximo de nós dois que estava com um celular na mão fazendo algo que não se conseguia identificar: “o que que esse cara está fazendo com esse celular? Tá tirando foto da gente?” Bastante incomodado, foi reclamar com o organizador que passava por ali e que rapidamente chamou a atenção do rapaz com o celular, explicando que na área da festa é proibido o uso do mesmo. Aquele que estava conversando comigo disse que aquilo tinha estragado a sua diversão, que agora tinha “ficado neurado” e que achava melhor ir embora, o que acabou fazendo. Uma outra discussão foi presenciada por mim, em que Roberto reclamava com o organizador sobre as fotos que o mesmo tirava em alguns momentos na Orgia em Alto Mar. Assim que percebeu que estava sendo fotografado em uma interação no ônibus na volta do passeio, pediu para ele parar, e o organizador acabou respondendo de uma forma um pouco ríspida: “as pessoas sabem que eu não publico fotos de rosto”. E, de fato, as fotos do blog de seus eventos têm os rostos desfocados, cobertos ou com algum tipo de tarja. “Mas não interessa”, respondeu Roberto, “o negócio é que essas fotos existem! E se você vem para um lugar desses você não quer riscos de exposição. Quem trabalha com isso, mais do que ninguém, deveria saber preservar a discrição”. As festas de orgia colocam uma espécie de “complicador” por esse desejo de anonimato e sigilo, já que as pessoas se reúnem ali “fisicamente”. Ao contrário dos bastante usados “aplicativos de pegação” (como Grindr, Hornet, Scruff e Tinder) e outras mídias digitais onde se esconde o rosto e se pode interagir através de fotos aleatórias ou de partes do corpo, aqui todos “se veem” (ainda que uma erotização da escuridão esteja presente). 137

Nunca se sabe quem você pode encontrar. Então, afinal, que anonimato é esse que se coloca em um contexto onde todos se veem, aparentemente podem se (re)conhecer e interagem em atos tidos como os mais íntimos, colocando em prática desejos que seriam “inconfessáveis” em outros contextos? “Qual é então a importância da omissão do nome? Que nome querem ocultar e o que é que isso acarreta?” (Frois, 2010, 171). Acredito que o desejo maior envolvido na erótica do anonimato é por uma certa vontade de “desidentificação”, “indistinção”, de se jogar e se perder. Essa atração do se desfazer, sair de si e se abrir a intensidades outras faz parte de um processo de singularização que percebo estar presente na dinâmica das festas de orgia: “o sair de si consiste em entrar ou adentrar num processo de singularização, de tal modo que a subjetividade começa invariavelmente com um processo de auto-estranhamento” (Lins e Gadelha, 241), justamente diferentes daquelas impostas e que estabelecem sempre a mesma referência. A ida às festas de orgia é um engajamento nesse sentido, isto é, a ideia de que esses espaços podem, “em seu cruzamento, instaurar uma dobra, uma interioridade que emerge como ‘território existencial’, fundando uma intencionalidade” (Oliveira, 2005, 58). Aí também estaria o apelo maior do anonimato no princípio da discrição: a possibilidade de estabelecer uma relação com o outro sem que lhe sejam atribuídas responsabilidades ou implicações outras que vão além da própria fruição da interação. O anonimato permitiria, portanto, tornar a pessoa “indistinguível”, tanto para dentro quanto para fora desses espaços. Claro que esse desejo de “indistinção” que estou apontando aqui é mais complexo, porque o anonimato não necessariamente é um desejo de se indiferenciar na “massa”, de passar despercebido. Parte de sua erótica nesses eventos é a possibilidade singular de distinção na multidão de corpos que passa pela disposição nas interações como veremos no princípio da putaria. As festas de orgia são tanto espaços de distinção pela desenvoltura nas práticas sexuais como também de indistinção relativas ao jogo identitário essencializante e de controle modulador. O princípio da discrição se baseia nessa erótica do anonimato que é a possibilidade e a confiança na impessoalidade da relação; da possibilidade de interagir sexualmente com um outro que é completamente desconhecido e que precisa continuar sendo para que o jogo mantenha a sua atratividade. Qualquer um ali é uma potencialidade de prazer

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desconhecida. Corpo(s) outro(s) que podem proporcionar afecções, sensações e a experimentação de uma química nova. Aproxima-se da forma como Caiafa descreve o “anonimato povoado” das viagens em meios de transporte público:

O outro sempre nos traz outros mundos, que são de fato entrevistos, vislumbrados. Deleuze observa que esses mundos não são realizados, mas possíveis, e são expressos pela presença de outrem. Aquilo que não vejo que não é conhecido e que, sendo real, não é realizado para mim - me é trazido pela companhia dos outros. São mundos de potencialidades e virtualidades que outrem inclui em minha experiência (2013, 62).

Essa característica até trazia um certo empecilho à pesquisa pela dificuldade que eu tinha em conseguir que algumas pessoas entrevistadas me indicassem outras como referência. E a maioria não conseguia, não porque não quisesse me ajudar ou porque queria manter algum tipo de segredo inviolável sobre a identidade do outro, mas pelo simples fato de me dizer não conhecer e não ter contato com outros participantes que não se restringissem às interações sexuais durante as festas, isto é, as pessoas não mantinham contato para além daquele intercurso sexual. O que não quer dizer que esse anonimato não possa ser quebrado em algumas situações. Seja naquelas interações que pela sua intensidade podem extravasar para além da festa, dos interesses que podem surgir a partir dos diversos encontros realizados ali ou mesmo do acaso de encontrar outros participantes em diferentes contextos. Essas “revelações”, sim, é que seriam entendidas como uma verdadeira exposição da “intimidade”, já que seria “ultrapassar as fronteiras que delimitaram para si próprios nas interações com outros ali” (Frois, 2010, 172)70. Da mesma forma, encontrar nas festas

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Um desses exemplos foi a amizade que eu mesmo constituí com Rodrigo a partir de um primeiro contato em uma das festas. Uma amizade que se tornou duradoura e que ultrapassou os encontros esporádicos nesses espaços. Rodrigo é branco, de altura mediana e com cabelos e barba negros. Tinha 35 anos quando o conheci, é carioca, mas atualmente mora em Portugal. Em nosso primeiro contato tinha vindo passar as férias no Rio com os pais e aproveitar para assistir aos jogos de futebol da Copa do Mundo. É professor da área contábil em uma universidade de Lisboa. Antes, trabalhava numa universidade em Londres. Diz que seus pais sabem sobre a sua sexualidade (“não que

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pessoas já conhecidas anteriormente é motivo para situações desconfortáveis e mesmo de “fugas” e saídas imediatas do ambiente. Os organizadores possuem um verdadeiro acervo de histórias curiosas onde contam já ter presenciado encontros inesperados como entre pais e filhos, irmãos, namorados, maridos, amigos de infância, patrões e empregados e mesmo de um pastor e algum fiel de sua igreja. Quando essas “descobertas” de pessoas conhecidas não se fazem a partir de uma relação tão próxima não causa tantos problemas. Quando eu perguntei para um interlocutor se ele tinha medo de esbarrar nessas festas com alguém que conhecesse, me disse: “cara, encontrar pessoas conhecidas é tipo matemática, os dois estão aqui, são iguais, então cortou, cortou, zerou”. Como eu disse anteriormente, a erótica do anonimato e o princípio da discrição não são algo que se restrinja a uma determinada orientação sexual. O que eu quero dizer é que ela não acontece exclusivamente porque estamos falando de relações homoeróticas entre

frequento putarias, mas que gosto de homem”), já foi casado duas vezes, uma com mulher e outra com homem. Quando o conheci mantinha uma “relação conturbada de quase quatro anos com outro cara”. Segundo Rodrigo, o namorado batia nele, porque ele o traía muito. Se dizia apaixonado, mas o outro era “psicologicamente instável”, colocava detetive particular para seguí-lo, hackeava seu email, grampeava seus telefones e justificava suas agressões com as descobertas da traição. Assim que soube que eu estava ali fazendo trabalho de campo, se empolgou e disse que me ajudaria e que queria participar. Como tinha já frequentado vários eventos desse tipo na Europa, disse que ainda achava que o melhor lugar era o Brasil: Em Portugal não há festas como essa, aliás lá a pegação entre homens é bem diferente. Os portugueses são muito bonitos, mas a aproximação é outra. Ou é feita de modo bem lento, conhecendo aos poucos, levando para tomar vários cafés, conversando e aí sim uma aproximação física, ou então, é feito de um jeito escroto, o cara já chega, baixa as calças e manda você comer o cu dele. Há espaços gays ou friendly, mas muito poucos. Tem festas assim onde as pessoas ficam peladas, é claro, assim como em toda a Europa, mas não é a mesma coisa. Diferente de Londres ou Berlim que é onde a coisa é mais tensa. Em Lisboa o que você mais tem são aquelas festas privadas, que chamam de sociais aqui, aquela coisa mais escondida, dentro da casa dos outros, grupo pequeno de amigos ou conhecidos, uma coisa mais moralista, né?… Me dizia que era a segunda vez que vinha naquela festa específica, selecionada. Da outra vez tinha se sentido muito mal, porque foi rejeitado várias vezes e que teve amigos que foram ali e sentiram a mesma coisa. “A questão foi com a parada da seleção, essa coisa de ter que ser bonito, malhado, forte, pau grande...O próprio organizador não sabia se me deixava entrar ou não: dependia da foto que eu mandava, do ângulo, às vezes falava que eu podia ir, outras não. Eu venho nessa porque eu gosto muito de negros e essa fica cheia”. O contato com Rodrigo se manteve em outros encontros e por email, e quando contei para ele que ia passar uma temporada em Lisboa para o estágio no exterior foi extremamente solícito. Me ofereceu a sua casa para uma estadia inicial, me levou para sair à noite e apresentar os locais que achava que poderia me interessar, além de compartilhar comigo suas impressões, experiências e seus conhecimentos tanto sobre o mercado do sexo em Portugal quanto nas outras cidades para as quais tinha viajado. Muito de suas indicações me foram úteis durante a pesquisa.

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homens, mas também pelo peso moral que determinadas práticas sexuais podem ter. Como afirma Miskolci,

ser discreto ou se relacionar em segredo não equivale a ocultar a homossexualidade, como na velha expressão “estar no armário”, antes negociar - em cada contexto - o grau de sua visibilidade de forma a maximizar a segurança e evitar retaliações morais e materiais (2015, 69-70).

Lembro da fala de Yuri certa vez ao comentar comigo que tinha encontrado ali um rapaz que era seu conhecido. Não chegavam a ser próximos, mas tinham muitos amigos em comum e se encontravam eventualmente em aniversários, bares etc. Disse que o problema não era nem que as pessoas soubessem que ele ficava com outros homens, mas sim que ele “frequentava esse tipo de lugar”. Isso sim é que era o elemento que ele não gostaria que fosse publicizado ou do conhecimento de outras pessoas. A participação em putarias, a ida às festas, portanto, envolveria um “regime de visibilidade” próprio (semelhante a outras práticas tidas como “dissidentes” tais como o swing, a prostituição, o BDSM etc.) onde cabe a cada um a responsabilidade e o controle sobre o que se acredita poder falar, mostrar, a quem e que “identidade” reivindicar71. Por outro lado, a ideia de inventar e apresentar dados e informações falsas sobre si pode ser atraente para algumas pessoas. As possibilidades seriam inúmeras. Caso curioso, por exemplo, o de Bruno que dizia que cada vez que ia lá criava um personagem. Na primeira vez que o vi estava de aliança, porque seu personagem era noivo de uma mulher e estava de casamento marcado. Na vez seguinte, era apenas um rapaz criado de forma religiosa que se sentindo reprimido ia para essas festas “descarregar” e por aí criava outras personas. Cada ida ali era um personagem, com um nome, uma história e um número de telefone diferente que ele dava para as pessoas que conhecia.

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Em artigo recente sobre a ideia de identidade sem pessoa, Agambem fala sobre a evolução da ideia de “persona”, “máscara” e “identidade” e como atualmente há um desejo de libertar-se do peso da “pessoa”, da responsabilidade tanto moral quanto jurídica a partir dos mecanismos de identificação cada vez mais “biológicos”. No ponto em que fixa o indivíduo a uma identidade puramente biológica e associal, promete-lhe deixar assumir em outros territórios todas as máscaras e vidas possíveis, nenhuma das quais poderá jamais lhe pertencer particularmente (2014, 75-86).

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O devir-multidão da orgia

Uma das coisas que mais chama a atenção ao observador caso faça uma visita em qualquer uma dessas festas é a capacidade de aglomeração dos corpos nos espaços da casa. O movimento rápido e contínuo de junção e separação do conjunto de pessoas presentes. As diferentes configurações numéricas e disposicionais que as interações e reuniões de corpos podem tomar. É o que mais chama a atenção tanto visualmente quanto sensorial e sensualmente. Se surpreender ao conseguir contar em torno de vinte pessoas aglomeradas em uma interação na cama coletiva da suíte, ou mesmo de perder a conta na tentativa de contabilizar os presentes, por exemplo. Dentro da ideia de um modelo químico de relação que eu apresentei no início do capítulo, a socialidade aqui se baseia numa determinada “ânsia de conexão”. Em um perambular constante, olhos atentos, corpo aberto à sensibilidade externa, ao roçar do toque do outro, do cheiro que atrai, do calor do corpo que encosta no seu, de sentir o molhado da umidade na respiração do outro. De um corpo que a todo momento busca se conectar, se expandir, compor, ligar-se e reagir de alguma forma com o outro, além dos seus limites. Toques, conexões e penetrações que independem, inclusive, de uma concepção do corpo por inteiro. Esse corpo aqui pode ser fragmentado, estar em partes, decomposto, minha apreensão do outro pode ser apenas por seu pênis, seu ânus, suas mãos, sua boca, que tocam, resvalam, apertam, mordem e penetram possibilitando infinitas formas de encontro. A proposta dessas festas é de interações sexuais que sejam grupais e coletivas. Como afirmam os organizadores em seus blogs: “A formação de casais ou grupos fechados não é censurada, mas pedimos que, ao se formarem, sejam educados com pessoas que buscam fazer parte dele. Nunca tivemos problemas na festa, mas caso atitudes grosseiras ocorram, a pessoa será convidada a se retirar da festa. Esperamos ter sido claros”. Nesse sentido algumas medidas com relação à organização do espaço são tomadas: portas são presas e impedidas de serem fechadas, quartos e cabines que poderiam ser de uso “privado” para casais também são trancadas para que a fruição mantenha um princípio coletivo. A casa em que acontece a Festa do Vale Tudo, por exemplo, funciona em outros dias como clube de swing, por isso possui todo um espaço no segundo andar com um corredor de cabines pequenas para que os casais possam interagir com mais intimidade e privacidade. Nos dias das festas de orgia, esse corredor é fechado com uma grade, já que 142

não caberia na proposta da orgia, deixando apenas outras duas cabines disponíveis (essas duas vazadas por “glory holes”, buracos em que é possível não só ver o que acontece dentro das cabines, mas também interagir através da inserção da mão, do pênis etc.). Porém, algumas vezes, os participantes conseguiam deslocar a grade e ter acesso ao corredor das cabines “privadas”. O organizador era alertado pelos próprios participantes e ia lá exigir que as pessoas saíssem, batendo na porta de cada cabine e pedindo para que elas retornassem às áreas comuns. São comuns as reclamações de que não é todo mundo que sabe, ou que está preparado, para ir “foder” numa orgia, que não é a mesma coisa que “o sexo que se faz em casa” e mesmo em outros lugares para interação sexual como saunas, cinemas pornográficos ou uma “pegação por aplicativo”. A ida a uma putaria exige uma certa forma de engajamento do indivíduo. Uma disposição e atitude de corpo. Tem que se ter coragem e estar preparado. Imbuído de um desejo e de uma abertura para as intensidades que vão ser experimentadas lá de forma coletiva. O que meus interlocutores estão chamando a atenção aqui é que há um prazer específico na prática do sexo coletivo, que eles percebem não ser possível em outras formas de interação sexual (ou talvez não com tanta intensidade e possibilidades) que é a de compor, fazer ou “devir-multidão”. A “multidão”, segundo Hardt e Negri, é uma forma de agrupamento social, de um fazer coletivo, ou, melhor ainda, uma maneira de estabelecer relação com o outro: “designa um sujeito social ativo, que age com base naquilo que as singularidades têm em comum. A multidão é um sujeito social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou na unidade (nem muito menos na indiferença), mas naquilo que tem em comum" (2005, 140). No caso das festas, a multidão se faria pelos desejos em comum compartilhados por esses homens e que produzem a figura do “macho, discreto e puto”. Estou fazendo uma apropriação muito particular do conceito de “multidão” de Hardt e Negri, já que a ideia de uma luta política por esses “novos movimentos sociais” está longe de se fazer presente aqui. Está me interessando mais a ideia de multidão como forma de relação, da aglomeração de corpos e o agenciamento de potências pelo interesse em comum (o prazer orgiástico, no caso) que passa por isso que estou chamando de “devirmultidão”. Essa ideia de multidão que estou trazendo ajuda a pensar essa reunião de diferentes homens desconhecidos uns dos outros para atividades sexuais coletivas que não 143

se quer ser representante ou representada por nada. Que querem permanecer discretos, mas ao mesmo tempo terem a liberdade de “gozarem de uma putaria entre machos”. De pessoas que não buscam conformar redes ao frequentar esses espaços, mas sim multidões. De compor com esses outros corpos, nos encontros intensivos, um aglomerado múltiplo e singular. O desejo aqui, portanto, não é o de uniformizar, muito pelo contrário, é o de produzir mais singularidade. A multidão tem um processo de articulação e composição singular diante daquilo que estamos acostumados. Fazer a multidão não é um processo a partir da fusão ou unificação dos corpos e das individualidades, mas sim uma proliferação de singularidades a partir de movimentos de aliança e coalizão, a partir dos encontros. As conexões e ligações realizadas ali durante as interações, portanto, não criam alguma espécie de solidariedade ou formação de um corpo societal, uma comunidade. “Essa nova ciência da multidão baseada no comum, cabe assinalar, não implica qualquer unificação da multidão ou qualquer subordinação de diferenças. A multidão é composta de diferenças e singularidades radicais que nunca podem ser sintetizadas numa identidade”(op.cit., 444). O conjunto ali é uma “carne viva” (op.cit.,140). “Puro suor. Mistura sem simbiose” (Lins, 2013, 50). Para quem olha de fora, a aglomeração de pessoas, que faz e se desfaz ao sabor e ao ritmo da intensidade das interações se assemelha mais a um amontoado desorganizado de “carne” que formaria o que na cena de música eletrônica se chamou de “almôndegas”. Fernanda Eugênio conta como o termo começou a ser usado: O termo teria sido cunhado por uma conhecida personagem da noite clubber paulistana, Johnny Luxo, nos idos tempos do clube Massivo. Palomino (op.cit.: 39) registra com precisão: na noite de 15 de fevereiro de 1992. Eis a narrativa de um agravamento. Os “beijos de três ou de quatro” já então eram rotina desde o clube Nation, “sempre ao ritmo da música, sempre acompanhando a pulsação da dança”. “Até que uma noite, de repente, na pista, juntam-se uns dez, entre homens e mulheres, beijandose, em carícias. Dura algo como três músicas - e ninguém até hoje sabe direito como começou. É tanta gente que, visto lá de cima, do mezanino, não dá para entender que mão é de quem, que boca é de quem. Johnny Luxo olha e comenta, diante do bolo de carne misturada: ‘nossa, parece uma almôndega…’. O nome ficou e também o procedimento. (...) Em

144

novembro de 1992, o assunto vira até capa da ‘Ilustrada’. ‘Mais de três já é almôndega’, decreto. A ‘didática’ reportagem explica que essas almôndegas ‘da primeira fase’ têm caráter estritamente ‘familiar’: o núcleo básico se compõe de amigos e conhecidos; ocasionalmente estranhos entram nas extremidades, mas sempre com o consentimento (informal) do grupo. Em tese, as almôndegas duram o tempo de uma música, desfazendo-se quando entra outra ou quando a própria almôndega perde a graça. Erotica e Justify my love, ambas de Madonna, Too funky, de George Michael, e French Kiss, de Lil’Louis, são a trilha sonora perfeita para as almôndegas. Sexo mais seguro, impossível” (ibidem). (Eugênio, 2006, 32-33)

As “almôndegas” nas festas de orgia tomam contornos e dobras mais ousadas do que os descritos nas cenas eletrônicas, seja porque estamos falando de práticas que vão além de beijos e carinhos (e nem sempre sexualmente seguras) e também por algo que se faz aqui entre desconhecidos e não entre um grupo familiar de amigos ou conhecidos. Fazer ou “devir-multidão” nas orgias é compor vontades de potência, agenciar com o(s) outro(s) corpo(s) desejos e vontades que proporcionem a maior quantidade possível de prazer, entrar num estado de experimentação intensiva a partir das conexões que se oferecem durante as interações, é produzir, na verdade, uma nova forma de interação, singular a cada encontro. Hardt e Negri chamam a atenção também para a força e o potencial político que a formação de multidões pode apresentar no mundo contemporâneo, como justamente por não ser um movimento unificador, identitário, mas sim pautado em desejos e causas comuns (sem desconsiderar e abrir mão das singularidades) elabora novas subjetividades e novas formas de vida: Precisamos descobrir o que essa carne pode fazer (...) A carne da multidão é puro potencial, uma força informe de vida, e neste sentido, um elemento do ser social constantemente voltado para a plenitude da vida. Dessa perspectiva ontológica, a carne da multidão é uma força elementar que constantemente expande o ser social, produzindo além de qualquer medida de valor político-econômico tradicional (...) Do ponto de vista da ordem e do controle

políticos

assim,

a

carne

elementar

da

multidão

é

145

desesperadoramente fugidia, pois não pode ser inteiramente enfeixada nos órgãos hierárquicos de um corpo político. A carne social viva que não é um corpo pode facilmente parecer monstruosa. Para muitos, essas multidões que não são povos nem nações ou sequer comunidades constituem mais um exemplo da insegurança e do caos que resultaram do colapso da ordem social moderna (...) O informe e o desordenado são assustadores (Hardt e Negri, 2005, 251).

No campo da sexualidade, que nos interessa mais de perto, Preciado em artigo sobre as “multidões queer” explora as vantagens teóricas e políticas da noção de “multidão” em contraposição ao “Império Sexual”, que seria um determinado regime “sexopolítico” que nos configuraria72. Contra esse regime biopolítico, a resistência criativa do corpo em suas conexões. Para Preciado,

A política da multidão queer não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher)

nem

sobre

uma

definição

pelas

práticas

(heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”: são os drag kings, as gouines garous, as mulheres de barba, os transbichas sem paus, os deficientes- ciborgues... O que está em jogo é como resistir ou como desviar das formas de subjetivação sexopolíticas (2011, 16).

No que isso diz respeito às festas de orgia organizadas para os encontros desses homens, não se pode ignorar que muito dos desejos que se agenciam ali são em prol de uma figura masculina normativa e dominante que é o “macho discreto” e que o discurso de uma movimentação política identitária também não encontra eco nesses espaços. O engajamento aqui parece estar, de fato, naquilo que Preciado aponta como estratégias possíveis das multidões queer: “‘Desidentificação’, identificações estratégicas, desvios das

72

A sexopolítica é uma das formas dominantes da ação biopolítica no capitalismo contemporâneo. Com ela, o sexo (os órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e também os códigos de masculinidade e de feminilidade, as identidades sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das identidades sexuais um agente de controle da vida (Preciado, 2011, 11).

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tecnologias do corpo e desontologização do sujeito da política sexual são algumas das estratégias políticas das multidões queer” (op.cit, 15). Em sua pesquisa de contexto semelhante à minha, o sociólogo espanhol Javier Sáez analisa o “excesso de masculinidade” em algumas práticas sadomasoquistas da “cultura leather” e de grupos identificados como “ursos” (2003 e 2005). O autor também chama a atenção para a “dupla leitura” possível em sua observação desses campos, ou seja, tanto de um questionamento da masculinidade quanto de uma reafirmação dos papéis masculinistas tradicionais. Há a percepção de um “caráter subversivo ao introduzir novas identidades dentro dos circuitos gays e dentro dos códigos de masculinidade”, mas ao mesmo tempo se dá conta de uma “assimilação dos sistemas de dominação heterocentrados”. A conclusão do autor é de que “não obstante, temos sempre a possibilidade de retorcer de novo os códigos, de fazer proliferar novas subculturas que desestabilizem o sistema heterocentrado e sua produção de gêneros estáveis” (2005, 8) O território intensivo das festas de orgia pesquisadas ao proporem como princípios o sexo coletivo só entre “machos, discretos e putos”, também possibilitam a composição de um “devir-multidão” entre esses corpos, de uma “carne viva” que em seus encontros e interações sexuais, ainda que sob princípios normativos, tem a possibilidade (nem sempre efetuada) de desterritorializar a “sexopolítica” dominante.

O corpo da multidão queer aparece no centro disso que chamei, para retomar uma expressão de Deleuze, de um trabalho de “desterritorialização” da heterossexualidade. Uma desterritorialização que afeta tanto o espaço urbano (é preciso, então, falar de desterritorialização do espaço majoritário, e não do gueto) quanto o espaço corporal. Esse processo de “desterritorialização” do corpo obriga a resistir aos processos do tornar-se “normal”. Que existam tecnologias precisas de produção dos corpos “normais” ou de normalização dos gêneros não resulta um determinismo nem uma impossibilidade de ação política. Pelo contrário, porque porta em si mesma, como fracasso ou resíduo, a história das tecnologias de normalização dos corpos, a multidão queer tem também a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade sexual (Preciado, 2011, 14).

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No próximo item procuro me deter melhor sobre a ideia de desterritorialização do espaço urbano como proposta por Preciado acima.

“Lugares outros”

Os espaços onde ocorrem as festas são tidos como lugares que se destacam no cenário urbano, que cria uma espécie de dobra ou de fenda espaço-temporal e só aqueles que sabem ler os sinais ou que têm conhecimento prévio de sua existência são capazes de reconhecer e de acessá-los. Funciona como uma espécie de “clube”, de “sociedade secreta” ou, melhor ainda, de uma “sociedade exclusiva”73, uma reunião onde não é permitida a entrada de todo mundo ou de qualquer um, só daqueles que já são iniciados ou dos que querem experimentar a prática74. Esse fato me chamou a atenção para um certo senso comum compartilhado, o de que esses espaços são específicos de uma orientação sexual. Explico melhor: em um determinado fim de semana, ao sair de uma das festas no Centro da cidade, percebi que em frente à casa acontecia uma festa de rua de um bloco de Carnaval fora de época, famoso pela frequência de um público LGBT. Encontro uma dúzia de conhecidos e seus respectivos amigos e, ao dizer que tinha passado a tarde fazendo trabalho de campo em uma festa de orgia na casa exatamente em frente ao local, eles disseram desconhecer totalmente não só o lugar como a prática. Conversamos mais um pouco sobre isso, e alguns chegaram a comentar que nunca frequentaram nenhum tipo de espaço para interação sexual homoerótica, seja sauna, cinemas, sex shops etc. Também falamos de como isso é uma coisa que se costuma achar “natural” do universo gay e uma experiência comum a todos que compartilham dessa identidade, mas que não é bem assim: “Imagino que esses ambientes devem funcionar como os puteiros são para os heteros. Algo que é muito significativo, mas que nem todos já foram ou frequentam necessariamente, ainda que as

Em seu estudo sobre a maçonaria contemporânea, Kofes (2015) indica que o uso de “sociedade exclusiva” seja mais coerente com a organização do que o ritualístico “sociedade secreta”. Não que eu esteja comparando as festas de orgia com a maçonaria, mas a ideia de uma reunião entre iguais a partir de “convicções compartilhadas” e de um sistema ético-moral específico, que excluem aqueles fora do perfil desejado, também se faz presente nos eventos. 74 A separação fica clara nas falas “nativas” onde há uma distinção entre “lá dentro” e “lá fora”, na “vida real”. 73

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representações sobre sejam abundantes. Será que todo homem hétero sabe onde fica um puteiro?”. Em outra festa, Bernardo veio comentar comigo uma coisa que disse ter se dado conta e que eu poderia achar interessante “para a minha pesquisa”. Era sobre o fato de frequentar essa festa regularmente e nunca ter encontrado ninguém conhecido por ali e nem ninguém da festa em outro lugar que frequentasse. Tirando os dois amigos com quem costuma vir junto e a mim (que conheceu ali, mas que passamos a nos encontrar por acaso em outros ambientes como boates e festas), o resto nunca viu nem quer encontrar, senão pararia de frequentar.

E isso é bizarro nunca ter acontecido, principalmente pela quantidade e rotatividade de pessoas nessas festas, pelo tempo que eu venho aqui, uns três anos... E eu frequento lugares gays desde adolescente. Quer dizer, é muito “macho discreto” que existe nessa cidade, não é possível!75 Porque olha só, qualquer festinha de boate que tem no Rio e cai no gosto do grande público, fica “hypada” e aí você encontra sempre as mesmas pessoas não só lá como em qualquer lugar! E aqui não... Eu imagino que deva ter uns cortes de classe aí também, claro... pessoal que deve morar longe... você que é o sociólogo aqui! Mas eu percebi isso, achei engraçado e queria comentar contigo. Parece que tem uma coisa meio secreta nisso tudo.

De fato, uma das atrações e desejos envolvidos nesses eventos é de que ele aconteça a partir de uma ideia de sigilo. Contraditoriamente, estamos falando aqui de festas que fazem parte de um determinado mercado, ou seja, visam fins lucrativos e logo dependem de uma propaganda e da presença de um número considerável de clientes que cubram os gastos e pagamentos de aluguéis, contas como luz e água, bebidas, comidas, contratos de serviços etc., enfim, que tragam um retorno financeiro. As festas, de fato, apesar de semelhantes e terem os mesmos princípios, possuem estilos próprios no sentido 75

Bernardo faz aqui uma referência à um meme que ficou famoso em 2014 a partir de uma notícia que saiu em uma coluna social de um famoso jornal carioca. A nota contava sobre um senhor que se recusou a ser atendido em uma lanchonete pelo fato do funcionário ser transexual e ao perceber que tanto o gerente do estabelecimento quanto o policial militar que foi chamado também serem homossexuais, disse: “Só tem bicha nessa cidade?”. A frase foi apropriada como piada e gíria durante os meses seguintes.

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de conformarem públicos consumidores específicos que nem sempre costumam ir a todos esses espaços indiscriminadamente. Muitos são fiéis à festa do seu estilo preferido, apesar de saberem da existência de outras e até irem de vez em quando. Há um circuito de espaços e festas, ainda que não seja percorrido todo ele pelos “nativos”, é como um mapa de conhecimento “geral”, muito mais de opções, do que de idas efetivamente, já que se elege a sua favorita. Nas conversas informais durante os eventos, eles acabam por indicar aos outros participantes diferentes lugares para interação erótica. Há aqueles que pouco conhecem e aqueles que são especialistas em festas particulares, cinemas, saunas, boates, uma verdadeira cartografia homoerótica da cidade do Rio. E daí, pelas dicas, que serão buscadas na internet mais tarde, vão se construindo novos trajetos e socializações. Ou como aconteceu no passeio dentro do ônibus a caminho da orgia em alto mar em que um dos presentes trouxe uma folha impressa com uma lista dos “lugares de pegação” da cidade do Rio e, após uma leitura em voz alta, compartilhou a mesma que foi passando de mão em mão para que as pessoas pudessem reler, tirar foto ou anotar as informações. As informações que foram compartilhadas ali não eram os lugares entendidos como “os do meio”, ou seja, como pertencentes ao “universo gay” ou a uma identidade LGBT; não eram boates, clubes, saunas ou outro lugar que pudesse ser confundido como “do meio”. Eram espaços entendidos como livres dessas demarcações: parques, ruas, cinemas, banheiros públicos, festas que eram consideradas discretas etc.76.

76

Alguns trabalhos da antropologia no Brasil se dedicaram a pensar sobre o papel de espaços tidos como guetificados na formação de uma sociabilidade homoerótica e de uma posterior identidade para aqueles que vivem em um contexto marcado por estereótipos e exclusões: O gueto é um lugar onde tais pressões são momentaneamente afastadas e, portanto, onde o homossexual tem mais condições de se assumir e de testar uma nova identidade social. Uma vez construída a nova identidade, ele adquire coragem para assumi-la em âmbitos menos restritos e, em muitos casos, pode vir a ser conhecido como homossexual em todos os meios que freqüenta. Por isso, é da maior importância a existência do gueto. Mais cedo ou mais tarde, acaba afetando outras áreas da sociedade. (MacRae, 2005, 299) A cena guetificada homoerótica é revisitada e revisada em artigo por França e Simões tomando como exemplo a cidade de São Paulo (2005), onde os autores apontam um processo intensificado a partir dos anos 1990 de movimento dessa cena em direção ao mercado e à mídia: Isso se nota na expansão e diversificação do “gueto”. Saunas, bares, discotecas e casas noturnas multiplicaram-se em número e em variedade de formatos, estilos e serviços. Nos últimos anos, apareceram várias revistas, jornais, livrarias, editoras, agências de turismo e de namoro voltadas ao

150

Nos anos 1960, em uma conferência sobre estudos arquiteturais, Foucault propôs um conceito para pensar determinados espaços que se formam nas cidades, as “heterotopias”, que podem nos ser úteis para refletir sobre os espaços das festas de orgia. As heterotopias se diferem das utopias, segundo Foucault, já que seriam espaços reais, que se produzem nas cidades enquanto “espaços absolutamente outros”.

Há regiões de passagem, ruas, trens, metrôs; há regiões abertas de parada transitória, cafés, cinemas, praias, hotéis, e há regiões fechadas do repouso e da moradia. Ora, entre todos esses lugares que se distinguem uns dos outros, há os que são absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purificá-los. São como que contraespaços (2013, 19-20). público homossexual, assim como seções dedicadas à homossexualidade em grandes jornais, livrarias, editoras e agências de viagem. Assiste-se também, recentemente, ao incipiente aparecimento de uma espécie de “empresariado homossexual” organizado. Acrescente-se, ainda, a emergência e expansão do “gueto virtual”. A internet é hoje um importantíssimo espaço para busca de parceiros, trocas, sociabilidade, discussões políticas e comunicação, com suas salas de bate-papo, suas listas de discussão e seus inúmeros e variados sítios e portais dirigidos à homossexualidade em suas múltiplas manifestações (2005, 313). Esses desenvolvimentos recentes, como apontam os autores acima, parecem indicar um modo peculiar e dentro de uma lógica mercadológica de combinar mecanismos de diferenciação e segmentação da cena homossexual com tendências em favor de sua massificação e integração social. Olhando retrospectivamente o texto de MacRae, que nos serviu de inspiração geral, gostaríamos de chamar a atenção para o modo como a ênfase na emergência de novas identidades sexuais, capazes de promover um senso mais elevado de auto-estima e maior tolerância e aceitação da homossexualidade, ligava-se ao esforço de evidenciar o papel positivo do “gueto” – o que depois passou a ser chamado de “política da “visibilidade”. Essa não era uma postura consensual na militância política homossexual nem entre os pioneiros na adoção do estilo de vida “gay moderno” na época. O “gueto” era também desprezado, por seu segregacionismo, sua vulgaridade, seu comercialismo, sua abjeção. Mesmo hoje em dia, o “gueto” (ou o “meio”, como às vezes é referido) segue alvo de repulsa da parte dos que, pelas razões mais diversas, não querem ser identificados com ele, mesmo que o freqüentem. Por isso, também, a “defesa” do “gueto” continua a ser um tema candente e atual. Que os territórios reais e virtuais aqui tratados – por mais ampliados, diversificados e pluralistas – ainda sejam reconhecidos como “guetos” é um indicador da tensão recorrente entre os esforços de “pluralizar o universal, combatendo a segregação e a incomunicabilidade das diferenças, e a necessidade de manter espaços protegidos diante da intolerância que persiste sob múltiplas formas e a necessidade de manter espaços protegidos diante da intolerância que persiste sob múltiplas formas e procedências (2005, 333).

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As heterotopias são esses “contraespaços”, que funcionariam como espaços de fuga, “lugares reais fora de todos os lugares”, uma dinâmica espaço-temporal singular, onde as normas que circulam nos outros espaços comuns da sociedade em geral são suspensas ou mesmo transgredidas:

É aí, sem dúvida, que encontramos o que de mais essencial existe nas heterotopias. Elas são a contestação de todos os outros espaços, uma contestação que pode ser exercida de duas maneiras: ou como nas casas de tolerância de que Aragon falava, criando uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como ilusão, ou, ao contrário, criando outro espaço real tão perfeito, tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado (op.cit., 28).

Quase cinquenta anos depois, Preciado vai apresentar uma releitura do conceito de Foucault aplicando-o num contexto de (re)produção dos gêneros e do sistema de sexualidade77. Para isso, elabora a ideia de “pornotopia”, que seria uma forma singular de heterotopia sexual:

O que caracteriza a pornotopia é a sua capacidade de estabelecer relações singulares entre espaço, sexualidade, prazer e tecnologia (audiovisual, bioquímica, etc.), alterando as convenções sexuais ou de gênero e produzindo a subjetividade sexual como um derivado de suas operações espaciais (2010, 120).

77

Para Preciado, nosso mundo contemporâneo é fruto de um determinado sistema ou regime disciplinar e de controle capitalístico que denomina de “farmacopornográfico”: O capitalismo farmacopornográfico poderia definir-se como um novo regime de controle do corpo e de produção da subjetividade que emerge no pósSegunda Guerra, com a aparição de novos materiais sintéticos para o consumo e a reconstrução corporal (como os plásticos e o silicone), a comercialização farmacológica de substâncias endócrinas para separar heterossexualidade e reprodução (como a pílula anticoncepcional) e a transformação da pornografia em cultura de massas. A este capitalismo lhe interessam os corpos e seus prazeres, tira benefício do caráter politoxicômano e compulsivamente masturbatório da subjetividade moderna (2010, 112-113)

152

As pornotopias, portanto, se mantêm enquanto espaços de fuga, já que elas teriam a característica de criar brechas na topografia sexual da cidade, alterando os modos normativos de codificação dos gêneros e da sexualidade, as práticas do corpo e os rituais de produção de prazer (op.cit., 122). Cita o exemplo do famoso aparato criado pelo empresário diretor da Playboy, com sua revista, programas de TV, festas e Mansão e como a partir dessa pornotopia se produziu uma determinada masculinidade:

A produção de um mundo dentro de outro, um lugar de sobreposição e justaposição dos espaços privados e públicos, reais e virtuais, criando um novo tipo de domesticidade masculina, onde o homem poderia desfrutar dos privilégios do espaço público (e devemos entender aqui privilégios de gênero e de representação, assim como os monopólios acordados pela mercantilização capitalista) sem estar sujeito às leis (familiares, morais, antipornográficas) e os perigos do exterior (op.cit., 130).

A criação de lugares outros, ou “contraespaços”, é apontada por diversos autores como uma dinâmica essencial na constituição de um circuito de práticas homoeróticas que pôde ir se espalhando e transbordando para diferentes áreas da cidade78. Em sua história da homossexualidade no Rio ao longo do século XX, Green destaca que para fugir de estigmas associados a essas práticas sexuais, criaram-se essas “contra-casas” que seriam “um outro espaço fechado onde os homens podiam interagir livremente e que servia como uma alternativa à família tradicional” (Green, 2000, p. 33). Seriam esses espaços os bares, parques, boates, saunas, cinemas etc. Teriam, portanto, um potencial político de resistência às normas impostas por um determinado modelo heteronormativo de sociedade79.

78

De fato a maior parte dos estudos centralizaram sua atenção sobre cenários urbanos. Uma exceção a isso é a pesquisa de Ferreira (2008), uma etnografia dos encontros sexuais homoeróticos de uma área rural do Cariri cearense. 79 O próprio Green, inclusive, em uma coletânea de textos dedicada a analisar a dinâmica das relações e movimentação política homossexual durante o período da ditadura militar afirma que a perseguição desse segmento se dava porque ele representava certo grau de ameaça à estabilidade de um sistema social muito em função de certa condição de desequilíbrio desse sistema de força pelo erotismo, pela busca constante de liberdade de se expressar, pelo questionamento aos padrões estabelecidos (Green e Quinalha, 2014).

153

Porém, há uma contradição implícita colocada nessa ideia de pornotopia enquanto um espaço de suspensão de normas sexuais e transgressão, já que esses espaços se produzem a partir de um estigma, de uma exclusão. Como Preciado já havia percebido:

As heterotopias que aparentam ser puras e simples aberturas, geralmente escondem estranhas exclusões. Qualquer um pode entrar nestes espaços heterotópicos, mas na realidade se trata de uma ilusão: acreditamos que tenhamos entrado, mas na verdade é que, só pelo fato de entrar, estamos sendo excluídos (2010, 133).

Será que quando pensamos que a organização das festas de orgia, foco desse trabalho, se coloca enquanto um espaço de contraposição e abertura ao novo e a linhas de fuga diversas, ele, na verdade, é uma nova prisão? Um novo “gueto”? Um espaço excludente, marginal e estigmatizado? Ou ainda, esses participantes estão se jogando (ou se escondendo) em um novo armário? Em um dos textos pioneiros da chamada teoria queer, Sedgwick (2007) afirma que o armário é uma presença formadora fundamental na vida social daqueles que se relacionam com pessoas do mesmo sexo, sejam elas assumidamente gay ou não. E que a “epistemologia do armário” funcionaria muito mais como um regime de controle e manutenção da divisão binária entre homo e heterossexualidade do que uma escolha individual entre “estar no armário” ou não. Como explica Miskolci,

Não compreendo o armário como um regime de opressão gay regido por uma dinâmica de escolha individual sobre estar dentro ou fora. O armário é um

regime

de

controle

da sexualidade

culturalmente

criada e

subjetivamente incorporado por meio do aprendizado social de quais relações são reconhecidas e visíveis no espaço público e quais são punidas ou, na melhor das hipóteses, toleradas apenas quando restritas à invisibilidade e ao privado (2013, 316).

A acusação de se estar dentro de um armário e de querer negar para si um “desejo gay”, e mesmo a acusação de uma reprodução de um modelo homofóbico, como vimos em capítulo anterior, aparece de tempos em tempos em irrupções de conflitos durante as 154

festas. Da mesma forma, fui questionado várias vezes durante o período de pesquisa se não estava fechando os olhos para que o que acontecia em campo, já que seria algo muito mais normativo e até mesmo “perigoso politicamente falando”, já que essas pessoas apontavam para um certo “retrocesso” dentro das discussões de gênero e sexualidade. Essa exigência da discrição, de contatos e relações que tinham que permanecer em segredo, anônimas, em sigilo e de uma masculinidade que se quer “machonormativa” era “voltar atrás” dentro das políticas de reafirmação de identidades, era voltar a se esconder no armário. Não acho que as coisas se dão tão claras assim. Concordo que as reafirmações e preconceitos homofóbicos e misóginos que alimentam tanto a violência simbólica e física em nossa sociedade estão presentes e conformam essas festas. Porém, meus interlocutores estão apresentando, ao mesmo tempo, outros agenciamentos. As relações entre norma e transgressão, prisão e liberdade, armário e exclusão aqui se dão de forma mais complexa e também não vejo como uma negando a outra. Esses movimentos convivem no mesmo “acontecimento-festa” a partir de fluxos que alternam, torcem, reafirmam ou mesmo endurecem esses discursos. As “pornotopias” da festas de orgia seriam espaços, para usar uma expressão de Barbosa (2005), de “prender e dar fuga”80. Um território onde linhas de força se cruzam no sentido de compor desejos que se querem normativos, mas que também se agenciam a tentativas de fuga, mesmo que “fugas menores”81. O que essas festas de orgia, a meu ver, estão propondo é um modo de existência, de vivenciar determinadas práticas que devem permanecer discretas. Mais por um certo “desejo de invisibilidade” e autocontrole de informações sobre si próprios do que por um “armário” entendido como 80

O autor usa a expressão para pensar as dinâmicas que se dão no espaço e convívio prisional do Rio de Janeiro. A imagem é de linhas de força que atravessam continuamente os espaços: Em resumo, trata-se de qualquer fluxo que em sua passagem desenha uma linha e é barrado por outro, ou encontra um ponto em que perde sua velocidade, muda de direção ou se transforma em outra coisa. Ou, dizendo de outro modo - e é necessário ir e vir tentando dizer as coisas de outro jeito, porque só assim saberemos do que realmente se trata ou como fazer alguma coisa aparecer - as maneiras pelas quais esses fluxos que atravessam a prisão entram em relação uns com os outros, em relações de vizinhança, de co-funcionamento. São agenciamentos. E um agenciamento sempre é uma questão de compor uma estratégia, ligar de certa maneira ou desconectar os fluxos mais heterogêneos (op.cit., 15). 81 A própria ida a esses lugares é certamente uma fuga, mas não apenas passiva (como uma negação, a fuga pelo/para um “armário”), é também ativa, assertiva e inventiva. A “contra-casa” ou a “pornotopia”, “também é um outro lar, menos sufocante, uma fuga de família, uma família ideal, em que se nutre uma outra forma de intimidade partilhada” (Lins, 2013, 46-47)

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desejo negado ou recalcado. Esse desejo de invisibilidade, da mesma forma, não pode ser reduzido a uma negação, mas sim à produção de uma determinada forma de resistência:

Gostaria de enfatizar uma possibilidade distinta de resistência, mais discreta e sutil diante da proliferação das imagens midiáticas em que as ideologias transgressoras são rapidamente transformadas em estratégias de marketing. Se a invisibilidade usualmente tinha um sentido negativo dentro de uma política de identidades, talvez agora ela possa significar algo diferente. O que não significa escapar nem se esconder da realidade. Mas uma estratégia diante do poder corrosivo do simulacro, do excesso de imagens. O desaparecimento pode se tornar uma outra forma de viver. Como desaparecer? A invisibilidade tem menos a ver com o fascínio romântico pelos marginais do que com a formação de uma subjetividade, constantemente atravessada pelos fluxos do mundo, uma outra forma de pertencimento. Desaparecer para reaparecer. Aparecer para desaparecer. Uma brincadeira de pique e esconde. Não ter medo do nada e do vazio nem procurar tão desesperadamente por uma identidade (Lopes, 2007, 10).

Esse desejo de invisibilidade se contraporia também a um processo maior de formação das subjetividades característica de nossa sociedade contemporânea, analisado por Sibilia (2016), onde principalmente através das tecnologias digitais de comunicação em rede vê-se um fenômeno de “espetacularização do Eu” e de exposição crescente da intimidade. A performance de si cada vez mais compartilhada nas redes e nas telas não se faz visível aqui, pelo menos não atrelada a uma identidade. Essas novas tecnologias são agenciadas como forma de manutenção do segredo. Nenhum dos participantes desses eventos compartilha nas redes sociais que vai a essas festas, confirma presença na rede ou “tira selfies” durante o evento, mas as usam para se informarem sobre o circuito, por exemplo. Invisibilidade, discrição, sigilo e segredo, portanto, são componentes nesse movimento oposto e resistente ao “show do eu”. As festas talvez sejam um dos raros espaços no mundo contemporâneo onde esses homens atendem à propaganda de seus organizadores: “sorria, você não está sendo filmado”. Optar pela opacidade e pelo silêncio, logo em plena era da hiperexposição e do compartilhamento de tudo o tempo todo… por que não? Talvez a

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verdadeira megalomania e a maior das excentricidades contemporâneas devam encontrar seu caminho nessa resistência aparentemente humilde às tiranias da exposição, que tudo deglutem para convertê-lo em espetáculo. Numa sigilosa busca da riqueza que pode haver no indizível e no imostrável, bem como em outras formas de criação que consigam driblar os imperativos do exponível, do comunicável e do vendável (op.cit., 356).

Acredito que não caiba aqui um “pequeno tribunal” no qual possamos fazer o julgamento definitivo desses espaços como armários reprodutores de preconceitos ou não e sua eficácia política (pelo menos, dentro de uma lógica de política das identidades). O que acredito que talvez seja produtivo pensar é justamente como funciona a lógica, muitas vezes contraditória, de “habitar a norma” que esses espaços e esses homens produzem, das produções desejantes envolvidas, e de que existem diferentes formas de se fazer política, mesmo aquelas que reafirmam a norma ou a reteritorializam em diferentes configurações.

As festas Quais são esses “espaços outros” que foram cenários para a pesquisa desse trabalho? Como surgiu a ideia da organização dessas festas de orgia exclusivas para homens? Para concluir a discussão desse capítulo, acredito que se faz necessário apresentar um “mini-perfil” de cada uma das festas pesquisadas, no qual, através dos depoimentos dados por seus respectivos organizadores, são exploradas as motivações, os estilos e as características de cada um desses eventos.

Festa do Apê Das atuais festas de orgia organizadas na cidade do Rio de Janeiro, a Festa do Apê é a mais antiga, completando onze anos em 2016. Meu encontro e entrevista com seu organizador, Chicão, se deram na própria sauna onde atualmente acontece a festa. Ali, além da entrevista, ele me passou uma matéria feita recentemente para o número 6 da revista “H Magazine”, onde conta sobre como surgiu a ideia da festa. Nesse item alternarei as citações da revista com a entrevista que ele me concedeu.

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Foi por gostar (e muito) de suruba que o ex-operador de telemarketing Chicão criou “sem querer” a Festa do Apê. O gosto por esse tipo de sexo surgiu por acaso. “Eu tinha um amigo que morava no bairro do Flamengo e estava se mudando para Portugal. Então, ele resolveu fazer uma festa de despedida, porém, não me disse que era de putaria. Nesse dia eu saí do trabalho e fui para lá. Quando cheguei, percebi que era uma festa do cabide. Meu amigo tinha colocado um guarda-roupa na entrada porque era obrigatório estar nu. E apesar de ter sido minha primeira vez, em nenhum momento fiquei constrangido. Quando vi o que era, entrei na onda”, conta.

O primeiro contato com a orgia foi muito marcante para Chicão. Após essa primeira festa, ele diz que ficou com aquela experiência na cabeça por semanas e se excitava muito com as lembranças. Seu desejo era poder repetir aquele acontecimento. Daí que começou a procurar na internet e no antigo chat UOL pessoas que também gostassem de orgias e quisessem combinar algo, já que naquela época não existia um lugar com esse tipo de festa no Rio. Começou a acumular contatos de email, mas ainda sem conseguir um local para a reunião dessas pessoas.

Certo dia, Chicão encontrou numa boate um amigo também apreciador de suruba e que, para sua sorte, estava morando sozinho. Pronto, o local já não era mais empecilho. Imediatamente ele retomou o contato com os amigos virtuais e fez o convite. E assim aconteceu no dia 24 de abril de 2005 a primeira Festa do Apê que, na época, ainda não tinha esse nome. O primeiro encontro contou com a presença de 38 homens predominantemente negros ou ursos, os tipos preferidos de Chicão. Detalhe: tanto o organizador quanto os participantes não se conheciam, pois, até então, o único contato que existia era o virtual.

Chicão criou um blog para colocar as fotos tiradas durante essa primeira festa (“O pessoal só permitiu ser fotografado porque eu não mostrava o rosto, além de apagar características como tatuagem, relógio, cordão”). Na hora de nomear o blog foi que surgiu a ideia de Festa do Apê, primeiro porque a festa tinha sido num apartamento mesmo e

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segundo porque na época fazia sucesso uma música do Latino chamada “Festa no Apê”82 . O sucesso da festa foi grande, seguiu-se mais uma nesse mesmo apartamento e depois passou-se a fazer um rodízio de locais cedidos pelos próprios participantes, que aumentavam cada vez mais pela propaganda feita no boca a boca. Chicão se orgulha de já ter conseguido juntar 102 homens dentro de uma quitinete em Copacabana. “E assim a festa deixou de ser predominantemente de negros e ursos para receber outros tipos. A única coisa que eu sempre visei foi a masculinidade”. Com o aumento do número de participantes foi que Chicão achou necessário começar a cobrar pela participação na festa (até aquele momento só se pedia que a pessoa contribuísse levando alguma bebida ou comida). Disse que começou a cobrar um preço simbólico de 10 reais para a manutenção e para cortar o excesso de pessoas, o que não adiantou, já que a quantidade de participantes só aumentava. “Eu não visava dinheiro, mas meu prazer sexual. A festa não começou como negócio e sim para eu poder viver a putaria da orgia de novo e sempre que desse vontade”.

Na festa de dois anos, em 2007, um dos participantes era amigo do dono de uma sauna (no Catete) e sugeriu a Chicão levar a festa para lá, possibilitando torná-la lucrativa e, de quebra, aumentar o número de participantes. E assim, na primeira Festa do Apê realizada em uma sauna, o público foi superior a duzentos participantes. “Algumas pessoas gostaram, outras não. Teve gente que frequentava as festas nos apartamentos e nunca mais veio. Em contrapartida, muita gente daquela época ainda frequenta a festa. E esse novo formato acabou agregando novas pessoas”, explica.

A Festa do Apê se diferencia das outras não só pelo espaço da sauna, mas também por ser a única que exige nudez completa. “Qual a diferença de estar com ou sem toalha? Não tem essa de ‘não estou com corpo para isso’. Festa de orgia é para ver e ser visto”. Chicão diz ter comprado essa ideia do que já ouviu falar na Europa e de também já ter visto festas assim em São Paulo. Além de, mais importante, aquela primeira festa de que ele participou ter tido essa exigência. 82

Letra cujo refrão cantava: “Hoje é festa lá no meu apê, pode aparecer, vai rolar bundalelê. Tesão, sedução, libido no ar. No meu quarto tem gente até fazendo orgia”.

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Chicão atualmente se dedica integralmente à organização desses eventos. Não só da Festa do Apê, mas também de outras “sub-festas temáticas” que começou a pensar a partir do convívio com os participantes e das possibilidades lucrativas a partir dos desejos e fantasias que eles repassavam. Daí surgiram eventos como: “Toca dos Ursos”, “Deuses do Ébano”, “Festa do Sinal”, “Quarta dos Casados”, além, é claro, da Festa do Apê que continua crescendo e com possibilidades de se estender para edições em outros estados. A festa acontece mensalmente, com uma edição sempre no último sábado do mês. Na época da pesquisa o valor da entrada na festa era de 40 reais pagos obrigatoriamente em dinheiro.

Festa do Vale Tudo

A Festa do Vale Tudo é organizada por dois amigos, Igor e Renato. “Todo mundo acha que a gente é um casal, mas não. São só negócios e interesses em comum mesmo. Imagina, ninguém quer namorar um dono de orgia!”. A entrevista com Igor se deu num café no Centro da cidade, na Praça XV, próximo ao local da festa. Lá, ele me contou que a primeira Vale Tudo aconteceu no ano de 2007 num sítio em Campo Grande, completando, portanto, 9 anos de existência atualmente (2016). A ideia da festa veio por dois motivos: primeiro porque os dois gostam muito de putaria, mas o segundo e principal deles era que na época não havia opções na cena sexual do Rio para aqueles que não moravam em “áreas privilegiadas” da cidade.

Víamos que tudo acontecia na Zona Sul e não na Zona Norte e Oeste. E aí? Só pessoal que mora bem pode aproveitar a putaria? Não senhor! Então a ideia, a nossa intenção era apresentar uma alternativa, direcionar para o pessoal de lá mesmo. Tivemos a ideia e montamos tudo em 15 dias. Divulgamos tudo pela internet e entre conhecidos, arrumamos um sítio com um casarão e uma piscina, além do grande atrativo do contato com a natureza. Tivemos um bom público, a nossa primeira festa teve 60 pessoas. E tudo meio que entre amigos, conhecidos que foram chamando conhecidos.

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Igor conta que até aquele momento só tinha participado de “sociais”, festas de orgia privadas em casas de amigos ou conhecidos: “Na verdade, frequento até hoje, porque eu não faço nada nas festas, né? Então, quando vou nas sociais é quando eu posso me jogar”. E foi pensando que seria interessante a organização de um evento maior para “essa galera fora do eixo Zona Sul” que a Vale Tudo começou. Segundo Igor, sua intenção nunca foi a de centrar o público da festa em um “tipo” específico:

A ideia do Vale Tudo é justamente essa. Vem quem quer, mas quem tá disposto à regra de que Vale Tudo. Agora, o nosso único pedido é que seja masculino. É claro que aparecem as bichinhas, mas elas logo somem. Acabam não conseguindo nada. Só que acabou que a nossa festa ficou famosa pelos “cafuçus”83. Eu não sei te explicar por quê. Talvez porque a gente lide com um público mais popular, então tem mais aquela coisa bruta, de macho. Mas na nossa festa dá de tudo. Eu entendo que as pessoas também vão lá atrás desse perfil mais de “macho de verdade”, inclusive o pessoal Zona Sul, mas eu não faço distinção. Vem gente de tudo quanto é lugar, de outros estados, de outros países…

Em 2009, após dois anos de festas no sítio, eles foram convidados pelos donos do ClubeMix, um clube de swing localizado no Centro da cidade, para que levassem a Festa do Vale Tudo para lá. A mudança, segundo eles, não afetou o público. “Estar no Centro da cidade é ter acesso a todos os meios de transporte para qualquer lugar. Fica no meio termo para quem vem de qualquer canto, não privilegia ninguém. Você, por exemplo, é de Niterói 83

Uma definição sobre o que seja o homem “cafuçu” é dada na seguinte citação de um blog voltado para a publicação de fotos e vídeos dessa figura fetiche e onde fica claro todos os estereótipos que circundam o termo: O que é um cafuçu? O cafuçu é um ser maravilhoso, rústico, sem modos, desletrado, interesseiro, gostozérrimo, enfim, um boy da periferia que topa tudo. E o melhor, cafuçu de verdade não tem orkut, eles nem sabem nem o que é isso. Eles podem ser vistos nas periferias, puxando carroças, andando em suas bikes, vendendo água mineral, roubando (alguns), nos guetos cafuçusenses. Está mais do que provado!!! Há um mundo paralelo onde transitam os cafuçus. Existe um código específico para falar, vestir e atuar. Adoráveis, eles são os amigos certos, nas horas incertas. Seja entre os gays, seja entre as mulheres héteros. Porque cafuçu que é cafuçu não dispensa buraco. (Fonte: https://cafucudodia.wordpress.com/oqueeumcafucu/)

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né? Então.” A festa, daí em diante, passou a ser feita em um ou dois domingos específicos por mês:

Por que domingo? Porque tudo acontece sexta e sábado. Nada acontece aos domingos, que é tido como um dia de descanso, de família. Nossa intenção era criar uma alternativa nos finais de semana e que não chamasse muita atenção. Que não fosse em horários comprometedores. Por isso a festa começa às 15h e termina no máximo às 22h. Começa cedo e termina cedo para não atrapalhar quem trabalha na segunda de manhã cedo, entendeu? O cara pode dar a desculpa de que vai passar a tarde de domingo no futebol, na praia e ir para a putaria, pronto.

Com a mudança de local e melhor acesso devido às opções de transporte, o público da Vale Tudo cresceu bastante. Uma média de 150 a 200 pessoas (“e eu sempre tenho que rezar para não encher muito, porque eu não tenho uma quantidade de armários maior do que isso para todo mundo. Mas como sempre há um revezamento de pessoas lá dentro, dá para administrar”). Explica que sempre teve uma boa cabeça para os negócios, principalmente nesse mercado do sexo, “você precisa saber o que é que as pessoas querem e eu gosto de mexer com essa área: ver as pessoas fazerem putaria me faz bem, me satisfaz…” Para Igor, o grande diferencial de sua festa são as atrações ao final e o show de sexo ao vivo. Diz que as complicações e dor de cabeça para a contratação dessas apresentações são enormes, mas que valem a pena pela proposta de diferenciação do evento. Até o final da pesquisa os valores para entrar na Vale Tudo eram 50 reais (entre 15-17hrs) e 60 reais (entre 17-22hrs) no dinheiro. Caso o pagamento fosse no cartão tinha um acréscimo de 5 reais sobre cada um desses valores. Claro que o nome social que aparecia na cobrança do cartão estava longe de se relacionar com uma “festa de orgia”. Grupos de amigos e aniversariantes ganham desconto.

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Clube Meetings

A entrevista com Jack, organizador do Clube Meetings, se deu no próprio espaço da festa (um apartamento em um prédio comercial localizado no Centro da cidade perto da Praça Tiradentes) algumas horas antes do horário de início do evento. Logo no início da conversa quis me explicar que aquele apartamento funciona como duas “empresas”: uma seria o Clube Meetings, e a outra é o Camarim, do qual também é dono, uma espécie de ateliê para confecção de roupas, estúdio fotográfico e aulas de dança. Enquanto conversamos, me passou a cópia xerocada de uma matéria jornalística escrita sobre a festa84 que guarda como recordação e que vou citar alguns trechos aqui. Jack afirma que, antes de qualquer coisa, se considera um artista. Antes de se envolver na organização de festas de sexo, antes de abrir o Meetings ou de pensar em algo do tipo, trabalhou durante muitos anos e viajou para vários países com seu trabalho relacionado à dança, ao teatro e ao Carnaval. “O Meetings deve ser 15% do que eu faço e produzo. Meu trabalho vai desde confecção de roupas até aulas de dança. De apresentação de números em clubes até montagem de ensaios fotográficos ou coreografias. Até já ganhei prêmios na área”. O Meetings apareceu como um experimento do trabalho na noite de Jack e sua relação com o sexo. Jack, que volta e meia atuava em trabalhos que lidavam com o erotismo como em strippe tease artísticos, “mas nunca fazendo programas, quero deixar claro”, achou que abrir um clube para encontros sexuais seria uma boa ideia. “Nunca ficava satisfeito com o que via”, incomodava a ele que as pessoas iam para esses espaços muito no “sexo pelo sexo”: “cadê a relação no sexo?”. “Eu mesmo queria poder ir para uma casa e encontrar um monte de homem bonito e foder a noite toda num lugar legal, tranquilo e limpo”. Na época que eu abri o clube (2009), você só tinha duas opções: a Vale Tudo que ainda era meio distante e clandestina num sítio meio longe que nem todo mundo conseguia ir e a do Apê que era aberta para qualquer um. Eu comecei a pensar em algo central, selecionado e que tivesse um visual e uma proposta que se diferenciasse não só dessas duas, mas de qualquer coisa que tinha na cidade.

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A matéria não possuía referência de meio de publicação.

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A primeira tentativa foi uma festa que ele chamou de “Swing Jazz”, onde apenas um convidado apareceu e que foi quem acabou dando os “insights” para a abertura de um espaço exclusivo para homens e que valorizasse uma determinada masculinidade. Dois outros fatores se juntaram a esse para que o Meetings tomasse essa forma final: o primeiro foi uma busca ao acaso no Google sobre “sexo entre homens” que o levou a encontrar os trabalhos do professor Ricardo Liper e onde descobriu o conceito do “caráter espartano”. O segundo foram as viagens internacionais que realizou. Segue trecho da matéria:

Papo vem, papo vai, ele me diz que abriu o Clube Meetings, um “clube espartano” exclusivo para homens. (...) “Clube espartano? Que porra é essa?”, pensei. Caso você também não faça a menor ideia do que seja isso, vou ajudá-lo a entender por associação. Espartano, Esparta, aquele bando de machões sarados vestindo quase nada, longe de suas esposas, tendo que ficar juntinhos nas noites frias... Preciso ser mais explicativo? -

Jack, de onde você tirou isso? - perguntei.

-

Vi em Ibiza e resolvi copiar - ele respondeu.

“Ibiza, claro! Que outro lugar do mundo, além de Amsterdã, inventa esse tipo de coisa?”, pensei. -

Então agora você também é dono de clube de orgia? - perguntei.

-

Não é clube de orgia. É clube espartano, bicha burra! - respondeu delicadamente Jack.

-

Ah, tá, claro. Só não é clube de orgia porque para fuder o cara tem que estar fantasiado de “300”, né? - perguntei já puxando a navalha.

A matéria busca apresentar a ideia da necessidade e de funcionamento de um “clube espartano”:

Para entender a ideia desse tipo de clube, vou explicar o conceito - ou melhor, vou tentar repassar o que, acredito eu, tenha entendido. Com essa segmentação interminável do universo LGBT, o conceito “espartano” surgiu da constatação da existência daquele tipo de cara gay ou bi, mas que assume uma postura “hétero”, que não sente atração por gays que dão

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pinta, por menor que seja. Ou seja, na ilusão do cara ele está acompanhado de outros homens “héteros”. Muitos, inclusive, tem relacionamentos heterossexuais. É óbvio que o cara sabe que muitos ali são gays, mas quando o assunto é fetiche a ilusão é que vale. Então, o cara acredita que está se relacionando com héteros ou, no mínimo, bissexuais másculos. E, deixando a hipocrisia de lado, a ideia de relacionarse com um hétero é fantasia recorrente em muitos gays. Tanto é que vários filmes pornôs que mostram héteros concordando em experimentar um “lance” gay. Torno a repetir: fetiche não se explica. A ilusão é o que vale. Além disso, esse tipo de clube tem certos conceitos que devem ser obedecidos, tais como: -

Não “vai quem quer” (como já expliquei, o cliente é, antes de tudo, analisado fisicamente);

-

Não há darkrooms. Até porque para cobiçar é fundamental ver a pessoa. O máximo que há é uma meia luz;

-

Não há aquele clima de pegação do Aterro do Flamengo e lugares do gênero (ah, vai, não faz a Sandy porque você sabe do que estou falando!);

-

É expressamente proibido filmar e fotografar para ficar divulgando os encontros nas redes sociais, sites de pegação e blogs. O que acontece no Club Meetings “morre” no Club Meetings.

Jack procurou reforçar o tempo todo o fato de seu espaço não ser identificado como um “point gay”: “Não é puteiro, não é sauna, não é baixo nível, não é point gay. Aqui é um point de encontros somente para homens convidados, homens de caráter espartano”.

Eu vejo isso daqui mais como uma reunião de amigos, do que clientes. Veja você, hoje é o aniversário de um dos nossos clientes mais frequentes. Ele vai vir comemorar aqui! Vai entrar de graça, eu mesmo vou dar um bolo para ele de presente e todos os convidados que ele trouxer vão ganhar desconto.

O clube que completou 6 anos de funcionamento em 2016 tem como atração principal as festas organizadas semanalmente, sempre às segundas-feiras a partir das 17 horas. Jack afirma que trabalha no Meetings por prazer e não pelo interesse lucrativo:

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“tanto é que não tenho problema nenhum em recusar clientes que não atendam ao nosso perfil e procuro abrir em dias que não são tidos como atrativos, tipo segunda-feira. Prefiro qualidade”. Jack ao longo do tempo também procurou experimentar várias propostas de dias e horários diferenciados, mas as segundas se mantiveram com a presença de maior número de público. O valor de entrada no Meetings é de 35 reais podendo ser pago tanto no dinheiro quanto no cartão. Após as 23 hrs o valor diminui para 20 reais. Grupos de amigos e aniversariantes também ganham desconto.

Black Hall

Das festas pesquisadas, a Black Hall era a mais “jovem”. Felipe, seu organizador, começou o projeto em 2013 e atualmente (2016) o evento completou 3 anos de existência. A entrevista com Felipe foi em um café também pelo Centro da cidade. Lá ele me contou que apesar de ser formado na área publicitária, sempre se interessou pela área artística. Envolveu-se com o cinema e o teatro, tanto na produção quanto atuando, até começar a se dedicar a trabalhar “na noite”. E esse trabalho se dividia em duas formas: uma como promoter de boates e clubes de swing (fazia a parte de propaganda e como host, recepcionando as pessoas, “a noite te paga bem, te consome bastante, mas paga bem”) e a outra forma foi que com o acesso a esse “universo do sexo e da noite” escrevia matérias jornalísticas para revistas e blogs (inclusive as duas matérias citadas anteriormente foram escritas por ele). “Eu aprendi a olhar a putaria com outro olhar”. Foi desse material acumulado que Felipe usou tanto para escrever um livro de ficção “baseado em fatos reais” sobre o mundo da prostituição quanto para iniciar o projeto das festas de orgia. A ideia da Black Hall surgiu da percepção de uma “brecha” no mercado:

Você tem a Vale Tudo que o nome já diz: tem uma proposta aberta para todo mundo. Tem a do Apê que tem o elemento da nudez completa obrigatória e depois tem a Meetings que tem toda a questão da filosofia espartana85. Eu queria algo que fosse no meio termo. Queria atingir o cara 85

Um outro espaço que foi citado não só por Felipe, mas também pelos outros organizadores como fazendo parte desse circuito de festas de orgia foi o clube Gaylígula. O Gaylígula era um clube de sexo (que organizava uma festa de orgia mensal); funcionava na região central da cidade, perto da

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que gosta de uma putaria e quer um público bem mais selecionado: másculo, boa pinta, corpo maneiro. Pau ajuda? Ajuda. Mas não é tudo. Acho que o diferencial aqui é o da seleção.

Felipe ressalta a importância do nome para chamar a atenção. Um nome em inglês, forte, que veio como sugestão de um dos seus primeiros clientes. A tradução direta daria uma ideia de um espaço ou salão escuro, mas a sonoridade pesou mais do que qualquer outra coisa. Em 2013, quando a festa começou, ela acontecia em uma boate pequena na Barra da Tijuca. Desde então ela se tornou um pouco itinerante: já passou, por exemplo, por uma sauna em Botafogo, por um clube de sexo na Lapa e atualmente prefere não indicar o local com antecedência. O dia, hora e local são informados apenas para aqueles que confirmaram presença: “Essas informações são passadas apenas para os clientes selecionados. É muito chato ter que ficar barrando os desavisados ou espertinhos que acham que ‘na hora eles colocam pra dentro’. Não, na hora não colocamos pra dentro!”. Felipe mantém um blog e um “grupo secreto” no facebook para que os clientes selecionados se mantenham atualizados sobre os eventos que costumam ser mensais, além de compartilhar as fotos das festas. Se a Vale Tudo era a festa mais longa, a Black Hall em determinado momento passou a ser, começando sexta às 17h “para aproveitar as pessoas que saem do trabalho e tem compromisso mais tarde” e vai até as 5 da manhã seguinte, totalizando quase 12 horas de festa aproveitando o grande movimento de um bairro boêmio como a Lapa, por exemplo. “Minhas festas dão em torno de 50, 60 homens a cada evento. Nunca menos de 45 vão estar presentes. O máximo que já tive foi de 96. No total tenho 600 e poucos perfis cadastrados”. O processo de seleção sempre foi um ponto sensível na organização de suas festas e para isso ele já chegou a montar um “perguntas mais frequentes” em seu blog onde contorna os argumentos que mais costuma ouvir:

Praça da Cruz Vermelha e que fechou durante a época que fazia o trabalho de campo antes que pudesse fazer uma visita. Dos comentários feitos por alguns interlocutores que já o tinham visitado era tido como um espaço que, ainda que de grandes proporções, apresentava uma certa precariedade e mesmo perigo, com algumas histórias de furtos e assaltos em seu interior. Os comentários eram acionados em esquemas comparativos e davam conta de um local “em decadência”, “escuro”, “sujo”, “mal frequentado”, “hardcore” que eu não pude comprovar, já que não consegui observá-lo a tempo e que, por isso, preferi omiti-lo nas falas que ouvi a seu respeito.

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Até aceito mostrar o corpo, mas não vou mostrar o rosto para quem eu não conheço. Sou casado, não sou assumido, sou famoso, não sei o que vocês vão fazer com minha imagem, blá, blá, blá... Simples: fique em casa! Como vou saber que vocês não vão divulgar minha foto? Vamos pela lógica: vendemos a ideia de uma festa sigilosa. Logo, é do nosso interesse que o sigilo seja garantido para continuarmos vendendo ingresso. Mas, digamos que sejamos loucos e divulguemos as fotos dos clientes. Não demoraria muito para que percebessem que a proposta não é confiável. Será que uma proposta assim, não confiável, conseguiria se manter por mais de 3 edições? Mas, claro que você tem todo o direito de ainda assim continuar duvidando. Só que não mudaremos as regras por uma desconfiança sua. Posso usar máscara? Pode. Porém, se seu objetivo com a máscara for preservar o anonimato, pense por outro lado: possivelmente você será o único mascarado na festa. Será que isso não faria com que você chamasse ainda mais a atenção para si? Indo além, será que isso seria estimulante ou brochante? Será que vão entender que a máscara é para preservar seu anonimato, ou para esconder uma aparência talvez não muito atraente? Entendemos que no filme "De olhos bem fechados" a ideia de uma festa liberal com mascarados seja instigante. Mas realidade é realidade, ficção é ficção e certamente você não é o Tom Cruise. Ah, muita enrolação pro meu gosto! Não vou informar meu Facebook / Instagram para um estranho!

Grindr, Hornet, Scruff, Manhunt, Disponível, chat da Uol, banheirão de shopping, rua deserta, terreno baldio... Escolha a melhor opção e boa caça!

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Na entrevista cedida a mim, Felipe elaborou um pouco mais sobre esse incômodo e essa resistência relativa à seleção:

Sabe qual é o problema? Ninguém quer ser associado à putaria. Todo mundo fode, todo mundo tem foto de pau e bunda. O problema é isto estar associado a um rosto, a alguém que gosta e quer sacanagem. Minha festa expõe essa contradição ao obrigar a quebrar essa barreira entre o “Victor Hugo Barreto” que está aqui na minha frente e o “Safado Icaraí 29”, que seria o seu perfil de putaria na internet ou em algum aplicativo, por exemplo, entendeu? Quebra esse duplo. É uma seleção natural para os curiosos. Eu detesto os curiosos, que são aqueles que querem ir, mas não tem culhão de fazer a seleção. Não quero esse público. Minha festa é carne, é corpo, é para um público que faz exigências nesse sentido. A seleção é para isso: me prove que você é tudo isso, então. Parto da ideia que meu gosto é bom. Faço isso tudo sozinho, mexo com o sigilo das pessoas. Já teve cliente que ameaçou me processar, porque vazaram vídeo dele na internet, mas aí depois descobriu que não fui eu.

Felipe entende que esteja embutido no processo de seleção a reprodução de determinados estereótipos preconceituosos e mesmo homofóbicos, mas afirma que não foi ele que criou essas regras, que é o público que procura e deseja uma festa que aconteça nesses termos, com homens machos e bonitos. Mas que procura, ao mesmo tempo, diversificar e dar chance a esse outro público: “Eu tenho consciência que é preconceituoso, mas a Black Hall é específica. Eu, por exemplo, tenho vários outros projetos para outros públicos. Tenho uma festa só para aqueles que curtem travestis, outra só para aquele pessoal mais velho, outra só para o pessoal que mora mais em zonas afastadas... Enfim, o mercado te dá opções e público para tudo”. Os valores de entrada na festa variavam entre 30 reais (entre 23 - 01 hrs), 40 reais (01-02 hrs) e 50 reais (após as 02 da manhã). Também com acréscimo de 5 reais para quem desejasse pagar no cartão.

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Um momento de efervescência É o segundo domingo do mês e mais uma vez chego à “Festa do Vale Tudo” para mais um dia de trabalho de campo. Fico só de sunga (o vestuário permitido nessas festas é sunga, cueca ou nada) e vou andar pelos ambientes da casa procurando acompanhar os encontros dos em torno de cento e cinquenta homens ali presentes. Dentre as várias interações eróticas observadas durante as sete horas de festa, quero trazer a descrição de um dos “picos de intensidade” ou um dos momentos efervescentes em que estava presente. Nesse dia conheci um dos participantes que irei chamar aqui de Léo. Ele é alto – se destacava pela altura diante dos outros homens presentes –, moreno, cabelo raspado, parecia estar na faixa dos 30 anos, morador de Caxias, tinha um corpo magro normal, ainda que tivesse me dito que trabalhava como professor de educação física em uma academia; e também possuía uma perna um pouco mais curta do que a outra, o que fazia com que tivesse um andar um pouco arrastado. Vi Léo pela primeira vez em uma interação a três numa das suítes coletivas da casa. Quando me viu, abandonou os outros dois homens com quem estava e veio conversar comigo. Me fazia perguntas aleatórias enquanto me levava para um sofá um pouco afastado das atividades eróticas que aconteciam ao nosso redor. Aproveitei para perguntar coisas referentes mais à pesquisa, mas Léo era muito insistente, ficava pegando em meu corpo a todo momento, me beijando o pescoço e a nuca e queria ficar de mãos dadas. “As pessoas aqui me assustam um pouco. Você parece ser legal. Eu não sei ser putão, sabe?”, me disse, “pergunto logo o nome, quero saber da vida da pessoa, conversar, me apego.”. Em pouco tempo estava contando sobre o seu último relacionamento amoroso que tinha terminado recentemente e que era à distância. Disse ter conhecido o exnamorado em um outro espaço voltado para interações eróticas entre homens no Rio e que após um mês de namoro o outro terminou a relação por mensagem de texto. Falei para darmos uma volta enquanto continuávamos a conversa. “Você não quer romance, quer ver a putaria, né?”, respondeu me seguindo, mas ainda segurando a minha mão. Após passarmos pelas outras suítes chegamos ao ambiente que é conhecido aqui como “aquário”, um quarto com sofás que tem uma parede de vidro deixando ainda mais visível para os outros o que acontece ali. Quando chegamos já havia uma interação acontecendo. Um rapaz de barba e sunga vermelha penetrava outro que estava deitado no

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sofá, de pernas abertas e que tinha uma tatuagem na panturrilha. Nesse espaço estavam esses dois, eu, Léo e mais três ou quatro pessoas que estavam “participando” da interação do casal. Falavam “sacanagens”, incentivavam o ato, passavam a mão, seguravam as pernas do rapaz com a tatuagem no sofá mantendo-as bem abertas para que o rapaz de barba pudesse continuar a penetração. Muitas mãos e cabeças e corpos se aproximando, se agrupando, para ver melhor ou para sentirem melhor o que estava acontecendo. O rapaz de barba fala: “tô me segurando muito para te leitar” e o outro responde que ele não precisa segurar e pode gozar, e todos acompanham em suspenso os gemidos mais altos do rapaz de barba. Léo, que eu percebi que foi se agitando mais com o decorrer da cena, diz no meu ouvido: “Quer me ver comendo ele também?”. Sem esperar minha resposta se aproxima mais do casal e sem falar nada, apenas com gestos, consegue comunicar que também deseja penetrar o rapaz de tatuagem que estava de pernas abertas no sofá. O rapaz de barba até incentiva: “Aproveita que já está larguinho e dá para ele”. O outro aceita e os corpos se afastam por um momento e se reposicionam no ambiente. Léo fica de pé, encostado na parede enquanto segura o rapaz que antes estava no sofá pelo quadril com uma mão e com a outra me puxa para ficar a seu lado. Alguém dá uma camisinha para o Léo também incentivando a transa. Em pouco tempo, eles se encaixam enquanto Léo puxa o cabelo do rapaz para trás. O rapaz de barba continua ali, observando a cena, ainda ofegante e suado do gozo anterior, mas já sendo chupado novamente por alguém. A quantidade de pessoas cresce atraídas pela interação, chego a contar em torno de 15 homens; fica uma aglomeração, uma multidão, todos juntos, se ligando, conectando, partes já indistintas de corpos se misturando. O ambiente é tomado por um cheiro de umidade, suor, de “cheiro de sexo e de homem”. Léo acelera a penetração cada vez mais a pedido do rapaz: “Fode! Com mais força!” A parede em que estamos encostados chega a tremer com os movimentos. A todo momento, Léo busca contato visual comigo e me aperta com uma das mãos na cintura. Olha ao redor para a multidão e sorri também. As pessoas chamam tanto ele quanto o outro de “puto”, “safado”. Passam a mão pelos corpos, beliscam, lambem e mordem os mamilos de Léo, masturbam e chupam o rapaz que está sendo penetrado. Os movimentos se aceleram até alcançar um clímax entre muitas mãos, cabeças, suspiros, falas entrecortadas e gemidos. Depois, a multidão logo se desfaz, as pessoas se dispersam e Léo desaba no sofá descansando e continua conversando comigo. Vimos que as pessoas começam a ir para

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outros espaços e continuam em trocas eróticas. Em determinado momento diz: “Aqui é tudo pela putaria”.

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CAPÍTULO III O princípio da putaria

“Ir para a putaria”. É assim como facilmente os homens que participam das festas pesquisadas resumem a ida a esses eventos. “Putaria” aqui é um termo-conceito que pode abarcar tanto as práticas quanto as pessoas, os espaços, as performances, as intensidades ou o próprio movimento durante os eventos ou para essas festas. É claro que o termo não é restrito aos espaços das festas de orgia. A palavra “putaria” costuma ser usada em outros contextos na sociedade brasileira, principalmente àqueles relacionados a acusações de bagunça e desordem. Trata-se de um termo de valoração moral: “isso daqui virou uma putaria”, ou seja, tornou-se caótico, anárquico, onde não se respeita mais as regras e os valores; onde não se trabalha ou se leva nada a sério; onde a “moralidade” se perde ou se dilui e onde as pessoas ali envolvidas e que praticam o que se está tachando de putaria são associadas a figuras que carregam estereótipos negativos: malandros, vagabundos, bandidos, pervertidos, corruptos, enfim, àqueles que se contrapõem aos elementos tidos como valorizados em nossa sociedade. “Putaria”, tal como elaborada e utilizada nesses espaços orgiásticos, de longe se assemelha a alguma forma de valoração negativa como a encontrada “do lado de fora” das festas. Ainda que esse sentido mais negativo possa surgir aqui assumindo outras formas, como apontarei adiante, a ideia está muito mais próxima dos desejos, dos corpos e dos prazeres. A putaria aqui é um princípio poderoso, um fluxo de intensidade mais do que desejado e que, ao se agenciar à masculinidade exagerada e à discrição analisadas anteriormente, potencializa as interações e as práticas alimentando a efervescência do sexo coletivo, podendo até mesmo deslocar ou desestabilizar os outros dois princípios. É, assim, meu objetivo nesse capítulo apresentar uma reflexão sobre os significados assumidos pelo termo putaria a partir das práticas sexuais realizadas entre homens na cidade do Rio de Janeiro nessas reuniões de orgia. O que a experiência, ou melhor dizendo, a experimentação da sexualidade nessas festas parece colocar em jogo são outros modos de subjetivação e corporalização, modos propriamente intensivos, onde a intensidade do

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instante de vida (ou de gozo) pode até se impor sobre a duração da vida em extensão, ou sobre os outros aspectos da vida dessa pessoa. Com base em minhas análises de campo, o meu interesse nesta parte é refletir melhor sobre o que é a ideia de “putaria” como modo singular de engajamento no mundo.

Intensidade e experimentação Um dos principais desafios colocados por esse campo é que os participantes da festa pouco buscam explicações sobre suas práticas ou possuem discursos elaborados sobre aquilo que se passa nesses eventos86 . Minhas perguntas foram acompanhadas dessa dificuldade em elaborar algo que eles dizem que apenas sentem. Minha estratégia, portanto, se baseou em cartografar esse mapa, essa zona de intensidades que perfaz as festas de orgia. A intensidade, performatizada nesse caso na/pela putaria, é um elemento chave aqui, já que é ela que força, desencadeia, alimenta as práticas. A intensidade é aquilo que só pode ser sentido. Isto significa que é ela, e só ela, que dá a sentir, que faz sentir, que força a sentir, que pelo que me falam os participantes não pode ser objeto de nenhuma outra faculdade nem capturado em um discurso explicativo. Não é que não haja “razão” ou “racionalidade” nos eventos etnografados. Pelo contrário, como espero ter deixado claro até aqui (e acredito que ficará mais ainda com este capítulo), nessas festas é preciso todo um cálculo, além de um saber “técnico” e mesmo performático para que a fruição alcance níveis maiores de intensidade. A dificuldade aqui é de querer “explicações” para aquilo que primordialmente se sente. Em nossa concepção de ciência, de forma geral, não cabe o que vem de nossa sensibilidade, de nossos sentidos; há a criação de uma hierarquia entre o superficial e o profundo. Deleuze criticava essa posição que valoriza a profundidade em detrimento da superfície, isto é, a concepção segundo a qual “superficial” significaria de pouca profundidade e não de vastas dimensões, e “profundo” de grande profundidade e não de

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Sem contar que os espaços da festa também não são os locais mais apropriados para emitir “explicações”.

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pouca superfície. “O mais profundo é a pele”, diz uma das belas expressões de Deleuze (Machado, 2013, 35) e a que melhor define o que se passa nas festas de orgia. A intensidade é a “razão” desses eventos, criando e produzindo a sensibilidade do fenômeno. Algo da ordem da experimentação e, dessa forma, aquilo que acontece ali é, ou só poderia ser, experimentado. Daí, inclusive, minha participação ter sido continuamente reivindicada pelos “nativos”. Esse questionamento vem do entendimento que as coisas que acontecem ali só possuem uma compreensão na medida em que são sentidas, experimentadas. Irônico perceber isso, numa questão também apontada por Caiafa (2007, 154), que durante minha experiência nesses anos de formação acadêmica, ao participar e assistir a muitas bancas e falas em congressos, a grande preocupação em nossas pesquisas parece ser o de se “relativizamos o suficiente” o que observamos, se nos “distanciamos” do que acontece no campo, enfim, o grande questionamento é se estamos “longe o suficiente” do que estudamos, quando o que meus interlocutores estão questionando – e que não parece ser preocupação acadêmica – é se, em nossas pesquisas, conseguimos estar “perto o suficiente”, se de fato nos aproximamos e compreendemos aquilo que acontece em campo. Para a fruição desses eventos, para se gostar da festa e ser animado por ela, é tido como necessário que você se conecte ao circuito de energia e intensidade que perpassa pelas ligações entre aqueles homens. “Não quer experimentar?”, talvez essa seja a pergunta que é a questão chave aqui, aquela que é colocada a todo momento durante as interações observadas, mesmo que nem sempre ela seja acionada verbalmente (quase nunca, na verdade), mas ela está ali, implícita87.

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A ideia de um espaço com grande “circulação energética” aparece nas falas dos interlocutores como algo que às vezes pode ser “pesado demais” e toma tons pendendo ao sobrenatural: “Acho essas festas muito carregadas energeticamente, tem umas pessoas que vem aqui, que eu olho e sinto que elas vem muito pesadas querendo descarregar muita coisa aqui”. Uma das coisas que percebi na pesquisa foi o uso de incensos que algumas vezes eram acesos e queimados nos espaços tanto como uma amenização dos odores concentrados quanto de um “peso energético”: “pois é, menino, muito homem junto, fica um cheiro forte, uma coisa carregada, só incenso das flores da jurema pra abrir os caminhos!” Da mesma forma algumas referências e termos religiosos, principalmente do candomblé, eram acionados em determinados momentos, a “pomba gira” que baixa e toma conta do corpo (da cabeça), de saudações a orixás e outras expressões “do povo de santo”. Como me explica um dos organizadores: “Quando você mexe com sexo, você mexe com a energia da criação. Essas coisas aparecem. A gente até brinca chamando o show de sessão do descarrego por zoação com os evangélicos, mas é isso mesmo. Eu, por exemplo, me considero do candomblé, apesar de não praticar. Mas você vê que tudo ali é meio mágico: o cheiro, o toque… o toque fala”. Não percebo nesses eventos uma questão religiosa predominante, mas há algo como

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O corpo na economia do prazer orgiástico Uma pesquisa que se faça entre pessoas interagindo em atividades de sexo coletivo não pode se furtar a uma discussão sobre corporalidade. Não apenas porque seja uma “problemática obrigatória”, mas porque, de fato, é a linguagem principal que pude encontrar nesse campo. Faz-se aqui um uso do corpo próximo, guardadas as devidas proporções, do que trazem textos etnológicos acerca da região conhecida como terras baixas sulamericanas, que há muito já propõem que a construção da pessoa é inseparável da construção do corpo (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1979). Essa característica acaba por apresentar uma forma de produção da subjetividade que foge, pela corporalidade, ao debate dicotômico já muito feito nas ciências sociais entre “pessoa” X “indivíduo”. Nem pessoa nem indivíduo, os atores aqui se reconhecem e se constroem pela apresentação e uso de seus corpos 88 . A especificidade é tanta que esse corpo chega ao nível da fragmentação, como já apontei em capítulo anterior. Partes do corpo que se separam, ganham agência e vão de encontro ao desejo do Outro. Torna-se inevitável, portanto, que a discussão das orgias aponte para a discussão do que Mauss (2003) chamou de técnicas corporais, isto é, “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de uma maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos” (p. 401). Os usos e as técnicas corporais aqui giram em torno da economia dos prazeres envolvidos nas práticas sexuais. Qualquer observação um pouco mais demorada em uma dessas festas percebe uma determinada dança dos corpos, um certo balé das interações em multidão: dois corpos que se tocam, se chupam, se (inter)penetram, um terceiro entra e os dois antes se desfazem quando um sai com o terceiro para outra atividade. Um quarto e um quinto chegam nos outros dois que sobraram e podem ou não se misturar. Esse número é relativo, já que algumas interações podem contar com até mesmo vinte homens. Às vezes só ensaiam uma aproximação, ou então se roçam, tocam, beijam, chupam, mas não necessariamente se penetram. O interesse ou o desejo se perde, se acumula, se (re)direciona a um ou a outro em ondas de tamanhos inesperados. uma preocupação de um cuidado espiritual e energético, já que essas festas, para alguns, se aproxima de uma experiência que pode possuir sentidos outros: “Vejo isso daqui como um encontro comigo mesmo”. 88 Daí a minha opção de que os relatos e narrativas do campo fossem pautados pela descrição dos corpos dos “nativos”.

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Essa economia de que falo se percebe de maneira mais presente na questão do gozo, do orgasmo propriamente dito. Não vejo que “gozar” seja o objetivo único e exclusivo dessas festas, mas é o que finaliza, completa, demarca uma nova temporalidade ou etapa da festa para cada um: “já estou satisfeito e vou embora” ou “ainda não, devo continuar aqui porque quero gozar mais” ou “ainda vou ficar mais um pouco quem sabe algo mais apareça”. Tanto um cálculo quanto um (auto)controle e técnicas corporais são acionadas para que a fruição seja máxima a partir das disposições em cada evento. Ou como me explica Ricardo: “não vou gozar agora, se eu gozar, vou embora”. Ricardo segura o gozo até determinado momento, o máximo que aguenta, goza e vai embora, não quer mais estar ali. Ou como quando fui no terraço de uma das festas certa vez, encontrei um conhecido e perguntei: “está achando ruim hoje?”, “não, até que está bom hoje, é que eu gozei, aí tô aqui um pouco”. Há aqueles que só conseguem conversar comigo depois de gozar: “bom, agora que eu gozei estou mais tranquilo, consigo falar com você”. O gozo pode ser sinal de satisfação para ir embora e, na maioria das vezes é, mas pode ser um intervalo nas atividades, uma pausa para bater um papo, beber alguma coisa, fumar um cigarro, sentar nos sofás, ou até tirar um cochilo. Claro que parte da atração desses eventos é justamente a brincadeira com os próprios limites de (auto)controle; de um prazer inesperado que os corpos ali reunidos podem trazer. Ao chegar em uma das festas, por exemplo, percebo que um dos interlocutores já conhecido veio me abraçar sorridente dizendo no meu ouvido que não fazia nem uma hora que tinha chegado ali e já tinha gozado três vezes. Contava como se o fato fosse surpreendente para ele mesmo, algo que não esperava, que não tinha planejado nem calculado e me apontava os três homens com quem tinha interagido e chegado ao orgasmo e me dizia: “olha aquele cara ali, onde que eu ia pegar um cara assim, prejudicado e estranho desse jeito? Eu nem queria! Peguei porque estava ali no meio, mas me fez gozar horrores, acredita?!” A surpresa não só de uma quantidade de orgasmos e prazer inesperados, mas mais ainda proporcionados por alguém que não correspondia a seus padrões de desejo. O objetivo parece ser essa “economia (ou seria gestão) do prazer”, esse jogo com o (des)controle de si mesmo e o que proporciona nos encontros às vezes inesperados desses corpos.

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O contexto dessas festas obriga a um relacionamento diferenciado com o próprio corpo89. E se queremos nos aproximar de um entendimento do que se passa nesses encontros também teremos que levar isso em consideração.Como afirma Taniele Rui quando aborda em sua pesquisa a questão da corporalidade nos usuários de crack: “há aqui o desafio teórico de evitar dualismos tais como corpo/mente, natural/cultural, e o metodológico de descrever empiricamente este corpo”. Em outras palavras, sem supor anterioridade ou qualquer tipo de explicação causal entre corpo e mundo social, entre corpo e pessoa; mas percebendo-o a partir das suas conexões mútuas. Em suma, atentando para a permeabilidade das fronteiras corporais e suas conexões com processos sociais e simbólicos, o objetivo central da tese é, portanto, mostrar empiricamente a potencialidade deste definhamento corporal (no nosso caso da potencialidade do engajamento sexual desses corpos), ou seja, o quanto ele produz. (Rui, 2012, 9-10).

É por conta disso que, se o evento das festas de orgia é tema de interesse deste trabalho, ele o é na medida em que oferece um terreno privilegiado para a investigação da produção social, tanto material quanto simbólica, dos sujeitos e dos corpos humanos, “bem como das concepções e das experiências de vida e de morte implicadas nessa produção” (op.cit). Nesse sentido, tal como lembra Vargas, é importante considerar que nem sempre os humanos se definem como sujeitos e servem-se de seus corpos de uma maneira extensiva, ou segundo critérios extensivos (Vargas, 2001: 214-215); o que eu pretendo demonstrar nesse capítulo é que o que a experiência da sexualidade nessas festas coloca em jogo são outros modos de subjetivação e corporalização, modos propriamente intensivos, como venho dizendo, onde o “se jogar” nos instantes de intensidade das interações sexuais possíveis nas festas é “se perder” e fazer fugir os aspectos extensivos como trabalho, família, casa, saúde e todos os valores morais correspondentes a eles.

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Como na fala dita no dark por um interlocutor após receber um elogio da beleza do seu pênis: “Eu sei. Todo mundo fala que ele é. Eu nunca parei para pensar se o meu pau é bonito ou não, mas como já ouvi tantas vezes passei a acreditar, deve ser verdade. Tem gente que passa horas só admirando. Mas ele não é só bonito também, hehe”.

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Atentar para esses eventos intensivos é me aproximar aqui de etnografias que já vêm trazendo um deslocamento de questões para uma busca de um entendimento mais próximo ao que as pessoas dão às práticas que realizam. Pesquisadores como Vargas (2001), Eugenio (2006), Ferreira (2006) e Rocha (2011) apontam como em diferentes contextos como de uso de drogas, shows de música eletrônica, a prática de esportes radicais e idas a boates, existem eventos que envolvem agenciamentos paradoxais de autoabandono, que visam “sair de si”, o êxtase, o descentramento. Tomam a “onda”, a “vibe”, a “loucura” (assim como eu tomarei a “putaria” aqui), como envolvendo modos singulares de engajamento no mundo. “Tais descentramentos dizem respeito quer à “razão”, quer ao “corpo” ou, melhor dizendo, a ambos simultaneamente”. Daí que o que parece estar em jogo nessas alterações de percepção é a produção de outras maneiras de embodiment90 da subjetividade ou de subjetivação dos corpos, “Outras maneiras de ser (a)gente” (Vargas, 2006: 22), de criar singularidade.

A putaria “A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A Publicidade diz: o corpo é um negócio. O corpo diz: Eu sou uma festa” (Eduardo Galeano, “As palavras andantes”)

Acredito que o diagrama das principais linhas de força que compõem a forma como o corpo se apresenta e age nas festas de orgia ficará mais claro quando desenvolver melhor a ideia de “putaria” que aparece nas falas das pessoas. Verdadeira produção conceitual desses espaços, é dela que procurarei me aproximar nos próximos parágrafos. Com poucas idas a campo, percebi que o termo “putaria” era constantemente acionado em diferentes situações. Percebo também o uso do termo “safadeza”, mas me parece que esse seria um nível abaixo do que a putaria é colocada, se usássemos uma escala 90

Preferi deixar o conceito na língua original por acreditar que a tradução “encorporação” não daria conta de seus significados, tal como proposto por Csordas (1990). Csordas desenvolve o conceito de embodiment como uma categoria que problematiza uma série de dualidades conceituais: pré/objetivo; corpo/mente; biológico/cultural; mental/material. Para ele, a antropologia, ao reproduzir esses dualismos, tomando o corpo "como a matéria crua biológica na qual a cultura opera", tem o efeito de "excluir o corpo de uma participação primordial no domínio da cultura".

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de intensidade. Ambos são termos valorativos, adjetivam alguém que “puxa os limites” ou que tem uma performance que chama a atenção ali: “seu safado”, “aquele cara é safado”, “você é muito puto”. Ao mesmo tempo são usados para valorar as práticas efetuadas e o próprio ambiente, sempre como meta a ser buscada. Além disso, as próprias festas de orgia são chamadas por seus frequentadores como putaria91. A putaria, ou a própria festa, tal como me apresentam seus participantes, é um acontecimento de “jogação”, de “safadeza”, de “brincadeira” que precisa guardar uma relação de equilíbrio com as outras áreas da vida dessas pessoas. Como afirmei anteriormente, os homens que frequentam essas festas não trabalham em uma lógica disjuntiva (ou...ou...). A maneira como eles parecem lidar com os diferentes “mundos” e “categorias” em que vivem assemelha-se muito mais a uma lógica da conjunção (e...e...). O que não quer dizer que elas se misturem. A maioria das pessoas com quem conversei, por exemplo, afirma preferir que a ida a esses lugares não seja do conhecimento de amigos e familiares, sem contar o fato do número representativo de pessoas casadas ou em alguma forma de relacionamento que também aparecem nas festas. Precisa-se saber gerenciar a putaria com o restante. Aproxima-se daquilo que Eugenio (2006) chama de “hedonismo competente”, uma competência em saber articular os compromissos da vida cotidiana com as práticas de “perdição”, de “êxtase”. Das falas dos participantes pode-se perceber como a putaria ocupa um lugar singular em suas vidas e no seu cotidiano. Trago dois relatos como exemplo: Eu sou casado com um cara e venho aqui escondido, porque eu sou muito safado e gosto de safadeza. Não é porque eu não tenho sexo em casa, é porque aqui é putaria, é diferente. Aqui é lugar para brincar, para colocar todos os desejos e fantasias em prática, quanto mais gente melhor, gente de qualidade, é claro. Eu brocho com gente feia, mas confesso que já comi muita gente estranha também. Meu marido sequer desconfia, porque ele é novo no mundo gay e não conhece essas coisas. Já fui casado com mulher

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Inclusive o diferencial das festas de orgia diante de outros locais de interação sexual (ou de putaria) na cidade seria justamente o potencial maior de putaria: “por isso que eu prefiro essas festas, todo mundo vem com a intenção da putaria. Diferente de uma ida à sauna que dependendo do dia você não faz nada, galera só fica dormindo ou tocando punheta. Aqui não. Se você não transar nessa suruba é porque não quis”.

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antes, todo hetero e tal, me separei para ficar com o meu marido atual. Ele também era hetero e não conhecia esse mundo de sexo e eu evito apresentá-lo, digo que não vale a pena, que só tem putaria, que é muito sujo e é melhor continuar inocente. (...) Eu gosto de relacionamentos sérios, duradouros, mas é isso... também gosto muito de uma safadeza.

Eu posso ser puto, mas sou honesto. Acho que é importante diferenciar, as pessoas confundem. Acham que só porque você gosta de putaria você não serve para namorar, você não é um bom pai, você não é uma pessoa confiável e uma coisa não tem nada a ver com a outra. Eu, por exemplo, quando estou conhecendo alguém gosto sempre de jogar limpo. Eu sou puto porque não quero e não gosto de nenhum tipo de envolvimento para relação. Eu só gosto de sexo casual. Mesmo aqueles com quem eu só transo, se for mais de uma vez vou perdendo o interesse. Preciso renovar o tempo todo, porque eu sou mais puto com quem eu não conheço.Por exemplo, se eu encontrar um cara no ônibus, descer com ele, der para ele em um terreno baldio e o cara gozar na minha boca,euvou querer engolir. Isso na primeira vez, na segunda o cara vai gozar e eu vou cuspir, na terceira eu já não deixo gozar na boca. Mas isso sou eu. Para mim, ser puto é isso. É assim que vivo a putaria. Para outros pode ser outra coisa.

Porém, é na performance dos participantes durante as interações da festa que podemos nos aproximar melhor da ideia de putaria. Nas características, por exemplo, que são buscadas e admiradas nos atores que se apresentam no show de sexo ao vivo que ocorre no final de uma das festas de orgia acompanhadas. Quando, em uma das festas que eu estava presente, um dos atores foi tentar fazer um “trenzinho”, ou seja, penetrar um ator que estava penetrando um terceiro, a plateia correspondeu com gritos, assobios e aplausos e foi possível ouvir comentários: “esse cara é muito safado, esse gosta de uma putaria!”. A putaria é o elemento organizador das práticas nesses espaços. Pela fala dos “nativos” percebe-se que, ali na orgia, não basta ser safado, tem que ser puto. Por isso um corpo bonito, um “cara de elite”, uma “gracinha”, “para casar” não se torna necessariamente o centro das atenções. O que vai valer ali é muito mais a disposição para a putaria. Daí que

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corpos que em outros ambientes não tivessem atenção ou talvez fossem considerados como abjetos mesmo (como deficientes, velhos, gordos etc), nessas festas podem tornar-se desejáveis, até mesmo dando sentido ao próprio nome de uma das festas: “Vale Tudo”. O puto, dessa forma, só se faz a partir de uma performance. Como quando em uma das festas, um rapaz negro chamava bastante a atenção pelo porte atlético e pelo tamanho do pênis, mas que correspondia às investidas e aos olhares direcionados a ele com uma receptividade “morna”, com um “ar de diva cansada”, como definiu um dos presentes. Não se desvencilhava, mas ao mesmo tempo não agia e não se excitava. Isso acabou cansando as pessoas que deixaram de se aproximar e de colocá-lo como centro das atenções. “De que adianta ser gostoso se não é puto?”. Da mesma forma, o excesso de “exigência” para as interações não é bem visto nesses espaços. Ao final de uma das festas, um conhecido se aproximou: “Você viu aqueles dois bonitões que chegaram juntos? Nossa, coisa chata, eles não faziam nada, não aceitavam ninguém, olhando tudo com desprezo, muito cheio de historinha, de não-me-toque, de nojinho, de frescura… Um até foi embora mais cedo; o outro viu que não ia conseguir fazer nada se continuasse nessa, então começou a baixar o nível de critério. Porra, pessoal vem pra cá muito sem noção. Pra que que vem então?”

E resumia a questão: “quem fica de nojinho em putaria, não faz nada”. Interessante perceber que mesmo nas festas que selecionam seus participantes e que apresentam uma proposta diferente - a de uma festa de orgia onde só podem entrar/participar pessoas que correspondam a um perfil pré-determinado, que seria: “homens magros, sarados, boa pinta, em boa forma física e dotados” 92 - percebi a importância do princípio da putaria atuar da mesma maneira. Ou seja, ainda que se possa

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O mesmo princípio, por exemplo, encontrado em muitos perfis no Grindr (aplicativo de celular de encontros masculinos que exibe uma grade de imagens dos homens dispostos a partir do mais próximo ao mais distante). Os perfis normalmente trazem fotos de partes do corpo que o usuário acha mais atraente, dificilmente fotos de rostos são colocadas. Uma frase que pode ser lida em muitos perfis é: “Tenha bom senso. Não me cuido para pegar bagulho”, ou então: “Não sou e nem curto afeminados. Se for bichinha, nem chama”.

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observar uma tentativa de estratificação do desejo pela forma de exclusão através da hierarquia dos corpos, ou mesmo de outros marcadores sociais de diferença, a putaria entraria como elemento diferenciador e ao mesmo tempo desestabilizador dessas hierarquias. Voltarei a isso mais adiante. O puto produzido pelo princípio da putaria das festas, portanto, é aquele que se destaca durante as interações sexuais pela manipulação dos elementos eróticos e da produção desejante desses eventos. É aquele que aciona, captura e intensifica o desejo do(s) outro(s) a partir dos incessantes encontros estabelecidos nas horas das festas. Tentativa árdua a de tentar circunscrever um “conceito” como o da putaria, já que ele, assim como o puto, se quer o tempo todo escapar para ter mais encontros, formar mais ligações, conexões, deriva constante em busca dos corpos, frisson pelos corredores e darks em busca de mais prazer. Máquina que se acopla a outras, que não quer ser apreendido, capturado, retido, reprimido. Quer fugir. Daí a orgia ser o território onde a putaria pode alcançar maior potencialidade, não só pela maior possibilidade de conexões como também de disposições territorializadas ali. Ao invés de circunscrever, melhor acompanhar os diversos caminhos desses desejos da putaria. Trago dois elementos para pensar melhor sobre esse conceito: primeiro a sua contraposição ao que eles chamam aqui de “romance” e depois o elemento variável da “disposição”.

Putaria X romance Quando um rapaz coloca a mão por dentro da minha sunga, eu a retiro e digo: “calma aí, assim logo não!” e ouço: “quer que eu pague uma bebida antes pra você?” de forma irônica. Afinal, como ouvi diversas vezes nesses espaços: “Você não pode vir pra putaria querendo romance”; “Aqui é putaria, quer intimidade vai pra um motel”. Muito do que podemos definir como putaria vem de sua contraposição ao que eles chamam nas festas de “romance”. Eu e Felipe estávamos dentro de uma das suítes da casa assistindo a interação de um casal que durava havia um tempo. A cena iniciou assistida por uma quantidade grande de pessoas presentes no quarto, mas que foi diminuindo gradativamente. Felipe suspira um pouco entediado e comenta baixo em meu ouvido antes de se retirar do quarto também: “Mas, gente, agora eles estão fazendo amorzinho. Estavam fazendo sexo até há pouco, mas agora estão fazendo amor. Bonitinho, mas boring”. O que 183

teria mudado no ato para que ele se deslocasse de “fazer sexo” para “fazer amorzinho”? A interação que tinha começado numa determinada intensidade e de forma coletiva aos poucos foi se centralizando e se isolando em apenas um casal e algo no ato ou no jeito de fazer, mais prolongado, mais carinhoso, mais beijos, uma intensidade diferente, ou melhor ainda, um movimento diferente, não necessariamente da penetração, mas que acionava um tipo de conexão que deixou de ser putaria para se tornar romance. As interações “românticas” não são as mais desejadas aqui, elas podem acontecer obviamente, a depender dos encontros aleatórios entre as pessoas, mas elas não acionam nem estimulam o movimento de multidão. Elas não agregam, não “puxam” a participação coletiva. Acabam por separar, segregar ou individualizar as interações e, na maioria das vezes, as pessoas não perdem tempo observando ou sendo rejeitadas nas tentativas de aproximação. Olham de cara feia, se afastam ou mesmo “zoam” algumas delas. Mesmo no show, quando um dos atores puxou uma pessoa da plateia para a interação no palco e os dois entraram numa “onda” própria, mais carinhosa, demorada e não aberta a participação de outros, foi logo chamada a atenção pelo organizador no microfone: “para de namorar, caralho! Aqui é pra fuder!”, causando a imediata separação do casal. Da mesma forma, estar numa putaria exige uma determinada ética de relacionamento que definitivamente se afasta dos modelos de “amor romântico” normativos exclusivistas. Nesses espaços é mais do que comum você ver alguém com quem acabou de transar, fazer o mesmo com outra pessoa, na sua frente ou mesmo junto com você. Também não é porque você costuma ficar com determinada pessoa quando a encontra nesses eventos que isso necessariamente se repetirá sempre, ou que as pessoas devam justificativas e fidelidades umas às outras. “Aqui não se pode ser ciumento, ninguém é de ninguém, só se pode ter preferidos”. A ética nesses espaços passa longe da exclusividade e sua lógica separatista, de propriedade e de repetição do mesmo. Senão corre-se o risco de entrar no terreno do “romance”, podendo gerar alguns conflitos, afastando os interessados e outras possibilidades de encontros. O romance só se permite enquanto espetáculo. Casais que gostam de fazer um sexo performático, como um show para os outros, “pode ver, mas não pode tocar”. E mesmo essas são situações que rapidamente dão preguiça aos que só podem observar. Que mundos são esses, o da putaria e o do romance? Aqui eles se contrapõem, no discurso principalmente, mas podem se atravessar e se condensar: não é porque você está 184

“fazendo sexo” ou “fodendo” que a interação não possa ser afetuosa no sentido de não ter carinhos ou beijos. Da mesma forma, durante as festas, casais se fazem e se desfazem a todo momento, a duração do encontro ou da “relação” dependendo da vontade de cada um e da intensidade do encontro93. A meu ver, a diferença fundamental entre putaria e romance é dada em termos de movimento e de velocidade. A putaria é um movimento de circulação permanente, rápido, de deriva constante. Os homens que participam dessas festas estão o tempo todo se locomovendo pelos espaços da casa, subindo e descendo escadas, sempre na espera e na busca do encontro. Não param e não podem parar se querem, de fato, fruir da intensidade da putaria; não ficam o tempo todo no mesmo lugar esperando que alguém se aproxime; ficam em movimento procurando se encaixar em alguma interação. O que há são as pausas para os breves encontros, aproximação de corpos (sejam os desconhecidos ou os “preferidos”), às vezes fragmentados, que interagem até o esgotamento daquela intensidade e que, logo a seguir, retomam trajetórias independentes. O romance, ao contrário, fixa ou freia o movimento, força a sua lentidão, essa é a diferença; faz com que esses corpos se retirem da deriva constante e se estabeleçam em um ponto fixo da casa. No romance, se é capturado ou se deixa capturar naquele encontro e, ao mesmo tempo, se impede a aproximação de outros corpos na composição. Mas ser puto não é só estar à deriva pelos espaços da festa se mostrando disponível para as interações, é também preciso ter e mostrar disposição.

Disposição A meu ver, a putaria, além de pautar e qualificar as práticas, os participantes e o ambiente, é uma potência oriunda das vontades e impulsos dos participantes das festas, como uma disposição. O elemento da disposição era sempre acionado nas falas durante a festa como o elemento variável e individual, ou seja, da competência de cada um e que faz variar a intensidade da potência da putaria. 93

Também não é incomum que os participantes troquem números de telefone ou alguma forma de contato quando o interesse na interação vai além do prazer momentâneo ou onde o encontro é tão intenso que valeria a pena uma continuidade; que saiam juntos da festa para um outro espaço mais reservado ou que mesmo usem o grupo do whatsapp das festas para marcarem encontros mais íntimos.

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Gambôa, em sua pesquisa sobre interações eróticas entre homens num cinema pornográfico do Centro de São Paulo, também comenta sobre a categoria “disposição” acionada por seus interlocutores: A disposição diz respeito a um elemento imaterial, sutil e importante para a caça nos cinemas. Este elemento relaciona-se ao interesse por parceiros sexuais ou a estar disponível para o sexo, funcionando como uma espécie de radar que, quando acionado, emite sinais, mostra o que se quer e atrai as pessoas, podendo estar ligado à ideia de desejo sexual como instinto irrefreável. Uma melhor disposição pode ser conquistada com o auxílio de álcool ou outras substâncias psicoativas que colaborem para que os parceiros envolvidos estejam mais abertos no momento da relação sexual. Mas essa não é a única estratégia (Gambôa, 2013, 161).

Concordo com a definição dada pelo autor, porém acredito que ele acaba por se centralizar em uma aplicação da categoria apenas em termos quantitativos, disposição ali é uma escala variável do tamanho da “vontade de fazer sexo” ou da quantidade de desejo para as interações. Penso que a disposição também se aproxima de uma variação qualitativa e mais dinâmica. Ter disposição não é só sentir muita vontade de fazer sexo, mas também saber bem como fazê-lo nesse contexto que, como vimos, não é o “mesmo sexo que se faz em casa”. Guardadas as especificidades de cada contexto, estou usando disposição aqui no sentido que os presos estudados por Biondi dão a esse termo, que acredito se aproximar mais do que percebi em campo: Disposição e apetite são termos utilizados pelos prisioneiros para indicar a intensidade e o alcance de suas vontades, em seus mais variados formatos, expressões ou manifestações. Desta forma, permitem a criação de contornos, torções, soluções improvisadas que contam muitas vezes com o acaso para sua execução. Ademais, ao adquirir velocidade, são capazes de oferecer resistência ao poder que incide sobre os corpos, aquele que modula e limita. (Biondi, 2010,181).

Sendo uma disposição, a putaria não é algo que seja da essência do indivíduo. Ela não está presa a uma identidade e muito menos perfaz um caráter. O gosto e a disposição

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para o sexo, para a orgia e seus excessos, em sua maioria, fogem de uma explicação essencialista, como nessa entrevista com Rodrigo: Gosto de sexo como um esporte: tem aqueles que gostam de jogar futebol, vôlei, nadar, eu gosto de fazer sexo. Para mim sexo é como tomar esse café aqui que a gente está tomando, sem maiores implicações. Eu gosto muito, vou para as festas para meter o máximo de vezes que eu conseguir. Dissocio totalmente sexo de caráter: a pessoa ser uma “predadora” sexual não quer dizer que seja uma predadora afetiva, promíscua, pior ou melhor do que ninguém, o problema é a carga moral que a nossa sociedade coloca nisso. Da mesma forma, não é porque participa de orgias ou que faça programas, por exemplo, que a pessoa seja algum viciado em sexo; é muito negativo o termo, ela só gosta de fazer bastante, ponto final. (...) Mas também não me engano, não encaro a orgia como um momento de libertação. Claro que vejo as hierarquias e normalizações. Tem uma persistência da homofobia ali: não há como negar e isso faz parte da gente, de alguma forma. Mas eu não vejo a orgia como um subproduto da homofobia, mas sim uma forma específica de fazer sexo, que tem rituais e uma graça própria. Até pelo fato de eu não contar para meu marido que eu participo disso. Parece contraditório, mas deixa eu tentar te explicar: faço escondido não porque ache errado, nem porque preciso me satisfazer de um sexo que eu não tenho. Transo com meu marido sempre, aliás. São coisas diferentes. Escondo porque não quero magoar ele, ele não entenderia, acho que de uma maneira geral falta generosidade nas relações amorosas. Tomo meus cuidados, claro, não faço sem camisinha ali, mas confesso que chupo sem se o cara me atrair.

Rodrigo está falando de uma “busca pela excitação” específica que nada tem a ver com necessidade, vício, doença ou anormalidade e que mesmo não exclui a possibilidade da manutenção de uma relação amorosa concomitante. Trata-se de uma apetite ou disposição que encontra na ida para as festas de orgia um território singular e ideal para a intensificação, a prática e possibilidades de acontecimento. A ida às festas se aproxima dessa “busca pela excitação” aliada a um “cálculo racional de prazer”, como apontado por Elias e Dunning (1992) sobre o surgimento da categoria moderna de esporte, onde impulsos e

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vontades por sensações de alta intensidade encontram alguma forma de realização ao se territorializarem em uma prática minimamente regrada e sob controle. O ordenamento, o autocontrole e a racionalidade de uma putaria, ou o “descontrole controlado” desses eventos, é sempre acionado para se afastar de uma ideia de “doença” ou “vício”. Segundo Ferreira (2012, 101), a confusão entre limites para traçar o que são considerados usos próprios e impróprios, seja de algum comportamento como o sexual ou de alguma substância, é o que organiza os sentidos na atribuição de noções como “saudável” ou “doente” e tudo o que isso implica. A categoria de “vício” aqui aparece muito mais como acusação do que explicação de si mesmo: “Eu não sou uma pessoa viciosa. Nunca usei droga, nem sei beber direito, imagina! Mas eu vou te falar que aqui tem algumas sim, com certeza. Tem gente que vem aqui toda festa, não deixa passar uma! Fulano é um. Toda festa que vou ele tá lá. Se não tem festa aqui ele vai em outra, se tivesse festa todo dia ele estaria lá, sabe? Isso é coisa de doença, um vício já. Isso daqui é pra fazer de vez em quando…”.

A doença ou o vício é quando há a percepção de uma falta de temperança, de equilíbrio; quando há um julgamento moral por um certo excesso das práticas. É claro que alguns dos participantes acionam categorias que podemos entender como essencialistas para “justificarem” seus desejos e suas idas a esses lugares, muito mais pelo fato de alguém de fora (no caso, eu) estar colocando essa questão antes não acionada nesses espaços. Mas como analisei antes, o uso de teorias ou explicações como os instintos, os humores e a química não funcionam como normalizações ou como julgamentos e interferências externas, mas denotam um entendimento “físico” e “químico” da sexualidade, da elaboração de um discurso explicativo que dê conta das práticas e dos desejos realizados ali. E de maneira geral, as explicações não são em termos negativos, pelo contrário, o apetite, a disposição, ser puto, é o objetivo e a maior forma de distinção que se pode encontrar nas festas de orgia. Podemos nos lembrar de Léo, em minha descrição no início do capítulo, que logo me alertou que “não era putão”, que se comportava até diferente das pessoas ali. Mas que, ao presenciar a interação no “aquário”, foi meio que tomado, atravessado por um fluxo, por um

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“devir-putaria”, ou um “devir-puto”. E de alguém que inicialmente não estava interessado na putaria ao seu redor, se tornou o centro das atenções no “aquário”, atuando como o puto da cena94. Outro exemplo é Mário. Mário tem 49 anos, bancário e morador do Méier. É branco, estatura mediana e com os cabelos já grisalhos. Não possui um corpo definido, mas é magro e com uma certa “barriguinha”. Mário vai sempre à festa acompanhado de um amigo do trabalho. Se encontraram por acaso em uma dessas festas e desde então passaram a ir juntos. Apesar de terem quase a mesma idade, o amigo tem uma apresentação corporal diferente, um corpo mais trabalhado e musculoso. Os dois tinham comportamentos diferentes no evento. Enquanto o amigo demonstrava uma disposição muito maior para as interações, Mário ficava pelos cantos e tentava algumas aproximações muito esporádicas. Eu sei que não sou bonito nem tenho corpão. Normalmente as pessoas aqui só vão comigo quando percebem o tamanho do meu pau. Mas eu não fico me valendo disso, não fico pelado me exibindo. Também não curto muito essa putaria exagerada. Sou mais aquele cara de conhecer aos poucos, de fazer carinho, uma coisa mais tranquila. Sou bem diferente do meu amigo. Ele chama mais a atenção e pega muito mais gente que eu. Mesmo tendo um pau bem menor do que o meu! (risos) A gente vem pra cá e ele se perde por aí metendo em quem ele conseguir, quando vejo já comeu uns 7, 8 carinhas... Eu sou diferente. Venho pra cá, mas não faço e aconteço. Tem vezes que não meto em ninguém, só fico olhando ou na brincadeira. Hoje, por exemplo, tá quase na hora de ir embora e eu só comi um.

Em outra festa, tive a oportunidade de assistir Mário em uma interação que pouco se aproximava do relato que ele tinha me dado anteriormente. Em uma das suítes ele se revezava na penetração de um rapaz magro e de aparência bem jovem que estava de joelhos

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Olivar em sua etnografia sobre a prostituição feminina também fala de um “devir puta” que estaria presente na dinâmica observada entre suas interlocutoras, de um momento em que é necessário “corporificar a puta”, “virar puta mesmo”: É esse o ponto exato em que a complexidade do programa adquire sua maior eficácia, em que se efetua totalmente a relação, já que é “baixando a puta” para satisfazer a perspectiva do cliente que elas conseguem impor sua perspectiva e, por conseguinte, para nossas prostitutas/esposas, a perspectiva da família. Assim mesmo, é nesse investimento no erotismo do cliente, na gerência sofisticada desses anseios, que o “divíduo” puta - a puta como potência topográfica e corporal (o devir puta) - tem seu espaço limitado de existência… (Olivar, 2013, 134)

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na beirada da cama no quarto. O rapaz era penetrado alternadamente por Mário e por mais um outro. A interação entre os três chamava bastante a atenção e acumulava pessoas ao redor, principalmente pela performance de Mário, que gemia e falava em voz alta para todos ouvirem: “não era pau que você queria? Então toma! Agora aguenta, seu filho da puta!”. Era um pouco agressivo na penetração ignorando os pedidos do rapaz para ir mais devagar. Mesmo com as feições de dor toda vez que era a vez de Mário o penetrar, o rapaz se manteve ali até o orgasmo do outro que participava e que acabou por finalizar a interação dos três. Mário saiu do quarto arfante e não se preocupou em vestir a cueca por um bom tempo, expondo um certo orgulho ao caminhar pela casa com seu pênis grande ainda ereto e coberto com a camisinha. O corpo e como ele age/reage à putaria é, portanto, fundamental para a definição do status dos agentes nesse contexto de sexo grupal/coletivo e, consequentemente, como veículo privilegiado para as estratégias de distinção, sendo, simultaneamente, por elas condicionado.

A repetição na orgia “Pois a intensidade, muito antes de ser graduada pela representação, é em si mesma uma pura diferença: diferença que se desdobra e repete, diferença que se contrai ou dilata, ponto singular que encerra ou solta, no seu agudo acontecimento, indefinidas repetições. (…) Dissolução do eu”. Foucault, Theatrum philosoficum

Venho mostrando nesse texto como a ida às orgias é, ela própria, uma forma, uma maneira e uma busca de singularização, de criar diferença, de saltar do fundo indistinto do cotidiano para um acontecimento de pura intensidade, pela própria vontade de potência, apetite ou disposição dos participantes. E isso, talvez, possa deixar um pouco nebulosa a relação entre “singularização” e “cotidiano”. Então, antes de continuarmos, gostaria de esclarecer esse ponto.

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Dizer que a “putaria" e a ida a essas festas é um engajamento e uma forma de criação de singularidade não é o mesmo que dar a esses eventos uma característica ou transcendência de algo ou de eventos extraordinários, transgressores ou “fora do comum”. Essa é uma leitura que pode se ter das minhas descrições à primeira vista e, de fato, ser vivenciado dessa forma por alguns ali, mas é bom deixar claro que mesmo outros interlocutores chamaram a minha atenção para que percebesse lugares outros que essas festas ocupam em seus cotidianos. Um deles, por exemplo, me explicou, após a leitura de um dos meus textos, que a sua vida sexual era apenas vivenciada nesses ambientes das festas de orgia, que ele “não transava com outras pessoas fora dali”. As festas para ele não eram um “complemento”, uma “transgressão”, nem algo “extraordinário”, era o seu modo comum de exercício sexual cotidiano. Veja, não estou apontando uma contradição à minha análise. O que eu quero dizer é que a produção de uma singularidade nem sempre é um movimento em direção ao “extraordinário” e à “transgressão”, não tomemos isso como uma lei (nem mesmo Guattari e Rolnik (2005) afirmam isso). Como bem aponta a antropóloga Veena Das, o próprio “descer ao ordinário” também é um movimento de singularização. A autora, em sua pesquisa com sobreviventes de eventos violentos da história indiana, mostra como no esforço e exercício cotidiano dessas pessoas viverem o ordinário, de recomporem seus mundos e criarem novos territórios existenciais também estão resistindo e produzindo um movimento de singularização (Das, 2007, 79-94)95. E é essa elaboração de novos territórios existenciais que eu coloco como possibilidade de entendimento das festas de orgia. Nos relatos que me foram feitos e que apresentei aqui percebe-se como a ida a esses eventos não se coloca em termos de um discurso preso às questões do extensivo, mas sim das experimentações intensivas. Nessa chave, não caberia aqui uma moral onde as coisas são pensadas em termos de “certo”, “errado”, “bem”, “mal”, “castigo”, “dever”, “proibição”, todos baseados em valores que são tomados como transcendentes à vida e à sua extensividade (e isso nem se encontra presente no discurso nessas festas). O que há aqui é o que Deleuze chama de “ética da potência” (Machado, 2013: 72). Essa vontade de potência que alimenta o retorno às festas chamou a minha atenção devido a uma frase inscrita logo 95

A própria ideia de um “hedonismo competente” envolve um esforço de administração ordinária e cotidiana que não se restringe apenas aos momentos de “perdição”.

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no início de seu Diferença e Repetição: “A festa não tem outro paradoxo aparente: repetir um ‘irrecomeçável’. Não acrescentar uma segunda e uma terceira vez à primeira, mas elevar a primeira vez à uma ‘enésima’ potência” (2009: 20). É na elaboração que Deleuze faz sobre o conceito nietzschiano de “eterno retorno” que podemos trazer alguns elementos que contribuam para pensar sobre as festas de orgia. Para Deleuze, “repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente” (idem). Faz eco aqui ao pensamento nietzschiano de que “o que você quiser, queira-o de tal modo que também queira o seu eterno retorno” (idem). O pensamento do eterno retorno propõe uma seleção porque elimina da vontade tudo o que não se adequa a esse pensamento, eliminando os “semiquereres”, as meiasvontades, estabelecendo uma vontade criadora. Eis o sentido da vontade de potência como vontade afirmativa: seja o que for que se queira, elevar o que se quer à última potência, à enésima potência, que é a potência do eterno retorno (Machado, 2013: 97). Deleuze vai dividir o eterno retorno em dois momentos, ou dois níveis. No primeiro, eliminam-se os semiquereres, as meias-vontades, os estados reativos que não nos deixam ir até o fim, até o máximo deles. No segundo, produz-se o devir-ativo, o ponto decisivo de uma “filosofia dionisíaca” (ou podemos dizer orgiástica?), o ponto em que a negação exprime uma afirmação da vida, destrói as forças reativas e restaura a atividade, ou seja, destruir-se, mas destruir-se ativamente, em uma dupla afirmação (idem: 99-100). Destruir-se aqui não está, a princípio, no sentido de pôr a vida em risco, de morte, dor ou sofrimento, mas sim destruição das forças reativas, principalmente aquelas da moral baseadas nos valores transcendentes. A repetição que possibilita a afirmação e a vontade criadora. No eterno retorno, a repetição possibilita a afirmação de que o devir é o ser, o múltiplo é o um, o acaso é a necessidade ou a diferença é a identidade. O eterno retorno é o objeto, o instrumento ou a expressão da vontade de potência. No eterno retorno, a repetição não é a repetição do mesmo, mas do diferente e a diferença tem como objeto a repetição. No eterno retorno, a repetição é a potência da diferença (Machado, 2013: 101)

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Porém, é claro que a busca, a vontade de alcançar essa “enésima” potência, ao mesmo tempo em que pode se apresentar como força criadora, maneira de singularização e (por que não?) de extremo prazer, ela também tem um potencial destruidor, de risco, de aniquilação. São como os momentos de “fissura” conceituados por Díaz-Benitez em sua análise das filmagens de filmes pornográficos de humilhação: Fissuras seriam aqueles instantes de fronteira em que as emoções extrapolam o sentido dado de antemão às práticas, são momentos em que, em meio a um ato sexual, transpassa-se do consentimento ao abuso. (...) Ou seja, houve consentimento, mas a prática trouxe uma intensidade que não é possível de prever ou de antecipar e que rompe com o pacto empreendido com o outro e consigo mesmo, ocasionando emoções que evocam mais perigo do que prazer. A fissura é a evidência de que a prática extrapolou a expectativa da dor, é uma fenda onde o ato (ou representação do ato) se torna violência, embora logo a fissura possa se refazer por meio da sociabilidade ou a amizade que envolve a dinâmica de grupo nos sets de filmagem (2014: 1).

A questão que se coloca a todo tempo nas festas de orgia tem a ver justamente com essa manipulação dos limites, o controle de si e a imersão nesses êxtases, devires e estados de alta intensidade96. A questão é que, embora possa ser destruidora, ou mesmo mortal, dependendo das circunstâncias, o importante é como essa experimentação pode ser vivida. Deleuze já alertava para a necessidade de uma prudência, de uma “embriaguez em que não se perde a sobriedade, a lucidez” (Machado, 2013: 220) Procuramos extrair da loucura a vida que ela contém, mas odiando os loucos que não cessam de matar essa vida, de voltá-la contra si própria (Deleuze, 1998: 67).

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Nesse sentido, as festas de orgia seriam acontecimentos onde determinadas práticas sexuais estariam na borda do que Gregori chama de “limites da sexualidade”, que seria “a zona fronteiriça onde habitam norma e transgressão, consentimento e abuso, prazer e dor” (2010: 3).

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Eu caracterizei acima esses eventos e experiências, esse sair de si, como paradoxal também pelo fato de, em campo, ter observado uma “sobriedade”, um autocontrole e cálculo racional dos “nativos” que eu não esperava encontrar em um evento como uma orgia e que, da mesma forma, não costuma ser descrita na literatura sobre rituais orgiásticos. O que é posto a cada ida a um desses eventos é a repetição dessa irresistível “tensão libidinal” constante em que se embaralham o êxtase e a perda do controle, em que os limites são questionados e há um risco ou perigo que pode aparecer a todo momento a depender da intensidade das interações. Portanto, como todo evento, esse também tem de ser feito, vale dizer, minuciosamente fabricado e realizado (uma preparação do espaço, da iluminação, da música, do corpo que se lava, se depila, se prepara etc.), ainda que, como todo evento, seus resultados sejam imprevistos e, de um modo ou de outro, escapem àquilo que os condicionam e introduzem alguma surpresa, diferença ou alteração. “Se jogar” é sempre lidar com o imprevisível de uma forma ou de outra: Ainda como todo evento, a ‘onda’ é algo que passa, que se passa. E o que (se) passa com a ‘onda’ é um ‘estalo’, uma ‘alteração’ da percepção, uma ‘fruição por outros estados de percepção’, uma ‘percepção intensa’, uma ‘intensificação da percepção’, ‘uma maior intensidade de percepção da vida’, uma alteração que faz que os momentos sejam vividos ‘intensamente’, já que ‘a vida só vale a pena se for vivida intensamente’, como se ouve entre usuários [de drogas]. (Vargas, 2006: 12)

É sobre a questão dos limites, suas fissuras e sua relação sempre tensa entre a “onda” da putaria e o prazer, a dor, o perigo e os riscos que irei me ocupar nas próximas páginas.

Novo mergulho Em uma outra festa da qual participei, pude presenciar uma situação que talvez ilustre minhas colocações sobre a disposição e o proceder do puto. Conheci Rafael em uma festa que foi organizada numa sauna em Botafogo. Rafael tem um porte atlético, alto, loiro, usava cordão de prata e uma sunga estampada de flores na festa. Alguém o descreveu como 194

tendo um “jeito malandro” e sua postura chamava a atenção das pessoas ali presentes. Tentei chamar sua atenção para que viesse falar comigo, o que consegui: “o que tenho que fazer para beijar essa boquinha gostosa?”. Expliquei os motivos de estar ali, o que não o impediu de tentar uma aproximação erótica, mas ao falar para ele que era comprometido não insistiu mais em fazer sexo, mas não quis me afastar. Comecei a puxar assunto com ele. Disse ter 26 anos, morar na Ilha do Governador e estudar psicologia em uma faculdade particular. Como aconteceu em relação ao Léo, tal como descrito no relato anterior, suas interações seguintes contaram com as minhas presença e participação. Naquele momento formamos um “casal” que chamava a atenção, muitos queriam se aproximar e interagir, mais com o Rafael, claro. As pessoas se aproximavam tentando chupá-lo, me empurravam discretamente e ele brigava: “não, não, estou com ele! Chupa aí, mas ele fica aqui”. Rafael quis ir para uma cabine, escolheu a que tinha uma luz mais forte e queria deixar a porta aberta, gostava de ver e que todos vissem o que ia acontecer ali. Toda vez que alguém tentava fechar a porta, chamava a atenção da pessoa. Logo quando entramos nós dois, entraram dois outros homens. Um deles, um rapaz negro de sunga vermelha, tinha sua atenção voltada para Rafael, mas este quis que ele ficasse com o outro, um moreno de cabelo raspado, que entrou junto, o que não deixou o primeiro muito satisfeito. “Dá para ele primeiro! Depois eu te como. Assim você fica mais aberto para mim e posso socar com mais força”, incentivava Rafael. O moreno de cabelo raspado chegou a colocar a camisinha, mas o negro de sunga vermelha continuava hesitando. O moreno de cabelo raspado, já sentado na cama da cabine, com o “pau encapado” (com a camisinha) deu uma mordida na bunda do primeiro, o que gerou um estresse e logo uma discussão. O rapaz negro de sunga vermelha, que já não queria muito “dar” para o outro, falou que ele o tinha machucado com a mordida e com isso deu início a uma discussão. O outro sentado falou: “Cara, quer saber? Chega, acabou”. Tirou a camisinha e com gestos amplos a jogou para o lado, mandou o primeiro “se foder” e saiu da cabine batendo a porta. Rafael ainda falava uma ou outra coisa para apaziguar. O rapaz negro de sunga vermelha saiu também, mas logo voltou com outra camisinha na mão e um sorriso no rosto. O estresse tinha passado e ele ia conseguir ter a interação que desejava. Rafael ainda fazia um jogo deixando e não deixando que ele colocasse a camisinha nele. Mas acabou conseguindo fazer com que Rafael sentasse e ele subisse por cima. A ação não durou muito, logo o rapaz negro gozou em grande quantidade.

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Satisfeito, quis sair, mas Rafael não deixou: “Ué, mas já? Ah não! Você não fez tanta questão? Agora tem que aguentar. Agacha aí”. Colocou-o de quatro na cama e começou a penetrá-lo com força. O rapaz negro repetia que “não” sem muita força, tentou por um momento afastar Rafael com as mãos, mas do susto passou a rir e fazia cara de dor e de prazer. Com a cena o burburinho na porta aumentou, as pessoas se acotovelavam ali para conseguirem assistir ao que acontecia. Rafael ainda fez alguns movimentos e falou para ele ir embora, se despedindo com uma sonora palmada na bunda do de sunga vermelha, que saiu sorrindo. Mal fechou a porta, entrou outro rapaz, que Rafael logo chamou de “novinho”, já que ele tinha uma aparência de adolescente. Rafael olhou para mim e disse: “lá vamos nós outra vez”. Perguntou se o rapaz tinha camisinha, respondeu que não, mas logo uma camisinha caiu entre nós jogada por alguém lá de fora que ouviu a pergunta e queria que a cena continuasse. O “novinho” pegou a camisinha, colocou em Rafael, que o posicionou de quatro também, e começou as investidas fortes. Disse que estava muito seco, cuspiu no ânus do rapaz, penetrou mais. Em pouco tempo, ele tirou a camisinha e deitou na cama para descansar sinalizando que a transa tinha terminado. “Mete mais”, pediu o rapaz. “Não”, respondeu sorrindo. À saída desse, nova entrada na cabine. Dessa vez foi um baixinho musculoso que chamava a atenção de outros na festa por ter um pênis grande e grosso. Ao ver essa característica, Rafael se empolgou de novo. Enquanto passava a mão na bunda do baixinho disse que estava na dúvida se queria comê-lo ou dar para ele, já que ele tinha tanto um pau quanto uma bunda boa. “Você é muito puto”, falou o baixinho para Rafael. O baixinho ficou manipulando e dedando a bunda do Rafael a pedido deste. Foi comandando e narrando a ação o tempo todo. O baixinho não tinha camisinha também, Rafael disse que ia lá embaixo buscar, mas acabou não voltando. Quando desci o vi já interagindo em um grupo de outras cinco pessoas e quando me viu me chamou para que eu me aproximasse. Durante toda a interação aqui descrita, Rafael foi o operador, o orquestrador, o catalisador da putaria.

O que pode o corpo? É possível verificar a existência de muitas semelhanças (e choques) entre essas perspectivas que venho apresentando aqui e as de Elias (1994) a respeito da inter-relação

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entre o controle do corpo e o processo civilizatório, à hipótese segundo a qual o controle do corpo é uma prática central para as estratégias de distinção. Para Elias, essa mudança, que perfaria o processo civilizatório, teria seguido, basicamente, em direção ao “avanço do patamar do embaraço e da vergonha” (1994: 110), das noções de higiene, ao aumento da disciplina e da coação, enfim, ao “abrandamento das pulsões” (idem: 215). Elias descreve em O Processo Civilizador, o aumento da pressão pelo controle das emissões corporais, um crescente autocontrole que se efetuaria em termos da crescente psicologização e racionalização das condutas. Acredito que as práticas corporais observadas na orgia se contrapõem a esses mecanismos de evitação, separação e distanciamento estipulados pelas regras de etiqueta e de higiene. O que dizer do contato com as secreções e excreções corporais alheias como saliva, suor, esperma, urina, fezes e da exposição daquilo que é considerado íntimo e privado? Do cheiro forte que se sente assim que você se aproxima da multidão de corpos aglomerados e que, para os frequentadores desse tipo de orgia, é uma das fontes de excitação? De muitas formas o nojo não é simplesmente aversivo, e o conteúdo do repugnante é complexo e, por vezes, paradoxal. É um lugar-comum que o nojento pode atrair, bem como repelir; as indústrias de cinema e entretenimento, entre as quais se poderão incluir a cobertura de notícias, literalmente trabalham com esse fascínio. O repugnante é uma característica insistente do escabroso e do sensacional, e estes são informados seja por sexo, violência, horror, e a violação das normas da modéstia e do decoro. E mesmo que o nojo possa causar repulsa, raramente faz isso sem também captar a nossa atenção. Ele se impõe sobre nós. Achamos que é difícil não roubar um segundo olhar ou, menos voluntariamente, nós encontramos nossos olhos não resistindo a olhar novamente as mesmas coisas que nos enojam (Miller, 1997, X).

Certa vez estava de pé em uma das suítes coletivas e, ao me aproximar da parede para recostar em uma posição confortável, um dos presentes chamou a minha atenção para umas marcas na parede onde ia me encostar. Eram marcas de esperma escorridos na parede, alguém tinha acabado de gozar ali. Depois percebi que essas marcas estavam

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presentes em quase todos os ambientes, não que elas estivessem sujas naquele momento, mas com certeza, as festas seguidas e os gozos seguidos fizeram as marcas perdurarem. Aliás, a questão da limpeza foi motivo de uma bronca dada por um dos organizadores a todos durante um show: ao microfone, ele chamou a atenção das pessoas dizendo que recebe emails e reclamações referentes à limpeza da casa, mas que também conta com o bom senso das pessoas: “imagino que ninguém aqui suja o vaso de casa e entope ele de papel como algumas pessoas fazem aqui. Então vamos usar a cabeça. Tem lixeiras grandes e pequenas espalhadas não só no banheiro do lado do vaso como pela casa toda”. O organizador se refere aqui ao estado em que costumam ficar os banheiros da casa em toda festa. Vasos entupidos, chão e paredes sujos com urina e “água de xuca”, além da lama que acaba se formando com os banhos seguidos dos participantes. Pude acompanhar também a reclamação de um dos participantes sobre a falta de sabão, papel toalha e da sujeira nos banheiros. O organizador agradeceu e disse que ia tomar providências. Comentou comigo: “ah, tive que falar. Cara, é um absurdo, né? A gente paga uma fortuna, essa festa não é barata... tem que ter um mínimo, né?”. Porém, é importante apontar como a “sujeira” também faz parte de uma “cosmética ou estética da dissidência”, na qual essa “contravenção” a valores de contenção e higiene são aliados na composição de uma cena de alto potencial erótico97. O acúmulo de lixo, principalmente no espaço do dark, não desestimula as práticas sexuais ali, pelo contrário, até pode incrementá-las, mesmo que em grandes quantidades e causando alguns acidentes. Eu mesmo certa vez levei um tombo no dark por ter escorregado em um conjunto de camisinhas usadas e jogadas no chão. A intensidade das interações pode tanto distender os limites das noções e hábitos de higiene quanto também estimular práticas mais incomuns como a interação com urina, fezes e mesmo vômito. Este último foi observado por mim em uma interação no dark: um rapaz ajoelhado com as costas encostadas na parede chupava um outro de pé em sua frente que forçava a sua cabeça de encontro à parede cada vez com mais força. O rapaz ajoelhado se engasgava bastante no sexo oral, mas se mantinha ali incentivando o outro para movimentos mais fundos, até que se ouviu o barulho do vômito e do líquido escorrendo no chão. O que vomitou disse: “caralho, foi lá no fundo. Botei tudo

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Agradeço à professora Maria Elvira Díaz-Benítez por ter me chamado a atenção para este ponto.

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pra fora”. Ainda continuaram um pouco a interação até o rapaz que estava sendo chupado dizer: “vai lá no banheiro se limpar, cara”. O tom dos dois era calmo, sem alarde, nenhuma gafe tinha sido cometida, ninguém ao redor interrompeu suas ações mesmo com o barulho e o cheiro. O chão permaneceu sujo até o fim da festa e não afastou as outras interações no local. Há, de uma maneira inevitável, uma circulação e uma mistura de fluidos entre todos nesses eventos. Isso me foi chamado a atenção por um comentário solto por um dos participantes que veio até mim e disse: “olha que engraçado, eu fiquei com aquele cara que você viu ali no quarto. Só que agora no dark eu acabei de ver ele chupando um moreno pauzudo que eu peguei hoje logo quando cheguei, é como se todo mundo ficasse com todo mundo aqui”. O que eu passei a notar a partir desse comentário é essa “onda” específica possível num sexo grupal ou coletivo: a de chupar alguém já chupado ou mesmo chupar junto, compartilhando o mesmo membro, “comer um cu já largo ou aberto”, “dar para um pau que já comeu vários”, beijar uma boca que já passou ali por outras bocas e por partes de outros corpos, enfim, sentir no outro os outros, um cheiro, um molhado, um gosto, um compartilhar desses corpos quase fractais. Corpos que se sobrepõem ou que carregam fragmentos dentro da permutação dos encontros, como se nas interações ficassem não só os fluidos, mas partes, pedaços, restos dos outros. “Comer um cu que um cara interessante acabou de comer”, por exemplo, é compartilhar com aquele uma forma de relação ou aproximação. Beijar alguém que chupou um terceiro é, para alguns, como tê-lo chupado também. Relações, ou melhor, ligações que se formam a partir dessa circulação de fluidos e fragmentos corporais numa putaria. Claro que cada um cria as suas regras ali. Vejamos a questão do beijo, por exemplo. Ao que parece ele é tido, de maneira geral, como um ato que exige mais entrega ou intimidade do que todo o resto, “dou para vários todo arreganhado aqui, mas não consigo beijar ninguém, tenho nojinho... Quer dizer, até beijo alguns quando me dá muito tesão, mas é mais difícil”. A evitação do beijo se dá não só pela associação de uma relação afetuosa, mas também pela circulação de fluidos desses espaços, como eu disse anteriormente. Lembro de um rapaz que ao se aproximar de mim para me beijar na boca e

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eu afastar a cabeça, disse em meu ouvido: “ainda não chupei nenhum pau aqui não”, como que me assegurando, “pode beijar, tá tranquilo, estou limpo ainda”98. Há, portanto, aqueles que não beijam, que preferem beijar só quando o interesse é grande ou quando são tomados pelo tesão do momento e também aqueles que só interagem quando o outro está disposto ao beijo. “Eu detesto aquela postura tipo: me chupa aí que eu fico aqui pagando de gostosão e quando eu vou beijar ele vira a cara, fico com muito ódio”. Ódio também foi o que Bernardo me disse que sentiu em uma interação com um casal: “o mais gostoso dos dois estava me comendo, o outro, que era até mais bonitinho, ficava só mordendo meu peito. Estava ótimo, gozei e tal, aí baixei para chupar o cara e fazer ele gozar também. Deixei que ele leitasse minha cara, foi muito bom. Só que aí quando eu fui beijar ele, ele fez cara de nojo, riu e saiu! Nojo com a própria porra, imagina! Fiquei com tanto ódio! Só fiquei pensando no trabalho de tirar essa porra agarrada na minha barba pra nada”.

*** Como já aponta Vargas (2001: 539), Estar atento à “importância intrínseca” das técnicas corporais e às “numerosas e variadas possibilidades do corpo” humano implica, a meu ver, o desembaraço da alternativa entre abordagens que tendem, num polo, a reduzir o corpo a um organismo individual, sede de instintos, necessidades, funções ou pulsões que formariam a base ou a pauta da vida social e, no outro polo, a reduzi-lo a uma representação mental, quando não a um “suporte de símbolos” ou a um “portador de significados sociais”, como se o corpo, sendo também uma ideia, também fosse apenas uma ideia.

É por isso que o autor ressalta a importância de se incluir em pesquisas que se debruçam sobre a corporalidade e, “para além das questões em torno da produção social e dos imperativos biológicos, a questão que, como notaram Deleuze e Guattari (1995, vol.4: 98

Também na prática da prostituição existe o costume de que determinadas práticas sexuais ou partes do corpo sejam “preservadas” para relações que não estejam marcadas pela troca comercial. O beijo na boca acabou se tornando mais emblemático, mas também pode-se perceber o “dormir junto”, o “sexo anal”, o “beijo grego” ou “cunete” (no ânus), o sexo sem preservativo etc.

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39-47), é espinosista (mas de certa forma também colocada por Mauss): “o que pode um corpo?”. O que também significa se perguntar sobre “o que ele não pode” (op.cit). Quais são seus limites? Qual o mundo que cerca o corpo? Que conexões (ligações, encontros) se oferecem a ele? A pergunta “o que pode o corpo?” não é minha no sentido de que não sou eu que a está trazendo de fora. Ela é colocada a todo momento por esses homens em prática a cada ida nesses eventos, cada interação é uma oportunidade para se testar: “quais os meus limites? o que eu posso fazer? o que o outro pode fazer? até quanto eu ou ele aguenta?”. Seja numa questão quantitativa (de “quantos cus eu comi”, pra “quantos caras eu dei”, ou “quantas vezes eu gozei”), mas também qualitativa, de intensidade das interações, “até onde eu aguento nesse encontro?”, “mais forte ou mais calmo, mais rápido ou mais devagar?”, “está me machucando, mas permaneço aqui ou não?” , “qual o meu limite?”; “o que pode o meu (seu) corpo?”. Ela é feita até mesmo na perda da conta das interações realizadas durante a festa. Ou como Becker (2015) coloca: “Como as pessoas aprendem a definir seus estados interiores?” A questão aqui do autor é posta para pensar como alguém se torna um fumador de maconha e como uma pessoa é capturada para uma ideia de “desvios”, ou seja, “pessoas normais” que haviam passado por experiências diferentes que redefiniram seus gostos e estilos. No meu campo percebo como isso está presente de certa forma (aliado à ideia de experimentação e de intensidade das interações e da efervescência) pensando em práticas “novas”. Coisas que esses homens não fariam em outros contextos, encontram nas festas um espaço propício onde são ofertadas diversas práticas novas e diferentes, possibilitando a sua experimentação (mesmo que ela se restrinja aqui) e, a partir daí, podendo entrar em seu repertório de gostos ou então serem “curtidas” apenas nesses eventos: “dar o cu”, “beber porra”, sexo coletivo, a putaria… Como bem aponta Lima (2015, 113-114) vivemos acreditando que existe um limite pré-determinado para nosso corpo: “acredita-se que já sabemos o que pode um corpo. Existe sempre um especialista para determinar o que pode um corpo”. Só que o que algumas experiências intensivas (como drogas, música, bebidas, esportes radicais, sexo etc.) colocam são experimentações que empurram, contornam, atravessam, enfim, retraçam as linhas de

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nossos limites. “Todas as faculdades podem ser levadas a seu limite, através da potência de algum estado” (Perlongher, 2012). Um cuidado, já apontado anteriormente, é o do risco e perigo implícito nessas experimentações, já que “o que rompe, se rompe forte demais pode destruir tudo” (Perlongher, 2012). A questão é que não se sabe de antemão até onde se pode ir, “como se vai até o limite visto que ele não preexiste e precisa ser inventado, traçado?” (Lima, 2015, 114) O que os participantes das festas colocam em prática pelo princípio da putaria é essa experimentação intensiva de seus próprios limites. O corpo, nesse sentido, é sempre algo a se produzir, é da ordem da produção (Lins e Gadelha, 2002). Essas questões estabelecem toda uma politização do corpo, o corpo como arena política, o “corpo-muitos-corpos” a si, o corpo entre corpos, deslizando e resvalando, “entre dores e delícias” (Moriconi, 2007). Esses deslocamentos me parecem importantes na medida em que tentam levar em consideração aquilo que se passa e é produzido na interação desses homens, que “a problemática analítica colocada pelo tema sob investigação” (no nosso caso, as festas de orgia), dificilmente pode ser adequadamente equacionada, de um lado, sem que se considerem os processos de encorporação (sic) e de subjetivação articulados a tais consumos e, de outro, ao apreciar tais processos, sem que se questione a partilha e se evite considerar apenas um de seus lados, sem levar em conta o outro ou, mais precisamente, sem que se considere o que se passa entre eles, nas zonas intersticiais, isto é, lá onde o corpo é subjetivado e o sujeito é encorporado, onde o material se espiritualiza e o espírito se materializa, vale dizer, onde as distinções entre corpos e sujeitos humanos ou entre material e simbólico perdem toda a nitidez. (Vargas, 2001: 536).

Limites e fissuras Nossa aproximação com a ideia de (des)controle poderia começar pela questão do uso de algumas substâncias como o álcool e outras drogas. De maneira geral, pouco presenciei abertamente algum uso de drogas (exceto poppers) ou consumo exagerado de bebidas alcoólicas durante as festas. Ao mostrar minha surpresa para um dos meus interlocutores por não ter visto o consumo de álcool e drogas que esperava ver em um

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evento orgiástico, ele me respondeu: “As pessoas vão lá para curtir a putaria, se elas se entorpecem não vão aproveitar. Quando eu estou ali fodendo, eu não quero que nada atrapalhe a minha percepção e sensação do que eu estou fazendo.” Percebi que as bebidas são um recurso, um aditivo usado principalmente por “principiantes”. Aqueles que estão indo pelas primeiras vezes ou que ainda não se acostumaram com o ambiente das festas. Não costumam ser usadas por aqueles participantes mais frequentes99. Acredito que não só pela socialização das regras locais, como também pela absorção do jogo da putaria, onde é dito que o entorpecimento atrapalha mais do que ajuda. Para esses, “beber para se soltar” não é mais preciso ou necessário. Não há amarras a afrouxar, há os próprios limites a se testar, como numa autocompetição mesmo. Pude acompanhar a “primeira vez” de um desses novatos: chegou olhando tudo meio assombrado e logo parou em um dos bares para beber um pouco. Foi bebendo, bebendo, se tornando inconveniente e não conseguindo se misturar nas interações, ele mesmo tendo consciência disso. Foi para a área dos armários sozinho se recuperar. O organizador foi chamado e disse para ele: “então, eu vou falar para você fazer assim, sobe para o terraço e lá descansa um pouco, pega um pouco de ar, toma um refrigerante ou uma água e quando você estiver melhor, volta”. O rapaz subiu obedientemente. “Com gente sem noção a gente faz assim: manda para o terraço beber água”, disse o organizador gerando risadas entre os presentes e comentários avulsos de: “não sabe brincar”, “não sabe beber”, “se está assim com álcool, imagina se fossem drogas”. Em outra festa, percebi que se aglomeraram em um dos bares três homens de um grupo de amigos que também exageraram na bebida. Um mantinha a cabeça jogada para trás claramente passando mal, enquanto outro vomitava sentado com uma lixeira presa entre as pernas e o terceiro dormia estirado nu no sofá roncando bem alto. O organizador me explicou: “chegaram em galera, não estão acostumados com a festa... Eu costumo colocar logo pra fora quando fazem isso. Hoje tô de bom humor. Coloquei eles ali de castigo para não atrapalharem”. 99

Com excessão da “Orgia em Alto Mar”, um evento realizado pelos organizadores da Festa do Vale Tudo, quando um barco é alugado para um passeio pela Baía de Guanabara e algumas de suas ilhas mais desertas. O evento se diferencia pela comida e bebida que é servida livre durante o passeio e que é consumida em excesso. Porém, esse evento tem um clima muito mais de confraternização entre os habituais frequentadores da festa (o que não impede nem desestimula as interações eróticas).

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Sobre as substâncias utilizadas, o que pude encontrar abertamente durante o trabalho de campo é o uso de Viagra ou Pramil e poppers (substância que tem efeito semelhante a lança-perfume e loló) que funcionam mais como aditivos sexuais para melhorar a performance do que para “dar onda” necessariamente100. É claro que existe o uso de outras drogas nas festas. Os organizadores me disseram ser normal encontrar papelotes e saquinhos de cocaína nos banheiros e também já tiveram que expulsar pessoas, seja porque estavam alcoolizadas ou porque ficaram agressivas sob o efeito de alguma substância e que acabaram por incomodar e atrapalhar as outras; ou ainda porque alguém da festa denunciou o uso101. Mais uma vez um dos organizadores usou o microfone durante o show para dar uma bronca nos participantes: “Eu não quero saber de gente se drogando na festa! Não permitimos isso! Você quer usar alguma coisa, usa fora daqui. Não quero saber de gente fumando maconha no terraço nem cheirando o caralho aqui… Quer dizer, cheirar caralho pode, vai cheirar um bom pau que já dá maior onda, vai cheirar cu também. Estamos entendidos?”

E logo depois da fala Ivan veio comentar comigo: “Ué, não pode fumar um lá em cima, não? Ih, bom saber, achei que podia, aliás sempre fumei aqui, é de lei, sempre tem gente lá fazendo isso. Devem ter caguetado, então…”. Ainda que o álcool e as drogas possam funcionar como catalisadores de uma “jogação”, de uma intensidade ou de uma “onda” maior e mais potente na putaria das orgias, seu uso (ou excesso) não é bem visto e mesmo proibido pelos organizadores desses eventos. O que parece haver, portanto, é um acordo

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O poppers, por exemplo, contribui para o relaxamento muscular facilitando a penetração. Ainda que os organizadores afirmem não ter funcionários suficientes para vigiarem e controlarem tudo aquilo que é feito durante as festas, alguns deles me confidenciaram que clientes mais antigos ou amigos que costumam frequentar a festa acabam funcionando como “olheiros” ou “seguranças” daquilo que acontece nas interações. Se esses informantes presenciam algum uso de drogas, furtos, brigas ou comportamento inadequado para o espaço rapidamente repassam a informação para os organizadores que tomam devidas providências, como a expulsão de clientes ou a proibição do mesmo em festas futuras. 101

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implícito (mas não necessariamente respeitado) no controle do corpo relativo ao uso de substâncias102. *** Como afirmei anteriormente, o controle de si e a imersão nesses estados de êxtase intensivo é um jogo de tensão erótica que atravessa todas as festas e é um dos fatores de atração desses eventos. A fruição da putaria na orgia exige um mergulho intensivo, que algumas amarras sejam deixadas para trás e alguns limites sejam ultrapassados, um certo auto abandono e dissolução. O “acontecimento-limite” é a todo momento colocado à prova. Porém, como me alertou um dos interlocutores, “é preciso saber parar”: Igual agora há pouco. Estava ali no “aquário” onde fui chupado por dois, mais dois nos meus peitos e um outro me beijando...suando muito num quarto quente, abafado e cheio de homem! Quando um desses que estava chupando se levantou, virou a bunda e queria que eu comesse ele. Cara, pra mim não dava mais. Agradeci, dei um beijinho e saí. Não era nem porque não estivesse curtindo, mas porque eu precisava de uma pausa, entende? Respirar um pouco, pegar um ar antes de algo mais forte. Até para sair dali foi tenso, um monte de gente junta e suada, escorregando, um monte de mão tentando me pegar, segurando meu pau. To meio tonto até agora, olha como estou, parece que acabei de fazer uma corrida! Não, é muito gostoso,

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Queria dizer ainda duas coisas sobre a questão da presença de substâncias. A primeira é que seu uso tem um peso completamente diferente das festas que pude visitar na cena europeia. Ali elas são muito mais comuns e sua utilização “explanada”, ou seja, não se procura fazer uso escondido como nas festas pesquisadas no Rio. A oferta vai desde a onipresença dos poppers e da clássica cocaína (cujo pó costuma ser tanto inalado quanto passado na região do ânus para função anestésica), passando pelo ecstasy e ácido, até as mais jovens MDMA, cristal e GHB. Essas últimas são mais populares, já que podem ser diluídas nas bebidas ou na água, carregadas sempre consigo para efeitos prolongados, ou então armazenadas em vidros de conta-gotas. Nada incomum passar pelos vestiários dessas festas e ver um grupo de amigos ou conhecidos reunidos com um deles pingando as gotas nas bocas abertas das pessoas em círculo. Uma segunda questão é que começam a aparecer eventos organizados para a prática do “chem sex” (algo como sexo químico). São pessoas que se reúnem para “sessões” de sexo de longa duração sob o efeito dessas mesmas substâncias químicas, algo como “raves sexuais”. A prática, que se iniciou nas cidades de Londres e Madrid, mas que, pelo que pude observar, também presente em Lisboa e mesmo começando a chegar em São Paulo é combinada, em sua maioria, via aplicativos de celular por participantes que se identificam a partir da #chemsex em seus perfis. Esses eventos se diferenciariam das festas de orgia pesquisadas não só por não apresentarem uma organização de espaços comerciais voltadas para esses eventos e sim serem feitas em âmbitos mais privados, como também pela obrigatoriedade do uso das substâncias.

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mas chega uma hora que você precisa saber parar, dar uma pausa pra descansar.

O que ele está me dizendo é que é preciso, ou pelo menos mais “seguro”, manter um certo controle e consciência de seus limites para que a intensidade não seja grande demais para você. Só que nem sempre se consegue fazer isso. Um dos shows teve como tema a prática do gang bang, um dos participantes se apresentaria no show como se auto desafiando a ser passivo com o número máximo de ativos que aguentasse. Era um rapaz branco, cabelo e barba rala pretos, mais ou menos da minha idade, de altura baixa e o corpo definido. Chegou ao palco com os atores usando óculos escuros e vestindo uns meiões pretos de renda fina e uma cueca que logo foi retirada para a interação com os dois atores no palco. Os óculos permaneceram até o final, mas as meias ficaram rasgadas em alguns pontos. Após ter atuado como passivo para os atores no palco, o organizador passou a incentivar a plateia para que viesse “comer o garoto também”. Um “tatame” foi colocado no chão entre a plateia, que foi se aproximando aos poucos colocando o rapaz no centro do círculo da multidão. As luzes baixaram em pontos vermelhos e foi dito ao microfone: “o desafio do passivo começou! Vamos ver quanto ele aguenta!”. A cada um que se aproximava para penetrá-lo, o rapaz tinha o cuidado e a atenção de colocar a mão no pênis do outro para conferir se o mesmo estava usando preservativo, mesmo que estivesse de costas, e só então permitia que o outro o penetrasse. A cena foi tomando uma intensidade grande, o rapaz já estava bastante suado e não paravam de se aproximar homens para se revezar na penetração, para tocá-lo, para colocá-lo para chupar e aos poucos fui percebendo que o gesto verificador do preservativo já começava a ser esquecido até o momento em que definitivamente não era mais feito. O rapaz não mais conseguia, não lembrava, não queria ou mesmo deixou de se importar. Ele nem mais conseguia se voltar para olhar quem o penetrava. Afastei-me da cena quando o número de penetrações já tinha chegado a 15 e com o apagar das luzes não conseguia acompanhar mais com atenção. Portanto, ainda que o rapaz tenha tido o cuidado e a preocupação inicial de conferir se aqueles que o penetravam estavam devidamente com camisinha, a intensidade da interação fez com que ele perdesse o limite do controle, mesmo permanecendo na interação. A intensidade da efervescência também pode (se) romper com a questão da violência e a dor. As “fissuras” são acontecimentos recorrentes nesses eventos. Tomemos

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como exemplo uma cena que presenciei em que um rapaz magro, loiro, com uma aparência bem jovem, de um tipo que chamam aqui de “twink” estava no centro de uma roda de cinco homens com um tipo físico e tamanho bem maiores do que a dele. A cena funcionava como uma encenação de “curra”: o rapaz era meio que jogado de um para outro com uma certa violência, era puxado pelos cabelos para se abaixar e chupar um deles ou então para se dobrar e ser penetrado com movimentos fortes. Ouviam-se alguns tapas, cuspes e palavras de humilhação: o rapaz dizia “não, não, não…” sem muita força e com um certo sorriso no rosto, o que divertia e incentivava a roda a intensificarem a interação. Até que em determinado momento ouviu-se um “Porra, me machucou!” vindo do rapaz, dito de maneira mais alta e em um tom diferente dos “nãos” anteriores. Imediatamente a cena cessa e todos ao seu redor erguem a mão como num jogo de futebol em que é apitada uma falta. Algo feito ali tinha ultrapassado o limite de um jogo de dor prazerosa, para uma dor insuportável, passou-se o limite do “twink”. A “fissura” ocasionada por um ato que eu não consegui perceber qual foi quebrou o pacto da cena, dando um fim a ela e o rapaz saiu de dentro da roda, empurrando alguns em seu caminho, claramente aborrecido e desfazendo a aglomeração que tinha se formado. Outro exemplo foi quando, no dark, reparei em um casal que se agarrava numa interação bem intensa e um pouco agressiva. O que atuava como ativo naquele momento colocava o outro para chupá-lo com força, o fazia engasgar de propósito e dava tapas no rosto e na bunda do outro. O outro parecia gostar e estimulava pedindo mais e com mais força. Até que, ao levantar, começou a distribuir mordidas pelo corpo do ativo, que foi deixando a princípio, mesmo que suas feições demonstrassem uma certa dor, mas quando chegou na área do pescoço empurrou o outro com uma certa força: “para, no pescoço não!”. O limite aqui sendo alcançado não só pela dor, mas também pela possibilidade de que uma marca no pescoço revelasse algo que o ativo não desejasse. Após essa quebra, a interação não voltou mais a funcionar direito, o ativo brochou e logo se afastou do outro. Vi os dois retomando a interação minutos depois, mas claramente não era a mesma empolgação e de novo não durou muito, mesmo com um certo esforço do outro. O que é insuportável não é o mesmo para cada um, nem a mesma coisa em todas as interações. Varia com a intensidade da efervescência dos encontros, com a disposição de cada um e com o “talento” do puto em saber manipular os limites, os seus e os dos outros. 207

As práticas aqui são intensas no sentido de que são feitas para causar emoção, afetações, experimentações, que proporcionem uma “ressonância carnal” (Paasonen, 2011). A violência cumpre um papel importante ao compor esses desejos dos participantes103. Nesses eventos a violência é um elemento potente que ao ser acionado nas práticas realizadas demonstra uma capacidade erótica em potencializar sua intensidade104. O elemento que se convencionou como principal critério para a separação entre o ato permitido e o abusivo (ou mesmo como legal e legítimo) é o “consentimento”. Elemento que se tornou fundamental como ferramenta de legitimação de determinadas práticas sexuais como o BDSM, por exemplo (Zilli, 2007; Díaz-Benítez, 2012; Facchini e Rossetti, 2013); daí a sigla que se convencionou chamar SSC (são, seguro e consentido). Não haveria nenhum tipo de abuso ou violência sexual, já que se tratariam de práticas seguras onde todos ali participam conscientes e consensualmente. Só que, como problematiza Lowekron, a ideia de consentimento é herdada de um determinado paradigma liberal, “nos princípios de livre disposição de si e autonomia da vontade do sujeito racional responsável e senhor de si (...) no ideal individualista moderno” (2012, 35). A própria autora mostra como a categoria “polissêmica e escorregadia” de “vulnerabilidade” é capaz de dissolver o valor atribuído ao consentimento (2013). Essa “autonomia da vontade” é relativizada pelo fato de que nem todos possuiriam a capacidade ou estariam numa mesma posição de vantagem onde o poder de consentir, de fazer escolhas ou, enfim, de ter agência, seja dado de forma igualitária. Não se pode fechar os olhos também para o fato de que muito da erotização do outro nesses eventos de orgia implica ou mesmo depende de uma desigualdade. As questões raciais principalmente são muito reveladoras disso, como já vimos no primeiro capítulo, mas outros recortes e fatores também interseccionam e atravessam as relações aqui a partir de alguns jogos de poder. Muitos dos desejos que são percebidos nessas festas 103

O debate sobre as relações entre violência e erotismo não são novas. Vem desde as reflexões de Bataille de um ponto de vista filosófico e ganham força nas ciências sociais a partir dos anos 1980 com os trabalhos de feministas como Vance (1984), Califia (1994) e Rubin (2011). No Brasil, pesquisadoras como Gregori (2003, 2004, 2010), Facchini (2008) e Díaz-Benítez (2015) também trazem em diversos trabalhos importantes contribuições ao debate. 104 A própria ideia de que práticas de violência podem ser erotizadas e a encenação consensual que simule algo não consentido, como na cena de “curra” com o twink narrada mais acima, é indicativo disso.

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revelam que as mesmas diferenças que operam no plano do abuso também podem operar no plano do prazer. Trata-se de um desejo naquilo que tensiona as diferenças, as hierarquias e algumas posições sociais. Como mostrei acima, esse jogo erótico de tensão pode se romper nas “fissuras” que invariavelmente acontecem durante as interações. Mas o que se percebe é que mesmo elas precisam ser silenciadas para que os princípios não se desestabilizem105. Afinal, um macho tem que saber aguentar e ter disposição numa putaria. Ficar reclamando que está doendo, fugir do desafio, não “aguentar a pressão”, é mostrar uma fragilidade ou uma vulnerabilidade que não combinam com os princípios de um tipo de orgia onde “vale tudo” numa putaria entre machos.

Prazer e risco Para além da relação entre prazer e violência nesses eventos, que podem tornar a fronteira para a agressão e o abuso um pouco nebulosas, outro ponto importante é sobre o prazer e o risco, principalmente naquilo que se refere ao cuidado com as doenças e a contaminação. “Se jogar” na putaria é, de certa forma, um “empreendimento de risco”, tal como conceitua Gregori, um evento onde “o risco à integridade física e moral das pessoas é uma possibilidade aberta e não dada de antemão” (2010, 4). E onde a própria ideia de um perigo imprevisível torna-se atrativa e com alto potencial erótico. Não foram poucas as vezes em que pude observar pessoas interagindo sem camisinha ou em que ouvi comentários dos participantes como: “as pessoas aqui são muito loucas, todo mundo transando sem camisinha! Porra, não é porque você tá numa putaria que precisa fazer isso. Nem é só pela Aids, é por um monte de coisa, pela sujeira mesmo, vai ficar enfiando o pau em qualquer cu?”. Transar sem o preservativo não seria uma ação motivada pela falta do mesmo, já que em todas as festas acompanhadas tanto camisinhas quanto gel lubrificante foram distribuídos ou então espalhados pela casa em grande quantidade. Cara, a gente costuma receber uma certa quantidade do Ministério da Saúde ou de alguma ONG e eu ainda faço questão de comprar mais com dinheiro 105

Agradeço a professora Laura Lowenkron por ter me chamado a atenção para esse ponto.

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do meu próprio bolso. Mas vou te dizer, do que eu vejo acontecendo nas minhas festas e do que sobra de camisinha no final, só uns 30% devem usar mesmo. Claro que tem aqueles que já trazem camisinha e gel de casa, já vêm preparados, gostam de um determinado tipo ou marca e tal. As que eu tenho são aquelas de posto, pessoal reclama... Mas mesmo assim, eu vejo porque sou eu que ajudo a limpar tudo no final, né? (organizador)

Ou como me resumiu outro organizador: “não sou fiscal de foda de ninguém, sei que tem bareback (sexo sem camisinha), mas meu papel eu faço, forneço o kit-foda”. Segundo os organizadores, portanto, seria da responsabilidade de cada um o cuidado de si mesmo, não são “babá de homem grande”, “até porque todo mundo sabe que vários soropositivos frequentam a festa”. Ser soropositivo aqui é muito mais tido como uma categoria de acusação (principalmente daqueles que “se jogam” mais) do que uma condição que seja assumida de forma aberta e pública. Mas, certa vez, presenciei uma exceção: numa roda de conversa com uns dez homens na área dos armários ao final de uma festa onde o tema debatido era a PrEP106 e um dos presentes se pronunciou: “eu acho ótimo! Principalmente para mim que sou soropositivo”. A informação foi recebida com um silêncio constrangedor ao que ele continuou: “mais alguém aqui é? (novo silêncio) Claro que tem mais, só que ninguém tem coragem pra falar isso, né?”. Um dos fatores mais práticos para se deixar o preservativo de lado me foi apontado por um participante: “como é que eu vou carregar camisinha e gel pelado desse jeito? A galera aqui guarda dentro da cueca ou então colocam dentro da meia, até já vi gente com uma bolsinha pendurada no pescoço tipo aquelas pra carregar documento e dinheiro no Carnaval, sabe? Acho desconfortável”.

106

A profilaxia pré-exposição ao HIV (PrEP) é uma estratégia de prevenção que envolve a utilização diária de um medicamento antirretroviral (ARV), cuja marca mais famosa é o Truvada, por pessoas não infectadas, para reduzir o risco de aquisição do HIV através de relações sexuais. No Brasil, a utilização do remédio ainda se encontra na fase de testes e por um tempo, durante o trabalho de campo, percebi um cartaz da Fiocruz na recepção de uma das festas convidando interessados a participarem de testes e pesquisas referentes à aplicação do remédio. Em alguns países da Europa, pude perceber como o Truvada está totalmente incorporado ao cotidiano de algumas pessoas que já dispensam o uso do preservativo em suas relações mesmo que seja em encontros casuais. Não são todos os países que distribuem gratuitamente o remédio e em alguns lugares ele pode alcançar um preço bastante alto, mas principalmente em festas visitadas em Londres, Amsterdã e Berlim, o não uso do preservativo era justificado pelo fato de tomarem o Truvada.

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Imagina, você está naquela coisa intensa no banheiro que fica em uma das pontas da sauna. Aí para pegar camisinha você tem que ir lá na recepção que fica lá do outro lado da sauna. Você vai conseguir interromper, pausar, descer até o seu armário ou então na recepção, pegar os apetrechos, voltar e continuar de onde parou? Ou então pensando que você tá no meio de uma galera como é aqui. Não tem como... Você consegue?

Para além de uma “dificuldade logística” e de interrupção da intensidade do momento da interação para se procurar e colocar a camisinha, o que percebo ser elaborado na decisão do uso ou não do preservativo é a construção do que Pelúcio, em sua pesquisa sobre a prevenção de doenças na prostituição travesti, chama de uma “hierarquia de riscos” (2009). Um exemplo clássico é aquele referente às posições durante o ato sexual, da exigência da camisinha se você for atuar como passivo naquela interação, mas a não obrigatoriedade se você for o ativo, “só coloco se pedem, senão vai sem mesmo”. Esse pensamento seria justificado pela ideia de que é só quando você esta sendo passivo é que tem mais chance de se contaminar com alguma coisa. Ou de como após uma interação sem o preservativo que eu acompanhei, aquele que estava sendo o passivo se virou e disse para o outro: “nossa, que loucura! A gente nem chegou a usar nada!” e o outro respondeu: “Pode ficar tranquilo, eu sou casado”. Como se o fato de estar casado o fizesse uma pessoa com menos perigo de contaminação, mais pura. Esta hierarquia relaciona-se com a classificação do parceiro(a) como alguém conhecido/familiar e desconhecido/estranho, e as associações que daí advêm: confiança, segurança versus perigo e risco respectivamente. No cômputo da elaboração dessa escala hierárquica entram, ainda, as práticas eróticas e que posição se assume nelas. O ativo/penetrador/emissor, tanto na penetração anal ou oral, vê seus riscos diminuídos. Enquanto o(a) parceiro(a) passivo/penetrado/receptor se arrisca consideravelmente. E aí entra

todo

o

simbolismo,

não



dos

significados

da

cadeia

passivo/penetrado/receptor associado ao desvio, ao perigo e ao impuro, como também as representações acerca dos fluidos corporais (op.cit, 174175).

A ideia das práticas e dos “prazeres perigosos” é preciso ser olhada com mais atenção. O “se jogar”, se arriscar, ou se colocar numa situação de potencial perigo 211

principalmente naqueles relativos a algum tipo de contaminação não acontece por algum desconhecimento ou falta de informações técnicas sobre formas de contágio. Nem mesmo uma “atitude rebelde” de desobediência ao controle médico dos “poros e das paixões” (Perlongher, 1985). O que eu percebo é a elaboração de um conhecimento outro, próprio, que usa de vários elementos, sejam eles vindos do saber médico, do cotidiano, e/ou de experimentações próprias. O que há ali é uma “ciência do concreto”, a elaboração de um saber construído e posto em prática (nem por isso menos “científico”) sobre o que é risco, o que é perigoso, sobre formas de contaminação e maneiras e técnicas para evitá-las107. Se expor ou não a algo é um “cálculo infinitesimal” feito a partir do prazer que se sente, da intensidade da interação e do que se percebe como riscos menores ou maiores. Tomemos um exemplo para que fique mais claro, o do sexo oral: durante todo o trabalho de campo nunca observei alguém fazer sexo oral usando preservativo; ainda que essa seja uma recomendação médica, sabe-se que a possibilidade de contaminação por esse ato é muito pequena. Uma quantidade muito pequena de risco principalmente diante da quantidade de prazer que causa. Isso não quer dizer que não haja várias técnicas. Ainda no exemplo do sexo oral sem preservativo vários conhecimentos são compartilhados: você precisa observar se o pau é muito “babão” (ou seja, se ele libera muito líquido seminal); se sim, você pode guardar o líquido na boca e cuspir de tempos em tempos, evitando engolir a “baba”. É melhor evitar a ejaculação direto na boca, se não conseguir evitar, uma opção é que o esperma seja imediatamente cuspido; se não quiser ou não conseguir cuspir, então que ele seja engolido rapidamente (“o ácido do estômago mata todos os vírus, é mais fácil se contaminar na boca que no estômago”); lavar a boca com enxaguante bucal depois é outro cuidado para se diminuir os riscos de alguma contaminação. Contrário a esse “ensinamento”, certa vez ouvi no banheiro: “se você fez sexo oral eu não indicaria fazer isso (usar o enxaguante bucal). Listerine tem ácido e pode machucar”. Trata-se de um conjunto de conhecimentos, receitas pessoais e uma determinada medicina particular criada e compartilhada pelas pessoas ali. Há toda uma ideia do que se pode ou não fazer, do que 107

Em “O Pensamento Selvagem” (1989), Lévi-Strauss argumenta contra a ideia de que os povos indígenas tenham algum tipo de lógica ou pensamento menos racional que a dos europeus e chamou o pensamento elaborado pelos nativos de “ciência do concreto”. O autor argumenta que havia ordem e método no que a princípio poderia ser classificado como associações caóticas entre elementos da natureza como plantas e animais e sua relação com instituições sociais. “Eram o resultado não da falta de razão, mas, em certo sentido, de seu excesso”.

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pega ou não pega, do que é risco ou não, enfim, uma profilaxia própria. Não é só a hierarquização de riscos, é uma elaboração própria de conhecimento, tal como uma “ciência do concreto”. Outro exemplo é o da própria penetração anal: deve-se primeiro reparar no pênis e evitar os “paus babões”. Se a interação estiver caminhando para o não uso do preservativo, começa-se colocando o pênis aos poucos: “vou só brincar, só colocar a cabecinha, só mais um pouco”. O uso de bastante gel ou saliva para evitar o atrito é recomendado. Se a penetração sem a camisinha ocorrer de fato, que se evite os movimentos bruscos ou uma penetração mais agressiva, “assim você não rompe vaso nenhum, não se machuca, mas é preciso estar bem relaxado e nunca, nunca, deixe gozar dentro, porque esse é que é o perigo todo, sempre fora”. Percebe-se toda uma gradação de riscos em que uma série de cálculos deve ser feita para dosar o que é mais ou menos perigoso aliado ao quanto de prazer pode ou não proporcionar. Assim são decididos e negociados os usos de preservativos, o contato com o esperma, as práticas sexuais em geral. “Qual o perigo de pegar alguma coisa com isso? Qual o prazer que me proporciona? O quanto estou disposto?”; são perguntas feitas a todo momento, a cada nova interação e a cada nível de intensidade das práticas. Além disso, outros fatores são agenciados nesses cálculos como a apresentação corporal do outro, cheiros, toques, cor, idade etc. Você pode estar mais disposto a determinadas práticas com uma pessoa que com outra levando esses fatores em consideração, aqueles que, por inúmeras razões, podem “te passar mais confiança”.

Os caras escolhem com quem vão transar sem camisinha. Olham um cara gato, corpão, com aparência saudável, tranquilo, imaginam que uma pessoa daquela não deve ter nada. O cuidado vai aparecer naqueles que eles acham que estão mal cuidados, magros demais, com aparência de doentes ou que sejam muito putos que devem transar com um número muito grande de pessoas e não se cuidam e tal…

Claro que a erotização dos riscos é algo que aparece, que não é necessariamente o mesmo de algum desejo ou procura pela morte, mas sim de eventos ou situações que envolvem um risco “tornando a própria vida parte integrante do jogo que se quer jogar”

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(Rocha, 2011, 63). Se assemelha ao que os praticantes de esportes radicais pesquisados por Verônica Rocha colocam como uma tensão que traz um sentido à vida que se quer viver: colocar a vida em risco e “brincar” com ela não é de forma alguma procurar a morte, mas sim intensificá-la, o risco e o perigo libertando de uma “morte em vida”. O desejo de estímulos sensoriais que proporcionem um modo de vida “original”, “grandioso”, “prazeroso”, “ativo” e “excitante” (op.cit., 78). Não que a opção mais extrema pelo perigo também não possa ser tomada. A prática sexual bareback e seus riscos implícitos também é muito desejada nesses espaços108. Durante o trabalho de campo foi possível perceber a organização de várias outras festas paralelas que se colocam como exclusivamente de prática bareback , e também de eventos de “roleta russa” ou mesmo de “festas de conversão”, onde sabe-se da presença de soropositivos e joga-se com uma situação de possível contaminação. São festas diferentes (e mais específicas) daquelas que pesquisei, mas que, de certa forma, também as atravessam, com participantes que frequentam ambas109. Mas mesmo nas festas de orgia é possível ver práticas onde se deixa “gozar dentro”, “engolir o gozo”, “tomar o leite”, “espalhar ele pelo corpo” ou mesmo de relatos de participantes que recolhiam camisinhas usadas do chão dessas festas para tomarem o gozo ou se banharem. Lembro da minha surpresa ao ver um interlocutor conhecido saindo do meio de uma aglomeração no dark se aproximar de mim e pegar minha mão para passar na perna dele e dizendo sorrindo: “é porra seca. Tô todo colado. Acho que uns dois gozaram dentro”, levou a minha mão a seu ânus e disse: “sente, coloca a mão aqui para você ver como ela está escorrendo”. Por ser uma pessoa com a qual estabeleci um contato maior não pude evitar a reprodução de um discurso normalizador e de cuidado com a saúde, ao que fui rebatido com um “tenho o meu direito a me foder se eu quiser”, para o qual não tive resposta. Meu choque vinha de uma dificuldade inicial de entender (ou aceitar) que também se pode optar pelo risco, por um caminho perigoso em prol de outra coisa, daquilo que se acredita que seja o melhor. Esse direito se relaciona com

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Sobre a prática barebacking, conferir artigo de Garcia (2009) que problematiza a origem do termo e busca trazer algum entendimento sobre esse desejo dentro de um contexto maior de políticas de saúde e do que o autor chama de “terrorismo biológico”. Outras aproximações do tema foram feitas por Oliveira Machado (2013) e Felberg (2015). 109 Por suas especificidades essas festas mereceriam um estudo particular e uma análise muito mais profunda da que eu posso apresentar aqui.

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o que eles chamam de “ligar o foda-se” se jogando perdidamente no intensivo, no excesso, em uma linha de abolição. Na tensão entre prazer e risco, os elementos do consentimento e da responsabilidade voltam com força, seja para consigo mesmo e/ou também com o outro. O que meus interlocutores apontam é que mesmo os riscos também precisam ser consentidos:

“Cara, eu vi gente ali que nem via quem metia nelas, ainda mais se estavam com camisinha ou se aquela camisinha estava sendo usada em outro. Saía um, outro ocupava o lugar e o cara nem aí”

“Eu acho que o outro tem que ter caráter, uma coisa é o cara avisar pra você: ‘Olha, eu sou soropositivo. Você quer fazer com ou sem camisinha?’ Ou mesmo que ele não tenha nada, tem que acordar antes! Se o cara tenta sem perguntar, eu fico desconfiado e não transo mais com a pessoa”

“Se você tá chupando o cara, ele tem que te avisar que vai gozar antes, isso pra mim é muito básico. Pra você se preparar, pra poder decidir se deixa ou não. E se eu não quero? E se eu não gosto de porra? E mesmo que eu goste, quem disse que eu vou querer engolir a tua? Eu fico muito puto quando o cara acha que pode gozar. A mesma coisa de querer gozar no rosto ou no cu e, principalmente essa coisa de camisinha, é “de bom tom” pedir antes, não tô falando nem de educação não, por uma coisa meio de ética também, sabe? Como é, já vai sair gozando ou metendo assim?”

No limite, portanto, a decisão de fazer “com capa” ou “no pelo” e do contato mais direto com o esperma do outro deve ser acordada consensualmente. Porém, durante o trabalho de campo repercutiu uma notícia nos meios midiáticos relacionada ao que ficou conhecido como “Clube do Carimbo”. A polêmica que se iniciou a partir de um blog da internet e já bastante comentado nas festas, ganhou repercussão após algumas matérias de tom sensacionalista no programa dominical “Fantástico”, da Rede Globo. O blog trata do compartilhamento de textos, fotos e vídeos sobre a prática bareback e incentivando que pessoas soropositivas transmitam o vírus (que “carimbem”) de propósito a outras, a partir

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de técnicas como furando a camisinha antes do ato ou retirando o preservativo durante o sexo sem que o parceiro perceba110. A intencionalidade da contaminação retirando o poder de consentimento do outro fez com que durante alguns meses esse fosse o tópico de debate durante algumas conversas na festa. Muitos pesquisadores da área relativa à saúde se pronunciaram para desmistificarem alguns sensos comuns sobre a ideia de contaminação colocados ali e do risco de que essa midiatização sensacionalista gerasse um “pânico moral” (Rubin, 1998) e uma perseguição para as pessoas que convivem com o HIV e com aqueles que, costumeiramente, são associados à doença: homossexuais, transgêneros e profissionais do sexo. Nas festas, a ideia de uma contaminação intencional pairou como um fantasma por alguns meses, às vezes sendo ironizada e tratada na chave do riso como maneira de exorcizá-la, mas nem por isso deixada de ser levada a sério: “eu, por via das dúvidas, prefiro usar a minha camisinha e sempre confiro com a mão pra sentir se o cara tá usando mesmo. Já fazia isso antes dessa história, mas agora redobro minha atenção, porque têm mesmo alguns caras que tiram no meio, isso eu já vi acontecer, é muito escroto”. Não quero afirmar que toda prática bareback tenha a intencionalidade de uma contaminação, ou de que o sexo sem camisinha seja uma questão de abuso e muito menos que o espaço das festas sejam “antros de doenças e contaminação”. Essa seria uma associação injusta e inconsequente111. Um dos participantes da festa, por exemplo, possui um blog bastante visitado e comentado pelos outros frequentadores, onde compartilha postagens de fotos e vídeos pessoais sobre a prática que é chamada de sexo “pig” (fetiches que envolveriam humilhação, excrementos, vômitos, fisting, o não uso de preservativo, peidos, dentre outros). Trago um trecho de uma de suas postagens no blog, em que em um imenso “texto desabafo” ele se defende de críticas ao conteúdo de suas postagens:

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Dentro do blog percebe-se todo um uso de termos, gírias e símbolos próprios para a prática. O reconhecimento de alguns, por exemplo, por uma tatuagem com o símbolo de “risco biológico”. 111 Até porque a prática do sexo sem camisinha pode adquirir sentidos diferentes a depender do contexto. A decisão de não se usar preservativo nas relações amorosas (tanto hetero quanto homossexuais) podendo significar, por exemplo, um voto de confiança e um passo maior de intimidade entre o casal. Ou mesmo na prática da prostituição em que o uso do preservativo é associado à dinâmica do programa e ausente nas relações de contexto amoroso. Interessante perceber como o termo bareback se prendeu ao contexto das relações sexuais entre homens e sempre atravessado pelo debate da contaminação.

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O propósito do meu projeto na net é o de única e exclusivamente levar entretenimento adulto diferenciado aos meus leitores, falar do sujo, do insano, do “imoral”, o que a sociedade descarta, por julgar inapropriado, como a bosta, o mijo, o catarro, a submissão (consensual). Nada que você vê no meu site é forçado. Tudo é feito de forma consensual, inclusive, hoje, nem busco mais parceiros para fodas, eles é quem me procuram no falecom do meu site. Tenho recebido centenas de pedidos de putas querendo ser usadas, esculachadas, dispostas até a arriscarem seus “casamentos”, suas carreiras profissionais, em nome de um momento de libertação. Sim, um momento em que não existe o pudor social, o peso na consciência por comer um sebo, por lamber um cu cagado, ou por gostar de um tapa na fuça sendo lembrado sua condição “subconsciente” de capacho. (…) Tenho exercido, muitas vezes, nos meus portais twitter, email, skype, o papel de mediador de conflitos. Já ajudei muitos pais de família, muitos héteros frustados, muitos caras desesperados, que realmente sofriam apenas querendo ser ouvidos, querendo alguém que não os apontasse o dedo, não os julgassem pelo seu desejo reprimido de ser… “SUBMISSO”. Quantos caras insistiram em fodas sujas, em merda, em esculachos e fiz entender que não era isso o que eles buscavam, de verdade, mas uma compreensão do seu redor e da sua mente. Às vezes, uma palavra amiga, ou “você é normal” vale mais que dezenas de leitadas no cu. (…) Foi duro chegar até aqui, trabalhei 10 anos no escuro, tive 4 blogs fechados por censura, 9 perfis do facebook excluídos por suposta “violação de regras”. Aí te pergunto: Será que violo regras, ou só me banem porque falo e divulgo o sexo PIG??? Um mamilo meu agride mais essa rede social citada (facebook) que centenas de rabos arreganhados com a frase: “Quem apaga meu fogo hoje”. Desisti de entender aquilo e simplesmente me retirei do mesmo, não tendo mais perfil ali, por entender que,o que rege aquela plataforma é o mesmo senso que rege quem me persegue e me acusa de alien, de doente, de extra-terrestre: A HIPOCRISIA!!!!!!!!!Não minto, não agrido, não induzo, não subverto valores. NÃO INFRINJO LEIS. Simplesmente sou requisitado e desejado por tantos, pela necessidade que se tem hoje da auto afirmação. E O DIREITO DE SE FAZER O QUE GOSTA. Sou tachado de homofóbico, de precursor da disseminação do HIV no Brasil, de doente mental, de alguém que não aceita

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a sua condição sexual de sentir desejo por homens. Porém, o que poucos não sabem é que sou muito convicto dos meus valores, sei bem o que sou, o que represento, o que me limita, o que quero e o que não quero em cima e fora de uma cama. (…) Minha luta é pela liberdade de imprensa, é pelo fim da hipocrisia, pelo direito de se tirar a roupa e decidir: Com capa, ou sem capa?? Afinal, é a sua vida. E só a você ela importa. Ninguém é enganado, ninguém desconhece os riscos e prazeres que um sexo sem proteção pode causar, e suas consequências, muitas vezes irreversíveis. Mas volto a dizer: É a sua vida. Cada um tem a sua, para que se respeite decisões, espaços, limites, vontades. Meu papel é mostrar as pessoas que pode-se sentir prazer pelo sujo, sem ser prognosticado como “anormal”. Sim, você pode beber urina e ter amigos, falar de futebol. Sim, você pode dar a bunda, tomar um tapa, ser chamado de “puta” e descer da cama e ter o respeito como o “homem” que tu é, fora dela. Enfim, fica o meu reforço de que não sou “Discursador de Ódio” contra homossexuais, não prego a AIDS no mundo, nem tão pouco quero o seu amor e a sua aprovação. O meu grito de SIMMMMMMMMMM à liberdade de expressão, sim à prática do que se tem vontade, sim ao direito de decidir o que é melhor para as nossas vidas, saúde, papel, moral e sobretudo, o que é melhor para o nosso prazer!!!! “Cada um, sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Fonte: http://abagacadoguttao.com.br/blog-2/)

E não existe desigualdade? O fato de perceber a orgia como um espaço privilegiado de singularidade e de usos outros do corpo, não quer dizer que não perceba o quanto ela é atravessada pelos chamados marcadores sociais de diferença (como classe, idade, status, cor da pele etc.) seja na configuração de desigualdades, seja na própria composição de prazeres. Pelo contrário, é possível perceber uma tensão constante nesse sentido. Já existe uma discussão nas ciências sociais, principalmente no âmbito da sexualidade, de como alguns “agenciamentos” de desejo possuem o poder como uma dimensão estratificada. Para ficar em apenas dois exemplos e contextos distintos, tanto a etnografia de Perlongher sobre a prostituição masculina (1987), quanto a análise de

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McClintock sobre a dominação de gênero e de classe no imperialismo inglês (2010), mostram experiências nas quais prazer, dor, poder e submissão, não só estão misturados como também são fatores que “criam” esses desejos: Seguindo tal perspectiva, é interessante analisar [essas experiências], como alternativas que, no limite, problematizam os modelos que supõem naturalidade, inatismo ou normalidade entre as fronteiras que delimitam homens e mulheres e, mais particularmente o comportamento sexual masculino (ativo) e o feminino (passivo); assim como as fronteiras que separam o prazer da dor, o comando e a submissão. Tratam-se de experiências que ousam lidar com o risco social, ou melhor, com aqueles conteúdos e inscrições, presentes nas relações entre a sexualidade e, as suas assimetrias em termos de gênero, de idade, de classe e de raça (Gregori, 2010: 195)

Da mesma forma, não nego a existência nesses ambientes de uma hierarquia dos corpos e daqueles que são tidos como mais desejáveis em detrimento de outros. E de como esses padrões de atratividade estão relacionados diretamente a questões de raça, classe e gênero. Aliás, é possível observar nesses eventos uma tensão constante entre esses marcadores de diferenças e desigualdades e o princípio “disruptor” que a putaria proporciona. Trarei dois resumos de acontecimentos presenciados por mim em campo e que acredito poderem servir de exemplo a essas tensões. O primeiro é relativo a como conheci um dos interlocutores dessa pesquisa que chamarei aqui de Marcos. A primeira vez que Marcos foi numa das festas Vale Tudo foi presenciada por mim. Ele passou toda a primeira hora da festa do meu lado conversando e se dizendo muito “injuriado” com a situação, porque as pessoas que estavam ali não despertavam interesse nele. Ficou reclamando bastante e pelo fato de eu estar ali “fazendo pesquisa” se sentia à vontade para “falar mal dos outros” só comigo. Marcos tem 35 anos, é branco, trabalha com Desenho Industrial, recém-divorciado, morador da Zona Sul do Rio de Janeiro e foi ali porque imaginava que seria uma oportunidade de colocar o fetiche de “fazer uma orgia” em prática aqui no Brasil, já que só tinha participado de algumas no tempo em

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que morou na Europa, em Londres. Só que o que ele chamava de “perfil baixa renda” das pessoas ali presentes o “desanimou”. Apesar das reclamações e comentários irônicos sobre os outros participantes, Marcos não foi embora. Não demorou muito, diminuiu as reclamações e piadas e já se deixava ser tocado e não se afastava nem repelia as tentativas de aproximação dos outros. Pelo restante da festa, a cada vez que o reencontrava, o via em alguma interação sexual, com duas ou mais pessoas. Em uma específica (que concentrava uma grande quantidade de gente), ele percebeu a minha presença e me chamou com um sorriso. Estava nu, agachado em uma cama das suítes, segurando a sunga na mão, enquanto três rapazes se revezavam para penetrá-lo (dois deles inclusive já tinham sido alvos das piadas de Marcos). Essa ação era o centro das atenções naquele momento na suíte, atraindo muitas pessoas que também buscavam participar. Quando me aproximei, Marcos fez questão de me dar um abraço, mesmo não saindo da posição para ser penetrado. Estava bastante suado, com muitas marcas de mordida e arranhões pela pele. “Tô aproveitando”, me falou. Conversando antes do final da festa me disse que ainda achava a “putaria” na Europa muito melhor (não sendo exato se melhor nas práticas ou no público), porém disse ter “curtido bastante a tarde”. Marcos continuou a ir a várias edições da festa, como pude acompanhar, apesar de eventualmente ainda criticar alguns participantes. Esse “relaxamento” das hierarquias de desejo acontecem, inclusive, com uma frequência grande nesses espaços. Felipe foi outro que sempre que o encontrava reclamava bastante da festa (apesar de nunca ter faltado a nenhuma): encostado na parede comigo zoava homens mais gordos que passavam (geralmente mais velhos), ou então os magros demais (geralmente mais novos, “as crianças”), e nesses extremos de rejeição ainda incluía nas brincadeiras os que ele achava “afeminados demais” (pelo uso de franjas, cabelos coloridos, “andar rebolante”, grupos de “amigos bichinhas que ficam falando alto, desmunhecando e miando”); os “retirantes” (homens com uma aparência associada ao Nordeste: “atarracados, cabeça chata e orelhas para fora”) e as “cacuras” (homens mais velhos com performance afeminada). “Eu falo isso, mas daqui a pouco meu critério cai. Se não aparecer ninguém, com o tempo pego qualquer coisa, no escuro mesmo! E no escuro você acaba descobrindo cada talento! Você sabe, né?”. E, de fato, já o vi em interações com essas mesmas pessoas que ele criticava tanto. “A gente reclama, mas vem mesmo assim, né?”. “E vem por quê? Não tem outra opção?”, perguntei. “Tô cheio de coisa pra fazer,

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trabalho, estudo, coisas lá em casa, mas não sei te dizer por que exatamente, mas venho. Acho que eu sou muito puto, gosto muito de putaria. Engraçado que eu não sou assim quando tô namorando…”. Um segundo exemplo foi uma discussão presenciada por mim na recepção de uma das festas. Quando eu cheguei já havia um tumulto na entrada, porque dois homens que chegaram juntos que pareciam um casal pediram para conhecer o evento antes de pagar e, após o passeio pela casa, desistiram da entrada alegando que só tinha gente feia. Um dos organizadores discursava irritado aos presentes, após a saída dos dois: Quero deixar uma coisa bem clara aqui: suruba, orgia, não é lugar para encontrar príncipe encantado, nem ver corpo. Quem gosta de corpo é IML. Suruba é para ver pirocas e bundas, foder, chupar, dar e comer, sacou? Tem que vir disposto à putaria. Quem quiser ver cara que vá para boate gay, tem várias por aí. (vendo o sinal de consentimento dos presentes continuou) Gente, quem vai para suruba para ver cara? Por isso que adoro homens feios. Eles quando pegam...nossa! Fodem gostoso! ‘As bonitas’ só fodem com espelho, se pudessem se comiam! (com as risadas dos presentes concluiu) Porque em uma orgia não tem que rolar isso. Tem sim, que ver picas e rabos gostosos. A festa é pra foder e rolar uma amizade sem cobranças sentimentais e sexuais. Entendem, né? O mesmo tipo de bronca foi dada num dos grupos de whatsapp quando um dos participantes, recém-adicionado, pediu que as pessoas postassem foto de rosto antes de falarem com ele. As pessoas reagiram mal ao pedido dele: “está no lugar errado, meu caro, vai procurar uma agência de modelos se você está querendo carinha bonita, aqui é pra foder”. O que fez o pedido ainda tentou se defender: “Bom, ok, não esperava tanta polêmica por uma simples imagem! Realmente foder é bom, e no meio da putaria eu não olho mesmo pra cara! Mas enfim... se tiver modelos também é ótimo”. Continuou a ser hostilizado por vários do grupo e tentou desdizer o pedido: “Gente, a ideia não era de saber quem era mais ou menos bonito, sinto muito. Mas quando eu estou teclando ou falando com alguém geralmente é legal saber com quem estou falando, somente isso. Agora, na putaria, para foder, é claro, tô no mesmo barco que vocês, no escuro rola tudo!” Recebeu como resposta

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a foto de um ânus em close e aberto com a mensagem: “Dando continuidade ao bafafá, eu me chamo Sexo, sou feinho e fodo horrores, porque eu sou apaixonado por pica e as picas adoram estar dentro de mim, muito prazer. Se a piroca coça chama o Sexo que sou eu. Estou sempre xucado a sua espera! Ainda precisa de uma foto de rosto? Meu cu pra você!” Se Marcos e Felipe, aos poucos, veem os seus valores sobre as diferenças borrados pela efervescência das interações, a fala do organizador e as pessoas do grupo do whatsapp vem a esse encontro ao definir como devem ser as práticas em uma orgia diante da recusa de participação dos dois rapazes (que, em sua visão, não tinham “disposição para a putaria”) e da exigência de fotos do recém-chegado, por essas mesmas diferenças. A tensão que eu aponto acima entre marcadores de diferença e desigualdade, hierarquização de corpos e o princípio da putaria é, portanto, presente nessas festas, alcançando uma proximidade daquilo que Perlongher (1987) chama de “tensor libidinal”112. Podendo se apresentar, portanto, tanto como fonte de prazer, quanto também como geradora de conflitos. É preciso entender que quando eu digo que as diferenças são borradas na putaria das festas de orgia, não estou dando a esses eventos uma essência inclusiva ou igualitária que elas não possuem, mas sim de uma inclusão que não significa esfacelamento das peculiaridades ou Cavalo de Troia do mito político da igualdade, mas ondas de diferenças e singularidades, abertas ou não ao contágio, à contaminação e aos afetos errantes, segundo uma desordem inventiva em que, mais uma vez, a diferença não é sinônimo de indiferença, no sentido moral, ou de piedade. A diferença não é o monstruoso, o disparate, o catastrófico, algo que deve ser contido e domado (Lins, 2013, 139).

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Como explica Gregori: “Os tensores libidinais, expressão que empregou [Perlongher], são resultantes da noção de que o desejo é feito daquilo que desafia, que arrisca e que assinala a diferença. O que essa sugestão implica é que os marcadores sociais de diferença – e entre eles o gênero, a idade, classe e status, cor/raça – que operam como eixos na configuração das posições desiguais, em relações de abuso, também atuam na configuração daquilo que proporciona prazer. As hierarquias, as normas e proibições formam o repertório para o erotismo, a partir de todo um esforço de transgressão”. (Gregori, 2010: 5)

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Esses fatores de “desigualdade” surgem e são muito mais marcados como conflitos, me parece, principalmente no que diz respeito a um dos princípios mais importantes nessas festas de orgia que é o da masculinidade, ao que eles entendem do que é ser homem, como vimos anteriormente. Mas, mesmo assim, durante todo o trabalho de campo poucas vezes ouvi alguém sair reclamando de que não tenha tido, pelo menos, uma interação durante a festa, mesmo aqueles que, de alguma forma, não correspondessem totalmente fosse aos princípios ou ao perfil estético e performático do macho desejado. Poderia citar alguns exemplos peculiares como o de um usuário de cadeira de rodas que tinha ambas as pernas amputadas e que sempre ia à festa na sauna e que, mesmo tendo que ficar apenas no primeiro andar devido às escadas da casa, estava sempre envolvido em alguma interação em casal ou grupal, em que era chupado ou onde conseguia o feito de tanto penetrar quanto fazer sexo oral ao mesmo tempo no parceiro sentado em seu colo, usando para isso o formato de sua cadeira, que era agenciada à performance potencializando a interação113. Ou de como um dos participantes recorrentes aqui, um senhor octogenário que tinha um tremor nos braços e que tinha o hábito de, no dark, ficar passando a mão nos outros participantes. Quando ele foi visto certa vez sendo chupado por um rapaz de aparência bem mais jovem que ele, ouvi comentarem: “gente, que bonitinho! Cadê a máquina pra tirar foto?”. Sempre que o encontrava na saída ele me dizia: “menino, vou pra casa rezar um terço, pra purificar de hoje!”114 Ou ainda quando percebi a presença de um homem bem obeso no dark e confesso que a minha primeira reação foi pensar, “coitado, não vai conseguir fazer nada”, e em menos de um minuto, quando voltei meu olhar, ele estava de quatro na cama coletiva numa interação com outros dois rapazes e um conhecido comentou em meu ouvido: “rapaz, aqui até o ‘Buda’ se dá bem!”. Interações, encontros e acontecimentos que, talvez em outros espaços, ou que fora dali no cotidiano de suas vidas, não fosse possível de acontecer (ou que pelo menos não acontecem com uma frequência significativa, para evitarmos generalizações), mas que encontram ali, no intensivo orgiástico, 113

As pessoas olhavam sempre e perguntavam com uma curiosidade interessada: “nossa, como é que ele consegue?”, “será que é bom mesmo?” Ainda que alguns assumissem: “Eu acho que não conseguiria. Deve ser preconceito mesmo, não sou uma pessoa evoluída a esse ponto”. 114 Claro que nem sempre as aproximações desse senhor foram bem vindas: ele foi quase agredido em outra festa ao tentar uma interação e o outro foi um pouco grosso o empurrando e gritando: “Caralho, lá vem você com essa mão de novo! Vai para um asilo, porra!”. A frase não foi acompanhada de risadas como as explosões aqui costumam ser, mas sim de um silêncio constrangedor pela falta de tato do rapaz e uma certa pena do senhor.

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um território propício para a prática dessas produções desejantes e mesmo a composição de novos desejos a partir das experimentações que se oferecem. O que quero dizer, por ora, é que essas festas possuem um ritmo, um tempo que alterna momentos de maior ou menor intensidade. Há tempos e espaços de efervescência, de descanso, de torpor e de reativação dos prazeres. Estou chamando a atenção nesse trabalho tanto para a busca quanto para os próprios momentos de “picos de intensidade”. São esses momentos de efervescência que estou dizendo que têm não só a potência de criar “fissuras” (Diaz-Benitez, 2014), como explicitado, mas também de borrar esses marcadores, colocando todos num plano onde o que importa, o que diferencia, o que singulariza esses atores é sua “disposição” na putaria, sua desenvoltura durante os encontros, seja aumentando ou diminuindo a potência das “ligações”, seja catalisando e/ou capturando o desejo do outro, enfim, sua capacidade de dar ou receber prazer . A putaria ou o “puto” (assim como os outros princípios) são modos de intensidade. Nem todos numa putaria são putos. E, da mesma forma, não é toda interação que irá contar com a presença de um. A equação não é tão simples como: “descubra quem é o puto daquela cena”. O puto é a forma de distinção local para aquele que sabe/consegue manipular os fatores que aumentam ou diminuem a intensidade das interações, independente desses marcadores de diferença, ou apesar deles115. *** A fim de concluir Afinal, o puto é ou não uma identidade? As produções de subjetividade tal como propostas pelos princípios dessas festas conformariam algum tipo de jogo identitário? Se como venho argumentando durante todo esse texto que não há aqui a busca de um discurso representacional-identitário, se há a busca de uma dissolução dessas coisas todas, então o que é o “macho, discreto e puto”? Seriam esses participantes então puras “máquinas

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A disposição e o talento de alguém como puto é motivo tanto de reconhecimento como de propaganda: “pô, você só tá observando, vou te falar que aquele baixinho ali, menino, olhando assim ninguém dá nada por ele né… mas eu vou te falar que ele foi a minha melhor foda nesse lugar. O negócio é bom, menino! Eu garanto! Tá se segurando por quê? Vai morrer e a terra vai comer isso tudo aí, vai dar essa bunda!”

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celibatárias”? Nômades, sem território fixo que erram pelo mundo apenas em busca de um prazer intenso e momentâneo?

Sem território fixo, as máquinas celibatárias erram pelo mundo. Com cada fio que se apresenta — humano ou não — elas tecem, se tecem. E a cada novo fio, elas esquecem, se esquecem. Sem identidade, são pura paixão: nascem de cada estado fugaz de intensidade que consomem (Guattari e Rolnik, 2005, 287).

Penso que não. Nem o endurecimento molar de uma classificação estável nem uma constante linha de fuga molecular. Não tanto porque há um território, mas pelo que, a princípio, me parece mais um modo de existência, um engajamento singular no mundo, do que uma identidade ou uma dispersão ou deriva errante. Há mais uma maneira de vivenciar e experimentar determinados prazeres e intensidades do que um modelo de indivíduo pertencente a um grupo identitário. Mais, portanto, uma política da singularidade (e mesmo da invisibilidade) do que uma política da identidade. Há sim a ideia de pertencimento ao que se poderia chamar de um “clube” ou “sociedade exclusiva” (mesmo que espartana), vá lá, mas que se agrupam, se encontram ou se esbarram nesses lugares quase que por acaso, por terem gostos, apetites e preferências específicas, porque compartilham dessas práticas, dessas técnicas e experimentações de prazer. Porque têm disposição para a putaria. E dentro desse “clube” ou “sociedade exclusiva” há aqueles que se destacam, claro. Seja por saberem apreciar mais, por aprimorarem as técnicas, por performarem de maneira mais adequada, por terem desenvolvido um gosto mais apurado ou por puxarem os limites de algo, de um jogo que já não é estabelecido a priori, que é feito para isso mesmo, se jogar com limites, (auto)controles e os prazeres e perigos envolvidos nisso. Ser “macho, discreto e puto” é menos uma identidade e muito mais uma questão de “saber ou ter um proceder” específico e esperado com o qual cada um desses homens deve se apresentar nesses espaços. Estou usando a ideia de “proceder” aqui numa aproximação com a maneira como Marques analisa as negociações em torno das regras e das condutas apresentadas em um convívio prisional:

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Pude verificar que todas essas regras estão compactadas, pela população carcerária, em uma única categoria nativa: “proceder”. Contudo, tal palavra não é tomada pelos prisioneiros para indicar uma ação, antes, utilizam-na como atributo do sujeito. Mas não só isso, utilizam-na, também, como um substantivo. Desse modo, nunca é dito “ele procede”, mas sim, “ele tem proceder” ou “o proceder”. Pude verificar também que correlato à distinção entre presos que “têm proceder” e presos que “não têm proceder” se efetua um recorte preciso sobre o espaço prisional, uma divisão espacial entre “convívio” e “seguro”. Se no primeiro permanecem aqueles reconhecidos como detentores do “proceder”, no último são exilados aqueles que falharam sob esse regime de regras e condutas (Marques, 2009, 15-16).

Também numa festa de orgia é preciso “ter proceder” para que se possa se manter dentro do espaço do evento (principalmente naqueles que fazem uma seleção) e conseguir as interações que se deseja. Nessa “casa de homens”, ou melhor ainda, nessa “casa de machos”, é preciso saber se comportar, ter e se dar o respeito. Dentro das regras e das condutas esperadas pelos três princípios colocam-se modos de agir, roteiros de desejo e sexuais a se seguir, normas, performances e outros elementos que, caso não se tenha “o proceder” necessário ou esperado, caso não se seja hábil em “habitar as normas” locais, paga-se com o isolamento, a zoação, a indiferença nas interações e mesmo a expulsão das festas116. 116

Marques ainda faz uma definição mais detalhada do “conceito nativo”: “Ao atribuírem ou não o “proceder” a um sujeito, as considerações dos prisioneiros referem-se à sua disposição quanto a um “respeito” específico (o modo de se pedir licença para ficar em uma determinada cela, o modo de se despedir no dia da concessão de liberdade, o modo de se portar durante os dias de visita, o modo de utilização do banheiro, a higiene da cela, a higiene pessoal, a escolha de vestimentas etc.), quanto a uma “conduta” específica (na vida pregressa à prisão, nos esportes, em relação à religião, no cumprimento de acordos estabelecidos etc.) e, enfim, quanto a uma “atitude” específica (para resoluções de litígios e para negociações com a administração prisional). O “proceder” enquanto substantivo, portanto, alcança essa complexa relação entre “respeito”, “conduta” e “atitude”. Já do “proceder” enquanto atributo, de modo diverso, se refere a essa consonância de um sujeito com o “proceder”-substantivo. Um preso nessa condição é considerado “cara de proceder”, “sujeito homem”, “ladrão” etc., possuindo, portanto, os requisitos para viver no espaço da prisão denominado “convívio”. No mesmo sentido (enquanto atributo), mas

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É como se voltasse ao que Foucault falava antes das classificações trazidas pela scientia sexualis, quando o que havia eram as práticas e a moral em torno delas, mas que essas práticas agora (dentro de um determinado dispositivo da sexualidade) determinam tipos e espécies de sujeitos. É claro que o campo das orgias como etnografia aqui não pode ser colocado em um “estado de natureza”, separado e intocado dessas representações e classificações. Afinal, ele só pode ser compreendido em um contexto de atravessamentos dessas próprias definições médicas, religiosas, estatais, morais etc. Sendo dessas fronteiras e atravessamentos que se elaborará a moral experimentada ali, e os princípios que norteiam as práticas nas interações acompanhadas entre esses homens. O que percebo estar em jogo nas festas de orgia, pensando-as como um fenômeno coletivo e relacional, é mais do que apenas um conjunto de pessoas que se encontram para fazer sexo umas com as outras. O que está em jogo aí é a tentativa de inventar e compartilhar com o outro, num movimento de deriva e captura, de desterritorialização e reterritorialização, de “prender e dar fuga”, relações singulares que fujam aos cânones (morais, familiares, institucionais, religiosos, sociais etc.), ou que, melhor ainda, coloquem esses cânones em outros termos, acionando ou fugindo de seus elementos estrategicamente a partir de seus desejos. A tal da “resistência criativa” a que me referi no início desta tese. Para usar uma imagem elaborada por Deleuze e Guattari: as práticas desse campo seriam como rizomas que brotam nos cotovelos dos galhos da “vida real”. É de intensidades que, primeiramente, trata-se esses territórios. Ao contrário de “traduzir os estados vividos em representações ou fantasmas, fazendo-os passar pelos códigos da lei, do contrato ou da instituição”, prefiro (assim como me mostram “meus nativos” em suas práticas), ligá-los ao intensivo, torná-los fluxos capazes de nos levar mais além, na exterioridade:

O estado vivido não é subjetivo ou imposto. Não é do individual. É o fluxo, e o corte do fluxo, uma vez que cada intensidade está ligada com uma outra intensidade de tal maneira que algo passe. É isto que tomando o exemplo contrário, o “proceder” é aquilo que falta ao sujeito que é exilado no espaço carcerário denominado “seguro” ou morto durante um “debate””(op.cit., 27-29).

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está sob os códigos, o que lhes escapa e o que eles querem traduzir, converter, fazer valer. Porém Nietzsche, com sua escrita de intensidades, diz-nos: não troque a intensidade pelas representações (Deleuze e Guattari, 1995, vol.5: 51-52).

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Parte II Outras dobras

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A ORGIA E A FESTA

Nessa segunda (“menor”) parte do texto eu gostaria de deixar um pouco de lado a descrição das festas de orgia desses homens com os quais vim trabalhando e propor ao leitor um rápido mergulho no fenômeno da orgia per se, mas abrindo outras frentes ao tema. Apesar do caráter mais bibliográfico e teórico desta parte, não vamos, de maneira alguma, nos afastar completamente do tema de pesquisa deste trabalho. Minha proposta com essa pequena digressão é de lançar um olhar para o fenômeno da orgia, seja em sua história ou em seus fundamentos, porém um olhar interessado, buscando melhores formas de entender o fenômeno no presente. Procurar outras entradas, outras dobras, buscar cercar o tema. Não é meu objetivo fazer um inventário histórico de datas, épocas e locais onde determinadas orgias “famosas” ocorreram tampouco listar personagens célebres da História que seriam praticantes do sexo orgiástico. Ainda que venha a me deter com mais detalhes no “movimento libertino” francês do século XVIII, por motivos que ficarão mais claros a seguir, a intenção aqui não é a de um catálogo de curiosidades/bizarrices, já que esse é um risco que sempre se corre ao colocar o sexo em discurso. Vamos aqui nos aproximar de um entendimento sobre algumas características que cercam o fenômeno da orgia em geral. É importante já sublinhar que poucas vezes a orgia se coloca como tema de estudos e pesquisas. A orgia aparece na maioria das vezes caracterizada como efeito colateral de eventos outros, em sua maioria tida como eventos de desorganização, dissipação, caos, anarquia, anomia etc. Enfim, um evento “perigoso” que ou precisa ser evitado ou ser contido, com riscos de se pagar com a desordem social. Baseio-me aqui em obras que dão um panorama abrangente sobre o tema, quer compartilhem ou não com essa visão, mas que, de alguma forma, problematizam o lugar da efervescência, do orgiasmo e do festivo, de acontecimentos de alta intensidade (na maioria das vezes de força erótica), seja de um ponto de vista histórico, sociológico e mesmo etnográfico. Porém, acredito que, em primeiro lugar, deveríamos começar essa digressão pelo pornô.

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A orgia e a pornografia A imagem que é acionada e que se tem atualmente do que seja ou como funciona uma orgia é totalmente tributária daquela que nos foi apresentada através de uma produção que podemos chamar de erótica/pornográfica e que nos chega hoje por diversos meios, seja pela internet, pelo cinema, pela literatura ou outras mídias culturais. Indo desde textos eróticos libertinos de séculos passados até a moda recente dos “livros de adultos para colorir” (o mais famoso com o título de Suruba para colorir). A produção pornográfica é algo que pode ser remetido historicamente até a Antiguidade na produção de textos e peças gregas em que o sexo era colocado em questão117. Alcança um boom na Europa do século XVIII com o “movimento libertino” e se institucionaliza no século XIX com total formação de um público consumidor. Hoje, a produção pornográfica é um dos braços mais fortes da indústria cultural como um todo e um dos mais milionários118 (Moraes e Lapeiz, 1984, 115-129). Há um momento de virada na produção pornográfica, que é justamente quando ela deixa de ser uma “literatura de alcova” para se tornar uma indústria. Se a produção erótica ou obscena dos séculos XVI a XVIII tiveram como objetivo, explica Leite Jr (2006, 2009), uma forma de crítica política e social a instituições como a igreja, a nobreza, a burguesia ou até mesmo o “povo”, surge posteriormente, uma nova maneira de utilizar as representações sobre o campo sexual. A filosofia dá lugar ao consumo da obscenidade modernizada. O sexo como um produto e o prazer como uma mercadoria em si, não são fatores novos no fim do século XIX, pois sempre estiveram ligados intimamente à edificação do capitalismo. Nova, agora, é a ampliação da produção e do consumo, unida a um certo alheamento das questões políticas. A pornografia nasce assim do discurso obsceno sob o viés da cultura de massas e do entretenimento (Leite Jr, 2009, 3).

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Moraes e Lapeiz chegam a remontar a pornografia até a Idade da Pedra quando se esculpiu a Vênus de Willendorf (1984, 115). 118 As redes de produção do cinema pornográfico no cenário nacional vêm sendo etnografadas por Díaz-Benítez e Leite Jr. em diversos trabalhos, entre eles Díaz-Benitez (2010, 2012, 2015) e Leite Jr (2006, 2009, 2011).

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Assim, a pornografia, tal como a entendemos nos dias de hoje, nasce em meados do século XIX, podendo ser definida como “a representação sexual visando em especial a excitação erótica de seu público e estando intimamente relacionada com a produção padronizada para um mercado estabelecido” (Leite Jr, 2009, 4). Não cabe aqui uma discussão sobre a definição do que é ou não pornográfico e principalmente a necessidade de uma diferenciação entre o que é erótico (tido como algo mais sublime e não explícito) e o que é pornográfico (como algo relativo ao que é baixo, grosseiro e hiper-explícito). Esse debate é longo, improfícuo e, como sinaliza Diaz-Benítez, muito mais pautado em convenções sociais organizadas a partir de hierarquias: Em poucas palavras, o que faz com que certas manifestações sejam vistas como pornográficas são as acusações e os juízos valorativos que os grupos sociais criam para classificar seu entorno. Tais juízos mudam e se ajustam aos contextos, criando fronteiras dinâmicas, históricas, precárias e mutantes. A pornografia é em si, um fenômeno social e, como tal, permanece em constante transformação. Trata-se de uma etiqueta que certos grupos sociais colocam em certos produtos ou manifestações, designando um argumento, não uma coisa (Díaz-Benítez, 2009a, 20).

Para mim, acredito ser proveitosa a definição de pornografia dada por Moraes e Lapeiz que coloca a ideia do “obsceno” como característico daquilo que pode ser chamado de pornográfico (1984, 109-110). A palavra obsceno significa “fora de cena”, dessa forma, fazer ou proferir algo obsceno é colocar “em cena” aquilo que normalmente fica escondido, nos bastidores. Pornográfico, portanto, é o discurso veiculador do obsceno, é a exibição daquilo que não deveria ser mostrado, não deveria ser dito, que fere o pudor ao pôr em cena, ao explicitar aquilo que é proibido, o que transgride. A representação do sexo grupal/coletivo e da orgia na produção pornográfica chama a atenção, dessa forma, pela transgressão de algumas ideologias normativas como o “ideal da intimidade”, da “ética conjugal” e da “obrigatoriedade do sexo a dois”, se situando “em um lugar ilegítimo da matriz hegemônica da sexualidade” (Díaz-Benítez, 2009b, 568). Os filmes pornôs começam a incluir cenas de orgia em suas produções a partir do sucesso de público dos títulos americanos: O diabo na carne de Miss Jones e Atrás da porta verde,

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ambos lançados em 1972 (Keesey e Duncan, 2005). Daí em diante vai ser constante a produção de filmes pornográficos que incluam sequências ou mesmo sua totalidade a partir de uma cena de sexo grupal. As cenas vão variar nas preferências e temas, desde orgias entre grupos mistos de homens e de mulheres, ou de grupos só de homens (no caso de filmes pornôs gays) ou no que é chamado de gang bang, que são cenas onde uma única ou duas pessoas (seja homem ou mulher) é penetrada por um grupo de homens119. Aqui no Brasil, por exemplo, vai haver uma produção típica de filmes de orgia, que são os filmes de Carnaval, voltada principalmente para o público heterossexual. Fora do mercado cinematográfico pornô, no chamado cinema mainstream, as cenas de orgia vão chamar mais a atenção ainda, “se um trio (ménage à trois [sexo a três]) é transgressor, uma orgia então será revolucionária” (op.cit, 155), aumentando a polêmica de acordo com o nível de quão explícitas as cenas podem ser, o que vai passar a acontecer com uma produção mais recente. Os autores lembram títulos como: Casanova (1927), Fellini Satyricon (1969), Zabriskie Point (1970), a “trilogia da vida” de Pasolini (adaptação dos clássicos da literatura erótica: O Decameron (1971), Os Contos de Canterbury (1972) e As mil e uma noites (1974); Pasolini ainda fez um quarto filme, a famosa e polêmica adaptação de Os 120 dias de Sodoma (1975), A comilança (1973), História de O. (1975) e Calígula (1978). Outros mais recentes podem ser lembrados como Os idiotas (1998), De olhos bem fechados (1999), Shortbus (2005), Shame (2011) e Love (2015)120. A produção nacional em que a orgia e o sexo grupal aparecem (para além da exclusivamente pornográfica) também não é pequena. Há como que um “período-chave” quando elas se concentram que é a dos anos 1960/1970. Décadas que foram representativas de uma “revolução comportamental”: contestação de vários grupos (de esquerda, feministas, negros, homossexuais, hippies etc.), proposta de novas formas de comportamento, de se relacionar, de intervir no mundo, de experimentação (de

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Não custa lembrar a ausência de filmes ou sequências de orgias apenas entre mulheres. As “cenas lésbicas”, normalmente em dupla ou trio (com a presença de um homem), se inserem em uma produção voltada para o público masculino heterossexual com elaborações a partir desse dispositivo de desejo. 120 A questão da representação do sexo na história do cinema e suas relações com a ideia de obscenidade (que varia a partir dos valores morais de cada época) é tema do trabalho de Gerace (2016).

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substâncias, de teorias, de utopias etc.). A produção artística dessa época não só não ficou indiferente a essas mudanças, como ela mesma foi pioneira nelas. Movimentos musicais como a Tropicália eram representativos dessa época característica de criação de comunidades ou grupos que pregavam o “amor livre”, a “sociedade alternativa” e que cantavam que “ninguém é de ninguém”. O estilo de vida e as músicas de bandas como Os Novos Baianos, Os Mutantes, Secos e Molhados; a performance de grupos teatrais como Dzi Croquettes, são expressões de libertação e de embaralhamento das sexualidades experimentadas na época. A produção cinematográfica brasileira do período também foi voltada quase exclusivamente para o erótico, na corrente que ficou conhecida como “pornochanchada” (abundando nos títulos das obras tanto palavras quanto cenas de “orgia”, “suruba”, “bacanal” etc.). Aqui também não podemos nos esquecer de toda uma tradição “sátira” de histórias em quadrinhos presente no país, cujo maior representante talvez seja Carlos Zéfiro. Da mesma forma, uma recente antologia organizada por Moraes (2015) procurou resgatar a produção brasileira de poesia pornográfica, normalmente relegada a segundo plano, desde a época colonial até a atualidade. Sem esquecer de um dos autores mais representativos dessa época, Nelson Rodrigues, que em 1962 tenha encenado talvez a primeira cena de orgia em palcos brasileiros com Bonitinha, mas ordinária. Nelson, verdadeiro cronista social do Rio de Janeiro dos anos de 1950 a 1970, já tinha uma coluna ficcional diária nos jornais, A vida como ela é…, onde relatava em contos tragicômicos situações de adultério, morte, desejos reprimidos, ciúmes e amores passionais, que se passavam no subúrbio e na área nobre do Rio de Janeiro. Inclusive o costume de aluguéis de apartamentos ou garçoniéres na Zona Sul ou em locais mais distantes para os encontros sexuais e as festas coletivas entre amigos, como a relatada no conto “Bacanal”121.

121

A prática do sexo coletivo ou grupal pode ser rastreada no Brasil até durante o período colonial (Vainfas, 1999), mas é, de fato, nos anos 1960 que ela se torna prática comum dentro de um contexto maior de experimentações e “contracultura” (Carmo, 2011).

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A orgia na Antropologia A sexualidade não é um objeto de estudo novo ou estranho à tradição disciplinar antropológica. Ao contrário, existem etnografias clássicas que descrevem práticas sexuais de sociedades então chamadas primitivas, desde meados do século XIX. Nesses trabalhos Investigava-se a dimensão da sexualidade – bem como as relações de parentesco, o modo de produção e organização política, as formas de expressão religiosa, etc. – no esforço de conhecer as diferentes modalidades de organização social peculiares a cada grupamento humano. O olhar conferido a tal objeto, contudo, não o privilegiava como um campo de investigação autônomo, com estatuto próprio. Enquanto objeto de estudo, a sexualidade inseria-se no conjunto das regras que regulavam a reprodução biológica e social de uma dada comunidade.(Heilborn e Brandão, 1999, 7). Pretendo apresentar nesse item um rápido panorama geral de como essa literatura

clássica tratou o tema das práticas sexuais e do sexo coletivo e das orgias em particular, mas já chamando a atenção para o fato de que esse recorte é atual e que os autores acabam muito mais por esbarrar nisso do que falar diretamente, já que seus interesses eram sobre assuntos diversos. Em seu princípio a Antropologia contava com os registros, relatos e diários feitos por viajantes que foram ter contato com os chamados “povos primitivos”, ou seja, aqueles que estavam distantes tanto geográfica quanto estruturalmente de uma determinada concepção de sociedade dada pelo Ocidente eurocêntrico. Claro que os “costumes sexuais” desses povos primitivos, incultos e não civilizados foi um dos aspectos que mais chamaram a atenção desses viajantes e que deixaram registros detalhados do exotismo dessas práticas. A abordagem pela qual vai ser entendida a sexualidade nessa época inicial (século XIX) é a do evolucionismo. Para os antropólogos do século XIX, a evolução desenvolvia-se através de uma linha única, ou melhor dizendo, a evolução teria raízes em uma certa “unidade psíquica e fisiológica” da humanidade. A ideia é que todos os grupos humanos teriam o mesmo “ponto de largada”, com o mesmo potencial de desenvolvimento, ainda que, para os pensadores dessa época, esses grupos estivessem em posições ou “estágios” diferentes, já que uns

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estariam mais adiantados que outros. Segundo esta abordagem, todas as culturas deveriam passar pelas mesmas etapas de evolução, o que tornava possível situar cada sociedade ou cultura humana dentro de uma escala que ia da menos à mais desenvolvida (Laraia, 2001, 25). L. H. Morgan, em A sociedade antiga, sistematizará os critérios e seus estágios correspondentes mais famosos e influentes dessa escola. Segundo o autor, as sociedades passariam por uma linha de progresso desde a selvageria, através da barbárie até a civilização. Um dos principais fatores que contariam para a localização em determinado estágio, segundo Morgan, seria a família, que para ele englobava não só as relações de parentesco, mas as diversas formas de organização das relações sexuais e de reprodução (Morgan, 2005, 24). Claro que o modelo heterossexual, monogâmico e patriarcal europeu era tido na escala como o objetivo final a se alcançar. O pensamento de Morgan vai ter forte influência na obra desenvolvida por Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1984), na qual o autor desenvolverá mais profundamente essa ideia de evolução e formação da instituição da família. “Reconstituindo retrospectivamente” a ideia de família, o autor retoma a interpretação de Morgan de que existiu uma época primitiva (e quase mítica) em que imperava o “comércio sexual promíscuo”, onde “cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas as mulheres” (op.cit., 31). Vivia-se uma forma de “estado social de promiscuidade dos sexos” ou mesmo o que poderíamos chamar de

um

“comunismo sexual” onde depreende-se que não existia distinção de parentesco (o incesto então não era tido como tabu), não havia hierarquia de sexo ou de gênero, nem laços e obrigações matrimoniais, sem o controle de normas morais e religiosas. Os encontros sexuais seriam livres, coletivos, e indistintos na separação por laços de sangue, de geração, de grupos, e de papéis atribuídos seja aos homens e às mulheres. “Que significam relações sexuais sem entraves? Significa que não existiam os limites proibitivos vigentes hoje ou numa época anterior para essas relações…”(op.cit.,36). A prática sexual coletiva e as orgias

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entram aqui, portanto, como prática de povos selvagens primitivos e estágio inicial da organização da vida sexual do homem e da sociedade122. Essa visão demonstra o homem como que em “estado de natureza”, num limite próximo da animalidade, mas que nem por isso é sempre entendida como algo negativo. A influência aqui é mais próxima de um princípio rousseauniano do que hobbesiano, de um ideal de “bom selvagem” em terras paradisíacas, livre dos entraves da civilização; essa corrente rousseauniana, inclusive, que muito vai alimentar a antropologia em seu começo (Lévi-Strauss, 1989). Esse “estado social de promiscuidade dos sexos”, tal como descrito por Engels, por exemplo, é o que pretende ser resgatado pelo filósofo Charles Fourier em sua utopia de uma nova sociedade construída em uma “nova ordem amorosa” a partir de sua leitura dos relatos desses outros povos exóticos (Barthes, 2015). Nessa sociedade, as perversões sexuais deixariam de existir na medida em que as práticas sexuais seriam coletivas e os indivíduos seriam livres para extravasar seus desejos e paixões fora dessa ordem civilizatória em que vivemos. Um novo momento nas pesquisas antropológicas é inaugurado com os trabalhos de Bronislaw Malinowski, principalmente naquilo que se refere à obrigatoriedade do trabalho de campo para a descrição etnográfica. No que nos interessa, Malinowski também é pioneiro ao apresentar a primeira manifestação sistemática do tema da sexualidade no âmbito da Antropologia. O autor publicou dois livros na década de 1920 sobre o tema partindo de seu trabalho de campo entre os trobriandeses das ilhas do Pacífico: Sexo e repressão na sociedade selvagem (2013) e A vida sexual dos selvagens (1982). O primeiro, menos etnográfico e mais teórico, busca fazer uma contraposição entre a cada vez mais estabelecida teoria psicanalítica em seu discurso sobre a sexualidade e sua aplicação ao contexto estudado pelo autor. O segundo, mais rico nas descrições de campo, mostra o esforço do autor em trabalhar “a vida sexual” de um povo como um sistema social que se entrelaça com as relações econômicas, políticas e culturais, e não como uma manifestação orgânica e restrita ao terreno da natureza.

122

Ainda que o próprio Engels afirme que não há “provas diretas” da existência desse “período inicial da vida sexual do homem” muito mais motivado por uma negação dos pesquisadores que “pretendem poupar à humanidade essa vergonha” (op.cit, 32).

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Segundo Duarte (2004), esse súbito interesse na área pode ter acontecido por uma influência da psicanálise nos saberes etnológicos. Não que certos princípios da psicologia já não estivessem presentes em autores anteriores como Rivers e Seligman. Malinowski deixa transparecer em seus livros a “complexa relação” entre a moralidade implicada em escrever um livro sobre a “vida sexual” e o que é etnograficamente percebido na pesquisa e deve ser descrito (op.cit, 54). Os capítulos dos dois livros são dedicados ao que o autor chama de “relações entre os sexos” (ainda não faz a separação sexo e gênero) e informações sobre o sistema de parentesco, ao casamento e à reprodução, além de uma análise sobre as maneiras e a moral do grupo diferenciada para os homens e para as mulheres. Uma análise mais acurada dos desenvolvimentos internos poderia ser reveladora da solução encontrada por Malinowski para o desafio que considero mais típico da presença da sexualidade nas ciências sociais: a tensão entre entranhamento prático e desentranhamento conceitual (Duarte, 2004, p. 54).

Para Duarte, nesses livros Malinowski deixa transparecer a típica “tensão fin-desiècle” entre “instinto primário” e “força espiritual” ou “moral” se apresentando na base da experiência do cotidiano, “inclusive sob a forma de uma crença na capacidade de ação propiciatória da segunda sobre o primeiro” (op. cit, 55). A sexualidade aqui, portanto, também cumpriria um papel na abordagem funcionalista da antropologia inglesa representada por Malinowski. O sexo e a sexualidade entendidos como função reprodutora dentro de um sistema maior e integrado necessário à reprodução da totalidade de uma sociedade, entrelaçada e relacionada aos fatores econômicos, políticos, culturais etc. Se o foco de Malinowski era na “função social” que a sexualidade possui dentro de um “todo funcional”, a atenção dada pela corrente estrutural-funcionalista, também inglesa e contemporânea, vai ser na descrição dos “sistemas sexuais” enquanto uma estrutura social que contribui para que uma determinada sociedade se mantenha estável e coesa. O foco vai ser na descrição das formas de matrimônio, das relações de parentesco, dos esquemas de reprodução e dos casos de “inversão sexual” (como era chamada a homossexualidade) e como eles se inserem e fazem parte dessa estrutura. Tais características podem ser depreendidas das descrições e das análises de Evans-Pritchard sobre o parentesco e as diferentes formas de casamento entre os Nuer (e de como essa 238

estrutura permite até casos de casamentos entre mulheres), da figura do berdache e da homossexualidade entre os Azande (1951,1970). Um parêntese curioso sobre o método desses autores é o fato de, ainda que seus textos sejam ricos e bastante detalhados na descrição das práticas sexuais desses povos, eles afirmarem que não foi feita a observação direta das mesmas. As descrições são feitas a partir dos relatos dos próprios nativos: De modo que os dados coligidos a respeito baseiam-se no que se poderia chamar de “registros auriculares”, são informações indiretas, “por ouvir dizer” (Malinowski, 1982, 267).

Este último até comenta das festas de orgia entre trobriandeses muito rodeada de mistério, já que costumava ser feita em locais distantes da aldeia e isoladas e tinham fama de serem muito violentas, com casos até de estupros coletivos: Isto é o que contam os nativos sobre a yausa. Mas, e os fatos? Na verdade, jamais os observei diretamente, em parte porque nunca pude ir ao sul na época de limpeza dos campos, e, em parte, porque me preveniram que, mesmo atualmente, nenhum forasteiro cogitaria de aparecer por lá nesse período. Se eu tivesse ido, poderia esperar, de duas coisas, uma: ou um resultado negativo, nada acontecendo, o que me teria decepcionado do ponto de vista etnológico; ou um resultado positivo, caso em que eu seria verdadeiramente testemunha do espetáculo, mas essa perspectiva nada tinha de atraente para mim. De modo que preferi me abster (op.cit., 286).

Apesar do pioneirismo, Malinowski não constituiu uma tradição com seus trabalhos relativos à sexualidade. Duarte aponta que o que se poderia considerar como a “primeira tradição” nesse sentido é aquela dos trabalhos desenvolvidos pelos discípulos de Franz Boas (2004, 55). Embora não conste existirem desenvolvimentos específicos sobre esse tema na obra de Boas, pode-se compreender que ele emerja no ambiente intelectual por ele propiciado nos EUA por motivos semelhantes aos de Malinowski: a influência estimulante da atenção à sensibilidade subjetiva, inclusive da sexualidade (idem).

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No Brasil, por exemplo, a influência de Boas será percebida nos estudos de Gilberto Freyre, seu aluno, que vai atentar para as relações de gênero e sexualidade que constituíram a formação de nossa “sociedade cabocla” e “miscigenada”, a partir das relações sexuais e de poder entre escravos e seus senhores, entre a “casa-grande e a senzala”. Analisar como a cultura está presente nos grupos humanos e como move seus comportamentos é uma das características principais na antropologia americana a partir de 1930, formando a corrente de pensamento conhecida como Escola de Cultura e Personalidade. Essa corrente teve como principais representantes Ruth Benedict, Margaret Mead e Edward Sapir. Para esses autores, “o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura” (Laraia, 2001, 70). Dessa forma, “podemos entender o fato de que indivíduos de culturas diferentes podem ser facilmente identificados por uma série de características, tais como o modo de agir, vestir, caminhar, comer, sem mencionar a evidência das diferenças linguísticas” (idem). Nessa abordagem que também foi chamada de “culturalismo”, cada cultura é caracterizada por “configurações” ou “padrões culturais” particulares, como chama Ruth Benedict, que estão presentes em todas as instituições, em toda a vida social, e que, principalmente, determina a personalidade e os comportamentos dos indivíduos pertencentes aquela cultura. Daí a sexualidade e a constituição de determinados “papéis sexuais” ser tomada por esse grupo de autores como um dos traços principais a serem analisados. A autora, em Padrões de cultura (2013) já partia por apresentar uma divisão própria entre sociedades que ela chamava de culturas apolíneas (racionais, disciplinadas que pregavam a rigidez e a ritualidade) e culturas dionisíacas (sensoriais, espontâneas que pregavam o prazer e o êxtase). Culturas orientadas diversamente que se manifestariam por tipos de personalidades diferentes. É principalmente a partir da obra de Margaret Mead, em A adolescência em Samoa (2015) e, mais explicitamente, em Sexo e temperamento, de 1935, que o tema do comportamento sexual de grupos humanos e as teorias sobre gênero vieram a ser mais

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discutidas. Logo na apresentação de seu mais conhecido livro, Mead afirma que “não está interessada na existência ou não de diferenças universais entre os sexos nem nas bases do feminino”, mas em “comparar como três sociedades primitivas desenvolveram diferentes atitudes sociais em relação ao temperamento baseando-se nas diferenças sexuais”: Estudei essa questão nos plácidos montanheses Arapesh, nos ferozes canibais Mundugumor e nos elegantes caçadores de cabeça de Tchambuli. Cada uma dessas tribos dispunha, como toda sociedade humana, do ponto de diferença de sexo para empregar como tema na trama da vida social, que cada um desses três povos desenvolveu de forma diferente. Comparando o modo como dramatizaram a diferença de sexo, é possível perceber melhor que elementos são construções sociais, originalmente irrelevantes aos fatos biológicos do gênero de sexo (Mead, 2006, p. 22).

A relação entre o gênero e o temperamento nos Tchambuli, percebida pela autora, demonstra ser o inverso daquela que é entendida hegemonicamente em nossas sociedades: os homens dedicavam-se a atividades consideradas femininas como a ornamentação e o embelezamento corporal, por exemplo, enquanto que as mulheres possuíam um caráter mais prático e voltado para o trabalho, características que costumamos associar ao universo masculino. Já entre os Arapesh ambos os sexos demonstravam um “comportamento pacífico”, não havia uma divisão de força entre o “sexo frágil” e o “macho forte”; finalmente, entre os Mundugomor esta característica era invertida, aparecendo ambos (homens e mulheres) como tendencialmente violentos e bélicos, não apenas os representantes masculinos. Em suas descrições etnográficas Mead mostra que definir os papéis sexuais do homem e da mulher e a forma de relacionamento de ambos é um problema muito menos biológico ou de natureza do que se tinha comumente pensado. Além disso, que o fato de um indivíduo ser do sexo masculino ou do sexo feminino não significa apenas que ele possui uma determinada conformação anatômica e fisiológica. Significa também que ele possui um status social cujos limites, direitos e obrigações estão devidamente convencionados e em relação aos quais a comunidade mostra determinadas expectativas (Rodrigues, 1983, 68).

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Um dos pontos principais de seu trabalho vai ser justamente a descrição do processo de “aprendizagem” ou de “absorção” dos papéis de gênero de cada cultura: “Em toda sociedade as crianças e os adolescentes se ajustam ou são enquadrados nessas definições de papéis e as veem como as mais naturais e as mais desejáveis” (idem, 70). Daí toda a importância da questão da educação que os autores dessa época vão privilegiar. Como se criam e se aprendem os papéis de homem e de mulher em cada sociedade? A ideia de que cada um desses “papéis sexuais” representam o ideal de comportamento local, e mesmo de normalidade, já que qualquer tentativa de fuga ou de “desvio” deles é considerada desestabilizadora das regras e ameaçador à “cultura” geral. Mead também chama a atenção para os esforços que são feitos por cada um desses grupos para que os “desviados” retomem o rumo do “bom comportamento” socialmente esperado. Apesar das críticas de um “determinismo culturalista” que podem ser apontados a essa Escola, esses trabalhos trazem a novidade de implicitamente questionar o status privilegiado que algum sexo poderá ter, já que esse fator, como as etnografias demonstram, pode variar dependendo da sociedade observada. Há diferentes elaborações culturais sobre a “diferença natural” dos sexos. Cada sociedade, dessa forma, ditará normas para o relacionamento de homem e mulher e associará a cada um um complexo de valores e de símbolos: divisão do trabalho, divisão do poder, divisão de riqueza, dignidade etc. É claro que se tais símbolos, normas e valores são susceptíveis de variar culturalmente, não se poderia, portanto, assumir as postulações de nenhuma cultura particular como absolutas e universalmente válidas (Rodrigues, 1983, 69).

A obra de Mead, dessa forma, mostra-se pioneira, já que começa um esforço de dessencialização na temática da sexualidade que vai se densificar com a antropologia do gênero desenvolvida a partir da década de 1970 (com a força dos crescentes movimentos sociais feministas e homossexuais), e que vai se centrar justamente na discussão da suposta naturalidade dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens. Malinowski e Mead, portanto, despontam como grandes precursores na Antropologia com pesquisas que problematizam a construção social e cultural da sexualidade.

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Um terceiro autor não muito lembrado e que vem sendo resgatado aos poucos nesse sentido é Gregory Bateson. A proposta de análise de Bateson em Naven (2008) a partir da etnografia de um ritual dos Iatmul é mais complexa e renderia outras discussões para além da apresentada sobre a Escola de Cultura e Personalidade. O naven é um ritual que chama a atenção pela prática do travestismo, onde os homens se vestem de mulher e vice-versa e em que ethos específicos esperados na divisão tradicional de papéis são invertidos, o que, tal como analisado pelo autor, desestabiliza as posições de homemmulher nas relações uns com os outros e entre si. A proposta de análise do autor é a de muito mais uma ideia “construcionista” de gênero a partir de relações contextuais, ou seja, que se desenrolam a partir dos elementos e dos atores no próprio ritual, do que determinismos culturalistas (Lipset, 2009). Muito dessa visão, inclusive, vai alimentar as análises de Strathern sobre o gênero na Melanésia (cf. 2006). Mas de fato, o potencial da etnografia de Bateson demoraria para ser reconhecido. A proposta de análise de rituais ou, mais propriamente, de cerimônias onde a sexualidade também está em jogo, irá chamar a atenção e ser usada por Victor Turner e outros autores em trabalhos onde as práticas sexuais etnografadas serão entendidas como parte de um sistema simbólico presentes na representação de “dramas sociais” rituais e cotidianos. Mas esse ponto será um dos focos sobre os quais me estenderei no próximo item. E esse passeio rápido e interessado pela teoria etnográfica clássica pode se encerrar aqui, já que a produção mais contemporânea sobre o tema esteve presente na discussão dos dados etnográficos das festas de orgia entre homens que pesquisei. E também porque já é hora de falar sobre como a orgia, em particular, vem sendo entendida no campo teórico. A orgia como ritual: entre o sagrado e o profano Percebo que há como duas formas de entender o fenômeno das orgias: uma, mais tradicional e mais abrangente, é a visão que a entende como um ritual; a outra, mais recente e crítica (da qual me aproximo mais), é aquela que vê a orgia como uma possibilidade de experimentação de prazeres e “mergulho hedonista”. Ambas as formas levam como base uma determinada chave de leitura que é a da relação entre norma e 243

transgressão e o quanto as práticas orgiásticas se colocam em relação a essa tensão. A transgressão, portanto, será o ponto nodal do qual preferencialmente se analisará o fenômeno, o ponto que atravessará ambas as visões. Mas, antes de falar especificamente sobre a questão da transgressão, me deterei na caracterização dessas duas visões teóricas sobre a orgia. Podemos dizer que nas ciências sociais, em geral, “as orgias são vistas como eventos de atividade sexual coletiva que agitam a ordem social e que fariam parte de uma temporalidade reconhecida de inversão de valores, tendo como função o afrouxamento momentâneo das coerções para regenerar e reforçar o corpo social” (Díaz-Benítez, 2009). Como um ritual, portanto, prescrito e necessário à coesão social. O conceito de ritual é um dos mais caros à teoria antropológica e ele subjaz a essa abordagem sobre eventos sexuais coletivos. Não é à toa que a discussão sobre ritual na literatura antropológica começa a tomar forma com os trabalhos de Emile Durkheim sobre religião e aquilo que ele chama de “efervescência” em As formas elementares da vida religiosa (2008). O traço distintivo do pensamento religioso é separar o sagrado do profano. E aqui, o autor vai mostrar como é característico das sociedades humanas criarem todo um sistema de crenças, de cerimônias, liturgias e ritos onde o ritmo da vida social é organizado nessa clivagem entre profano e sagrado, e mesmo na divisão entre aquilo que é tido como puro e o que é impuro. Divisões e classificações essas demarcadas por ritos que reafirmam tabus, interditos, comunhão, festas ou expiações. Importante afirmar que, para Durkheim, o puro e o impuro não são dois gêneros incomensuravelmente separados, mas duas variedades de um mesmo gênero, com possibilidade de transformação, na medida em que o puro pode se tornar impuro e viceversa. Dessa forma, a transgressão das regras “normais” também faz parte do jogo social (Segalen, 2002). Ou seja, não pode existir sagrado sem profano, e é sempre um jogo “ritualizado” de tensão a oposição entre esses pólos. É nessa relação fundamentada ao mesmo tempo na oposição e na necessidade um do outro que muito vai se falar sobre as normas e suas transgressões e, consequentemente, da potência erótica que essa tensão gera.

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As atividades sexuais coletivas, da mesma forma, vão ser interpretadas como esses momentos de rompimento e reagregação (ritualizadas) dos laços sociais inerentes a todo processo ritual. Sejam cerimônias para deus(es) ou mesmo para demarcar alguma passagem. A orgia, classicamente entendida nessa literatura, não envolveria apenas as práticas sexuais, mas também o consumo exagerado de alimentos e bebidas, um comportamento violento, uma catarse religiosa ou social, a “efervescência” da qual falava Durkheim, enfim tudo aquilo relacionado ao dionisíaco, ao erótico e aos prazeres. Em seu livro que se tornou um clássico sobre a história da orgia no Ocidente, Partridge (2004) estabelece uma classificação existente entre orgias conformistas e orgias rebeldes. A primeira correspondendo ao período histórico das sociedades grega e romana na Antiguidade e a segunda referente ao período da Idade Média até a contemporaneidade (início do século XX). O fato histórico que demarcaria a divisão entre os dois tipos seria a ascensão do cristianismo como religião oficial do mundo Ocidental. Segundo o autor, as orgias conformistas seriam aquelas que já “são parte integrante do modo de vida nacional” de cada sociedade. Ou seja, já são esperadas, possuem um calendário específico que é do conhecimento de todos, onde essas irrupções de efervescência aparecem como “um modo oficialmente reconhecido de liberar a energia” (op.cit,37). As orgias conformistas teriam um forte componente religioso ligado ao panteão de deuses da época e, segundo Díaz-Benítez, não se apresentariam enquanto transgressoras da sexualidade, mas sim, de eventos que integravam o roteiro de práticas sexuais vigentes, fazendo parte do calendário de festividades dessas sociedades (2009b, 570). São os banquetes e festividades da Grécia Antiga, os cultos de Afrodite e outros deuses do panteão grego, as bacanais do Império Romano, as cerimônias regadas a vinho e hidromel etc. “Cerimônias de álcool, dança e sexo encaradas com sentimentos de veneração religiosa - a orgia era uma experiência ‘religiosamente enobrecedora’” (idem). Do terreno do sagrado, as orgias vão passar a ser colocadas na esfera do profano, mais especificamente do paganismo e do “pecado” segundo o sistema religioso cristão que instaurou um conjunto de moralidades de contenção e constrição dos desejos e paixões

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(Freud, 1996)123. Daí, para Partridge, o surgimento das orgias rebeldes que apareceriam nesse contexto e que ainda ocorreriam em nossas sociedades. São assim classificadas pelo sentido de transgressão ou reação aos valores e moralidades estabelecidos, não são “essencialmente organizadas, nem toleradas pelo Estado ou pela sociedade, visto que surge da equação gratuitamente estabelecida pelo indivíduo face à sociedade ou ao Estado com o sentimento de reclusão e cerceamento que o aflige” (2004, 8). A feitiçaria, os sabás, as festas em bordéis, a libertinagem de figuras como Casanova e Marquês de Sade (dos quais trataremos mais adiante), os “loucos anos 1920” etc. Dessa ideia de papel transgressor que as orgias e a libertinagem podem possuir diante da moralidade constituinte de nossas vidas muito vai se alimentar as ideias de Bataille (2013) sobre o erotismo que veremos adiante. Mesmo com essa divisão estabelecida por Partridge, entre conformistas e rebeldes, fica claro que ambos os tipos de orgia se constroem sobre um discurso de um caráter catártico que eles possuiriam: “ambas [as orgias] podem ser reduzidas a um só e mesmo princípio - o do escape a uma qualquer tensão intolerável” (2004, 8). Ou, como resume o autor no início de sua obra, não fugindo de uma ideia psicanalítica sobre a orgia: Uma orgia é uma explosão organizada de energia, a expulsão de histeria acumulada por abstinência ou repressão e, como tal, tende a ser de natureza histérica ou catártica (...) serve à útil finalidade não só de fornecer alívio a tensões causadas pela abstinência, necessária ou desnecessária, como também por contraste, de tornar a despertar o apetite para a maçante moderação, que é parte inevitável da vida cotidiana. Daí ter sido usada por grupos tão diferentes quanto os povos da Grécia antiga e, a contragosto, pela Igreja Cristã medieval (Partridge, 2004, 9-10).

Dessa forma, as orgias cumpririam um determinado papel. A ideia de rituais coletivos orgiásticos como válvula de escape dos instintos que cotidianamente são reprimidos e sufocados, mostram que elas assim teriam, portanto, uma função social, tal como analisado por Maffesoli (1985). A “efervescência”, o êxtase, os excessos e o 123

A menção a Freud aqui não é à toa, afinal muito das interpretações sobre o papel, a formação e mesmo a função da sexualidade em nossas vidas é, bem ou mal, atravessada por aquilo que o discurso psicanalítico elaborou sobre ela, formando mesmo uma espécie de aparelho de captura para qualquer entendimento. A análise de Partridge para o fenômeno da orgia, por exemplo, é totalmente demarcada por conceitos vindos da psicanálise.

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transbordamento das emoções para este autor, são formas análogas de expressão de um mesmo caráter ou força dionisíaca, o “orgiasmo social”. Um “orgiasmo” que, ao contrário do que se poderia imaginar, possui uma característica mais estrutural do que de irrupções inesperadas e destruidoras, já que “a sombra de Dionísio” estaria presente em uma série de eventos rituais que podem ser encontrados em diferentes sociedades e que possuem uma função de “restauração” do próprio corpo social. As atividades coletivas orgiásticas na verdade seriam necessárias à estruturação social, já que uma cidade, um povo, um grupo mais ou menos restrito de indivíduos que não consegue expressar coletivamente sua imoderação, sua demência, seu imaginário, se desestrutura rapidamente (…) é necessário para que uma sociedade se reconheça enquanto tal, que ela possa pôr em jogo a desordem das paixões (idem, 19).

Como aponta Díaz-Benítez, o fenômeno da orgia nessa perspectiva é entendido no sentido puramente durkheimiano: um antídoto eventual que assegura a coesão societal e leva a um estado de congregação, que reafirma, seguindo As formas elementares da vida religiosa, o sentimento que a comunidade tem sobre si mesma. Assim, a orgia é ritualizada e se conecta com o lugar simbólico que o sexo coletivo desempenha na estrutura social (Díaz-Benítez, 2009b, 570-571).

Os eventos festivos orgiásticos entendidos como fazendo parte de rituais estão presentes em várias descrições etnográficas em toda uma literatura sobre ritos associados seja a eventos como o nascimento dos indivíduos até o simbolismo funerário, passando por ritos de passagem, experiências sazonais, ou mesmo na “transgressão de normas habituais de determinadas sociedades”, ou seja, toda uma “ritualização dos conflitos como maneira de restabelecer o equilíbrio” (idem, 571)124.

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Descrição de alguns desses ritos podem ser encontrados em Mauss (2003), Malinowski (1983; 1973), Turner (1974) e para uma visão mais abrangente sobre o papel do ritual ver Segalen (2002). Acrescento ainda que será dessa interpretação aqui descrita, inclusive, que muito vai se falar sobre o

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Se pudéssemos resumir a interpretação ou o entendimento dos eventos orgiásticos enquanto rituais, ele estaria na sua proposta de função social apontada por Maffesoli, onde a orgia seria a expressão ou representação da própria sociedade através do transbordamento de forças reprimidas: “imitando a desordem e o caos através da confusão dos corpos, o mistério dionisíaco funda periodicamente uma nova ordem, e sublinha também a preeminência do coletivo sobre o individualismo e seu correlato racional, que é o social” (Maffesoli, 1985,16). A orgia como prática hedonista Há como que um desaparecimento nas análises atuais dos chamados eventos dionisíacos, orgiásticos ou de efervescência, caracterizações de algum tipo ritualístico. Os trabalhos mais recentes que vão tratar desse tema não parecem apontar liturgias específicas, ritos de transformação ou de passagens, cerimônias de separação e demarcação de (im)purezas. Pelo menos não aqueles que vão se centrar nas sociedades urbanas contemporâneas. O orgiasmo como ritual ainda permanece como análise em algumas pesquisas etnológicas voltadas para os chamados povos indígenas (ver por exemplo: Eliade, 2004; além dos trabalhos reunidos no volume organizado por Herdt, 1993). Percebe-se como diversos autores passam a demarcar a sociedade em que vivemos como cada vez mais voltada para a técnica e a racionalidade, urbanizada, globalizada e mesmo individualista em vários níveis. Uma sociedade onde o coletivo seria preterido ao individual. A ideia do individualismo e do “corpo social” não mais coeso e agregado já é diagnosticado e previsto por Simmel mesmo em 1902 ao falar sobre o fenômeno do urbanismo no início do século XX (1979), de como é viver nas grandes cidades e de uma certa anestesia e insensibilidade que isso gera aos diversos estímulos (a atitude blasé que ele chama). O que levaria a se pensar que para podermos sentir de fato algo hoje em dia, a intensidade desse estímulo tenha que ser cada vez maior.

Carnaval. Em sua obra mais famosa, DaMatta (1979) analisou esse fenômeno como um período de liminaridade, uma “situação dominada pela liberdade decorrente da suspensão temporária das regras de uma hierarquização repressora” (op.cit, 38), onde, portanto, serão permitida as “permissividades sexuais”. Visão aprofundada e, de certa forma, compartilhada por Gontijo (2009) ao se debruçar sobre os significados do Carnaval para a homossexualidade.

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Tenho que destacar que o que venho chamando aqui de uma visão da orgia como prática hedonista não se percebe enquanto um corpus teórico específico e coeso em torno de um tema. Essa separação em visões é não só uma ferramenta de explicação que estou me valendo nessa explanação de ideias, quanto muito mais fruto de minha percepção na leitura de diversos trabalhos que, de uma forma ou de outra, colocam como tema novas formas de experiência social e afetiva. De maneira geral, as orgias vão aparecer aqui como experimentação de prazeres, possibilidades de desejos e fantasias. Díaz-Benítez (2009b, 573), em artigo sobre as filmagens de orgias como gênero na indústria pornográfica, ao apresentar os enunciados reificadores sobre a função dessas práticas que apresentei no item anterior, já chamava a atenção de como esses eventos de efervescência como encontrados hoje em dia em festas de swing, dark rooms, clubes de sexo etc., correspondem muito mais a um prazer sensorial em si mesmo do que a uma catarse ritualizada necessariamente advinda pela abstinência ou repressão. E mesmo Maffesoli, em obra mais recente (2014), entende o orgiasmo como uma característica cada vez mais presente em nossas sociedades contemporâneas, daí a ideia que o autor propõe de homo eroticus ou homo festivus. O orgiasmo não estaria mais guardado nos rituais sagrados ou profanos, mas sim esparramados na sociedade e em nosso cotidiano. Não há aqui uma mudança de ponto de vista do autor para o discurso que apresentamos no item anterior, ele ainda atribui ao “corpo social”, à “alma coletiva” e o “ideal comunitário” a verdadeira razão da alegria dionisíaca, o “querer-viver coletivo sobre o indivíduo”. Há, porém uma constatação de um “retorno em potência dos afetos e das emoções”, um “triunfo de Eros”. Essa maneira de ver o dionisíaco é característica de um processo que Michel Bozon e outros sociólogos chamam de “autonomização do campo da sexualidade e dos prazeres” (2003), processo esse que procurarei mapear rapidamente nos próximos parágrafos. Nas últimas décadas podemos acompanhar vários fatores que contribuíram para uma lenta reconfiguração das atitudes em torno do domínio da sexualidade como “transformações socioeconômicas, o desenvolvimento dos saberes médicos, a introdução da higiene e da saúde pública como questões, a difusão de uma instrução secularizada entre a população e etc”. Esses fatores, para Béjin, fizeram com que uma “antiga ordem da procriação”

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declinasse permitindo que a sexualidade se descolasse de apenas uma função reprodutiva, autonomizando-se relativamente como domínio do prazer (Béjin, 1982). Essa suposta separação de áreas vem sendo lida, na maioria das vezes, como sintomas de uma crise que a sociedade atual estaria passando. Crise de valores, crise moral, desagregação de uma determinada ordem e seus respectivos costumes. Todo um “repertório da crise” (Rolnik e Guattari, 2005) que seria acionado para explicar as relações no mundo atual. A análise de Rolnik sobre as relações afetivas contemporâneas situa-se em um outro patamar deste processo e relativiza esse discurso: Que a família implodiu, já sabemos. Isso não é de hoje. Dela restou uma determinada figura de homem, uma determinada figura de mulher. Figuras de uma célula conjugal. Mas esta vem se ‘desterritorializando’ a passos de gigante. O capital inflacionou nosso jeito de amar: estamos inteiramente desfocados. Muitos são os caminhos que se esboçam a partir daí: do apego obsessivo às formas que o capital esvaziou (territórios artificialmente restaurados) à criação de outros territórios de desejo, topamos com inúmeros perigos, por vezes fatais (op. cit., 342).

Rolnik aqui remete-nos ao “repertório da crise” com que tem sido tingida, contemporaneamente, a discussão sobre amor e sexualidade: crise da família, dos modelos de conjugalidade, a incompatibilidade patente entre o que se deseja e como se age. Para a autora o que se vê na verdade são as diversas possibilidades de criação de novos territórios existenciais. Há desse cenário, lido exageradamente como “crise”, chances de “uma nova suavidade” nas relações e a possibilidade de experimentações de outras formas de afetação. A dita autonomização da sexualidade, entretanto, é entendida por Bozon como uma crescente interiorização de controles (2003). E aqui, vale pensar como a sociedade atual também é produto de uma transição de um modelo disciplinar para um modelo de controle. Foucault (1990), ao demarcar a passagem das “sociedades de soberania” para as “sociedades disciplinares”, estabelece dois movimentos fundamentais na construção do “poder sobre a vida” como forma caracteristicamente moderna de poder. O primeiro com as disciplinas que trabalham no nível da microfísica do poder, diretamente no corpo e no

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organismo, e o outro nas regulamentações de controle que trabalham em uma escala macro, na biopolítica da população (op.cit., 298). A sexualidade, nesse contexto, emergiu como questão central, porque é justamente na elaboração desse dispositivo que podemos perceber a interseção entre “corpo individual” e “corpo da população”, se tornando alvo simultâneo tanto de disciplinas individualizantes quanto de controles massificantes (op.cit.,300). Deleuze (1992, 220-221) acompanha o movimento, já assinalado por Foucault, de sobreposição do “moldedisciplinar” pela “modulaçãodo controle”, do modelo da fábrica e da escola pelo modelo de formação permanente das empresas onde as “sociedades disciplinares” dão lugar às “sociedades de controle”. A lógica disciplinar caracterizada por Foucault permanece, mas dela se diferencia, já que o controle não estaria mais retido aos espaços fechados das instituições disciplinares, de confinamento e vigilância, mas sim distribuídos para todos os campos da vida social. A tese sustentada por Bozon acerca da “autonomização” ou “individualização da sexualidade”acompanha esse movimento, já que o autor sugere que “estas últimas décadas assistiram a uma aceleração do processo de substituição de controles e disciplinas externos aos indivíduos, por meio de controles e disciplinas internos, que aprofundam as exigências sociais”: De agora em diante, inúmeras injunções contraditórias se apresentam aos atores: conciliar a exigência de reciprocidade com a de realização individual; manifestar simultaneamente espontaneidade e autocontrole; comprovar flexibilidade e coerência em todas as situações (2003, 152).

Para Bozon, portanto, a“interiorização”crescente dos “controles”que tem viabilizado o fenômeno de “individualização da sexualidade”, embora abra aos sujeitos possibilidades antes impensadas, já que não se atrela mais a um controle “externo” de “tradição social” e “função reprodutiva”, na verdade acaba por adicionar uma camada extra de exigências existenciais. Nesse contexto, da modulação do controle e da autonomização da sexualidade, a relação entre os aspectos extensivos e intensivos da vida dos sujeitos se aprimora. Como procurei mostrar nos capítulos anteriores, não digo que os homens que frequentam essas festas trabalhem em uma lógica disjuntiva (ou...ou…). A maneira como eles parecem lidar com os diferentes “mundos” e “categorias” em que vivem assemelha-se

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muito mais a uma lógica da conjunção (e...e…). Aproxima-se daquilo que Eugênio (2006) chama de “hedonismo competente”, uma competência em saber articular os compromissos da vida cotidiana (trabalho, família, estudos etc.) com as práticas de “perdição”, de efervescência, de êxtase, ou do que eles chamam aqui de “putaria.” Algo pensado como sendo da incumbência de cada um. É preciso ter controle e domínio de si para saber articular e dosar esses campos e suas práticas. Como destaca a autora (op.cit, 323): cada indivíduo, neste movimento, revela-se com efeito “uma sociedade”, como o diria Tarde em sua proposta de monadologia (2007). Ou uma empresa, nos termos de Deleuze (1992), da qual se é ao mesmo tempo o patrão e todos os empregados. A sexualidade se “individualiza”, portanto, na medida em que se descola de um código de regras das leis de reprodução de uma sociedade, se constituindo enquanto um domínio de prazer “autônomo”, e onde se coloca como competência dos sujeitos o manejo desse domínio junto com as outras áreas da vida. *** Acredito que, diante dessas perspectivas apresentadas, preciso localizar os leitores quanto à forma como achei prudente e me propus a trabalhar os dados produzidos em meu trabalho de campo nas festas pesquisadas. Minha análise sobre as orgias vai se distanciar daquela que foi tomada inicialmente e que vem pensando esse fenômeno coletivo como reificador de uma entidade maior, a Sociedade, encontrando um objeto privilegiado nas grandes representações coletivas, ressoantes, sobrecodificadas. Como percebem Deleuze e Guattari, as representações já definem de antemão aquilo que é preciso explicar, atribuindo aos indivíduos significantes coletivos. Minha proposta, claramente de inspiração tardiana (Vargas, 2000), é buscar numa “microssociologia”, isto é, perceber quais são os fluxos de crença e desejo, segundo o autor os dois aspectos de todo agenciamento social: “As crenças e os desejos são o fundo de toda sociedade, porque são fluxos ‘quantificáveis’ enquanto tais, verdadeiras Quantidades sociais, enquanto que as sensações são qualitativas e as representações, simples resultantes” (Deleuze e Guattari, vol 3, 98-99)125.

125

A argumentação de Tarde ainda vai voltar ao final dessa digressão por sua utilidade no deslocamento de questões que estou propondo nesse trabalho.

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Não percebo tampouco a orgia, pelo menos a partir de meu recorte etnográfico, como uma prática ritual. Porém, ainda que adote uma visão “desritualizada” da orgia, isso não quer dizer que não a veja como possibilidade e espaço para transformações. Pelo contrário, como espero ter deixado claro, percebo as festas de orgia como locais de intensa e conflituosa produção de subjetividade e construções muito próprias relativas ao princípio da masculinidade e de ser homem; de uma forma particular de socialidade e de estabelecimentos de vínculos interpessoais; e, claro, de pôr em prática experimentações sensoriais e corporais de performances relativas à putaria. Essa visão acaba me aproximando da segunda linha de trabalhos que apresentei onde inicia-se por entender quais os sentidos desse caráter dionísiaco, dessas práticas sexuais coletivas naquele próprio contexto a partir dos próprios sujeitos. Quero aqui entender muito mais “como” eles fazem o que fazem do que descobrir um “porquê” oculto de suas ações. Esse “como” não só no encontro da descrição etnográfica, mas também do “como” enquanto quais são as condições de possibilidade para o evento das orgias entre homens. A meu ver, há uma proposta nesses encontros sexuais coletivos que diz respeito a um determinado “modo de existência”. No caso, de um estilo de vida ou de uma “estética da existência” (nos termos das obras finais de Foucault), baseada numa ética dos prazeres própria a esses espaços. E é aqui que acho pertinente voltar a atenção para outro contexto histórico-social do passado, onde podemos perceber a formação de uma “ética erótica” em termos consistentes e bem elaborados de tal forma que podemos encontrar vestígios até hoje.

“Libertinos libertários” Se pudéssemos apontar um momento chave na história ocidental onde o sexo alçou um patamar de ética filosófica126, entrando para o nosso imaginário como uma época de excessos, grandes bailes, festas e orgias, esse momento seria a Europa (principalmente França) no século XVIII pré-Revolução. É aqui que surge o “conceito” que nós temos de 126

Que talvez mais se aproximasse ao que Foucault diz sobre a forma como se desenvolveu a sexualidade nas sociedades orientais, ou seja, em termos de uma ars erotica.

253

libertinagem. Nesse item pretendo desenvolver algumas relações entre as festas de orgia que pesquiso

com um

“pensamento”

ou

“movimento

libertino”

desenvolvido

principalmente nesse período europeu. Filósofos, artistas, políticos, romancistas e revolucionários que fizeram do prazer sexual e da invenção política o ponto de partida para suas reflexões e ideais (Novaes, 1996)127. O termo libertino deriva do latim libertinus, que pode significar “liberto” ou “exescravo”. O termo em geral aplicou-se não no sentido de liberdade civil, mas sim de liberdade no plano intelectual. Libertinos, portanto, em um sentido literal, são aqueles que se libertaram de um quadro ideológico que prescreve normas de conduta e fixa limites de pensamento. O termo é usado pela primeira vez em francês por Calvino para designar dissidentes oriundos das seitas protestantes do Norte da França. Esse grupo não só pregaria uma moral própria que não corresponderia a um sistema religioso determinado, como também praticaria uma liberdade de costumes baseada na negação do pecado e da comunhão de bens. “São portanto libertinos ao mesmo tempo no plano intelectual e no plano dos costumes” (Trousson, 1996, 165) O deviacionismo religioso vê-se assim muito cedo associado à depravação dos costumes e à promiscuidade, e até mesmo a tendências anarquistas, demolidoras da ordem social. (...) Em 1683, no entanto, Pierre Bayle, vem romper essa velha aliança entre moral e religião. (...) Bayle separava assim religião e moral, libertinagem de espírito e libertinagem de costumes. Depois dele, o libertino, o espírito forte, o livre-pensador, serão os chamados “filósofos”, e a libertinagem designará, através de acepções cada vez mais flutuantes, toda frivolidade ou desregramento de conduta, evocará impudor e dissipação. (op.cit., 166)

Essa divisão estabeleceria uma diferenciação (na maioria das vezes ilusória) entre escritos e pensamentos “sérios” (filosóficos) e “imorais” (libertinos). No fundo replicando 127

A bibliografia sobre o “movimento libertino” é extensa, variada e principalmente em língua francesa. Aqui, vou utilizar principalmente a coletânea de textos organizada por Adauto Novaes, cujo título é o mesmo do nome do item desse capítulo. É uma reunião de artigos apresentados para um ciclo de conferências coordenado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Funarte e que dialoga bastante com essa produção internacional. Além da própria obra dos autores “libertinos” citados. No Brasil destacam-se também os trabalhos de Eliane Robert Moraes, pioneira no estudo da obra do Marquês de Sade.

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outras divisões como razão X paixões, alma X corpo, pensamento X sensação. Onde os primeiros termos desses pares (razão, alma, pensamento) seriam valorizados em detrimento dos outros termos, tidos como menores, deturpadores e mesmo perigosos. O dito “movimento libertino” dessa época inovaria por justamente ousar fazer uma “filosofia do efêmero, fundada nos sentidos e nas paixões do corpo” (Novaes, 1996, 10). É este o grande alargamento proposto pelos libertinos de espírito e de corpo: a verdade está tanto na razão, sob o aspecto da argumentação e do discurso, quanto no objeto sensível. As paixões estão não apenas na alma, isto é, nos pensamentos, como quer Descartes, mas também no corpo. (...) O libertino no século XVIII vive no prazer e vive no pensamento do prazer. (op.cit., 16-18)

A libertinagem, enquanto “movimento intelectual”, não só elabora um conhecimento carnal como coloca o sexo como eixo norteador para o pensamento: “sob todas essas formas, o sexo é não apenas um tema, mas também um instrumento para rasgar o véu que cobre as coisas e explorar seu funcionamento interno. Ele serve assim às pessoas comuns como a lógica serve aos filósofos: ajuda a extrair sentido das coisas” (Darnton, 1996, 21). Ou como resume o autor: o sexo é o elemento que dá o que pensar. E, dá o que pensar, não só porque ele estará sempre presente nas narrativas e nos discursos. Muito comum na literatura dita “pornográfica” dessa época os personagens entre cenas de sexo e orgias discutirem ontologia e moral enquanto restauram as forças para a próxima rodada de prazer128. Mas o que Darnton está chamando a atenção aqui é para uma elaboração de um pensamento, de um conhecimento próprio derivado dos sentidos, dos corpos e seus encontros (principalmente eróticos), do desejo, tudo governado por um cálculo hedonista (op.cit, 26). “Produção de uma razão delirante”, a filosofia libertina é como se fosse um filho rebelde do pensamento iluminista. Apesar do estranhamento não há um paradoxo entre 128

Exemplo clássico desse formato pode ser encontrado em A filosofia na alcova do Marquês de Sade publicado em 1795. Trata-se da descrição do processo de “educação sexual” de uma jovem saída do convento por três experientes libertinos através de uma “filosofia de choque”. Ao mesmo tempo em que a personagem é obrigada a conhecer o seu corpo e a experimentar os mais diversos prazeres advindos das práticas sexuais com homens, mulheres e animais envolvendo blasfemias, incesto e práticas mais extremas e violentas é socializada numa forma “libertária” de pensamento onde seus paradigmas morais são colocados em cheque a todo momento (2008).

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essas formas de pensamento. O movimento libertino, ainda que pregue o conhecimento pelas paixões e excessos, não abre mão da racionalidade, muito pelo contrário. É o cálculo racional levado a um absoluto. Os prazeres são organizados em uma perfeita economia, onde nada deve se perder, se dissipar, se descontrolar (Kehl, 1996, 335). Verdadeiro culto do eu no templo da razão, como se intitula um dos artigos de Duarte (1983), onde desde o século XVII, com uma intensificação crescente, vem-se privilegiando o sujeito como sendo determinado pelas paixões, pelo desejo, fazendo com que a sexualidade emergisse como tema fundamental que descortina a verdade ética do sujeito. “Filosofia do homem senhor de si” (...) é este certamente o objetivo de toda a filosofia praticada na alcova: mostrar o homem que domina seus próprios sentimentos e paixões, mas sem os reprimir, que assim estiliza sua própria vida, sofisticando-a no uso que faz do seu desejo (Ribeiro, 1996, 228)

Filosofia do prazer, prazer esse que prova e dá sentido à própria existência. “Gozo, logo existo”, essa seria a máxima libertina (Trousson, 1996, 177). A busca do prazer, o instante intenso e a inconstância, enquanto consciência da mobilidade e impermanência do desejo são os norteadores dessa filosofia que, obviamente, vai romper com toda e qualquer conveniência social, como casamento e família, ou qualquer molarização que imponha limites ao desejo. Incansavelmente o presente se furta, relançando o espírito numa corrida em que somente a renovação dos desejos dá o sentimento de existir. Doravante o indivíduo deve salvar-se do não-ser, não pelo recurso à transcendência, mas pela intensidade dos sentimentos e das sensações, cuja multiplicidade funda por sua vez a duração. Ser é sentir, portanto ser causa de si mesmo. Para ter acesso à plenitude é preciso multiplicar e diversificar as sensações,

relançar-se de desejo em desejo, e assim renovar incessantemente os objetos do desejo. Antes de ser o traço de uma sociedade “permissiva”, mobilidade e inconstância são de fato necessidade psicológica e manifestação de uma inquietude ontológica, fuga diante do nada ameaçador (op.cit., 176-177)

Dois personagens vão se destacar desse contexto, não só por colocarem no papel narrativas (ficcionais ou não) onde esse universo de dissolução associado à libertinagem é

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explicitado, como também ficaram famosos por suas próprias biografias que não devem nada a seus escritos. O primeiro é o italiano Giacomo Casanova (1725-1798). Apesar de alguns escritos teóricos, de seu trabalho como militar, “aventureiro” e de agente espião do governo na época, será a sua autobiografia, escrita já no final da vida, pela qual vai ganhar fama resistente até a atualidade. As Memórias de Casanova, publicada aqui no Brasil em edições de 10 a 12 volumes, se tornou um dos clássicos eróticos “libertinos”. Porque foi ali que o autor procurou narrar toda uma vida dedicada a encontros amorosos e aventuras sexuais. É a descrição desses sucessivos momentos de intensidade erótica que acabou por tomar o primeiro plano do livro. Foi a partir de sua vida sexual que Casanova achou que valia a pena contar a sua história, já que a busca “erótica” foi à qual dedicou mais engajamento e onde encontrava maior sentido para sua existência (Kelly, 2008). “Casanova” tornou-se adjetivo, maneira de caracterizar a arte da sedução, de como chamar homens sedutores ou os que buscam parceiros amorosos incessantemente. Apesar disso, os trabalhos sobre a obra e a vida de Casanova acabaram por se centrar na investigação da veracidade dos seus relatos. A importância que vai tomar é se todas essas amantes e encontros existiram de fato e quem foram elas verdadeiramente, já que Casanova usava pseudônimos para evitar a identificação dessas mulheres. A surpresa dos historiadores é que suas memórias se comprovaram factuais (Childs, 1992). Uma segunda e talvez mais destacada figura é a do francês Donatien Alphonse François, mais conhecido como Marquês de Sade (1740-1814). Sade talvez seja o personagem-emblema do movimento libertino. Passou quase metade de sua vida em prisões e hospícios (32 anos no total), incriminado, em sua maioria, justamente pelos crimes sexuais e escândalos libertinos que fariam a fama de seus escritos. A sua obra que sobreviveu aos nossos dias, inclusive, foi quase toda escrita dentro dessas prisões (Schaeffer, 1999). Com uma biografia tão famosa quanto seus escritos, às vezes não se podendo distinguir “realidade” de “ficção”, muito acabou por se tornar lenda como se ele o tivesse praticado de fato. Sade, ao que parece realmente procurou colocar em prática a libertinagem como filosofia de vida, o que em muito foi ajudado por sua origem aristocrática (mas não o suficiente para livrá-lo dos seguidos encarceramentos). Sua obra leva a libertinagem a um nível máximo, onde não se distingue mais nenhum resquício de 257

valores morais que não estejam relacionados à busca do prazer. Nenhuma instituição é salva. Os 120 dias de Sodoma (2006), considerada sua obra-prima (ainda que incompleta), mostra bem isso: quatro libertinos, autoridades do Estado e da Igreja, se reúnem junto a um grupo grande de pessoas em um castelo para se entregarem às mais diversas práticas sexuais orgiásticas. O livro vai num crescendo de intensidades de “tipos de paixões”: as simples, as complexas, as criminais e as assassinas, fazendo com que os personagens terminem em um banho de sangue, onde a morte é elevada a prazer erótico. Os personagens sadianos agem para o seu bel prazer, sem levar, em momento algum, o outro em consideração. Valeria aqui a regra sadiana do “egoísmo absoluto”, como afirma Maurice Blanchot, que ressalta ainda: “diz o herói de Sade, só conheço o meu prazer e, para assegurá-lo, torturo e mato” (Blanchot apud Moraes,...). O que seus personagens buscam é a realização sexual a qualquer custo, seja ela com humanos (de qualquer sexo), animais, excrementos ou qualquer outros objetos de fetiche. Eliana Moraes afirma que as personagens criadas pelo escritor francês parecem fazer parte de “A Sociedade dos amigos do crime” (texto do Marquês de Sade), para a qual o crime é a “resistência [gerada] em se entregar a todas as aspirações da natureza, de qualquer espécie que possam ser”; e que reconhece como o único deus “o prazer; por este ela sacrifica tudo. Admite todas as volúpias inimagináveis e aprecia todos os deleites, todos os gozos são autorizados em seu seio (...)”. Sade não vira só adjetivo, como aconteceu com Casanova, mas também serviu como inspiração para um diagnóstico clínico de perversão sexual. Será de sua vida e obra (nunca mais entendidas separadamente) que vai se elaborar o conceito de “sadismo” no recémcriado campo científico da psicanálise e da ciência sexual no final do século XIX. O sadismo irá configurar como uma espécie de prazer derivado do ato de causar dor ou ser cruel com outro. Junto com o seu par “necessário”, aquele que tem o prazer em sentir a dor, o “masoquismo” (nome também derivado da obra ficcional de outro escritor do século XIX, o austríaco Sacher-Masoch) formarão o duplo-conceitual “sadomasoquismo”. Nos manuais de ciência sexual esse par vai aparecer com uma constância impressionante, influenciando a interpretação de Freud, que afirmou que não existem pessoas apenas sádicas, ou apenas masoquistas. Mas sim que todos nós, essencialmente, somos tanto sádicos quanto masoquistas, o que haveria é uma diferença de graus entre essas forças (ativas ou passivas). 258

Em Freud, a força sadomasoquista serve como pano de fundo para nossos impulsos (1996). Da mesma forma, o sadomasoquismo enquanto conceito será um arcabouço que influenciará o que atualmente se chama de cultura S&M, ou BDSM (Leite Jr, 2009). De autor maldito, e mesmo desagradável, Sade será uma das figuras que mais vai influenciar algumas ideias sobre o erotismo no pensamento contemporâneo. E é a partir de uma releitura da obra desse autor que foi feito um resgate do pensamento libertino por teóricos franceses na segunda metade do século XX. Pensadores como Sartre, De Beauvoir, Blanchot, Barthes, Bataille e Foucault começarão a escrever ensaios onde a obra do Marquês vai ser analisada para além do simples choque superficial da descrição de cenas sexuais, de crimes e de tortura. Procuraram mostrar que na literatura de Sade poderia haver uma profundidade tão maior quanto aquela encontrada nos tratados filosóficos escritos por Rousseau, Voltaire e Montesquieu, seus contemporâneos “iluministas”. Deleuze foi na contra-mão aos ensaios dessa época, resgatando não a figura de Sade, mas a de outro escritor, Leopold von Sacher-Masoch, que acabou sendo apagado pela força e fama do primeiro. O austríaco, autor de Vênus das Peles, é aquele cuja obra influenciou a criação do conceito de “masoquismo”. Deleuze (2009) nesse ensaio aborda sua obra em comparação com os escritos de Sade e de Freud, como maneira de desconstruir a figura clínica do “sadomasoquista”. Para ele, a relação sádico-vítima na obra do Marquês e a relação masoquista-dominador para Masoch são formas de interação sexual completamente diferentes e que são informadas por princípios distantes, o que ele chama de regime “absolutista” no primeiro e de regime de “contrato” no segundo. E aquilo que chamamos atualmente de práticas sexuais sadomasoquistas estariam muito mais próximas daquilo que Masoch descreve do que Sade imaginou. Cabe agora um aprofundamento sobre a relação entre norma e transgressão mediada pelo erotismo, já que como pudemos perceber, é ela que veio permeando a argumentação dos autores que se debruçaram sobre o tema dos prazeres sexuais e eróticos.

259

Sexo e transgressão “O desejo do erotismo é o desejo que triunfa sobre o interdito” (Bataille, 2013, 282).

É do filósofo Georges Bataille a famosa associação entre prazer erótico e transgressão:

“o erotismo difere da sexualidade dos animais na medida em que a

sexualidade humana é limitada por interditos e em que o domínio do erotismo é o da transgressão desses interditos” (idem). Está aqui posta a lei, segundo o autor, onde cabe ao erotismo e ao prazer decorrente nele o rompimento dessas normas. O impulso em direção à transposição dos próprios limites, segundo Bataille, seria uma característica universal, presente em todos os seres humanos. Esse impulso se manifestaria naqueles momentos onde o elemento da violência (encontrada e inerente a qualquer instante de intensidade) se sobreporia à “razão”. Os interditos, normas e leis criados pelas sociedades seriam as formas de controlar esse impulso violento que insiste em irromper em diversos momentos. Branco (1984, 82), ao analisar a obra do autor, aponta que a violência presente na transposição dos próprios limites se manifestaria nos seres humanos principalmente por três meios, segundo o pensamento batailleano: pelo erotismo (“ir além de si mesmo, de encontro ao outro”), pelo misticismo religioso (“ir além de si mesmo, de encontro a Deus”), ou ainda da própria morte (transposição e destruição final). Erotismo, religião e morte são, dessa forma, como que produtos de um mesmo fundo comum, são feitos de um mesmo conjunto de forças, uma mesma forma de desejo, já que os três “são resultados desse movimento em direção à transposição dos limites; são produtos da violência que nos domina”. Daí o apego do autor inclusive aos escritos de Sade: o resgate dessa violência e na audácia de sugerir que ela é natural ao ser humano, “o poder simultaneamente fascinante e repulsivo de sua obra deriva sobretudo dessa conexão violência-erotismo” (Branco, 1984, 82). No limite, o movimento do erotismo tem sempre o mesmo fim, implicando uma convulsão interior, não importa se motivado pelo desejo sexual, pela fé religiosa ou pelo impulso de morte. Trata-se de “violar a integridade dos corpos”, de “profanar as identidades definidas”, de “destruir a ordem descontínua das individualidades”, enfim de “dissolver as formas constituídas”. Trata-se, em última instância, de “ignorar a oposição

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entre os domínios de Eros e Thanatos”, para aceder ao caos da continuidade: “o sentido último do erotismo é a fusão, a supressão do limite”. (Bataille, 2003, 311). O erotismo batailleano, portanto, é entendido como resultante de duas forças antagônicas, mas complementares: a vida e a morte. O que move os indivíduos no erotismo é, segundo Bataille, o desejo de permanecer através da fusão com o outro, o desejo de continuar, de superar a morte. Entretanto, essa fusão com o outro é sempre momentânea e fugidia, e está condenada a desaparecer, a morrer, para que os indivíduos continuem existindo como seres distintos (Branco, 1984, 36).

Bataille resgata a teoria de Freud (1996) que já havia falado da existência dos impulsos de vida e morte no inconsciente humano, que como vimos é movida segundo o autor por forças ativas e passivas de fundo sadomasoquista, e têm sua manifestação plena no erotismo129. Para Bataille, não há prazer sem violação. A experiência erótica é, primeiramente, uma violação ou transgressão das normas sociais que regulam a sexualidade. Por isso, a transgressão ser o movimento necessário e característico, segundo este autor, do universo dos prazeres e da experimentação erótica. Dessa forma, a potência contida no erotismo estaria justamente em seu movimento de violação das barreiras e normas culturais. A proibição é o que dá sentido ao prazer advindo de sua violação: “O que é notável na proibição sexual é que esta só se revela plenamente na transgressão. (...) Nunca, humanamente, a proibição surge sem a revelação do prazer e nunca o prazer surge sem o sentimento da proibição” (Bataille, 2003, 94). As ideias de Bataille permanecem potentes e influentes para se pensar erotismo e sexualidade, porém o autor vem sendo revisitado e recebendo novas leituras críticas à luz dos recentes estudos sobre gênero e sexualidade. Gregori (2010, 39-41) salienta que tal concepção é recortada pelo posicionamento da relação masculino/feminino a partir de uma 129

Apesar de que a argumentação de Bataille vai se centrar em aspectos biológicos. Observando a reprodução assexuada e sexuada dos seres, ele concluirá que, para se originar uma nova vida, é necessário que uma antiga vida se desfaça, deixe de existir. A vida é, portanto, produto da decomposição da própria vida (Branco, 1984, 81).

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díade entre ativo e passivo, sendo ainda limitado o exame dos efeitos dessa tradição no que concerne à problemática de gênero. Em Bataille, o gênero aparece fixo e cristalizado, ligado ao dimorfismo sexual e à associação entre sexo/gênero e posições sexuais, ao falar em homem/atividade e mulher/passividade. O corpo “violado”, passivo, é “feminino”, oposto ao que penetra: “masculino”, ativo e “violador”. Uma divisão que, inclusive, não se faz nos escritos de Sade, que percebia que dentro de uma lógica erótica esses papéis não mais faziam sentido. Para Braz (2009, 230), Bataille também formula sua noção de erotismo, situando-o no interior da “matriz heterossexual”, dificultando pensar o erótico fora da heteronormatividade, “cuja operação de gênero implica a dualidade ativo/passivo, sujeito/objeto de desejo” (op.cit.). Um pensamento, portanto, que ainda se mantém e reforça a constituição dessa mesma matriz. A pergunta que o autor faz é: como pensar a transgressão para além de uma conformação heteronormativa de pensamento e de performance? Uma questão que vai ser melhor debatida por aquilo que foi chamado de teoria queer. Apesar dessas ressalvas, o pensamento de Bataille ainda tem força atualmente com seu caráter contestatório e interesse pela transgressão. Muito dessas ideias vai estimular o pensamento de Foucault sobre as chamadas práticas ou “prazeres dissidentes”130. Usando o exemplo dos clubes sadomasoquistas, Foucault (2013) fala de todo um campo de “sexualidades periféricas” que constituiriam verdadeiros “laboratórios de experiências sexuais”, locais de experimentação erótica e sexual, onde esses prazeres dissidentes poderiam ser e são colocados em prática. Foucault via com grande entusiasmo o fato de nesses locais poder se estabelecer jogos, tensões e deslocamentos com relação às normas, além da produção de novas e criativas formas de se relacionar. Foi a partir dessa perspectiva que procurei apresentar as festas de orgia entre homens pesquisadas. Porém, como lembram Diaz-Benitez e Figari (2009, 26), ainda que essas práticas sexuais dissidentes sejam construídas sob o signo da transgressão, isso não quer dizer que 130

A denominação “prazeres dissidentes” é justificada por Diaz-Benítez e Fígari (2009) como o que diz “respeito de práticas e experiências no campo do sexo-gênero que operam nas fronteiras do erótico/erógeno normativo: como são geradas, como são vivenciadas, enfim, como existem além da abjeção” (op.cit, 25).

262

sejam universos desregrados onde imperariam o descontrole, o caos, a anarquia. “Pelo contrário, normas, valores e convenções, por vezes hierárquicas, organizam sua existência”(op.cit.).

Há,

portanto,

mesmo

nesses

espaços

ditos

transgressores

(re)afirmações e replicações de norma, criação de hierarquias e tensões de vários fatores. Além da norma, têm-se a “ordem” local. Ainda que sejam espaços voltados para a perdição, para o êxtase e o “sair de si”, as etnografias mostram aquilo que Featherstone (1995) chama de “descontrole controlado”. Estou falando disso aqui rapidamente, porque já desenvolvi esse tema em outros capítulos, tomando o caso em questão das festas de orgia entre homens. Mas, antes queria mostrar como já desde nas obras de Sade se aponta que mesmo a orgia é e deve ser “organizada”: Posso dizer que vi todos os quadros que a mais lasciva imaginação não poderia conceber em menos de vinte anos; ah! quantas posições voluptuosas... quantos caprichos extravagantes… quanta variedade de gostos e inclinações! Oh, Deus!, disse a mim mesma: como a natureza é bela e como são deliciosas as paixões que nos oferece! Mas algo extraordinário que eu não deixava de notar é que, com exceção das palavras necessárias aos atos libertinos, os gritos de prazer e muitas blasfêmias, podia-se ouvir o vôo de uma mosca. A maior ordem reinava no meio de tudo isso. As ações mais decentes não se fariam com maior calma. E, por essa circunstância, pude me convencer facilmente de que o que o homem mais respeita no mundo são suas paixões. (Sade, …, 458)

O Marquês coloca a questão: “Como é possível que, numa orgia entre quatrocentas pessoas, das mais lascivas que existem na face do universo, possa reinar a mais completa ordem? O que faz com que um local destinado à prática sistemática de todos os excessos deva ser tão silencioso a ponto de nele poder-se ouvir o vôo de uma mosca?” A preocupação de um ordenamento do desregramento é fundamental para que essas práticas não só ocorram com sucesso como que seja possível extrair delas o maior prazer possível. A festa Antes de finalizar essa digressão, acho importante apresentar uma aproximação com o fenômeno e uma certa conceituação da “festa”, que, já aviso, de longe não se pretende

263

exaustiva. Um bom apanhado teórico sobre o tema pode ser encontrado no primeiro capítulo da dissertação de Vianna (1987) e sobre a produção e debates atuais tem-se a coletânea de textos organizada por Perez et al (2012). Ao mesmo tempo quero aqui justificar algumas escolhas teóricas aliadas a determinadas análises que venho privilegiando nessa tese. Campo do possível e do desafio, a festa inventa/cria/gesta/imagina outras relações do homem com o mundo, sobretudo outras relações consigo próprio, outras formas de ligar, pois coloca em ação o excesso e a transgressão, seus operadores de distinção relativamente ao mundo das coisas, da duração e dos determinismos, oferecendo-nos a possibilidade de pensar a vida coletiva para além da duração e dos determinismos, abrindo outras vias para as abordagens correntes, desde que abandonemos, ainda que pelo instante fugidio da festa, nossas práticas discursivas racionalizadas e racionalizantes e nos deixemos levar pela lei do desejo/gozo, que é a lei da festa (Perez, 2012, 40).

Pensar a festa enquanto objeto etnográfico, ou como cenário de produção dos nossos dados, é lidar com esses limites dos nossos “entendimentos teóricos”, onde os próprios atores apontam para esse “além”. Um “além” que claramente, pode entrar na seara de interpretações sobrenaturais e religiosas (e talvez por isso as festas tenham sido objeto de referência para uma literatura de rituais religiosos), mas também de um “além” que tem a ver com algo de infinitesimal, de inapreensível, que “foge” e “transborda” ao entendimento. No caso, de um excesso que não se explica pela ordem, mas por ele mesmo131.

131

Se existisse algo mais próximo de uma “lei” nesses espaços de orgia, ela seria a do excesso. A forma mais interessante de trabalhar esse conceito, e próxima do contexto que estou tratando, é aquela trazida por Bataille em sua “noção de dispêndio” (2013b). O que o autor faz aqui é uma inversão da moral econômica dominante, colocando a ideia de gasto, de excesso, como ponto principal de conhecimento sobre nós mesmos. O “dispêndio improdutivo” aparece aqui como fundamento da investigação humana. A noção de inutilidade que acarreta, gerada pelo gasto, pela perda de dinheiro ou de energia, é profundamente ligado à noção de erotismo posteriormente desenvolvida pela autor: De fato, do modo mais universal, isoladamente ou em grupo, os homens se encontram constantemente empenhados em processos de dispêndio. A variação das formas não acarreta nenhuma alteração das características fundamentais desses processos cujo princípio é a perda. Uma certa excitação,

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Os excessos e as transgressões festivas, como, por exemplo, o beber até cair, o dançar até a exaustão, o comer até a indigestão, a licenciosidade sexual, não são apenas a inversão da “ordem das necessidades”, a suspensão temporária das regras que instaura o mundo às avessas, mas também a “realização do desejo”, sendo, assim, tanto a “afirmação da humanidade do homem tornada pura interioridade”, como “a busca da irreversibilidade”. Não se trata apenas de “comer para viver”, mas também do “gozar de comer”. A vida, ou seja, o humano, demasiadamente humano, nasce do dispêndio suntuoso. Festa é, como já disse antes, o ato mesmo de produção da vida, “integra o homem na circulação geral dos seres”, faz parte dos “atos sem finalidade, que não se reduzem ao jogo, que ocupam um lugar imenso no tempo da vida dos homens, que envelopa o que chamamos de ‘história’ de uma trama sem a qual a história seria um jogo de marionetes” (Perez, 2012, 40-41)

A festa tem uma compreensão teórica semelhante ao que vimos com relação às orgias. Afinal, toda orgia é uma festa. E as práticas coletivas de efervescência, do festivo, do orgiasmo passam pelo mesmo crivo teórico. E podemos encontrar, da mesma forma, a dupla tendência: a festa enquanto ritual e a festa enquanto diversão (extravasamento de alegria, das paixões, do hedonismo etc.). Adoto aqui a diferenciação que Perez faz entre “festa-fato” e “festa-questão”: Na teoria antropológica clássica, a festa é tomada, via de regra, como objeto/fato, sendo estudada sob a rubrica ritual religioso e em termos estrita e estreitamente descritivos, no máximo podendo ser utilizada como elemento/índice para elaboração de quadros classificatórios, logo é tomada em perspectiva, isto é, remetida e referida a algo que lhe é exterior e do qual não passa de epifenômeno. É o que chamo de festa-fato. Dificilmente é apreendida como perspectiva propriamente dita, o que chamo de festaquestão (Perez, 2012, 23).

cuja soma é mantida no correr das alternativas a uma estiagem sensivelmente constante, anima as coletividades e as pessoas. Em sua forma acentuada, os estados de excitação, que são comparáveis a estados tóxicos, podem ser definidos como impulsos ilógicos e irresistíveis à rejeição dos bens materiais ou morais que teria sido possível utilizar racionalmente (Bataille, 2013b).

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Uma possibilidade, portanto, que se coloca para o entendimento da festa é a de um evento\acontecimento que diz respeito à própria estrutura social. Nessa primeira abordagem, há a diferenciação entre “acontecimento” e “evento”feita por Sahlins e sua relação com uma determinada estrutura (1990): o acontecimento é aquilo que é previsível, já presente no cotidiano e no calendário social compartilhado coletivamente, ou seja, esperado dentro de uma lógica social. O evento seria o fato inesperado, o que perturbaria, aquilo que não estava previsto dentro de uma lógica de acontecimentos estruturais, mas que, de qualquer forma, vai ser apreendido e interpretado à partir deles: Um evento não é somente um acontecimento no mundo, é a relação entre um acontecimento e um dado sistema simbólico. E apesar de um evento enquanto acontecimento ter propriedades "objetivas" próprias e razões procedentes de outros mundos, não são essas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a sua significância, de forma que é projetada a partir de algum esquema cultural. (...) Os eventos não podem ser entendidos separados dos seus valores correspondentes: é a significância que transforma um simples acontecimento em uma conjuntura fatal (Sahlins, 1990, 191)

Nesse sentido, as festas de orgia, pelo menos para seus participantes, entrariam na ordem de eventos que os tirariam da ordem dos acontecimentos previsíveis do cotidiano. São aqueles domingos específicos do mês, ou aqueles dias marcados e, para alguns, até ansiosamente aguardados, onde será possível colocar em prática uma “descarga” de energia contida e reprimida pelo dia-a-dia repetitivo de afazeres e de uma ordem de contenção. Mas mesmo assim, evento e acontecimento, nessa abordagem, estão presos e referidos a uma determinada estrutura que seria transcendente, um fato social. A festa seria uma manifestação coletiva que, ainda que, com o objetivo de negar ou de reiterar a estrutura, a reproduz. A meu ver, essa visão impede que se perceba como a festa pode ir além da reprodução de uma estrutura, de uma coesão, de uma identidade e de perceber a sua própria potência de produção. Citando Duvignaud, Perez afirma que a compreensão da festa como fato, herdeira do pensamento de Durkheim, congela a festa no tempo e no espaço, numa tentativa de sociologizar a efervescência. Isso acabaria por reduzir o evento a uma mera exteriorização

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dramatizada da substância social, a efervescência “torna-se artificialmente, um objeto exterior que as coletividades adoram como a causa externa de sua existência, quando se trata, de fato, do efeito de seu próprio dinamismo” (Duvignad apud op.cit, 25). Seria preciso resgatar então na imanência, a densidade afectual do instante efêmero do presente vivido na festa, vivido como gozo e como dissipação (op.cit, 30). Como afirma Vianna: “a festa pode ser apenas uma festa”, pura diversão, sem nenhuma outra “utilidade” além de divertir e não como reprodução de alguma outra coisa, seja ela identidade, valores pós ou contra, sentimentos de unidade ou coesão social (1987, 38). A proposta aqui não é a de descartar a importância da ideia da festa enquanto ritual ou não pertencente e mesmo representante de uma tradição ou determinada estrutura social. Mas sim uma tentativa de entender a festa em seus próprios termos (Holbraad, 2007). O que importa não é tanto o evento da festa periodicamente realizado nem o fato da existência da festa em si, mas, como afirmei antes, o de entender “o como”, qual “o mecanismo”, o “operador de ligações”, os fluxos, enfim, que pode se instaurar no interior desses eventos, “o que implicaria indagar não sobre a que mundo ou que ordem de coisas/evento ela se refere, mas sobre o que é o mundo festivo, qual é a ordem festiva, se é de ordem que se trata” (Perez, 2012, 24). É ir além de uma “compreensão”, é uma tentativa de “apreensão” da festa. Fenomenológico? Talvez. Engana-se quem vê nisso uma proposta de teoria “pós-moderna” ou modismo contemporâneo, que seja. A ideia de uma análise social que dê conta de nossas ações infinitesimais e dos fluxos entre as relações sociais é já indicada mesmo por Gabriel Tarde, contemporâneo de Durkheim. Volto a trazer Tarde a esse texto por entender que sua perspectiva dê abertura para essa intensidade do acontecimento o qual percebo estar presente nas festas pesquisadas132. Na obra desse autor podem estar muitas ferramentas

132

Gostaria de rapidamente justificar o uso de “autores menores” ao invés de “grandes autores” com discussões já estabelecidas e majoritárias. Esse recurso não é novo, já usado, por exemplo, em Foucault com fontes obscuras e desconhecidas do grande público ou mesmo por Deleuze ao privilegiar Sacher-Masoch ao invés do já famoso Sade para pensar aspectos do erotismo. A ideia não é, pelo menos a minha, trazer esses autores para estabelecer um “contraditório” com o discurso majoritário, mas sim provocar um deslocamento de perspectiva, uma diluição, um “antídoto”, vá lá, às respostas e interpretações “prontas” que determinadas formas de entender o social podem trazer. O uso de “autores menores” é bem justificado na forma com que Deleuze e Guattari fazem com Kafka e o “devir-minoritário” de sua literatura (2014). Ainda que esteja implícito uma disputa de abordagens

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úteis para entendermos a lógica da formação, dos movimentos, muitas vezes, imperceptíveis na sociedade, fenômenos que partiriam de uma diferença fundamental explicitada pelo autor na frase: “Existir é diferir” (2007). Tarde dará toda uma importância a tudo aquilo que os grandes sistemas de explicação “panorâmicos” e “desenvolvimentista” do social ignora. Atentará especialmente para pequenos acontecimentos,

para os

encontros e os fluxos que alimentam e são trocados nas relações sociais, enfim toda uma riqueza que movimenta o social, que costumeiramente é ignorada e que não se deixa capturar, muitas vezes, por esses grandes sistemas explicativos do social. Daí seu método ser chamado de “microssociologia” ou “sociologia infinitesimal” (Vargas, 2000). A função do cientista social é seguir os fluxos de crença e desejo que movimentam as nossas ações. Acredito que essa proposta de análise pode ajudar a apreender melhor as festas de orgia entre homens que venho analisando. A festa como acontecimento, no sentido em que Deleuze dá o termo (resultado das ações dos corpos, teoria da sensação), como um território de possibilidades de agenciamentos. “Nessa perspectiva, não há entidades, da mesma forma que não há totalidades sistemáticas: há relações que fazem fazer, ou seja, não relações entre unidades que construam semelhanças ou oposições, mas ‘devires’, como pontos de fuga possíveis” (Tavares, 2012, 120). A ideia de acontecimento e agenciamento nos rituais e nas festas que estamos analisando permite um deslocamento do princípio das estruturas das relações sociais e que se possa perceber esses contextos a partir da singularidade vivenciada neles mesmos. Não do evento como um todo, mas da pluralidade de vivências e intensidades que podem ser experimentadas ali. Considerando que diferentes agenciamentos atravessam os processos relacionais, as fronteiras entre ritual e cotidianidade poderiam ser redefinidas em torno dos “devires” - como potencialidade intensiva - que os agenciamentos podem provocar. Assim, no âmbito do contexto ritual também emergem diferentes agenciamentos dos corpos e das emoções que

característica das lutas do “campo científico” (Bourdieu, 1983; Latour, 1997; Vargas, 2000) minha ideia é a da abordagem que melhor sirva para explicar o campo pesquisado.

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se estendem para além das suas fronteiras, replicando as diferenças em diferentes contextos (Tavares, 2012, 121).

Proposta semelhante, como lembra a autora, à de Goldman em artigo sobre a natureza da possessão no candomblé (2006). “O que é, afinal, um orixá?”, uma das perguntais iniciais do autor que vai se desdobrar na análise desse ritual religioso e dos “agenciamentos eficazes” que fazem parte dele e o constituem. Goldman propõe que para se apreender o candomblé é preciso a elaboração de uma outra “textura ontológica das relações e não exatamente dos elementos” (op.cit.,104). Nesse sistema tudo pareceria articulado de alguma forma, já que no pensamento-candomblé tanto a natureza e o cosmos, quanto a cultura e os seres humanos seriam compostos de um “mesmo fundo”, o “axé”. Os próprios orixás são, em certo sentido, uma molarização do movimento do “axé”, um estriamento desse espaço liso que compõe tudo que existe (op.cit., 110). Goldman aponta o candomblé como um sistema que privilegia fluxos contínuos e corte, multiplicidade e “agenciamentos eficazes”, no sentido de que são movimentos que “fazem fazer” e não representações sobre coisas. E não se trata aqui apenas - talvez seja preciso advertir - de representações (o raio representando a orixá Iansã), relações de propriedade (o mar pertencendo à orixá Iemanjá) ou controle (a doença sendo provocada e controlada por Omolu), mas de uma forma muito complexa de agenciamento. Em certo sentido, o mar é Iemanjá, o raio e o vento são Iansã, e a doença é Omolu (op.cit., 110).

A possessão, portanto, é entendida em outros termos, pois não se trata apenas de um rito posto em ação, mas de um “ritual experiência vivida”. A divindade não é, aqui, um elemento apenas exterior ao ser humano, que a ele se reuniria de forma periódica. A relação do iniciado e seu orixá vai ser dada em termos de devir, isto é, não se possui nem se transforma em orixá. O que há é “uma condição de possibilidade em que os termos da relação são modificados no contexto da própria relação e não enquanto entidades ou substâncias anteriores à mesma”. Há uma afetação, um agenciamento que se faz ali, o acontecimento de um “devir-orixá”. Ou seja, “emoções, subjetividades e corpos são ‘feitos’”(Tavares, 2012, 127), construídos ou transformados através desses movimentos que “fazem fazer”.

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A proposta de “agenciamentos eficazes” é extremamente rica para se pensar em vários contextos que vão além das experiências religiosas e de rituais. Esse deslocamento para o campo da sexualidade, que nos interessa mais de perto, abre a possibilidade da produção dos “mil pequenos sexos” da qual falava Deleuze e Guattari, de uma molecularização da sexualidade onde se dilui, se abre, se foge da molaridade colocada pela binaridade dos sexos e das orientações de desejo restritas à escala heterossexual e homossexual. “Se considerarmos os grandes conjuntos binários, como os sexos ou as classes, vemos efetivamente que eles ocorrem também nos agenciamentos moleculares de outra natureza e que há uma dupla dependência recíproca, pois os dois sexos remetem a múltiplas combinações moleculares, que põem em jogo não só o homem na mulher e a mulher no homem, mas a relação de cada um no outro com o animal, a planta etc.: mil pequenossexos” (Deleuze e Guattari, vol 3, 90-91).

Entender as festas nessa outra chave, portanto, é perceber o contexto desses eventos como espaços de multiplicidade e que são atravessados por vários dispositivos (sejam eles normativos ou “de fuga”, como já vimos). E para compreender a constituição de um território, a tarefa que se coloca é a de seguir as linhas de intensidade que os atravessam como movimentos de fuga ou de sedimentação, os tais “fluxos de crença e desejo” de que Tarde falava; acompanhar e perfazer suas cartografias de forças e de fluxos é entrar perdidamente, intensamente nesses fluxos, é apreender aquilo que é construído, transformado ou mesmo reafirmado nos corpos, nos afetos, na performance engajada dos agenciamentos.

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EPÍLOGO Quando a pesquisa é o problema Terminada nas partes anteriores tanto a apresentação e discussão dos princípios das festas de orgia pesquisadas quanto a imersão teórica no fenômeno orgiástico, me restariam algumas páginas para as “conclusões” desse texto. Minha proposta é de que ao invés de retomar e listar aquilo que já foi dito anteriormente, que aproveite essas últimas páginas para uma outra reflexão que foi apenas citada na Introdução desse trabalho. Quero me alongar um pouco mais sobre a questão do tabu envolvendo determinadas pesquisas, principalmente aquelas que tenham práticas sexuais como objetos, já que é o caso desse trabalho em particular. A ideia de uma parte da tese separada e dedicada ao desenvolvimento dessa questão foi algo pensado a partir da demanda não só dessa pesquisa em particular, mas também da percepção de uma certa onda conservadora que vem tomando determinados locais de debates, principalmente virtuais, que tomam a preocupação com a diversidade e a diferença como algo “menor” ou não “merecedor” de um debate acadêmico. Falo aqui da minha experiência pessoal durante o mestrado e o doutorado, ambos voltados para o estudo das práticas sexuais. Toda vez que comentava sobre a minha pesquisa, durante esses anos, formal ou informalmente, dentro ou fora do ambiente acadêmico, mais do que dúvidas sobre as minhas análises do campo, o que mais ouvia eram questionamentos (colocados das mais diferentes formas: irônicas, agressivas, surpresas, desconfiadas etc.) sobre as minhas motivações e as condições em que seria / foi feito o trabalho de campo e quanto à credibilidade das pesquisas133. Nada mais antropológico que propor uma “etnografia” dessas reações. Talvez o clímax desses questionamentos com relação à minha pesquisa tenha acontecido em março de 2015, quando uma comunidade na rede social do Facebook sobre 133

Uma outra forma de reação eram as “confissões”. Quando as pessoas se apercebiam da seriedade da pesquisa invariavelmente queriam compartilhar algo de suas vidas pessoais. Falavam das vezes em que transaram com mais de uma pessoa, experiências sexuais com pessoas do mesmo sexo, idas a clubes de swing ou festas de orgia particulares entre amigos, dentre outras. Isso acabou se tornando muito útil porque muitas dessas “confissões” me ajudaram a encontrar lugares onde poderia ir, pessoas a quem procurar e interlocutores com quem conversar para a construção dessa tese.

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trabalhos acadêmicos postou trechos de um artigo meu apresentado na Reunião da ANPOCS de 2014 sobre alguns resultados dessa pesquisa sobre as festas de orgia (Barreto, 2014). Seguiu-se uma série de posts com o link do meu currículo Lattes e também a postagem da minha dissertação134. Esses posts geraram uma discussão acalorada com a maioria das reações sendo bem negativas e agressivas: “É para isso que o dinheiro público serve?? Que porcaria de banca é essa??”; “Vamo manerar na viadagem ae”; “Tanta enrolação só para dizer que adora dar o rabo?”; “Mais um rebento de Fucô”; foram alguns das centenas de comentários, além das mensagens privadas que eu recebi no meu perfil, do qual destaco uma transcrita a seguir, pelo fato de nela conter reunidos os principais pontos que irei abordar nesse capítulo:

Parabéns. Nunca vi dinheiro público desperdiçado com tanto élan. Li o suficiente pra saber que está mais para um conto erótico ruim do que pra uma tese acadêmica. (...) Se você fosse só mais um gay promíscuo que gostasse de dar uma trepadinha, eu te respeitaria, mas há sempre essa necessidade maldita de teorizar, de “refletir”. É a “teorréia” de que falava o Merchior. Faça sexo o quanto e com quem quiser, mas não queira dar ares intelectuais a uma coisa tão banal. Deixe a antropologia e o sexo para quem entende do assunto, para quem os aborda com base em uma filosofia sólida, não em sensações animalescas. É só um blah blah blah interminável de pessoas que carecem de justificativas “intelequituais” para suas parafilias. Estude a biografia de Foucault e saberá do que estou falando. Agora vá dar o cu e não se meta a escrever mais, pelo amor de Deus.

A atitude, as reações junto com os comentários e as mensagens podem estar nos limites de um fenômeno que atualmente se convencionou chamar de cyberbullying, que é esse tipo de assédio, hostilidade e agressão através do uso das novas tecnologias de

134

A página que já conta com quase três mil seguidores é um espaço onde pessoas anônimas e/ou que se apresentam como pertencentes a variadas instituições de ensino superior, nacionais e internacionais, postam títulos, resumos, links de dissertações e teses, links de currículos lattes, imagens de defesas etc., de pesquisadores cujos temas elas consideram motivo de escárnio. Importante notar que os temas de dissertações e teses versam sobre gênero, sexualidade, religiões de matriz africana, cultura popular, uso de drogas, regionalismos, funk, devires, entre outros.

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informação e comunicação. Um tipo de assédio de maiores proporções pelo próprio alcance que essas informações e postagens podem ter através da rede135. Porém, o que está sendo colocado em questão nessas postagens e comentários (já que a comunidade continua ativa até o momento da escrita) são pontos que proponho nos determos para pensar. Acredito que o alvo desses comentários e discursos não é apenas a pessoa do pesquisador em particular e de suas práticas sexuais, a qualidade ou não do meu trabalho, mas, mais do que isso, a própria possibilidade de um estudo acadêmico sobre determinados temas (já que a comunidade não centra as suas críticas a pesquisas de gênero e sexualidade e sim estende as suas postagens a pesquisas sobre religiões de matriz africana, uso de substâncias psicoativas, funk, feminismos etc.) e o tema do sexo, em particular. Os argumentos e reações expostas são mais comuns do que se pensa e não apenas restrito àquilo que podemos chamar de “público leigo”. No próprio ambiente acadêmico as reações partem de princípios e mesmo de discursos semelhantes136. Afinal, por que o sexo? E a resposta mais imediata seria: afinal, por que não? Se a Antropologia, enquanto ciência que estuda as relações entre os seres, vem se dedicando desde o seu princípio a entender como se dão essas relações nos mais variados contextos e já teve como tema o porquê das pessoas se reunirem para adorar deuses; para trocar e/ou vender objetos; a maneira como organizam as relações de parentesco; as diferentes formações políticas, estatais ou contra-estatais; as administrações de conflitos; a cosmologia de diversos povos; os usos de substâncias; os diferentes rituais sagrados e/ou cotidianos de nossas vidas; dentre muitas outras coisas, por que seria mais ou menos importante estudar aqueles que se reúnem para fazer sexo, seja num contexto de orgia ou não?

135

Não por acaso, a grande quantidade e maior repercussão dos casos de cyberbullying são justamente daqueles de teor sexual. Seja de comentários sexuais e pejorativos em postagens e fotos ou a criação de rumores e boatos até aquilo que recentemente se chama de revenge porn ou “pornografia de vingança” que é a exposição na internet de fotos ou vídeos íntimos, na maioria de sexo explícito, sem autorização do outro. Praticado comumente por ex-namorado(a)s ou grupos de amigos como uma forma de “vingar-se” do outro ou por entender aquilo como uma brincadeira. A repercussão, às vezes com consequências graves daqueles que são expostos (principalmente meninas jovens), é significativa. 136 Como no dia em que em uma das festas encontrei um dos estudantes do Programa de PósGraduação em que estudo e que, apesar de não sermos muito próximos, ele já tinha lido minha dissertação e disse ter ficado surpreso por ter me encontrado ali, na festa: “Nossa, você vem para esses lugares fazer trabalho de campo mesmo!”

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Meu objetivo aqui será enumerar e comentar aquilo que acredito serem os pontos de tensão no estudo do tema. Cada um deles mereceria uma atenção ou profundidade maior do que aquela que vou poder dar nesse espaço. Isso seja pelo fato de já existir uma bibliografia extensa sobre alguns desses pontos, que será indicada, e, também, pelo fato da quase ausência em outros. Da mesma maneira, outros pontos poderiam ser abordados aqui além desses que escolhi. Pautei-me pela minha experiência pessoal e a recorrência com que eles foram aparecendo.

1 - O sexo e a natureza

Por que estudar o sexo se ele é apenas algo “natural”? Algo “banal” como diz na mensagem que recebi acima, ou mais ainda, se são apenas “sensações animalescas”? Que interesse poderia ter estudar aquilo que, de maneira geral, é considerado como encontrado em todos nós de forma irredutível, quase pré-programada, aquilo que nos aproximaria dos animais ou que estaria no limiar mesmo de uma animalidade? É recorrente nos discursos a ideia de que o sexo, seus desejos e práticas pertencem a um domínio biológico ou natural. É onde encontramos a nossa “verdadeira natureza” com seus desejos e impulsos irremediáveis. “Sexo é uma coisa de instinto né…”, “Isso tudo aí é excesso de hormônio…”, “É uma questão de necessidade, de precisar fazer…”, os exemplos ouvidos foram muitos137. O esforço das ciências sociais, de maneira geral, em estranhar, desnaturalizar e relativizar aquilo que entendemos como o certo, o normal ou o natural parece sempre esbarrar em um último ponto, aquele relativo às questões sexuais e todos os seus meandros disputados por vários campos científicos. O sexo ainda permanece como lugar da verdadeira confusão entre natureza e cultura. Uma ideia que já é apontada por Lévi-Strauss em sua discussão sobre essa relação no clássico As estruturas elementares do parentesco:

A vida sexual é duplamente exterior ao grupo. Exprime no mais alto grau a natureza animal do homem, e atesta, no próprio seio da humanidade, a sobrevivência mais característica dos instintos. Em segundo lugar, seus fins 137

A própria ideia de que ter algum tipo de desejo sexual é universal e natural a todos os “seres humanos animais” poderia ser questionada. Cf. Brigeiro, 2013 sobre pessoas e grupos que se autoidentificam como “assexuados”.

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são transcendentes, novamente de duas maneiras, pois visam a satisfazer ou desejos individuais, que se sabe suficientemente constarem entre os menos respeitosos das convenções sociais, ou tendências específicas que ultrapassam igualmente, embora em outro sentido, os fins próprios da sociedade. (Lévi-Strauss,1982, 50)

O embaralhamento da natureza e da cultura nas questões sexuais parece ser tão confuso e “primordial” que não é à toa que o autor vai buscar no tabu do incesto (no estabelecimento de relações sexuais proibidas) a estrutura organizacional primeira da sociedade. Parecendo ser no sexo mesmo que encontraríamos a “resposta” sobre a passagem mítica de um “estado de natureza” para um “estado de cultura”:

Notemos, entretanto, que se a regulamentação das relações entre os sexos constitui uma invasão da cultura no interior da natureza, por outro lado a vida social é, no íntimo da natureza, um prenúncio da vida social, porque, dentre todos os instintos, o instinto sexual é o único que para se definir tem necessidade do estímulo de outrem (...) Não fornece uma passagem, por si mesma natural, entre a natureza e a cultura, o que seria inconcebível, mas explica uma das razões pelas quais é no terreno da vida sexual, de preferência a qualquer outra, que a passagem entre as duas ordens pode e deve necessariamente efetuar-se. Regra que abrange aquilo que na sociedade lhe é mais alheio, mas ao mesmo tempo regra social que retém, na natureza, o que é capaz de superá-la (idem, ibidem)138

A dicotomia natureza X cultura é uma das mais caras à Antropologia e está na base de um dos principais debates nos estudos de gênero e sexualidade: a questão essencialismo X construtivismo. De um lado um paradigma de explicações universais e deterministas calcado no argumento da natureza ou biomédico; por outro lado o paradigma que predomina nas ciências sociais, o da teoria da construção social, onde a sexualidade é mediada por fatores históricos e sociais, variando-se e diferenciando-se a depender de cada 138

Para uma problematização que se coloca além dos termos de “estado de natureza” e “estado de cultura”, seria pensar num “estado de animalidade” X “estado de humanidade”. Nisso o artigo de Díaz-Benítez sobre a produção de filmes pornográficos de sexo com animais coloca questões que problematizam ainda mais essas dualidades (2012).

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contexto (Weeks, 1981). Um debate que não é novo, datando de meados do século XIX até os dias de hoje, que se coloca como um campo de disputas de saberes e interesses característicos do campo científico e, consequentemente de forças e poderes (Bourdieu, 1983 e Foucault, 1971). É longo, inconclusivo e estratégico139. De natural o debate científico sobre o sexo não tem nada. A própria colocação dele enquanto problema e questão e as diferentes respostas e “verdades” que irão ser formadas vão estar dentro desse campo de disputas de saberes e das estruturas sociais de cada momento. O próprio debate é de “natureza cultural”, como afirma Lévi-Strauss já antecipando as conclusões de Latour sobre a construção das verdades científicas: “está ao mesmo tempo no limiar da cultura, na cultura, e em certo sentido, é a própria cultura” (1982, 51) Apesar da predominância da teoria da construção social nos nossos trabalhos, presente em diferentes níveis de construcionismo (nem todos os autores conseguem relativizar e desnaturalizar todas as instâncias relacionadas à sexualidade), isso não quer dizer que ela não apresente problemas e da mesma forma não desfaça completamente a onipresença e hegemonia do paradigma essencialista140. A meu ver, o principal problema encontrado nesse debate da construção social talvez seja qual é o lugar do corpo em nossas reflexões. Torna-se difícil pensar sexo sem levarmos em consideração a própria fisiologia corporal, a “realidade visceral do corpo e nossas experiências disso” (Vance, 1989, 165), sem um retorno ao essencialismo e às determinações biológicas. E talvez seja esse o ponto que é sempre retornado nas falas e reações das pessoas em geral. Da própria subjetividade delas e de sua relação com suas sensações corporais. “Do meu sexo, o meu corpo é que sabe”. O esforço aqui está em procurar “fazer uma teoria” que esteja mais próxima daquilo que, de fato, as pessoas sentem, ou do que entendem que sejam a sua realidade, uma “embodiment theory” (Csordas, 1990).

À medida que consideramos restaurar o corpo na teoria da construção social, nos perguntamos se é possível ser um materialista, sem resvalar para

139

Para revisões recentes e uma história dessa discussão do campo da sexualidade nas ciências humanas ver artigos de Vance (1995) e Vale de Almeida (2003). Para o caso brasileiro, ver Carrara e Simões (2007). 140 Nem tampouco dão conta da proposta de “desconstrução” da chamada teoria queer.

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o essencialismo? Existem maneiras de integrar sensação e função corporal em um quadro de construção social, ainda que concordemos que a experiência humana do corpo é sempre mediada pela cultura e subjetividade, e sem elevar o corpo como determinante? A resposta não será encontrada em um retorno ao essencialismo, seja franca ou disfarçadamente, mas na exploração de formas mais sensíveis e criativas de considerar o corpo (op.cit., 167).

A nossa “ciência sexual” e mesmo a nossa sexualidade tendeu a uma elaboração de discursos autorizados onde têm-se o sexo como razão científica, onde não se envolve o corpo, suas sensações e afecções; fala-se sobre sexo de uma maneira como se não se fizesse sexo. Não ensinamos nas escolas, por exemplo, o sexo e o corpo como fonte de prazer, mas sim como evitar doenças e não engravidar. Pode-se falar sobre sexo desde que se mantenha o ponto de vista científico ou natural. Ou seja, o discurso sobre o sexo esbarra sempre em uma “leitura biológica” do corpo. Releva-se o conhecimento que é advindo da própria experiência corporal (Wacquant, 2002). Talvez porque tenhamos associado as sensações como uma volta ao campo daquilo que é do privado, do íntimo, do que não deve ser revelado.

2 - O sexo e o bizarro

“Você acha normal as pessoas que vão lá para fazer sexo assim?”; “Elas devem ter algum tipo de problema, não? Deve ter alguma questão patológica por trás”; “Mas isso é muito curioso, conta as coisas estranhas que você vê lá”; “E o sexo lá é como, é normal? Eles devem achar que sim”; “E a gente nem imagina que as pessoas que vão nesses lugares estão entre nós, pode ser qualquer um”. Pelas falas acima, percebe-se o quanto, ao colocar o sexo em debate, é difícil fugir de uma abordagem que não privilegie o tom do sensacionalismo, do curioso ou do bizarro. É muito fácil resvalar para esse tipo de aproximação com o tema, justamente pelo fato desse ser um dos pontos de percepção comumente encontrados em nossa sociedade. Funciona como nas chamadas de programas televisivos ou nas matérias que aparecem na internet que volta e meia abordam reportagens com temas relativos às práticas sexuais (swing,

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BDSM, sexo em público, fetichistas dos mais variados, prostituição etc.) : “quem são? onde vivem? são pessoas normais? Por que sentem prazer com isso?”; e nessas perguntas já se colocando e pré-determinando toda uma série de exotizações e moralidades que pouco ajudam a compreender, de fato, o que essas pessoas fazem nos contextos abordados. A tradição desse tipo de abordagem é antiga, vem dos freak shows e dos circos de “aberrações” e funcionam muito bem diante da estratificação da produção pornográfica atual:

a chamada pornografia "bizarra"' é herdeira dos antigos freak shows ou shows de aberrações humanas, nos quais pessoas com os corpos mais "estranhos" e as capacidades físicas mais incríveis fascinavam plateias provocando espanto, medo, risadas, curiosidade e, muitas vezes, um ódio deslumbrado, sendo tais manifestações advindas da moderna cultura do entretenimento e espetacularização da vida cotidiana (Leite, 2009, 510).

Em seu trabalho sobre a produção pornográfica focado no “nebuloso e sempre móvel” campo do bizarro, Leite chama a atenção para como “o objetivo primeiro desses produtos é espetacularizar uma vivência sexual que choca, impressiona e muitas vezes incomoda, lidando direta e explicitamente com os limites sociais do ‘bom gosto’, da ‘tolerância’ e do ‘ultrajante’” (idem). Para o autor, a própria definição desses limites e da formação de nossos gostos mesmo estéticos têm a ver com um processo de forjamento de nossas sensibilidades que tiveram como pano de fundo histórico a organização política de uma nova área do saber.

Essas divisões e categorias seriam tributárias de uma

determinada maneira “científica” de conceber a sexualidade, cujo surgimento data do final do século XIX. Esse processo é esmiuçado e detalhado nas análises realizadas por Foucault (2009a) e Lanteri-Laura (2001) sobre esse período, nas quais os autores demonstram que é na colocação do sexo como novo campo de “saber-poder” que encontramos a criação das “perversões” e da patologização daquilo que não se encaixa no padrão tido como normal\natural. Ou como bem resume Leite Jr sobre esse contexto:

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É nessa época que surge a “ciência sexual” ou a chamada primeira sexologia. Tratando-se de um novo discurso que visou debater, organizar e conduzir tal assunto sob o viés científico. Crentes na neutralidade da ciência, herdeiros do racionalismo iluminista e confiantes no positivismo, educadores, pais, líderes políticos, religiosos, juízes, policiais e médicos das mais variadas áreas se engajaram num projeto disciplinador de corpos, desejos, prazeres e práticas sexuais. Dessa forma, identidades foram construídas, ideias e comportamentos foram patologizados, desejos foram classificados, rotulados e hierarquizados nessa nova maneira de pensar, lidar, sentir, organizar, vivenciar, definir ou mesmo discutir o sexo. Nascendo assim a chamada “sexualidade" (Leite Jr, 2009, 511).

Muito desse processo já foi visto por nós na segunda parte da tese, porém é importante enfatizar o quanto esse momento de início da sexologia é característico das relações que vão se estabelecer no discurso médico-psiquiátrico com influência sobre todos os aspectos de controle da população (inclusive legais), entre perversão e sexualidade, da definição dos “desvios”, da criação dos “monstros”, dos anormais (que, segundo Foucault, seriam os monstros cotidianos, banalizados), dos perversos sexuais e das chamadas “parafilias” (Foucault, 2001, 71)141. O saber médico-psiquiátrico vai se apropriar do discurso da sexualidade principalmente a partir do século XIX, promovendo a difusão de categorias classificatórias, tal como pode se depreender dos trabalhos “pioneiros” dessa época de Krafft-Ebing e Havelock Ellis. Esses trabalhos vão se preocupar principalmente em listar os “tipos”, em sua maioria considerados doentes, de indivíduos que são encontrados em nossa sociedade a partir de suas práticas sexuais e de seus desejos considerados anormais, como o “perverso”, o “sádico”, o “masoquista”, a “criança masturbadora”, a “mulher histérica”, o “homossexual”, dentre uma infinidade de outras categorias (Porter e Teich, 1998). O ponto alto desse processo é a publicação da obra Psycopathia Sexualis do alemão Krafft-Ebing em 1886. Verdadeiro compêndio do que o pensamento na época dizia ser o comportamento sexual patológico. Segundo o autor, se o objetivo do desejo sexual é a 141

Dispositivo que marcou indelevelmente nossa maneira de pensar (e pôr em prática) a sexualidade. Como um exemplo, vide a manutenção e a importância de um guia como o “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais” (DSM) nas ciências psi que chega a sua quinta versão em 2013 atualizando a ideia de “desvio” como “transtorno” e a mesma forma problemática de se pensar sobre o erótico e a multiplicidade de desejos (Russo, 2004 e Useche, 2005).

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procriação, qualquer forma de desejo que não tivesse esta como fim último seria uma perversão (Duarte, 1988). Krafft-Ebing dedica toda a parte final do seu livro à enumeração de diferentes casos, com pequenas histórias, onde são apresentados esses comportamentos sexuais tidos como doentios. O número de casos foi aumentando com as sucessivas reedições da obra que, em sua última versão (2001), contava com uma lista no total de 238 categorias sobre o comportamento sexual humano142. Porém, de acordo com alguns autores (Brickell, 2006, Miskolci, 2014), esse determinado contexto histórico de “invenção dos perversos sexuais” teria a sua positividade justamente por ser uma época de explosão e experimentação de uma multiplicidade de desejos e erotismos, de uma produção exacerbada de tipos e “meio-tipos”, quando a esmagadora maioria das pessoas viviam ainda à margem desse vocabulário médico-legal, portanto ainda “livres” em suas experiências (comparando-se ao momento atual com a noção de porosidade, fluidez e “indeterminação sexual pós-moderna”)143. Não se veria ainda um efeito de um discurso categórico tão rígido como algumas leituras equivocadas a partir da obra de Foucault dão a perceber. Só depois, na primeira metade do século XX, é que esse debate traria efeitos mais rígidos com a discussão e as práticas confinadas na divisão binária entre homo e heterossexualidade. Esse processo já é apontado por Foucault quando o autor demonstra que ao mesmo tempo em que a sociedade moderna conferia legitimidade apenas à sexualidade do casal monogâmico heterossexual, fez proliferar, por outro lado, nesse trabalho classificatório exaustivo, “grupos com elementos múltiplos e sexualidade circulante” (2009a, 48). Instituições e saberes como a medicina, a psiquiatria, a pedagogia e a família acabaram por elaborar não apenas proibições, mas um mecanismo de “dupla incitação”, ou seja, a do poder que se propõe em fiscalizar o prazer, e a do prazer que sistematicamente busca escapar a esse controle. Estabelecendo dessa forma uma “relação poder-prazer sob a forma de perpétuas espirais” que, saturando-se e significando-se reciprocamente, “(...) não se 142

Curiosamente o livro de Krafft-Ebing é considerado uma das maiores obras eróticas mundiais, justamente pela maneira narrativa com que o autor apresenta as perversões e pela ideia de fascinação do “bizarro” já apontado que despertaria no leitor essa curiosidade erótica (Duarte, 1988). 143 Se a sexologia dessa época focava sua classificação a partir das escolhas dos objetos de desejo, a figura que causava mais transtorno eram justamente aqueles que ficavam num estado indiferenciado de “sensualidade”. O “homem sensual” ou “libertino” era uma figura perigosa por ser liminar: aquele que ia além das convenções sexuais; era marcado não pela sua escolha do objeto sexual, mas justamente pela sua indiscriminação (Brickell, 2006).

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anulam (...). Encadeiam-se através de mecanismos complexos e positivos de excitação e incitação” (op. cit., 48). Ou seja, a própria sociedade disciplinar e/ou de controle (ou mesmo civilizatória, que seja) produz o desejo pela sua contravenção. Não se duvide disso com os milhões lucrados pela indústria pornográfica e suas produções, seja no mercado mainstream ou do ramo “bizarro” (escatologia, fetiches de humilhação e violência, zoofilia, necrofilia etc.)144

3 - O pesquisador com “segundas intenções”

Não tenho como fazer aqui um registro de todos os tipos e formas de comentários e dúvidas que ouvi relativos às minhas “motivações pessoais” para fazer essa pesquisa. Foram muitos, incessantes e que variavam fossem num tom brincalhão, ou mesmo irônico, até chegar aos mais agressivos, em vários matizes de deboche e desconfiança. Ao que parece, não se pode escolher um tema desses de pesquisa sem que não haja “algo por trás”, se não é um gosto pessoal relativo à minha sexualidade, uma desculpa para usufruir dos prazeres do campo ou mesmo uma maneira de teorizar as minhas “parafilias” (como na mensagem que me enviaram)145. Talvez não tenha tido uma única vez em que tenha respondido a pergunta sobre qual o meu tema de pesquisa que não tenha sido acompanhado de, no mínimo, um sorriso de lado. Se já é um consenso dentro das ciências humanas e sociais que a prática científica está longe de ser uma produção “distanciada”, “objetiva” ou “neutra”, para aqueles que se dedicam a pesquisas relacionadas à sexualidade pesam, no entanto, uma contínua desconfiança e suspeita e, consequentemente, um descrédito “científico”. A ideia da

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Essa “positividade” apontada não desfaz o fato de que é contínua a produção desses tipos classificatórios ainda em nossos dias e de um certo entendimento de nossa sexualidade que propagaria continuamente “pânicos morais” (Rubin, 1998) com a criação de figuras que podemos chamar de “monstros contemporâneos”. Um bom exemplo é mostrado a partir da construção da figura e do problema do pedófilo em etnografia de Lowenkron (2015). 145 Como na mensagem em que recebi no meu perfil da rede social e citei no início na qual se faz uma referência à própria biografia de pensadores como Foucault, ou seja, o interesse do autor em pensar a criação de problemas como a homossexualidade como fenômenos histórico e social viria do fato do próprio ser um homossexual que estaria buscando respostas para a sua “condição”. Isso se repetiria num chavão intelectual (também presente no campo das artes, aliás) de que os pesquisadores usariam desculpas para se estudar. Nesse caso, como mulheres estudam questões feministas, negros estudam as condições de desigualdade raciais, usuários de drogas as substâncias psicoativas e gays e lésbicas os temas de sexualidade.

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desconfiança, do pesquisador “voyeur” ou com motivações escusas é unanimemente apontada por aqueles que se dedicaram ao tema e também a alguns autores que fazem uma revisão geral do campo, seja no contexto norte-americano ou europeu (Vance, 1995 e Irvine, 2003) apontando, inclusive, dificuldades práticas desses pesquisadores em conseguir bolsas, financiamentos, cargos quando formados, disputas em departamentos nas universidades etc. Muitos fatores poderiam ser apontados para o fato da marginalização dos estudos sobre sexualidade (alguns inclusive, já ditos aqui), porém Irvine aponta que o principal seria a dominância de uma epistemologia positivista naquilo que a gente entende que é ciência. A isso se acresce a estigmatização do sujeito pesquisador posto sempre sob suspeita. Há como que uma “contaminação” (nos termos colocados por Mary Douglas,1976, mesmo) pelo tema daquele que o estuda ou se aproxima dele: “sexo é estigmatizado, assim como aqueles que o pesquisam”:

Historicamente, aqueles que estudam sexo têm sido objeto de especulação pública sobre, sendo até atacados, a sua própria sexualidade. Este tem sido o caso, independentemente da identidade sexual do pesquisador, uma vez que como Goffman chama a atenção, aqueles que se associam a um indivíduo estigmatizado (ou assunto, neste caso), adquirem um "estigma cortesia".(Irvine, 2003, 451).

No caso da Antropologia isso se aprofunda justamente pelo seu característico método etnográfico de trabalho, da necessidade de se estar em campo, “entre os nativos”, de estar presente, de “observar-participar” aquilo que acontece. Uma coisa é você montar um questionário sobre os hábitos sexuais das pessoas, e aplicá-lo, ou fazer entrevistas em que você pergunta para elas o que pensam e/ou costumam fazer na cama, no quarto e durante o sexo; outra coisa muito diferente é estar presente e ver de fato o que elas fazem. A ideia de uma pesquisa científica realizada nesses termos causa desconforto, descrença e desconfiança. A década de 1980 é comumente representada como um ponto de virada na teoria antropológica. Foi um momento em que certos antropólogos começaram a fazer questionamentos reflexivos de alguns pressupostos que pareciam fundamentalmente

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arraigados ao arcabouço teórico e à prática de sua disciplina. Construída principalmente ao longo do século XX, a Antropologia foi alvo, nesse momento, de autores que proclamavam a necessidade de uma renovação profunda do modo como ela era feita, de seus conceitos, seus princípios e objetivos, a partir de uma revisão crítica dos trabalhos produzidos até então. A Antropologia neste momento também olhava para si mesma (Macedo, 2011). O paradigma da “reflexividade”, que tem como expoente o trabalho de Rabinow acerca do trabalho de campo como uma operação colaborativa, na qual os interlocutores e o antropólogo constroem mutuamente explicações e interpretações (Rabinow, 1992), o interpretativismo e a inspiração hermenêutica (Geertz, 1989 e 1997), bem como os questionamentos da chamada Antropologia “pós-moderna” em sua vertente norteamericana (Clifford e Marcus, 1986; Clifford, 1998), estabeleceram um campo de debates produtivo, que permitiu aos antropólogos, ao mesmo tempo, criticar a “autoridade etnográfica” calcada no mito da objetividade científica, problematizar a necessidade e as possibilidades da interlocução com os “nativos” e indagar acerca da necessidade da invisibilidade do pesquisador no texto antropológico (Braz e Silveira, 2013). Como já disse Braz (2010), parte da riqueza dos estudos sócio-antropológicos sobre sexualidades está presente justamente nos desafios epistemológicos e metodológicos que implicam para a reflexão e a prática antropológicas. Ao que parece, o estudo da sexualidade obriga o pesquisador a se ver ele próprio (e ser visto também) como ser sexuado, de desejo e produtor de desejo, uma subjetividade que é, de fato, colocada em jogo, como um agente que, de certa forma, precisa se colocar também “sexualmente” em campo146. Ao trazer algumas descrições do trabalho de campo realizado nas festas de orgia não narrei algum tipo de intercurso sexual do etnógrafo, se partirmos da ideia, digamos, convencional de sexo, ou seja penetrativa e genitalizada. Quando as pessoas me perguntam se eu “participei” dos eventos elas, na verdade, querem saber: “você penetrou ou foi 146

Uma imagem interessante é aquela trazida por Díaz-Benítez em seu trabalho sobre a produção pornográfica mainstream no Brasil em que a autora relata uma entrevista com um dos atores pornôs interlocutores realizada no intervalo de uma das filmagens, onde o mesmo estava nu e se masturbando, já que precisava manter a ereção constante para o prosseguimento da cena (2010). Também uma pioneira coletânea de artigos organizada por Leap and Lewin (1996) em que diferentes antropólogos falam sobre sua experiência estudando diferentes culturas a partir de uma perspectiva gay ou lésbica. E o quanto a exposição de uma orientação sexual pode determinar o acesso a contextos específicos, onde a sexualidade do pesquisador, de fato, importa.

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penetrado por alguém?”. Mas se considerarmos que a fronteira em torno de onde começa e termina o sexo é sempre contextual, “o sexo em si deixa de ser apenas um ponto de partida analítico para uma interpretação antropológica e também se transforma em algo que deve, ao contrário, ser antropologicamente interpretado” (Braz e Silveira, 2013). Como afirmam Braz e Silveira (2013), o pesquisador pode não considerar que está fazendo sexo, já que sua observação tem outras intencionalidades que não passam, necessariamente, pelo voyeurismo. Mas da perspectiva dos sujeitos observados, ele pode estar. Os significados que eles atribuem ao sexo vão, muitas vezes, além de uma concepção penetrativa, genitalizada e, mesmo, que envolva necessariamente até o toque, como foi o caso narrado na introdução desse trabalho do rapaz que enquanto era penetrado no terraço por Pedro, passava a mão pelo meu corpo e do próprio Pedro que quis a minha presença ali, que boa parte do prazer dos dois naquele momento passava por eu estar participando daquela interação, era estar “fazendo sexo” com eles. A partir dessa etnografia percebo que para as pessoas interagindo nesse espaço seja no dark room, ou nas suítes com camas coletivas ou mesmo no terraço, todos estão, ao menos para os sujeitos observados, “transando”. Isto inclui, também, os antropólogos, que invariavelmente contribuem para que o desejo de fazer sexo em público ou em grupo de alguns sujeitos se realize147. Portanto, será que “em determinados contextos de trabalho de campo, a participação sexual do antropólogo é inerente ao “estar lá”? Quais os limites da observação participante, quando nosso engajamento sexual é previsto ainda que não tenhamos tal intenção?” (Braz e Silveira, 2013). Talvez o risco aqui esteja em problematizar essas questões, mas ao mesmo tempo tendo o cuidado em não cair num discurso de mea culpa ou mesmo de um certo conservadorismo em nossas pesquisas. O sociólogo norte-americano Laud Humpreys tem sido considerado o pioneiro neste tipo de estudo devido à Tearoom Trade, pesquisa que tratou dos encontros sexuais entre homens em banheiros públicos nos Estados Unidos, publicada em 1970. Ali o autor explica claramente que um dos métodos utilizados foi se colocar numa posição de “voyeur” das interações, já que essa figura, a do homem que participa das interações sexuais observando, 147

É ao artigo de Braz e Silveira (2013) a quem devo essa proposta de participação erótica inerente do pesquisador em determinados contextos de trabalho de campo.

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era aceita naquele contexto. Era uma forma de “estar lá”. A pesquisa de Humpreys recebeu severas críticas em seus aspectos éticos e há como que um silenciamento acadêmico na problematização sobre “o sexo no trabalho de campo” depois disso que só retornaria à cena na década de 1990. A coletânea de textos organizada por Kulick e Willson (1995) abriu o caminho para a retomada dos debates em torno dessas questões. No Brasil podemos ver como esse trabalho estimulou a reflexão de outros pesquisadores (Rojo, 2003; Braz, 2010 dentre outros148). Esses trabalhos recentes fazem crítica à “proibição prescritiva do sexo em campo e ao silêncio disciplinar em torno dessa questão (...) acerca das implicações teóricometodológicas e possibilidades interpretativas a partir de envolvimentos afetivo-sexuais do pesquisador em campo. Questionam mesmo a objetividade científica e colocam como impossível o completo distanciamento etnográfico” (Braz, 2010, 40). A própria mensagem que recebi de um dos interlocutores das festas de orgia e reproduzi no Introdução da tese chama a atenção para isso: “Conseguiu se libertar ou permaneceu como um legítimo voyerista?” A questão é que a ideia de um estudo de campo sobre práticas sexuais gera, de fato, uma ansiedade. A minha posição aqui é que essa ansiedade não vem “do nada”. Há motivos para ela acontecer que dizem muito mais sobre a forma como vivemos nossa sexualidade do que da pesquisa em si. Há como que uma moralização do uso instrumental do sexo. O problema não é fazer sexo. O problema (moral) é alguém estudar sexo e fazer sexo ali, da possibilidade disso ser colocado como método “científico”. Ou como conclui Irvine: Uma certeza é que os estudos da sexualidade são intrinsicamente ligados à própria sexualidade; todas as ansiedades, prazeres, ambivalências e estigma que atribuímos ao sexo afetam a sua legitimidade como um subcampo da sociologia. (Irvine, 2003, 452)

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Eu mesmo cheguei a fazer um pouco dessa discussão em pesquisa anterior (Barreto, 2012).

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4 - (O riso)

Um parêntese é necessário para a questão do riso. Essa foi a forma de expressão que me acompanhou como reação durante todos os momentos de divulgação do tema da pesquisa. Seja na academia ou fora dela, e mesmo durante as próprias festas onde dizia para alguns interlocutores que estava ali “fazendo uma tese”, o riso sempre aparecia. Em gargalhadas, em risos debochados, em risadas nervosas, “amarelas”, em algo que poderia se entender como “sorrisos cúmplices” ou mesmo de uma hilaridade que parecia mais uma distensão de energia do que qualquer outra coisa. O riso, tal como explica o sociólogo Werner, é uma forma de reação que serve de certo modo para a limitação, a proteção e a conservação de nossas fronteiras físicas e psíquicas (2013, 83). Daí o riso e as piadas estarem cercadas de situações e assuntos como a morte, as doenças, o sexo ou outras atividades físicas consideradas vulgares como o defecar e outras funções de excreção. São fatos ou ações que “nos inquietam, nos desconcertam, nos dão nojo e, precisamente por isso, nos fazem rir” (op.cit., 82). O autor aponta como o nojo e o riso, ainda que possam ser vistos como reações opostas são, na verdade, muito próximas uma da outra:

Como o nojo, “o sósia negativo do riso”, um ataque de riso faz vibrar todo o corpo. Provoca convulsões e faz com que o desconhecido, o perigoso, o radicalmente diferente, isto é, o objeto insuportável, o pensamento insuportável, saiam de forma abrupta para fora: em um caso, por meio de um aluvião de ácidos gástricos, em outro, mediante uma corrente de ar e gotas de saliva (…) Com o riso aparta-se de si o insuportável (op. cit., 83).

A pergunta que fica é: afinal, o que há de tão insuportável nessas pesquisas a ponto de gerarem reações como o riso, o nojo ou o escárnio como no caso da comunidade virtual citada no início? Que “perigos” ao nosso corpo e ao nosso pensamento esses trabalhos trazem? Que concepções nossas são colocadas em cheque a ponto de precisarem ser evitadas? O riso era algo que eu tive que saber como lidar e também, de certa forma, aprender a usá-lo a meu favor. Se era aborrecido perceber a sua recorrência e interrupção em

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reuniões de grupos de pesquisa, apresentação de seminários ou congressos, também percebi que poderia aproveitá-lo como forma de “sedução” do ouvinte ao que eu queria dizer. O desconforto causado pelas descrições etnográficas, distendidas e desarmadas com o riso (e caberia a mim saber os momentos estratégicos de utilizá-lo) dava abertura ao pensamento que eu propunha. Se o riso vinha como defesa do incômodo que causavam aquelas questões, haveria possibilidade de abertura para algo novo. Para a psicanálise, tanto o riso quanto o humor estão diretamente relacionados à sexualidade e à obscenidade: "o chiste consiste na anedota, na piada ou mesmo no trocadilho que se reverte em riso, gerando prazer ao tempo em que libera o ser humano de suas emoções reprimidas face aos tabus impostos pela sociedade e interiorizados na mente dos indivíduos" (Freud, 1995, 29). A comicidade e o risível funcionariam, então, como um mecanismo de defesa às ansiedades e angústias do sujeito, assim como ocorre nos sonhos. Por mais que sejam interessantes e tentadoras as interpretações de Freud sobre o riso, principalmente levando em conta o tópico das referências sexuais149, fica difícil usá-las para uma generalização de todas as reações nesse contexto. Não tenho como levar em consideração os motivos individuais e inconscientes de cada um para a reação do riso. Mas fica aqui a provocação e o registro.

5 - Escrita “erótica-científica” e seus perigos

“Li o suficiente pra saber que está mais pra um conto erótico ruim do que pra uma tese acadêmica”; “Seu texto parece um roteiro de filme pornô”; “Menino, um texto desse, excitante, bom, com um café e um cigarro, pronto, acabou-se...”; “Parece um conto erótico gigante com informação!”; “Na leitura tinha hora que dava uns calores…”; “Essas descrições estão gráficas demais, não acha? Vão acabar distraindo o leitor daquilo que importa”. 149

Lembro de como essa relação é trabalhada no romance O nome da rosa, de Umberto Eco (1983), onde um livro cômico é considerado tão obsceno que todos que tentam lê-lo acabam sendo mortos de forma misteriosa. Em seu estudo sobre a pornografia bizarra, Leite dedica todo um capítulo à relação entre o riso e o sexo, afinal, a proximidade entre o humor e o obsceno pode ser rastreado desde Platão até a atualidade: “A risada pornográfica, seja como expressão de prazer, alegria, brincadeira, entretenimento ou defesa contra uma vivência sexual não padronizada, usada como instrumento que via ridículo aumenta o estigma e a exclusão ou ridiculariza o próprio preconceito e exclusão, desarmando-o, constrange tanto a “arte erótica” quanto a ciência sexual. Talvez a pergunta importante não seja apenas “de que se ri no universo pornô”, mas também “o que evoca a risada pornográfica?”” (Leite, 2007,9)

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A escrita dos resultados dessa pesquisa veio inicialmente acompanhada, particularmente, de uma certa hesitação, além das já comuns. Algumas preocupações apareceram: Como descrever as práticas sexuais observadas sem que o meu texto soe como um conto erótico ou um roteiro de filme pornô? Que palavras eu tenho que escolher e o quão explícito eu posso ser em minhas descrições etnográficas? Estou falando aqui da própria construção do texto, de qual o limite entre erotismo ou pornografia, de “literatura” e ciência. E, afinal, qual seria o problema disso? O que há de perigoso no texto erótico? Ou do texto que deixe passar o erotismo ou o use como potência de conhecimento? Numa experiência anterior, durante a defesa da dissertação sobre a prostituição masculina, uma das professoras presentes na banca disse que o texto do trabalho lembrava a ela aquilo que Simmel define como “coquetismo”, isto é, que tanto o meu método de pesquisa quanto o meu texto eram um “texto coquete”, já que eu fazia o tempo todo um jogo de sedução com o leitor, assim como tinha vivido em campo. Simmel define coquetismo como uma determinada forma de relação social. Inicialmente corresponderia a um tipo específico de comportamento de gênero, da mulher coquete, que pretende seduzir os homens sem que com isso essa ação siga o seu caminho natural do envolvimento. Mas o conceito se alarga quando podemos aplicá-lo a uma determinada forma de relação social. Uma relação baseada num jogo de expectativas e manipulações do desejo e permeada de erotismo. Porque o próprio desta última (a coquete) é desprezar o prazer e o desejo por meio de uma antítese/síntese original, através de alternância ou da concomitância de atenções ou ausências de atenções, sugerindo simbolicamente o dizer-sim e o dizer-não, que atuam como que “à distância”, pela entrega ou recusa – ou, para falar em termos platônicos, pelo ter e o não-ter -, que ela expõe uma a outra, ao mesmo tempo que as faz experimentar como que a uma só vez. (Simmel, 1993, 95).

A questão do desejo aqui é fundamental para a prática do coquetismo. Quando cita o amor platônico para introdução às suas ideias, Simmel fala sobre a vivência do estado intermediário entre o ter e o não ter, nunca concretizado. A princípio, para o autor, desejar é desejar obter, porém se obtido o objeto do desejo, a caçada deixaria de existir e o jogo terminaria. “O coquetismo corresponderia à festa da caça, da dúvida e da incerteza, que

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precisa ter operações de distanciamento e aproximações exatos, para que a presa não perca seu valor nem pela conquista e nem pela impossibilidade. É um jogo que se sabe jogo e vivido enquanto realidade, com regras próprias acordadas por ambos” (op.cit.). Na época em que ouvi esses comentários não tinha conhecimento das ideias de Simmel sobre o coquetismo. Meu esforço naquele texto era o de emular o jogo de sedução presente no negócio da prostituição particularmente etnografado. Queria que o leitor de alguma forma pudesse “sentir” através da leitura, que tivesse a experiência do que era aquela necessidade de se manter o interesse sempre aceso nesse mercado; de não poder se perder nunca o clima de prazer, desejo e sedução. Minha ideia se aproximava muito mais dos métodos narrativos do antigo folhetim e suas armas de sedução:

O romance-folhetim põe em ação uma técnica de exacerbação do desejo, desejo de saber, num contexto sadomasoquista: o leitor fica preso, pela periodicidade, no acme de uma posição sublime, no sentido etimológico da palavra, isto é, encontra-se, nos confins de um saber incessantemente prometido, mas sempre adiado: “eu digo, para fazer esperar aquilo que eu escolhi não dizer”, donde o deleite, de certo modo masoquista, do leitor, que aceita ser frustrado, sempre desconcertado, balançado ao bel-prazer do romancista entre a deliciosa angústia e a hipotética esperança: “e o desejo cresce quando se afasta o efeito”, esse verso do velho Cornville sugere muito bem como toda manipulação proteladora contém subentendidos eróticos (Meyer, 1996, 78-79).

Quando um dos organizadores da festa me disse que a minha tese para dar conta daquilo que acontecia na orgia precisaria ser uma “tese erótica”, estava chamando a minha atenção que só um texto que pudesse passar ao leitor a força erótica dos prazeres e dos desejos envolvidos naquele campo poderia ser “fiel” àquilo que acontece ali para aquelas pessoas. As descrições não entrariam como elementos de “apelo”, mas de entendimento daquilo que se passava em campo. Porém, ao erotismo é guardada sempre uma ideia de algo perigoso, de ameaçador. Esteja ele presente em qualquer forma de representação: escrita, literária, artística, científica, visual etc. Algo que as pessoas não devem ter acesso pelos riscos inerentes a esse tipo de exposição, seja pelo fato do erótico estar ligado aos aspectos “baixos” da 289

humanidade, ou então da maioria das pessoas não estarem “preparadas” para aquilo que o erótico poderia despertar nelas. Por isso os livros e filmes eróticos/pornográficos nas lojas estarem sempre em partes mais reservadas, da opção de senhas nos canais “adultos” nas TVs por assinatura, de uma tela de proteção e aviso de conteúdo “forte” nos blogs eróticopornográficos da internet, da promessa de discrição na venda de objetos e revistas em lojas, da eterna proteção às crianças, enfim, de algo sempre longe das vistas, para poucos, para aqueles que podem e estão mais aptos a consumir esse tipo de produção. Afinal, o que há de perigoso no erotismo? Eliane Moraes comenta em um texto (2004) sobre a polêmica judicial que ocorreu na França, na década de 1950, de quando as obras do Marquês de Sade foram reeditadas por uma editora e o caso acabou no tribunal com a tentativa de proibição das obras. Acredito que alguns pontos apresentados pela autora podem contribuir nessa discussão. Ela conta que diante da censura, alguns pensadores famosos na época se pronunciaram contra, mas talvez não nos termos em que pensamos. Até mesmo Bataille:

Com Sade nós descemos a uma espécie de abismo do horror, abismo do horror que devemos conhecer, que é, além disso, um dever particular da filosofia - pelo menos da filosofia que eu represento - colocar em questão, esclarecer e tornar conhecido, mas não, eu diria, de uma maneira geral. Me parece certo que a leitura de Sade deva ser reservada. Eu sou bibliotecário; é claro que não colocaria os livros de Sade à disposição de meus leitores sem determinadas formalidades. Mas uma vez cumpridas tais formalidades a autorização do encarregado e as demais precauções - acredito que, para qualquer um que queira ir ao fundo do que significa o homem, a leitura de Sade não é apenas recomendável, mas também indispensável (Bataille apud Moraes, 2004, 226).

Diante de uma posição tão controversa do próprio autor de O erotismo, Moraes se pergunta: “Quais seriam os perigos subjacentes a esse ‘tudo dizer’? Que tipo de subversão esse tipo de literatura - que interroga o homem a partir de transgressões fundamentais (...) propõe para quem a lê? Ou, colocando a pergunta de outra forma: que ordem de ameaças aos indivíduos e à sociedade pode se ocultar em uma obra?” (op.cit. 227).

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Nisso se acrescentaria todo um debate sobre quais os efeitos de obras “fortes”, aquelas que contenham principalmente elementos de sexo e violência, e sua “influência” nos indivíduos. Os casos de violência e agressões reais “inspirados” em filmes, livros ou jogos sempre são lembrados como uma forma do poder de corromper ou de despertar o mal contido nessas obras. A discussão aqui se centra em termos “produtivos” ou “projetivos”: de um lado as obras possuiriam o poder de produzir nas pessoas efeitos corruptores, ativando fantasmas em apreciadores passivos; de outro não haveria perigo na obra em si, são os apreciadores que assumem uma posição ativa, fazendo da obra um espelho de seus fantasmas (op.cit., 229-230)150. Uma ou outra posição acabam por esvaziar a agência tanto dessas obras quanto das pessoas e mesmo de diminuir a potência do encontro que podemos ter com determinado pensamento: “Afinal, não existem livros que nos transtornam a ponto de nos desviarem de um caminho a outro? A atividade que o leitor põe em curso não pode - e até mesmo deve ser fundamentalmente transformadora?” (idem). A “terceira margem” proposta por Moraes me interessa mais por colocar os termos no estabelecimento de uma “comunicação intensa” entre obra e apreciador. Algo que acontece, que passa, nesse encontro, que não pode ser determinado e que é diferente a cada um, mas que é produtor de algo. Essas obras são “fortes” porque elas justamente nos forçam a pensar151. Essa é a potência delas, aí está o “perigo”. Faz-nos sair de um conforto de um mundo construído por reconhecimentos e representações contidos em nossas maneiras de conceber o que é moral, correto, certo e natural e força o nosso pensamento com algo que é diferente. É como Deleuze concebe a apreensão da diferença:

O fundamental da tese de Deleuze é que a relação entre as faculdades é do tipo de 'esforço divergente', de um 'acordo discordante', de uma 'discórdia acordante', em que cada faculdade disjunta só comunica à outra a violência que a eleva a seu limite próprio como diferente. Uma faculdade só consegue

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Uma boa obra ficcional sobre esse debate pode ser encontrada no romance Os sete minutos de Irving Wallace (1986). A obra versa sobre um julgamento fictício de um livro considerado maldito e pornográfico dentro de um debate sobre censura, liberdade de expressão e os possíveis efeitos de obras “fortes” sobre os leitores. 151 “Perigosa, a literatura de Sade traduz um conhecimento que alarga, queiramos ou não, nossa concepção de humanidade” (Moraes, 2004, 233).

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se exercer sob a ação de uma 'inimizade', de uma violência, de uma coação, sob a ação de forças que a despertam para seu exercício. Temos aqui um segundo elemento importante de sua concepção: para haver pensamento é preciso um encontro contingente com o que força a pensar. O pensamento não nasce de seu próprio interior; o pensamento vem sempre de fora (Machado, 2013, 149-150)

Minha proposta é que essa é uma das potências do texto que deixa passar o erotismo e a força dos prazeres nos encontros. E por isso sim, o impacto das descrições “detalhadas” ou “gráficas” tem a sua importância como ferramenta na produção de conhecimento.

6 - Fechando Feitos essa enumeração e esse sobrevoo sobre os pontos que acredito serem os maiores tensores na ideia de um “problema” no estudo do sexo, queria voltar às postagens e aos comentários feitos na comunidade do Facebook que eu apresentei no início, para que possamos concluir essa parte. O campo de possibilidades e de usos das redes virtuais é inimaginável. Espaço liso e de fuga por excelência, a Internet já demonstrou ser um espaço alternativo aos mais variados aparelhos de captura de nossa sociedade de controle. Desde a grande mídia até os governos mais conservadores. Seja no Brasil ou em qualquer outro lugar. A potência desses espaços como luta e resistência vem se demonstrando cada vez mais no fenômeno ativista, de formações de multidões, mudando a forma de se fazer política no mundo e como ferramenta indispensável nos novos movimentos sociais (Malini e Antoun, 2013). Porém, da mesma forma, e com a mesma potência, a Internet parece ser um espaço ideal onde os nossos micro-fascismos podem tomar forma, ser verbalizados e encontrar ressonância com os dos outros. Também é uma forma de fazer política e também de estratégia micropolítica, visando interferir nas possibilidades de engajamentos, por mais simples que elas sejam152.

152

Agradeço à colega Flavia Medeiros por chamar a minha atenção para este último ponto.

292

O que procurei fazer aqui foi ver “por trás” desses comentários o que baseava seus argumentos. Algumas concepções naturalizadas, arraigadas e moralistas de nossas vidas e de modos de existência outros. Tanto que os temas criticados e debochados na comunidade citada são aqueles que procuram pôr em cheque nossas concepções de desejo, de gênero e sexualidade, de família ou religião, e mesmo de cultura; apontam nossos preconceitos e mostram como somos uma sociedade que ainda prega valores que nos desigualam em vários aspectos, seja socialmente, economicamente, racialmente etc. A questão é que ver expostos esses temas e assuntos (e num espaço tido como de status como é tido o campo intelectual e acadêmico) não parece certo, chega a ser pornográfico, é obsceno, é colocar na luz algo que não deveria estar ali, incomoda. Incomoda e é um problema. O problema dessas pesquisas é que elas fazem pensar.

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ANEXOS

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ANEXO I Cartazes das festas: imagens de uma masculinidade desejada

Figura 6. Fonte: http://festadovaletudo.blogspot.pt/?zx=ad5d2ab40d11d4e0

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Figura 7. Fonte: http://festadovaletudo.blogspot.pt/?zx=ad5d2ab40d11d4e0

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Figura 8. Fonte: http://festadovaletudo.blogspot.pt/?zx=ad5d2ab40d11d4e0

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Figura 9. Fonte: http://festadovaletudo.blogspot.pt/?zx=ad5d2ab40d11d4e0

Figura 10. Fonte: http://www.festadoape.com

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Figura 11. Fonte: http://klubmeetings.blogspot.pt/?zx=9721b407e1b8c773

Figura 12. Fonte: http://klubmeetings.blogspot.pt/?zx=9721b407e1b8c773

Figura 13. Fonte: http://klubmeetings.blogspot.pt/?zx=9721b407e1b8c773

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Figura 14. Fonte:http://festadovaletudo.blogspot.pt/?zx=ad5d2ab40d11d4e0

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Figura 15. Fonte: http://festadovaletudo.blogspot.pt/?zx=ad5d2ab40d11d4e0

Figura 16. Fonte: http://festadovaletudo.blogspot.pt/?zx=ad5d2ab40d11d4e0

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Figura 17. Fonte: http://festadovaletudo.blogspot.pt/?zx=ad5d2ab40d11d4e0

Figura 18. Fonte: http://selecaoblackhall.blogspot.pt/?zx=b3af0b9d47eb7a1f

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Figura 19. Fonte: http://selecaoblackhall.blogspot.pt/?zx=b3af0b9d47eb7a1f

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Figura 20. Fonte: http://www.festadoape.com

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ANEXO II Manifesto Espartano por Ricardo Líper Os Fundamentos Científicos Depois de efetuar uma série de estudos sobre a diversidade do comportamento sexual humano para escrever uma dissertação de mestrado, descobri uma das mais recentes pesquisas científicas sobre a inexistência do estro (cio) nos seres humanos. Essa pesquisa foi efetuada por Catherine Dulac, professora de Biologia celular e molecular da Universidade de Harvard e por Emily Liman e David Corey, que são professores de Neurobiologia celular e molecular na Harvard Medical School. Todos os três trabalharam em Harvard e no Massachusetts Hospital, em Boston. Eles provaram, de forma inequívoca, que o ser humano não tem estro (cio). Fato que muitos outros cientistas já tinham também constatado. Paralelamente a isso, travei conhecimento com outras pesquisas efetuadas por Ford & Beach, 1951, 1958, Rosenzweig, 1973 que demonstraram que o aumento do córtex cerebral leva os animais, que possuem essa característica evolutiva, a apresentar comportamentos sexuais diversos da relação sexual visando unicamente a reprodução da espécie. Assim sendo, a soma dessas duas características da nossa estrutura biológica, a inexistência do estro e o grande desenvolvimento do córtex cerebral, leva a uma alteração fundamental na maneira do ser humano sentir prazer sexual. Esses dois fatos biológicos são, portanto, as únicas causas do porquê muitos homens, nas mais variadas circunstâncias, descobrem que a relação sexual com o mesmo sexo dá muito prazer. E, muitos deles, unicamente por essa razão, a transformam em um hábito frequente e, muitas vezes, exclusivo. Muitos chegam, também, a se amarem profundamente. Publiquei dois livros a respeito dessas descobertas: Sexo Entre Homens e a Tradição Espartana e Os Fundamentos do Sexo Espartano, este último disponível para leitura neste site. As causas sociais, históricas e econômicas da repressão ao sexo entre homens Como o ser humano, pelas razões vistas acima, nas mais variadas circunstâncias e com muita frequência, descobre que o sexo com o mesmo sexo dá prazer, algumas sociedades proibiram a sua prática. O motivo da proibição é que é através da relação sexual entre pessoas de sexos diferentes que se fabricam crianças. Crianças transformam-se em mão-deobra. A mão-de-obra é aumentada (mão-de-obra de reserva) ou substituída através do sexo entre pessoas de sexos diferentes. Sem mão-de-obra não existe acumulação de capital. Se muitos ou quase todos passarem a desperdiçar o sêmen só com prazer, recusando-se a reproduzir a espécie e, principalmente criá-la com seu esforço e dinheiro, a natalidade diminui e, consequentemente, a mão-de-obra educada pelos pais para ser útil no trabalho.

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Logo, sob o ponto de vista dessas elites, toda atividade sexual que desperdice o sêmen só com prazer deve ser desestimulada, ridicularizada e/ou proibida por lei. Para elas o destino erótico dos homens é ser pai-de-família. O familismo é propagado pela ideologia dessas elites como sendo a vontade da natureza o que, como provam as mais recentes pesquisas científicas, não é verdadeiro. Principalmente, no ser humano que evoluiu também na maneira de sentir prazer sexual e, assim sendo, tornou-se livre da determinação do estro em relação ao objeto sexual que lhe proporciona prazer. Essa repressão, ao livre exercício da sexualidade humana, se iniciou com o judaísmo porque os judeus eram pouco numerosos, cercados de inimigos e, por isso, escravizados com frequência. Portanto, precisando desesperadamente aumentar a população, eles proibiram toda atividade sexual que desperdiçasse o sêmen só com prazer. Foram eles que criaram os primeiros termos pejorativos (sodomia e sodomita) para descaracterizar e nomear como pecado o sexo entre homens. Entretanto não quer isso dizer que os judeus devem ser considerados, assim como os católicos e adeptos de outras religiões, que foram os culpados de se ter criado a perseguição a liberdade sexual humana. É preciso que se leia a questão, nesses povos, de estabelecer normas para os prazeres sexuais, a partir de suas religiões, como uma necessidade de se criar uma família de pessoas de sexos diferentes que fosse numerosa para poderem enfrentar inimigos mais poderosos e mais numerosos que queriam os escravizar. O controle então da natalidade passou a ser uma questão política e de guerra e não sexual. Por outro lado não existia uma medicina que garantia tanto o parto como a sobrevivência dos que nasciam nos primeiros meses com hoje ocorre. Portanto o fazer filhos era obrigatório. O que ocorreu foi que então passou a ser pecado tudo aquilo que não levava a procriação e uma família visando principalmente o objetivo de criar uma população grande o suficiente como mão de obra e exército. Não foram só os judeus mas os católicos, os islamitas e muitos outros povos que optaram pela criminalização de toda forma de prazer sexual que desperdiçasse o sêmen que só poderia ser usado para a reprodução da espécie. Hoje em dia Israel é um país que não reprime o sexo entre pessoas do mesmo sexo. Assim como a maioria dos países católicos ou protestantes. O que pode ainda ocorrer é que grupos, no meu entender, equivocados, não compreenderem ainda que os livros sagrados podem e devem ser lidos dentro de uma necessidade política e econômica de um povo e que a palavra, para quem nela acredita, deve ser interpretada e principalmente porque a Bíblia, por exemplo, apresenta momentos nos quais uns episódios contradizem outros nessa questão. Por outro lado os textos sofreram de traduções feitas apressadas ou mesmo servindo aos interesses de grupos políticos de cada época. Assim sendo, não leiam esse manifesto como uma rejeição a nenhum povo ou religioso. O que não aceitamos é que, por razões política ou pessoais ou equívocos na maneira de pensar, algumas pessoas se achem no direito de perseguir aqueles que não querem seguir normas sexuais estabelecidas por elas usando religiões e equívocos também feitos pela ciência do século XIX que diziam ser doentes todos aqueles que não se relacionassem com o sexo oposto para reprodução da espécie. Reparem que esse tipo de discurso se dizendo científico no século XIX e até meados do século XX a Europa estava em um período de imperialismo colonialista promovendo

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guerras para invadir e criar colônias em todas as partes do mundo. Precisava, portanto, de um número grande de homens o brigados e dispostos a guerrear e morrer para que os outros, na Europa, ficassem ricos. Com o advento do cristianismo, principalmente com São Tomás de Aquino, foi criada uma moral sexual baseada nos princípios do judaísmo, que descrevia o sexo entre pessoas do mesmo sexo como sendo contra a natureza. A descrição da natureza, efetuada pelo santo católico Tomás de Aquino, entretanto, é ingênua e não corresponde à realidade. A descrição medieval da natureza feita pelo tomismo não tem a menor semelhança com a natureza descrita pela ciência. Em relação à sexualidade humana as principais pesquisas científicas atuais, a respeito do estro e do desenvolvimento do córtex cerebral, apontam para o fato de que essas duas características de nossa espécie influenciam na criação de uma indeterminação dos objetos sexuais que servem para proporcionar prazer erótico aos homens. No ser humano o desejo sexual não é desencadeado por um suposto órgão (vomeronasal) situado no nariz, que percebe feromônios como ocorre com muitos animais, mas pelo olhar e pelo tato. Entretanto, como o crescimento da população, formando um contingente grande de mão-de-obra de reserva, é importante para o aumento do capital das elites sociais, em algumas sociedades foi imposta uma ideologia natalista e familista. Em grande parte ela se baseou na moral sexual católica e teve desdobramento no islamismo, para obrigar os homens a se casarem, fazer filhos e, com seu esforço e dinheiro, os preparar para ser uma mão-de-obra útil. Esse fato criou a síndrome do Zangão. Para convencer a todos dos princípios dessa moral, as elites sociais e seus ideólogos programam, pelo terror, todos os homens, desde que nascem, para só se interessarem eroticamente por uma jovem, não parente próxima, se possível de menor estatura do que a dele. Este é o único objeto sexual possível e também obrigatório para todos os homens. Entretanto, como a real constituição biológica humana troca a excitação sexual provocada pelo estro (perceber feromônios pelo nariz) pelo olhar e o tato, muitos objetos passam a ser usados pelos homens para chegar ao orgasmo. Entre os mais frequentes estão as próprias mãos, animais, vegetais, objetos como bonecos e, claro, o mesmo sexo. A boca, as mãos, as nádegas e coxas, enfim um corpo masculino pode também proporcionar muito prazer sexual a outro homem. Portanto, vir a tornar-se, devido unicamente a isso, preferencial e exclusivo para quem o descobriu e praticou com mais frequência e sem culpa, descobrindo suas sutilezas e nuances. Entretanto, o medo de ser chamado de veado, bicha e os outros nomes criados desde o sodomita judaico, aterroriza uma grande parte dos homens. Em muitos deles a sistemática reprovação de todos das relações sexuais com o mesmo sexo soma-se, principalmente, ao pavor de que seus pais, entes queridos, colegas e vizinhos cheguem a saber que eles chegaram ao orgasmo com outro homem. Quer dizer, não se relacionam sexualmente só com o sexo oposto, como a moral sexual judaico-cristã e islâmica obriga a todos fazer. Eles então desenvolvem uma profunda homofobia (medo do sexo com o mesmo sexo) que os leva a um estado de torpor provocado pelo imenso medo de se entregarem a esse tipo de prazer. Nesse entorpecimento da percepção erótica eles não pressentem a possibilidade de chegar ao orgasmo com outro homem. Conformam-se,

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aterrorizados, com o fato de que não são eles que determinam onde colocam o seu próprio pênis para sentir prazer sexual, é a sociedade, através de seus pais, parentes, amigos e vizinhos, que o faz. Esse é um estado, portanto, de alienação sexual. Uma das provas dessa programação sexual desencadeada pela violenta pressão social para todo homem ser pai-de-família é o fato de que quem foi programado pela moral sexual católica, em geral também não se relaciona sexualmente com suas irmãs, parentes próximas ou mulheres mais velhas. Rejeita, sem saber o motivo, todas as mulheres que não são aptas para a procriação. Suas irmãs também são mulheres, mas ele não as deseja. Não sabe o porquê. Só sente que não as deseja. Não as quer para o sexo. No Egito Antigo as teria desejado porque era permitido. Não as penetra, atualmente, porque esse tipo de relação pode por em risco a prole além de impedir a união do capital de famílias economicamente prósperas. Não sente desejo sexual pelas irmãs porque a programação, quando eficiente, provoca esse efeito de torpor sexual. Só não tem desejo por elas quando sabe que são suas irmãs. Não sabendo, pode vir a se relacionar sexualmente com elas com tranquilidade. Entretanto, mesmo não sendo verdade, uma vez sugerido que a mulher, diante dele, é sua irmã e ele acreditando, em geral, fica perturbado moralmente e perde de imediato o interesse sexual por ela. O tabu só atua, psicologicamente, a partir da identificação das características que tornam proibido o objeto a ser consumido. O mesmo ocorre com outros objetos possíveis de darem prazer sexual, como o mesmo sexo. Se, devidamente programado, o homem sente o que os tabus, que lhe foram impostos, determinam. Acontece também com alimentos proibidos por alguns povos, não só com sexo. Ingerindo alimentos tabus o indivíduo vomita ou sentese fisicamente muito mal. Esse fenômeno já está cientificamente comprovado por vários cientistas sociais e psicólogos. Da mesma maneira, as mulheres muito novas, meninas ainda, não são aceitas. Só servem aquelas na idade correta para dar à luz e cuidar da prole, e, portanto, competentes para formar a futura mão-de-obra. Isso demonstra que o programado sexual pela moral sexual católica procura ser todo certinho, se comportando absolutamente de acordo com ela, mesmo sem ser judeu, católico ou muçulmano (islamita). Em relações às irmãs uma grande parte dos homens apresenta até um maior grau de torpor do que o que apresenta em relação ao mesmo sexo. Ele imagina que não sente nenhum desejo sexual por elas. Entorpecido por uma ideologia sexual alienante que diz que o natural é ele só sentir atração erótica pelo objeto sexual que lhe dará filhos saudáveis, ele imagina que não deseja sexualmente outro objeto possível de lhe dar prazer a não ser aquele que interessa às elites sociais e, por isso, é obrigatório. Assim imagina que não deseja sexualmente suas irmãs e que não sente também desejo pelo mesmo sexo. Estamos falando da regra. As exceções só confirmam a regra. Ele canaliza, nervosamente, todo seu erotismo, e se esforça muito, unicamente para só sentir desejo sexual por uma jovem, não parente próxima, bonitinha e, se possível, de menor estatura que a dele. Daí o entorpecimento sexual em que vive, a castração de sua liberdade sexual, os desejos eróticos paralelos algumas vezes disfarçados, o nervosismo e sofrimento diante de tentações eróticas que não são aceitas pela moral

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católica. Muitas vezes vive comédias, quando é surpreendido desobedecendo esta moral sexual e é espezinhado por todos devido a isso. Outras vezes vive tragédias pessoais inomináveis, frustrações e pode vir a se tornar agressivo ou deprimido. Afinal ele está, para agradar parentes e amigos, indo de encontro a estrutura biológica do Homo sapiens que não possui estro. A influência do tomismo nas teorias, supostamente científicas, sobre as causas do sexo entre homens A alienação das sociedades que estabeleceram a moral sexual católica como a norma da sexualidade humana fez surgir um discurso pseudocientífico sobre o que levaria um homem a não se relacionar sexualmente apenas com o sexo oposto. Seus autores não fizeram a necessária análise crítica de um tabu sexual criado pelos judeus e tomaram o tabu pela realidade. Não perceberam que estruturaram seu edifício ideológico não tendo a base na realidade sexual humana. Ao contrário, se basearam na moral sexual do judaísmo e depois do tomismo. Assim fizeram desde os chefes de polícia até os psicanalistas, psiquiatras, psicólogos e médicos, principalmente no século XIX, século no qual se desenvolveram a industrialização e o imperialismo europeu, necessitando de abundante mão-de-obra e mercado consumidor para as novas mercadorias. Portanto, cada um inventou um termo e uma causa para explicar porque um homem fazia sexo com outro não enxergando, devido à influência da moral sexual do tomismo, que ele o fazia porque, sentindo muito prazer, chegava ao orgasmo. Apelaram para explicar esse pecado, renomeado de anormalidade, supostas causas além do prazer físico. Criaram, assim, uma espécie de metafísica mesmo se expressando em linguagem científica. Daí, para explicar porque existem homens que fazem sexo entre si, inventaram hipotéticas causas genéticas, hormônios pré-natais descontrolados, complexo de Édipo não resolvido etc. Quer dizer, sugerindo outras causas além do único fato físico real e observado que é o prazer sexual.Prazer esse que dois homens sentem quando descobrem que se acariciando reciprocamente chegam ao orgasmo. Eles sentem prazer, não porque são pervertidos ou anormais, mas porque a nossa estrutura biológica, resultado da nossa evolução como espécie (não termos estro e possuirmos um córtex cerebral muito desenvolvido que nos dota de muita imaginação) permite que todos que tentarem sentir prazer sexual com o mesmo sexo cheguem ao orgasmo. A grande maioria dos homens sabem ou desconfiam, por exemplo, que se masturbado ou tendo seu pênis chupado por outro homem vai chegar a ejaculação. Escamotear esse fato é ser hipócrita. Entretanto, esses ideólogos travestidos de cientistas, comprometidos com os interesses das elites dominantes, na ânsia de reprimir toda forma de prazer sexual que não fosse a que gerasse crianças e a família que as crie, imaginaram as mais mirabolantes e insensatas teorias para reprimir o sexo com o mesmo sexo. Surgiram nomes como inversão sexual, invertido sexual, desvio sexual (desvio supostamente da natureza quando era, na realidade, apenas da moral sexual católica). A psicanálise criou o complexo de Édipo não resolvido

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para explicar o desejo sexual de um homem por outro que ela chama de perversão sexual. Por outro lado, fez uma fantasiosa descrição do desenvolvimento sexual da criança até o adulto, que, se normal, só faria sexo com o sexo oposto, o que coincide, e não é por acaso, com as normas da moral sexual do judaísmo e do tomismo. E aí, aberta a cancela ideológica para promover o aumento da população visando o acúmulo de capital das elites dominantes, surgiram uma variedade bizarra de pesquisas, muitos vezes financiados por essas elites, sobre a causa de um sujeito, ao ser chupado por outro, chegar ao orgasmo. Qualquer irresponsável passou a dar sua versão teórica para explicar a causa de ocorrer sexo entre homens. Surgiram teorias delirantes como a influência dos hormônios pré-natais, supostas causas genéticas e outras que nunca foram de fato provadas e que são, sistematicamente, depois desmentidas por outras pesquisas. Todas elas não passam de pura ideologia inspirada em uma visão da sexualidade humana superficial, alienada, primária e oriunda das sacristias e do senso comum. Construindo o sexo entre homens para além da repressão A partir dessas conclusões pesquisei sobre como as outras sociedades e épocas, não influenciadas pelo tomismo, administraram o sexo entre homens, e constatei que nelas essa forma de obtenção de prazer sexual, não era proibida nem perseguida e, muitas vezes, foi incentivada. Confirmei essa descoberta, com a obra de muitos historiadores e antropólogos entre o quais Paul Veyne, K. J. Dover, Maurice Sartre, Godelier e, principalmente, com a excelente História da Homossexualidade de Wiliam Naphy, um conceituado professor e diretor no Colégio de Teologia, História e Filosofia da Universidade de Aberdeen da Escócia. Portanto, a realidade histórica, confirmada por rigorosa documentação histórica e antropológica, é que todos os povos não influenciados pelo judaísmo e o catolicismo, faziam sexo com o mesmo sexo sem problematizá-lo ou reprimi-lo. O que é censurado ou pouquíssimo divulgado é que não ocorreu esse fato só com os gregos e romanos da antiguidade clássica, mas com quase todos os povos. Grande parte dos guerreiros mais másculos, em muitos lugares e épocas diferentes, fazia sexo entre si. Entre os mais conhecidos estão os espartanos, samurais, índios de várias tribos e até os piratas. Em algumas tribos, como os Baruya, estudados por Godelier no seu livro La Production des Grands Hommes, o sexo entre um jovem e um guerreiro era um rito de passagem masculino. Então, a cultura gay atual, com nomes como homossexual, gay e outros, é resultado de um período de alienação e repressão ao sexo entre homens. Os estudos desses guerreiros que, sendo másculos, fizeram sexo com o mesmo sexo, mostrou que os seus ensinamentos são muito úteis para orientar, atualmente, quem se relaciona sexualmente com o mesmo sexo. Quem concorda com os pontos de vista da Tradição Espartana ou Espartanismo, deve ser chamado de espartano e não de homossexual ou gay que seguem os pontos de vista sobre o sexo entre homens da cultura gay. A reação ao gayismo entre muitos homens que fazem sexo entre si é um fato e uma tendência cada vez mais frequente. E está também em pensadores como Jack Malebranche com sua crítica ao gayismo no seu excelente livro

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Androphilia A Manifesto, rejecting the gay identity reclaming masculinity, publicado recentemente nos Estados Unidos. Porque o nome de Tradição Espartana, Espartanismo e, aquele que adere a esses pontos de vista ser chamado de espartano Os espartanos, assim como todos os povos que não sofreram a influência da moral sexual judaica e católica, eram tolerantes com o sexo entre homens. Quase sempre associavam uma masculinidade guerreira ao sexo e amor entre homens. Era, portanto, uma tradição desses povos unir masculinidade e sexo entre homens. Por outro lado, Esparta criou um modelo de treinamento moral e subjetivo, além do físico, importante para a formação de homens amadurecidos e responsáveis. O termo espartano hoje nomeia também, além dos nascidos em cidades com o nome de Esparta, o homem que gosta de ser másculo e faz sexo com outro homem. E, além disso, o termo espartano usado aqui, engloba também todos os outros guerreiros de todos os outros povos que apresentavam essas mesmas características dos gregos da Grécia Clássica. O espartano atual segue essa tradição e o modelo de comportamento desses guerreiros sintetizados em um método (um bushido) para se orientar na vida. O que percebi é que o código de ética, o treinamento subjetivo e a auto-educação desses guerreiros, para tornarem-se o melhor possível, é um caminho de desenvolvimento e orientação pessoal muito importante para os dias de hoje. Quem o praticar, e isso é a essência do que chamo de Tradição Espartana, poderá ter mais chances de se dar bem na vida. Isso se deve ao fato de que treinar para ser autodisciplinado, emocionalmente controlado, estratégico nas suas ações e honesto em todos os seus atos promove um sólido crescimento pessoal. Além disso, para complementar, deve evitar vícios, desde o fumo e drogas e ingerir muito álcool. E deve procurar se alimentar com o que é recomendado pelos estudiosos de nutrição. Esses fatores o educam para ser mais eficiente, amadurecido e subjetivamente forte. E, assim sendo, apto para enfrentar as dificuldades da vida. Portanto, a leitura dos textos e o estudo desses guerreiros, que fizeram também sexo entre si, tornam-se o melhor método para o indivíduo se orientar no mundo hostil e caótico no qual vivemos. Com a percepção desses fatos de natureza histórica e antropológica compreendi que o que chamo de tradição espartana, e pode ser também chamado de espartanismo, contribui para criar grandes homens, amadurecidos e seguros de si. Essa é uma das suas finalidades. Essa teoria além de explicar, de uma forma científica e sensata, porque homens fazem sexo entre si visa criar uma nova espécie de indivíduos. Que, se organizados em uma fraternidade de apoio mútuo, estarão aptos a vivenciar e representar uma das melhores formas que existiu e existe de ser homem e praticar o sexo entre homens. Compreenderá, portanto, porque muitos gregos e outros povos achavam ser o sexo entre guerreiros um processo de autoeducação e uma forma superior de amar. É essa tradição, chamada a grosso modo de tradição espartana, que o espartanismo pretende resgatar. ..............................................................................................................................Ricardo Líper

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Complementos ao Manifesto Espartano As vantagens das relações sexuais entre homens 1 – O sexo entre homens tem a imensa vantagem de não gerar crianças que criariam despesas e compromissos com elas para o resto da vida. Não estão incluídos aí os acidentes de parto, as crianças nascidas mal formadas, os adolescentes problemáticos, drogados, inúteis ou precocemente criminosos que transformam a vida de quem os trouxe ao mundo e/ou os cria em uma grande fonte de decepções, prejuízos econômicos, desespero e angústia. Se o sujeito não se liga a ninguém todo o fruto do seu trabalho é gasto com ele. Se gosta de viajar conhecerá o mundo. Ligando-se a outro o dinheiro dos dois será gasto com eles mesmos gozando a vida com imensa tranquilidade e tendo tudo que deseja de melhor. 2 - Ambos sendo do gênero masculino, tendo o prazer de ser homens, acham o outro um sujeito fácil de se apegar, sentir uma grande amizade e, portanto, amá-lo. Existe uma grande identidade entre e eles. A amizade e o companheirismo entre homens é uma das coisas mais prazerosas e frequentes que existe em todas as culturas. Se um homem acariciando outro dá para os dois chegarem ao orgasmo somando-se a essas vantagens é um verdadeiro tesouro. Aquele que não o perceber passou por ele e não o viu porque estava coberto pelo limo da ideologia da moral sexual católica. Quando ele lima a descaracterização da sexualidade humana que essa ideologia provoca na sexualidade ele percebe o ouro e se compreender e praticar a tradição espartana faz da relação com outro homem um tesouro real para ambos. 3 – Todos os homens, quando se identificam com o gênero masculino, sentem muito prazer de conviver uns com ou outros. Agrupam-se espontaneamente e se sentem muitos felizes entre eles e com os signos, hábitos, maneira de pensar que o gênero masculino criou ao longo da história. Se for compreendida por esse ângulo, a relação sexual e amorosa entre dois homens torna-se uma extensão desse companheirismo e é, então, como estamos vendo, extremamente prazerosa e vantajosa. 4 – Durante muito tempo os homens mais másculos de todos os povos antes da cultura católica e judaica, acreditavam que transmitiam ou trocavam a masculinidade ao treinarem e fazer sexo entre si. Em muitas culturas era um dos elementos do treinamento do aprendiz de guerreiro. Tanto na Grécia Antiga, como em vários povos como os sambia e barayunas, estudados por Godelier, via-se na relação sexual de dois homens uma transmissão da masculinidade. A penetração, quando ocorria, do jovem, maior de 18 anos, era vista como uma transmissão de masculinidade. Ele ficava mais másculo ao entrar em contato com o esperma e o corpo do outro. Era como se a testosterona do outro estimulasse a sua própria. 337

Isto era sentido fisicamente. Seu corpo se masculinizava mais em contato com o do outro e nos ensinamentos e treinamentos que ele lhe dava. Um homem aprende a ser homem é com outro homem e não com mulheres. Foi à cultura católica e depois a alienação de nossa sociedade que esqueceram e/ou censuraram esse aspecto do sexo entre homens. Muitas vezes vinculado aos deuses demonstrado no episódio de Apolo e Jacinto, Zeus e Ganimedes e dos heróis e guerreiros do passado. Criou-se então o mito que um homem deitar com outro homem os dois ou um deles vira mulher. Assim sendo essa ideologia, passando a fazer parte da cultura gay ou homossexual, fez os adeptos do gayismo perderam essa grande força e eficiente herança de nossos ancestrais. A tradição espartana é o retorno a essa herança. As 5 desvantagens do heterossexualismo 1 – Embora a relação entre pessoas de sexo diferentes seja mostrada como uma coisa natural, em se tratando do ser humano, não é. Ela, como é praticada nas sociedades influenciadas pela moral sexual católica, é imposta artificialmente aos homens. Portanto, sendo uma ideologia, uma moral sexual e não uma coisa natural do ser humano aqui se chama heterossexualismo. O fundamento biológico do que está aqui dito está no segundo item dos 10 Princípios Espartanos. 2 – Sendo uma programação sexual imposta pela moral sexual católica ela limita os prazeres sexuais possíveis para o individuo desfrutar. A rigor ele só pode relacionar-se sexualmente, isto é, apenas enfiar seu pênis em uma vagina de uma jovem não parente próxima, se possível com pouca diferença de idade da dele. Por trás desse preceito da moral católica e do ensinamento social da conduta sexual tida como correta, está o interesse da elites dominantes de aumentar ou manter a oferta de mão-de-obra para acumular capital. Releia o item 3 dos 10 Princípios Espartanos. Logo está descartado um natural e suposto desejo nascido ou adquirido por ele, unicamente, por esse objeto sexual descrito como correto. Na realidade ele é programado pela ideologia da moral sexual católica e se acomoda com o que a sociedade exige dele com pavor de ser estigmatizado socialmente se não o fizer sendo chamado de veado por isso. 3 - A finalidade do sexo entre pessoas de sexo diferente é gerar crianças. O individuo pode, se ainda solteiro, fazer alguns treinamentos sexuais não se comprometendo, entretanto, mais cedo ou mais tarde todos cobram que se case. Em um homem já solteiro de 30 anos as cobranças e a pressão aumentam. Todos querem que ele tenha uma profissão e um emprego sólido para poder se casar, fazer filhos e manter a esposa e os filhos. Isto é, fabricar e criar a mão-de-obra com seu dinheiro e esforço. Esse destino rígido é imposto com violenta pressão para todos os homens. Ai daquele que não se conformar com isso. É ameaçado de todos as formas. As pressões psicológicas são imensas. Suspeitas sobre sua masculinidade (aí vista, apenas, como penetrar mulheres) e sobre sua potência sexual. Cobranças e mais cobranças, com mães e pais preocupadas, vizinhos mexeriqueiros etc. Não

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é raro muitos deles se precipitarem e fazerem casamentos mais desastrosos. Uma vez cumprido o destino social de zangão já, em sua casa, trabalhando de morrer para manter filhos e mulher, todos lhe abandonam. Não ligam mais para ele. O deixam em paz. Ele fica com a infeliz, também martirizada por crianças, às vezes superativas, onde o desejo sexual muita vez decaiu nos dois. Essa vida miserável se limita a lutar para ganharem dinheiro e seguir o ritual de preparar a os filhos para eles entrarem no mercado de trabalho. Daí, as despesas com as escolas, o medo das drogas ou qualquer coisa que os impeça deles se tornarem uma mão-de-obra útil. A maior preocupação de todos os pais é que os filhos estudem, se formem e consigam um bom emprego para se casarem e terem um casal de filhos. Viver esse papel de pai-de-família é uma tortura sem fim. Muitos homens dão para beber, espancam as mulheres sem saber porque ou as torturam psicologicamente e viceversa; ficam impotentes ou perdem o interesse por sexo ficando assexuados que é o destino de muitos desses zangões. Essa é a essência da infelicidade dos casamentos promovidos pelo heterossexualismo. Se arranja uma amante para poder fazer sexo quando o sexo no casamento que já não existe ou não dá nenhum prazer, precisa ter dinheiro e enfrentar a pressão de todos porque desvia o dinheiro da manutenção da casa e dos filhos. Se tem outras famílias é pior porque tem de trabalhar mais para mantê-los com todos os dramas oriundos dessa escolha. Enfim é a infelicidade resultado da alienação social e sexual. Nas leis brasileiras, em caso de morte, a amásia, como se dizia antigamente, tem direito de casada para manter os filhos leia-se a futura mão-de-obra. 4 – Aí a ideologia da moral sexual católica diz que os filhos cuidarão dos pais na velhice. Mentira. Pode ser, mas não é a regra. A família é implosiva. Quer dizer, se cria os filhos para se ficar só porque eles devem sair de casa e fazerem novas famílias para gerar e criar nova mão-de-obra. Só ficam em casa os filhos incapazes e doentes. Logo, na velhice, os pais ficarão sozinhos. Ocorrem aí duas coisas. Se os filhos forem inúteis e não gerarem rendas vão viver explorando os país para manter a programação sexual (terem se casado e ter feitos filhos) imposta pela sociedade. Daí os pais vão criar os netos e só não criarão os bisnetos, com seu dinheiro e esforço, porque a natureza, ao matá-los, os libertarão desse encargo. Se forem ricos os filhos muitas vezes desejam sua morte para administrarem e se matarem nas disputas pela fortuna com irmãos e cunhadas interesseiras. Outro comportamento é exceção à regra. Nunca vi uma cunhada abrir mão de muito dinheiro para outra desfrutar a fortuna do sogro. 5 – No período da vida que os pais mais precisam de carinho, cuidados que é a fragilidade da velhice eles estão muito ocupados em criar os filhos e os pais são um estovo. Quando moram com eles são ridicularizados, maltratados por sogras e parentes da mulher ou viceversa. Quando moram sós as visitas, dos apressados filhos, são cada vez mais espaçadas. E tem os asilos... Um filme que retratou muito bem isso é Parente é Serpente. Excelente para ser visto na época do Natal... E os que se conscientizaram da imensa diversidade de prazeres sexuais possíveis para os homens e tiveram coragem de desobedecerem as elites

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dominantes podem estar naquele cruzeiro para Europa ou o Oriente com seus amigos, em uma festa na sua cabine, todos mundo cantando e tirando a roupa... Ou só com o seu amante. E, depois, Tahiti e mais sexo, gargalhadas, festas.... Ou uma vida menos agitada, a depender do gosto de cada um, ao lado de um outro guerreiro, companheiro e/ou de irmãos da fraternidade espartana que é uma espécie de maçonaria e uma família verdadeira. Os 10 Mandamentos Espartanos Em linhas gerais todo indivíduo másculo que sente prazer de ser homem e faz sexo com outro homem pode se chamar ou ser chamado de espartano em vez de gay ou homossexual. Entretanto, o espartano de fato é aquele que segue a tradição espartana. Chamamos de tradição espartana uma teoria sobre o sexo entre homens com pontos de vista, sobre sua causa e prática, diferentes do que estamos habituados a ver, ler e ouvir a respeito. O 10 Mandamentos Espartanos 1 – Ser absolutamente másculo. Sentir um imenso prazer de ser homem, gostar de ter um corpo masculino e fazer sexo com o mesmo sexo. 2 – Estudar e pesquisar os guerreiros de todos os povos, que faziam sexo entre si, para adaptar seus ensinamentos, e assim ter um guia seguro para, atualmente, resolver suas dificuldades. A tradição espartana é a descoberta que quase todos os guerreiros e homens mais másculos de todos os povos, que não fossem judeus e depois os católicos e islamitas, faziam sexo entre si. Muitos deles achavam ser essa forma de sentir prazer sexual e amar superior a qualquer outra. 3 - Não beber muito álcool. Não usar drogas. Não fumar. Evitar alimentos que prejudicam o organismo. 4 – Ser extremamente honesto. Não mentir. Não trair. Ser absolutamente confiável. 5 – Ser estratégico em todas suas ações. Ser previdente e persistente. 6 – Ser disciplinado. 7 – Controlar suas emoções. 8 – Ser organizado. Em resumo: treinar e assim educar-se, para praticando o agogé (treinamento) chegar ao areté (excelência) para atingir a ataraxia (imperturbabilidade). Isto é, ser o melhor que você pode ser, sob todos os pontos de vista, como faziam os antigos gregos. A tradição espartana visa criar grandes homens. É um processo de auto-educação. 9 – Construir uma fraternidade espartana. Ela é para ser uma organização internacional de homens, subjetiva e moralmente fortes, à semelhança da maçonaria, para praticar o apoio mútuo e os ajudarem a viver melhor e ter sucesso na vida. 10 – Compreender que o sexo entre homens pode ser um caminho para o aperfeiçoamento pessoal como foi, para muitos guerreiros nossos ancestrais, dos quais devemos ser os herdeiros, cultuá-los e, portanto, guardiões dessa tradição. É, isso, em essência, que é ser espartano.

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Bibliografia Inicial Básica Reúna-se com pessoas interessadas em tomar consciência do que é praticar relações sexuais com o mesmo sexo. Leia o nosso manifesto e os nossos fundamentos e faça um grupo de estudo sobre os livros abaixo. Veja e discuta os filmes recomendados. Existem três livros que precisam ser lidos, relidos e estudados em grupo ou individualmente. São fundamentais para a formação da consciência sobre o que é são as relações sexuais entre homens. A vida não poupa os negligentes. Nunca se esqueça disso. Não tenha preguiça de estudar, de ler e aja formando um grupo confiável de amigos para enfrentarem juntos as adversidades. Existe uma História da Homossexualidade de William Naphy que precisa ser lida. Não deixe de ler esse livro. É a história do sexo entre homens baseada nos documentos históricos que escaparam do fogo da inquisição. Eles nos fornecem a verdade. Foi editado pelas edições 70 de Portugal. O outro livro básico é : A Invenção da Heterossexualidade de Jonathan Ned Katz. Ediouro.1966. Não achando nas livrarias uma sugestão de onde procurá-lo é www.estantevirtual.com.br. Outro livro que não pode deixar de ser lido é Homossexualidade: uma História. Colin Spencer – Editora Record. Procure na estantevirtual porque consta está esgotado. A Homossexualidade na Grécia Antiga de Kenneth J. Dover. Nova Alexandria. Relançado recentemente. Não deixe de comprar e ler. Os textos dos guerreiros para você aprender e desenvolver estratégias de conduta e ética A leitura desses textos deve ser feita com senso crítico. Deve-se descontar as características de cada cultura e as especificidades históricas. O que se procura neles é a sua essência. Isto é, os princípios morais, as estratégias de batalhas e lutas que podem ser adaptadas as lutas e batalhas que temos de travar para sobreviver em uma sociedade predadora e doentia e uma natureza hostil e cruel. Livros Hagakure. Yamamoto Tsunetomo. Conrad Livros Hagakure. Yukio Mishima. Editora Rocco Bushido. O Código do Samurai. Daidoji Yuzan. Editora Madras Esses livros sobre o pensamento dos samurais são versões e resumos do original. Entretanto é um bom início para o estudo do pensamento desses guerreiros japoneses. Pode ser

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completado com outras obras sobre o Japão. Sugiro: Morte Voluntária no Japão. Maurice Pinguet. Editora Rocco. A Vida e Obra de Mishima. Henry Scott Stokes. Editora L&PM Sobre estratégia militar A Arte da Guerra. Sun Tzu. James Clavell. Editora Rocco. A Arte da Guerra. Sun Tzu. Thomas Cleary. Editora Pensamento. Existem várias versões deste livro. Deve-se comparar e estudar todas elas. O Livro dos 5 anéis. Myamoto Musashi. Editora Madras. O Livro da Ordem da Cavalaria. Ramon Llull. Editora Giordano. Da Guerra. Carl von Clausewitz. Martins Fontes. Filmes O Segredo de Brokeback Montain – Obrigatório. Quem não tem o DVD para assistir periodicamente está vacilando. Alexander de Oliver Stone. Grande filme crucificado pela crítica conservadora e homofóbica norte-americana porque o diretor é muito crítico em relação aos Estados Unidos. Embora tímido, o filme procura ser verdadeiro em relação ao sexo entre homens. Não deixe de ver os comentários do historiador no DVD. A versão do diretor corta as cenas de afeição amorosa entre Alexandre e Herfestion. Tabu (Gohatto) Direção de Nagisa Oshima. De forma pioneira aborda a verdade histórica que era a freqüência do sexo entre os samurais. Furyo - Em Nome da Honra (Merry Christmas, Mr. Lawrence) Direção de Nagisa Oshima. Filmes que, embora sem o conteúdo especificamente espartano, mostram uma realidade pré-espartana. Maurice (Maurice) 1986. Inglaterra. Direção de James Ivory. Com James Wilby, Hugh Grant, Rubert Graves. Baseada em obra do escritor M. E. Foster possivelmente autobiográfica. Já existe em DVD. Uma Delicada Atração (Beautiful Thing) 1996. Direção de Hettie MacDonald. Com um elenco desconhecido com grandes interpretações principalmente dos jovens que se apaixonam um pelo outro. Só em VHS Tempestade de Verão - Baixe da Internet

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ANEXO III Imagens do show

Figura 21: Atrações (drags, performances e stripper)

Figura 22: Eleição do Garoto Vale Tudo 2014

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Figura 23: Ceia servida em datas comemorativas

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Figura 24: Atores fantasiados de jogadores de futebol

Figura 25: Cliente que aceita subir no palco

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Figura 26: Interação no palco

Figura 27: Tatame colocado no chão com plateia ao fundo

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Figura 28: Orgia no palco

Figura 29: Multidão que se junta para o show

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Figura 30: Anacondas Ninjas sobem no palco

Figura 31: Anacondas Ninjas

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