FESTIVAIS LITERÁRIOS, SISTEMAS CULTURAIS E MARKETING TERRITORIAL:UM ESTUDO DE CASO ITALIANO

June 6, 2017 | Autor: Frederico Fernandes | Categoria: Literatura Comparada (Comparative Literature), Oral Poetry
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FESTIVAIS LITERÁRIOS, SISTEMAS CULTURAIS E MARKETING TERRITORIAL:UM ESTUDO DE CASO ITALIANO Frederico Fernandes1 Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar seis festivais de poesia e literatura na Itália. A abordagem crítica foi baseada nos estudos sobre o polissistema de Itamar Even-Zohar (1990). Foram analisados, no âmbito de realização do festival, o papel do poeta/escritor como produtor, o leitor como um consumidor, o mercado, a instituição, repertório e produtos como componentes do sistema literário, bem como sua interação com diferentes sistemas culturais. As análises dos festivais italianos indicam a relação entre literatura e marketing territorial, demonstrando como festivais de poesia e literatura contribuem para a construção da identidade de uma comunidade, bem como para mudar a percepção do mundo através da linguagem artística. Palavras-chave: festivais literários, sistemas culturais, marketing territorial

LITERARY FESTIVALS, CULTURAL SYSTEMS AND TERRITORIAL MARKENTIG: AN ITALIAN CASE STUDY Abstract: This article aims to analyze six poetry and literary festivals in Italy. The critical approach was based on the polysystem studies carried on by Itamar Even-Zohar (1990). Aspects such as the role of poet/writer as a producer, the reader as a consumer, the market, institution, repertoire, and product as components of the literary system, and interaction with different others cultural systems were analyzed in the festival environment. The analysis of Italian festivals point to the relationship between literature and territorial marketing, demonstrating in what ways poetry and literature festivals contribute to create a community identity as well as change the world view. Keywords: Literary festivals, cultural systems, territorial marketing

Segundo dados do Osservatorio Italiano Festival ed Eventi Culturali (OIFEC), no ano de 2013 a Itália foi palco de 927 festivais. O período de maior concentração ocorreu no trimestre junho-julho-agosto, que corresponde às férias de verão no continente europeu. A lista foi ordenada a partir de uma categorização peculiar, seguida pelo número de ocorrências de cada festival: de cinema (284), música (281), cultura (159), teatro (153) e ciência (50). Como se nota, o OIFEC não empregou a denominação “festival literário” ou “festival poético”, apesar de ser bastante recorrente o uso destas expressões em muitos eventos, optando por um termo um tanto quanto genérico de “festivais de cultura”. Na ordem dada pelo OIFEC, os festivais de cultura correspondem ao terceiro maior número de eventos e assumem importância num cenário editorial, em que o volume de vendas de livros impressos vem caindo nos 3 últimos anos consecutivos, enquanto o mercado de livro digital está em franca ascensão2. Mas o que caracteriza um festival literário? Tratase de uma feira de livros? Um evento em homenagem a algum escritor? Uma programação com apresentações artísticas? Instalações literárias? Performances poéticas? 1

Professor associado do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina/UEL e bolsista estágio sênior de pós-doutorado da CAPES/Fundação Araucária junto à Universidade de Bolonha – Itália. Email: [email protected] 2 Os dados do OIFEC foram apresentados no estudo de Guerzoni (2013). Dados sobre o mercado de livros italiano podem ser consultados por meio do relatório da Associazone Italiana Editori (AIE), de 2014. Disponível em: http://www.primaonline.it/wpcontent/uploads/2014/10/04_SintesiRapporto2014.pdf - acessado em 17/10/2014.

Um concurso literário com premiação? Por se encontrar na dimensão da festa, o festival pode ser isso e muito mais e, ao mesmo tempo, suas atividades podem se caracterizar como nenhuma das anteriores. Talvez aí se justifique o termo empregado pelo OIFEC situando-os numa nebulosa definição de cultura, enquanto teatro, música, cinema e ciência comportariam atividades que, mesmo sendo pertencentes à cultura, designam-se per se. A lógica de realização de um festival literário/poético assenta-se na vida cultural de moradores de um determinado local. A festa literária cose-se mediante o entrelaçamento num mesmo fio de diferentes sistemas culturais que unem a programação do evento às dimensões históricas, sociais e culturais da cidade. A seu modo, um festival torna-se um chamado para a visita a museus, imersão arquitetônica e de sítios arqueológicos ou templos sagrados, sendo, além disso, um convite à gastronomia, à hospitalidade e às tradições locais. Em outras palavras, há um patrimônio cultural e uma vida social envolvidos em sua realização, cuja proposta tem como carro-chefe a arte e a literatura. Por isso, quando consolidado devido à recorrência de suas edições, ele configura-se também como um bem cultural e turístico. Os dados aqui apresentados são oriundos da pesquisa “A Poesia do Espaço Público: polissistemas literários e estratégias de inserção social do texto poético”, desenvolvida junto à Universidade de Bolonha (CAPES/Fundação Araucária). Foram investigados, nesse âmbito, 6 festivais a saber: Festaletteratura (18ª. edição, Mântova, 37/09/2014), Festival della Parola (1ª. edição, Parma, 16-22/07/2014), Festival Internazionale di Poesia di Genova (20ª. edição, Gênova, 06-16/06/2014), Poesia Festival (10ª. edição, Vignola, 25-28/09/2014), Stazione di Topolò – Postaja Topolove (21ª. edição, 11-20julho de 2014), e o Polypoetry Festival of Bologna (sem edição este ano, tendo sido considerados seus arquivos e registros visuais). A denominação ora poética e ora literária dada ao festival, e também aqui reproduzida, não é um fator decisivo para a classificação do mesmo, tendo em vista que alguns deles adotam a autodenominação de “não-festival”, como é o caso de Topolò, e outros até mesmo ignoram o termo literatura ou qualquer referência a ele, em prol da ênfase na palavra, como o de Parma. Assim, a expressão festival literário adotada nesse artigo está cobrindo uma ampla variedade de eventos que de alguma maneira têm como elo de ligação melhor evidenciado o sistema literário. Pelo fato de não haver uma formatação rígida, os festivais adotam atividades comuns à academia (palestras, mesas redondas, conferências, debates), à comunicação (entrevistas, circulação de jornais e fanzines), à performance (instalações, recitais, espetáculos musicais, arte de improviso), ao mercado artístico e de produtos diversos (pelos estandes de editoras e livrarias, pela comercialização de livros, alimentos e produtos de vários gêneros), ao turismo (pelo envolvimento da população local com o evento que divulga sua identidade, pela ocupação do espaço público e do patrimônio cultural local). Festivais literários e poéticos constituem-se como ambientes artísticos multissistêmicos, nos quais artistas e visitantes podem dialogar com expressões de temporalidades, espacialidades e identidades distintas. Se na perspectiva do visitante, que se dispõe a deslocar para usufruir da programação oferecida, o festival é uma oportunidade para ampliar os conhecimentos sobre livros e artes vigentes no mercado editorial ou ver de perto celebridades do mundo literário; na do artista/escritor/poeta, o festival o lança para um campo de forças comutativo da arte, ao expô-lo a linguagens e ambientes de comunicação capazes de ampliar a sua própria percepção de mundo.

Nesse sentido, o conceito em tela de festival encontra porto na teoria dos polissistemas de Itamar Even-Zohar, ao pensar o sistema literário não exclusivamente a partir do conjunto de textos produzidos em seu interior, mas também pela ação de políticas públicas, educacionais, mercadológicas atuantes em sistemas culturais no contexto de produção do objeto a ser investigado. No ano de 1990, a revista Poetics Today publicou um compêndio com os principais artigos do crítico israelense, intitulado Polysystem Studies.3 Nas mais de 250 páginas desse compêndio, Even-Zohar introduz e problematiza seu conceito, que vem sendo elaborado desde os anos de 1970, acrescentando ideias advindas do debate acadêmico e fazendo estudos de caso voltados à literatura russa, israelense, alemã e de outras nacionalidades. Como norte de sua reflexão está o fato de que a significação do texto literário é corolária da relação estabelecida entre a obra e os vários sistemas culturais com os quais ela se relaciona. Há o pressuposto de que o sistema literário é intrínseco ao “sistema social” e hierarquizado em relação a outros sistemas dados socioculturalmente. Nas palavras do teórico israelense: Moreover, if we assume that the literary system, for instance, is isomorphic with, say, the social system, its hierarchies can only be conceived of as intersecting with those of the latter. The idea of a less stratified literature becoming more stratified, which I suggested as a universal of systems (EvenZohar 1978: 39), can be thus understood because of the homologous relations between literature and society. (1990, p.23)4

A dinâmica literária resulta de ações de “instituições sociais”, constituídas sob a forma de veículo das ideologias literárias: editoras, críticos, grupos literários, agências governamentais de fomento à cultura e à educação, centros educacionais, mídia, associações organizadoras de festivais literários/poéticos ou “any other means for dictating taste or norm-giving” (idem), que,5 por sua vez e inegavelmente, obedecem a regras do sistema cultural. Para dar conta dessa relação sempre dinâmica, Even-Zohar traça alguns papeis cruciais em seu modelo teórico-analítico, valendo-se da estrutura jakobsoniana dos elementos e funções da linguagem.6 O produtor O principal ponto do diagrama acima recai sobre o papel do “produtor” (producer) que diferencia-se da perspectiva jakobsoniana, na medida em que Even-Zohar identifica no papel do emissor algo mais complexo do que representa a figura do escritor dada 3

Para a confecção deste artigo foi utilizada a versão em inglês do texto de Even-Zohar, cuja tradução dos trechos é de minha responsabilidade. Uma versão parcial da publicação do compêndio da Poetics Today encontra-se em língua portuguesa, numa tradução de Luis Fernando Marozo, Carlos Rizzon e Yanna Karlla e pode ser acessado on-line pela Revista Translatio 4, p.2-21. 4 “Além disso, se assumirmos que o sistema literário, por exemplo, é isomorfo como o sistema social, a sua hierarquia pode apenas ser concebida na relação com os demais sistemas. A ideia de uma literatura menos estratificada tornando-se cada vez mais estratificada, conforme em outra ocasião sugeri como uma regra universal de sistemas (Even-Zohar, 1978: 39), pode ser assim entendida por causa das relações homólogas entre literatura e sociedade.” 5 E ele observará adiante que “the literary institution is not unified. And it certainly is no building on a certain street, although its agents may be detected in buildings, streets, and cafés” (1900:38) 6 Uma explicação melhor detalhada deste diagrama pode ser encontrada em Nitrini (1997, p. 108-10)

socialmente. Assim, o produtor não é aquele que desempenha atividade única na intricada rede de trabalho literária, podendo atuar com papeis que se tornam parcial ou totalmente incompatíveis entre si (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 35). A figura do produtor no lugar de escritor coincide muito com os relatos de poetas experimentais contemporâneos (sobretudo em festivais poéticos), que desempenham inúmeras atividades como a de organizadores, editores, performers, de modo a intermediar a produção poética feita por eles, e pelo grupo ao qual se encontram filiados, com um público (MINARELLI, 2010; 2014). Também, desenvolvem com o público formas de contato e de trocas simbólicas específicas, cujos reflexos são sentidos no sistema literário. Por isso, a figura do produtor torna-se melhor compreendida no coletivo. Retomando Even-Zohar: It is not merely "a producer" we encounter, nor just a set of individual "producers," but groups, or social communities, of people engaged in production, organized in a number of ways, and at any rate relating to each other no less than to their potential consumers. As such, they already constitute part of both the literary institution and the literary market. (1990, p. 35)7

O movimento coletivo no qual brota a figura do produtor encontra na atuação do escritor, em seu papel de organizador de festival, uma espécie de liderança. O festival articula-se, necessariamente, como um trabalho em equipe, demandando gerenciamento logístico, de divulgação e contábil dentro de uma hierarquia de funções bem constituída. Os de maior envergadura compreendem instâncias de articulação que foram descritas no estudo sobre festivais, conduzido por Guido Guerzoni (2013), da seguinte forma: a) Descrição detalhada (projeto): compreendendo as etapas de definição do evento, estudo financeiro, marketing, descrição do lugar e das gestões operacionais, programação do evento e gestão de recursos humanos. b) Implementação: gestão contingencial, monitoramento do processo e fechamento. c) Avaliação: patrocinadores e usuários, organizadores e equipe de trabalho, ambiente e comunidade, resultados e processos. d) Decisão: incentivos, objetivos, comitê gestor, estudo de viabilidade, decisões. Escritores e artistas, intelectuais e professores, geralmente, são os principais atores dos comitês de gestão de um festival. É muito comum, na Itália, os festivais se organizarem por meio de associações em que pessoas ligadas direta ou indiretamente ao sistema literário são seus fundadores. Dos 6 festivais pesquisados, 5 – os de Gênova, Parma, Mântova, Vignola e Topolò – tinham associações pelos quais eles se mantinham. A figura jurídica de uma associação tem por objetivo assegurar a existência do evento, tornando-se catalizadora de recursos públicos e privados. E, por conseguinte, ela não pode se eximir da responsabilidade jurídica e tributária que o evento assume. Assim, o escritor, envolto por esta atmosfera administrativa, torna-se um produtor dotado de habilidades próprias de um mundo empresarial, imprescindíveis à empreita de organização e gestão de um festival. Quando se trata de um evento anual, como é comum entre os festivais

“Não é apenas ‘um produtor’ que encontramos, nem apenas um conjunto de ‘produtores’ individuais, mas grupos ou comunidades sociais, de pessoas envolvidas na produção, organizados em uma série de maneiras, e de qualquer forma relacionados uns com os outros não menos do que seus potenciais consumidores. Como tal, eles já fazem parte tanto da instituição literária como do mercado literário.” 7

italianos, o festival tende a “profissionalizar” o escritor, envolvendo-o numa série de atividades ininterruptas ao longo do ano. A entrevista dada pelo poeta Claudio Pozzani, o principal organizador do Festival Internazionale di Poesia di Genova, criado em 1995, com 20 edições, é bastante elucidativa quanto ao processo de transformação do poeta em produtor. Segundo ele: I poeti si trovano ad operare in uno dei campi culturali più difficili in quanto la poesia è probabilmente la forma d'arte più lontana dall'idea di business, a causa di molti luoghi comuni sbagliati che media e sistema educativo hanno contribuito a disseminare. Ecco perché, nel campo dell'organizzazione di eventi artistici, nella poesia ci sono molti poeti che organizzano. Difficilmente le mostre d'arte sono organizzate da pittori o scultori o grandi concerti da musicisti o compositori: i festival di poesia, invece, sono spesso creati da poeti che, tra l'altro, spesso trovano la propria dimensione artistica e letteraria schiacciata da quella organizzativa. Ho creato il Festival Internazionale di Poesia di Genova proprio per conquistare uno spazio per la divulgazione della poesia contemporanea e per gli scambi culturali tra i Paesi di tutto il mondo attraverso questa forma d'arte. Ho lanciato questo Festival quando nessuno in Italia parlava di poesia, tantomeno i media e i giornali, né c'erano altre manifestazioni di questo livello. In un Paese come l'Italia, agli ultimi posti come letture di libri, con un sistema scolastico con molti problemi e con un alto tasso di analfabetismo di ritorno, creare un festival di poesia e soprattutto mantenerlo al top per venti anni è una grande scommessa e un grande sforzo. [...] Il Festival è diventato un luogo di incontro e di produzione di nuovi progetti per molti autori, non soltanto italiani. Il CVT, l'associazione che lo organizza e di cui sono fondatore, è una sorta di casa di produzione di eventi e prodotti culturali, in Italia e all'estero.8

O mercado O produtor, retomando o diagrama proposto por Even-Zohar, liga-se com o mercado (market), que em certa medida está imbricado também com outros agentes do sistema literário. Para o crítico israelense, a relação de mercado do texto não pode ser entendida simplesmente como uma relação de ordem econômica. Ela se estabelece por relações entre pessoas, que implicam também relações de poder e de papeis constituídos socialmente. Desse modo, os professores de literatura, por exemplo, ao pertencerem a instituições de ensino, são agentes do mercado, ao indicarem obras para serem lidas. Os festivais, na linha de pensamento que Even-Zohar coloca, constituem-se como espaços de mercado, isto é, onde os seus produtores exercem a função de marketers. Em 2011, Andrea Cortellessa e Luca Archibugi colocaram-se a seguinte questão: “quem decide se um livro é bom?” e buscaram dar sua resposta por meio de um filme documentário sugestivamente intitulado Senza scrittori. O filme não trata especificamente do desaparecimento do escritor, mas investiga como um livro ganha Entrevista dada a Frederico Fernandes por email, em 22 de junho de 2014. Numa tradução literal: “Os poetas atuam em um dos campos culturais mais difíceis que é a poesia, provavelmente, é a forma de arte mais distante da ideia de business, por conta de muitos clichês equivocados que a mídia e o sistema educacional têm ajudado a divulgar. É por isso que, quando se trata de organização de eventos artísticos, na poesia há muitos poetas que organizam. Dificilmente exposições de arte são organizadas por pintores ou escultores ou grandes concertos de músicos por compositores: os festivais de poesia, no entanto, são muitas vezes criados por poetas que, entre outras coisas, encontram a sua dimensão artística e literária tolhida pela atividade organizacional. O Festival se tornou um ponto de encontro e de produção de novos projetos para muitos autores, não apenas italianos. O CVT, a associação que o organiza e da qual eu sou o fundador, é uma espécie de casa de produção de eventos e produtos culturais, na Itália e no exterior. 8

prestígio no mercado editorial e agrega valor de “bem cultural”. Para dar conta da resposta, eles percorreram cerimônias de premiação de autores do cenário literário (como o Premio Strega, um dos principais da literatura italiana), entrevistaram diretores de grandes editoras, autores e livreiros. A resposta a que chegaram é que as cadeias de redes de grandes livrarias detêm um enorme poder sobre a decisão se um livro é bom ou ruim, seja pela forma como expõem o autor ou uma obra em específico em suas lojas, pelo marketing empregado na divulgação, pela forma como circulam seus produtos em canais de comunicação publicitários e, não menos importante pelo lobby exercido em concursos e grandes premiações literárias. Os documentaristas ainda fazem um contraponto entre as redes de livrarias e o papel dos livreiros independentes, isto é, proprietários de negócio próprio com estratégias menos agressivas de inserção publicitária, agora em extinção no mercado italiano. Asseveram que o livreiro tinha o papel daquele que decidia sobre o “bom livro” de forma mais democratizada, pois além de não haver um padrão, como geralmente têm as lojas de uma rede de livraria, ele era sensível ao gosto de seu cliente, tendo com ele uma relação de indicação de obras oriundas de editoras com pouca circulação no mercado. O livreiro independente, enquanto um dos marketer do sistema literário, cumpre a função de abrir espaços para novos escritores e editoras, comercializando produtos culturais que atendem a necessidade de uma clientela seleta. Com a inserção no mercado de numerosas livrarias de cadeia, muitos deles se viram obrigados a fechar suas portas pois, apesar de o preço do livro ser tabelado na Itália, as grandes redes de livrarias conseguem descontos maiores e isso lhes possibilita investir mais em publicidade, levando-as a ter uma margem de vendas e lucro maior que a do livreiro independente. Com a drástica diminuição do mercado de livrarias independentes, o poder de decisão do bom livro centrou-se quase que exclusivamente nas mãos das grandes redes como, por exemplo, Feltrinelli, Ubiki, Mondadori. Nesse cenário, conforme demonstra Senza Scrittori, os festivais literários começam a desempenhar um papel importante, pois passam a fazer o que faziam os livreiros independentes: colocar autores de sucesso com autores que podem vir a ser celebridades. A conclusão deste filme documentário sobre o mercado editorial aponta para a existência de um espaço de discussão, que mantém uma relação de interdependência para com as livrarias de cadeia, caracterizados pelos festivais. O público Se no ponto de partida o papel do escritor somente não dá conta de representar as atividades desenvolvidas pelo produtor, no outro ponto, o da recepção, a figura do leitor torna-se simplificada em relação ao consumidor (consumer), pois “The ‘consumer’, like the ‘producer’, may move on a variety of levels as a participant in the literary activities” (Idem, p. 36)9. A perspectiva do consumidor é a do sujeito que está também consumindo todo um repertório dado socioculturalmente nela implicado: uma veiculação editorial ou, por exemplo, como pensa Gerard Genette (2009), um conjunto de signos denominados paratextuais. Além disso, o sujeito está consumindo em relação a outros produtos culturais (como no complexo evento que se torna o festival, em que outros bens de consumo são oferecidos no mesmo pacote literário) e, também, em relação a um grupo de consumidores, que podem ou não determinar procedimentos de consumo (como, por

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"O 'consumidor', como o 'produtor', pode mover-se em uma variedade de níveis como participante nas atividades literárias".

exemplo, a escolha dos autores a que assistirão). Esse coletivo de consumidores, EvenZohar designa “público” (1990, p. 37). Um público num festival é em grande parte resultado de uma estratégia em que produtor e marketer (agente do mercado direto) são coatuantes, seja esta união dada de forma deliberada ou não. Um festival como o de Mântova, por exemplo, apresenta um público muito diferenciado em relação ao de Topolò. Por sua vez, o Festival de Polipoesia de Bolonha, por se tratar de um evento saído do departamento de artes da Universidade de Bolonha, constituía-se por um público majoritariamente composto por estudantes. O público num festival é resultado não apenas da ação de divulgação, mas do tipo de entretenimento oferecido ao longo do evento e, também, das condições de acessibilidade. Nesse sentido, Mântova dispunha de um micro-ônibus saindo de Bolonha todos os dias para o festival, enquanto Topolò não dispunha de transporte público nos fins de semana para acesso. A dificuldade de acesso contribui sobremaneira para dimensionar o público do festival e, consequentemente, os festivais que comportam um maior número de pessoas têm uma diretriz comercial mais enfatizada. Nesse sentido, os números do Festivaletteratura de Mântova, na Lombardia, criado em 1997, chegam a impressionar em momento de crise econômica. Sua 18ª. edição, em 2014, contou com um público geral de 119 mil visitantes, sendo 66 mil o número de pagantes, 53 mil gratuitos, e 3 mil sócios, uma modalidade em que o associado contribui com uma taxa anual à associação.10 As atividades do Festivaletteratura centravam-se em visitas a estandes nos quais o participante (usuário) poderia tomar contato com livreiros, comerciantes locais, performances artístico-literárias, bibliotecas e salas de leitura, palestra de escritores, cursos rápidos de degustação de café, exposições comemorativas que divulgavam a cidade. O evento trazia como destaque o “Il Palazzo dele Fiabe”, um espaço próprio para o público mirim, composto por uma exposição sobre fábulas publicadas na Itália no século XX, com ambientes de leitura que remetiam a um castelo, com acesso a livros impressos e digitais de inúmeros fabulistas. A 18ª. edição ofereceu 142 atrações ao longo dos 5 dias de evento, sendo que cerca de 70% delas eram pagas a um custo médio de 5 euros. No estande da principal livraria do festival, eram vendidos livros dos autores que participariam da edição de 2014, centralizando o destaque para suas obras e para os lançamentos que ocorreriam ao longo do evento. Não é infundada a semelhança entre o Festivaletteratura e uma bienal de livro, em proporções menores, mas no mesmo espírito de evento encontrado no Brasil. Não há nesse caso um público que se delineia por um gênero em específico, como ocorre no festival de Topolò ou no de Polipoesia que franqueiam a arte experimental, promovendo a performance associada à música, às artes visuais e à vocalidade/oralidade. Até há atividades performáticas que se abrem para a divulgação do texto literário, mas os fazeres e a práticas do evento tendem a se diluir num grande “mercado”, onde seu público pode escolher o que consumir. O comércio do festival, é importante lembrar, não se reduz à compra de livros, mas o mercado editorial encontra-se associado a produtos alimentares e de autos expostos em praças e ruas tomadas pelo evento. O público faz evidenciar algumas das estratégias de inserção da literatura no espaço público adotadas pelos produtores e pelos marketers. É significativo lembrar que o calendário do festival define-se, sobremaneira, em razão dele. Por exemplo, o Festival Estes dados foram retirados da seguinte reportagem da Gazeta de Mantova, intitulada “Festivaletteratura più forte della crisi: 119mila presenze. Nel 2015 la novità dei Prototipi”. Disponível em: http://gazzettadimantova.gelocal.it/mantova/cronaca/2014/09/07/news/festivaletteratura-piu-forte-dellacrisi-119mila-presenze-nel-2015-la-novita-dei-prototipi-1.9889170. Acessado em 15/10/2014. 10

de Polipoesia de Bologna era realizado junto com o calendário escolar da Universidade de Bolonha, pois seu público-alvo eram alunos de artes, enquanto os que obedecem ao calendário veraneio tendem a atrair turistas em férias. As estratégias também se definem mediante um plano logístico do festival, o qual traz desenhada uma expectativa de público. Elas vão da distribuição e tamanho dos estandes em relação ao grau de importância do escritor que nele vai fazer sua fala, até a forma como ele é divulgado pela impressa local. A escolha de um autor via de regra implicará uma apresentação positiva de seu trabalho, decorrendo daí, em grande parte, a função do makerter assumida pelos organizadores do festival. Isso não impede de o público ter posicionamentos adversos e nem sempre amistosos durante as apresentações. Um exemplo pode ser extraído do Festival della Parola de Parma, que teve sua primeira edição em 2014, sendo originário da associação Rinascimento 2.0, que promove o festival de música da cidade. Durante uma mesa redonda sobre guerra e literatura, tendo o Cáucaso como tema, os escritores Nicolai Lilin e Moni Ovadia foram diversas vezes questionados pelo público, que se faziam contrários às opiniões ali expressas, provocando o debate. O exemplo colhido em Parma serve para demonstrar que o visitante nem sempre é um consumidor passivo, o que torna o festival um espaço de debate e construção ideológica. Além de ser um indicador de sucesso do evento, o público dá ao produtor (tanto o escritor que está por detrás da organização como o convidado responsável pela atividade cultural) um feedback da aceitação da obra, do grau de afinamento ideológico e estético para com o fazer literário. Desse modo, o público nunca deixou de ser um agente importante na construção do repertório e do produto, incluindo aí a obra literária. Repertório e produto Caberia perguntar como o texto literário é atingido e em que medida encontra-se implicado na relação do festival como um todo? É na análise do repertório (repertoire) e produto (product) presentes no diagrama even-zohariano que a resposta à questão pode ser trilhada. De acordo com Even-Zohar “’Repertoire’ designates the aggregate of rules and materials which govern both the making and use of any given product” (1990, p. 39).11 O repertório é, em certa medida, o campo de rearranjo das convenções literárias, o espaço por natureza de encontro entre escritores e artistas, escritores e leitores, escritores e seus ouvintes. É o ponto de embate entre ideias, movimentos estéticos e ideologias. O repertório alinha-se mais diretamente ao público, sendo o festival o seu nicho de incubação, a materialização mais sensível do debate de ideias, o contato direto do autor com um público. O corolário do festival será o produto, definido por Even-Zohar como uma “realização”. Em suas palavras: By "product" I mean any performed (or performable) set of signs, i.e., including a given "behavior." Thus, any outcome of any activity whatsoever can be considered "a product," whatever its ontological manifestation may be. (1990, p. 43)12 11

"'Repertório' designa o conjunto de regras e materiais que regem tanto a elaboração e utilização de um determinado produto". 12 “Por ‘produto’ me refiro a qualquer performance (ou algo passível de uma performance) produtoras de signos, ou seja, o que inclui um determinado ‘comportamento’. Assim, qualquer resultado de qualquer atividade pode ser considerada ‘um produto’, qualquer que seja sua manifestação ontológica.”

Nesse sentido, a perspectiva de produto apontada por Even-Zohar põe a literatura em sintonia direta com seus mecanismos de circulação. O festival articula-se numa zona de acontecimentos propícia à performance do produto. As estratégias de inserção da literatura no espaço público demonstram que mercado e instituições literárias encontramse implicados num sistema de significação do texto. Tal premissa é também encontrada na teoria de Pierre Bourdieu, segundo o qual: O princípio da mudança [...] reside no campo de produção cultural e, mais precisamente, nas lutas entre agentes e instituições cujas estratégias dependem do interesse que têm, em função da posição que ocupam na distribuição do capital específico (institucionalizado ou não), em conservar ou em transformar a estrutura dessa distribuição, portanto, em perpetuar as convenções em vigor ou em subvertê-las. (BOURDIEU, 1996, p. 264)

O espaço público do festival em que se insere a vida literária reflete não apenas tensões sociais, mas também molda o sentido do texto bem como as convenções literárias. Ele se caracteriza, dessa maneira, como um espaço de tensão no qual está em construção uma nova expressão/compreensão poética. Isso parece ficar mais evidente quando o festival está tratando em específico de poéticas experimentais e de vanguardas, como o Festival de Polipoesia de Bolonha iniciado em 1993, e cuja última edição se deu no ano de 2001. Os festivais não cumprem apenas a função de comercialização de livros. Em festivais como o da Polipoesia e o Estação Topolò, esta função está bastante longe de ser a prioritária e seu escopo acaba sendo o de legitimar novas formas de fazer poético. Nesse caso em específico, a poesia experimental produzida ao longo do século XX viu nos festivais um meio para alinhar a liberdade de criação poético-literária – que envolvia diferentes linguagens em performance - com o descompasso da crítica que, como bem observou Marjorie Perloff (1998), foi incapaz de lidar com as inúmeras autoidentificações artísticas ao longo do século XX. A consequência foi que as poéticas experimentais deixaram de ser um problema da crítica incapaz de ajustar-se à multiplicidade e experiências, e passam a ser vistas como um problema em si, de maneira que seus mecanismos de produção, circulação e armazenamento acabaram por ser ignorados. Para tanto, poetas e artistas viram nos ambientes dos festivais uma forma de delinear estratégias de atuação no sentido de constituírem agremiações e salvaguardarem campos para a realização artística. Em outras palavras, os festivais lhe foram úteis na medida em que, ao negar a escrita enquanto o pressuposto exclusivo do fazer artístico, adotaram a performance como suporte inovador. O câmbio de suportes, algo tão sentido no fenômeno literário nos dias atuais, acabou por conduzir a poesia para a performance, também, para um espaço de realização público que se dá, de uma maneira mais imediata, em festivais poéticos. O poeta francês, internacionalmente conhecido pela poesia-ação, Bernard Heidsieck, numa entrevista dada a Enzo Minarelli (2014), ressalta a importância dos festivais como forma de consolidação da poesia experimental nos anos sessenta e setenta. Mesmo vindo de uma carreira bem sucedida junto à presidência de um importante banco francês, Heidsieck foi organizador de festivais como “Festival de Poesia Sonora” (1976) e o “Encontro Internacional de Poesia Sonora” (1980), tendo também exercido a presidência da comissão de poesia do Centro Nacional do Livro. Na Itália, o Festival de Polipoesia de Bolonha foi significativo como espaço para expressão experimental. Tendo à frente o autor do “Manifesto da Polipoesia” (1987),

Enzo Minarelli, ele rapidamente se espalhou pela Europa, em que se detecta: o Festival de Polipoesia que era dirigido por Xavier Sabater em Barcelona desde os anos de 1990, os festivais organizados por Eduard Escoffet, também em Barcelona, e por Fernando Aguiar, em Lisboa, por Julien Blaine e Jean Jacques Lebel, na França; por Endre Szkarosi na Hungria, e na Islândia um organizado por Magnus Palsson (MINARELLI, 2010). A agremiação e a polarização de intelectuais e artistas em torno da poesia experimental no cenário de Bolonha foi o um dos resultados mais evidentes, em grande parte decorrente do trabalho do polipoeta Minarelli, para quem apostava na convivência entre poetas de diferentes gerações. Em suas palavras: Deixe-me lhe contar duas histórias... eu nunca recebi pressão de ninguém [na organização do festival], mas lembrando do meu começo, quando eu decidi praticamente dedicar toda minha vida à poesia ou para este trabalho, eu me lembro que eu fui ajudado por poetas mais experientes como Saguineti, por exemplo, Balestrini, você mencionou, Adriano Spatola, Corrado Costa, eles eram mais velhos que eu, e eu era muito jovem, era quase uma criança, mas eu fui ajudado por eles, e graças a eles eu pude iniciar minha carreira poética. Quando eu fui incumbido de um poderoso papel, como diretor de festival, eu dei espaço para poetas da minha geração, é claro, primeiro, eu convidei os históricos, mas eu mantive 2 ou 3 lugares para jovens desconhecidos. E aquele foi um dos pontos, algumas vezes, que eu me afrontei com a universidade, porque eles diziam “por que você tá convidando este jovens poetas que ninguém conhece?” E minha resposta era, se vocês querem ter alguém que vá adiante neste trabalho, vocês têm que canalizar e educar jovens depois de nós. Do contrário, depois de nós será um deserto. 13

Ao tornar-se um espaço compartilhado por diferentes gerações de poetas, os festivais permitem perceber de modo mais nítido o contraste entre estilos, ideologias e formas de experimentalismo. Ou seja, são os repertórios e produtos que se encontram em mudança naquele meio. O respeito e o prestígio dos poetas mais velhos são mantidos, mas não suficientes para frear novos paradigmas vindos de gerações menos conhecidas. A metáfora empregada por Enzo Minarelli é muito significativa na descrição deste espaço: “É uma roda que gira, quando sai um, entra outro”. Em se tratando de poesia experimental, o festival é um porto seguro ao poeta, já que a rede constituída em torno dos produtores possibilita não apenas um espaço de reflexão e de troca de ideias sobre o fazer poético, no sentido de aprimorá-lo e alimentar os canais de criação, mas também é um lugar de proteção onde a afinidade poética experimental, comum entre os participantes, neutraliza discursos externos que insistem em desqualificá-los. No início do século XX, os futuristas italianos eram recebidos com tomates e repolhos em suas performances, mas ao longo do tempo eles foram responsáveis por consolidar muitas das estratégias de inserção da poesia no espaço público, que repercutiram em sistemas literários de várias nações e em outros sistemas culturais. Com o passar dos anos, tais estratégias foram sofrendo modificações, em sintonia com os recursos tecnológicos à disposição dos poetas e, em razão dos próprios festivais, houve o debate contínuo e a troca de experiências entre eles. Não menos importante é que, ao tomar a performance como forma de expressão poética, os festivais constituem-se

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Entrevista dada em inglês, no dia 01/10/2014 em Bolonha, na Biblioteca Sala Borsa. A tradução é de minha responsabilidade.

também como núcleos irradiadores da criação poética, retroalimentando a própria criação literária e artística. O fenômeno festival, sob este prisma, é bastante significativo, pois dele são derivados inúmeros produtos como audioeditoração, exposições, construção de uma rede de poetas, acervos particulares e institucionais, livros ensaísticos e de poemas etc. Um dos acervos decorrentes do Festival de Polipoesia é o La Voce Regina, alocado junto à biblioteca Sala Borsa, para consulta diária. Além disso, cabe citar o monumental museu do Vale do Natisone, o Slovensko Multimedialno Okno (SMO), criado em função do Estação Topolò. É curioso o fato de que, no meio acadêmico, os estudiosos da literatura não tenham se debruçado na análise dos festivais, desprezando seu impacto na dinâmica do sistema literário. Não há mais dúvidas de que os festivais são um evento que agencia forças para a promoção e a transformação do próprio sistema no qual se inserem. Eles são um fenômeno pouco estudado na história literária, apesar do papel significativo que desempenham. A Semana de Arte Moderna brasileira, de 1922, foi, por exemplo, um grande festival artístico-literário. Uma história mais esquadrinhada sobre este evento (GONÇALVES, 2012), demonstra que ela se deu pela iniciativa de um grupo de poetas, com circulação na imprensa local o qual, associada à elite empresarial paulistana, reuniu artistas e intelectuais responsáveis por positivar as ideias advindas das vanguardas europeias. A Semana foi, em sua forma, um festival que envolveu inúmeros sistemas socioculturais: setores econômicos, governamentais (Graça Aranha além de escritor era um diplomata), intelectuais, musicais, plásticos, galerias, imprensa etc., gerando uma forma de fazer poesia que veio a se tornar cânone literário.14 O festival é o terreno onde os repertórios e produtos se nutrem de múltiplos sistemas culturais que exercem influência sobre ele, sendo por ele também influenciados. Ele tem um papel na circulação literária, na constituição de seus repertórios, ao passo que se consolida como um produto literário, permitindo ao autor o exercício de produtor. Por meio dele, são descortinadas percepções inusitadas acerca dos ambientes comunicacionais, possibilitando a criação de modos de expressão que vão combinar diferentes linguagens. A obra, fruto de um experimento ainda novo hoje, nasce orientada para o palco metafórico onde disputará com as demais uma certa visibilidade. Um dia, talvez, ela poderá vir a ser um cânone, mas tal movimento não se exime da ação de instituições, mercados, produtos e repertórios, catapultando o sistema literário para além da ideia de um “gênio criador”. Os festivais são um dos ambientes onde a ação de seus agentes tem por princípio a redefinição da ordem de um sistema. Literatura como marketing territorial O mundo da arte e da literatura mantém intensas atividades com o mundo dos negócios. Isso não passa apenas pela transformação da arte em produto editorial e muito menos não se restringe ao confuso e, por vezes, arbitrário esquema de compra e venda de obras artísticas. A valoração estética – e, também, monetária – dada por instituições 14

Ainda a título de exemplo, no Brasil, os festivais também têm importância comercial e artística nos dias de hoje. Segundo dados da Fundação Biblioteca Nacional e da Câmara Brasileira do Livro, em 2013, foram previstas a realização de 255 feiras de livros e eventos literários, abrangendo as 5 regiões do território nacional. Um passo consecutivo dessa pesquisa é o confronto entre os modelos de festivais brasileiros com os italianos, de modo a perceber como atuam os polissistemas culturais na realização de ambos.

sociais (museus, escolas, premiações, publicidade etc.) é um dos aspectos desta relação, mas a questão que se coloca é como o artista e escritor podem desempenhar um papel nesse mundo e qual seria sua contribuição para além do lucro financeiro? A resposta para esta questão será dada a partir do envolvimento do escritor e, sobretudo do poeta, na organização de festivais. À luz do discurso empreendedor, que não se faz presente em festivais como o de Topolò e de Bolonha, por exemplo, mas que é comum nos demais aqui estudados, um festival é um produto sobre o qual se aplicam técnicas de gestão para ter um resultado de mercado. Sua administração que envolve desde captação de recursos até suporte logístico deve pressupor estratégias de marketing. Em outras palavras, um festival consolidado como o de Mântova tem seu esquema de gestão sintonizado com o discurso de mercado, não abrindo mão da análise financeira de resultados que, do ponto de vista econômico, justificam sua realização. Mas se os melhores resultados de um festival são aqueles de impacto cultural, os mais festejados parecem ser os financeiros. Um estudo de Guido Guerzoni (2013), da Universidade Luigi Bocconi, chama atenção para a curva de crescimento em relação ao número de festivais na Itália. A proliferação, segundo seu autor, é justificada em razão de tais eventos gerarem renda para toda uma cadeia produtiva. Num momento em que o discurso da crise econômica é dominante em toda Europa e, particularmente, na Itália (onde a taxa de desemprego entre os jovens, em abril de 2014, era de 43,3%), os investimentos privados ou públicos em cultura também passam a ser pensados a partir da relação com o lucro e da geração de empregos. Da perspectiva de movimentação financeira, o Festivaletteratura de Mântova ganha destaque nesse estudo, pois para cada euro investido no evento, há um gasto de 10 euros do público visitante. Na comparação com outras atividades culturais, Guerzoni observa que um espectador das 14 fundações sinfônicas da Lombardia custa para o estado cerca de 120 euros; um visitante dos 200 museus estatais custa ao equivalente a 40 euros; um usuário dos serviços de 46 bibliotecas públicas, 80 euros; enquanto um espectador de um festival custa menos de 10 euros. O autor do estudo sugere, ainda, que deve ser repensada a política de investimento pública na área da cultura, dando uma atenção maior aos festivais em decorrência dos impactos diretos como indiretos para a economia e o marketing territorial que promovem nas cidades onde são realizados. Nessa mesma linha de raciocínio, o impacto financeiro do festival de Mântova não é nada desprezível se comparado ao valor de investimentos públicos e privados em relação ao resultado financeiro obtido. O evento literário de Mântova, nesse caso, teve uma notável acolhida de segmentos empresariais por tornar perceptível a comunicação do território. Nas palavras de Stefano Gola, um dos diretores da Confcommercio, uma forte associação empresarial italiana: “il Festivaletteratura è una vetrina unica per Mantova, un’occasione per farsi conoscere e apprezzare dai visitatori, che magari ritorneranno nel capoluogo per visitare con calma musei e monumenti. Con il Festival la città si trasforma, risuscita, si veste di nuovo e tira fuori il meglio di sé. Per questo, più che un impatto diretto sulle vendite nei negozi, rappresenta un’importantissima operazione di promozione della città e del suo patrimonio.” Alcune categorie traggono comunque forti benefici economici dalla manifestazione: “bar e ristoranti hanno lavorato molto bene – afferma Gola – e sono stati apprezzati dal pubblico souvenir e prodotti enogastronomici tipici. Colgo l’occasione per ringraziare il Comitato organizzatore del Festival, che dal 1997 con lo stesso

entusiasmo e lo stesso successo rinnova questo appuntamento fondamentale per Mantova e per la cultura in generale”.15

Os empresários na onda do festival promovem a venda e a oferta “territorial”, isto é, colocam à disposição do visitante um conjunto de serviços, produtos e infraestrutura, com o objetivo de atrair novos investimentos. O marketing territorial, que nesse caso tem como ponto de partida o Festivaletteratura, não se esgota na prática de oferta e venda. Para ser bem sucedido, ele deve estar atrelado a políticas públicas territoriais e urbanas, bem como à reorganização de procedimentos administrativos voltados a satisfazer exigências do mercado consumidor. São atividades de competência da esfera pública e privada que vão além do evento literário e tornam-se imprescindíveis à sua consolidação. Vivianne Medeiros, em sua dissertação sobre o festival Estação Topolò, lembra que os festivais de Cannes na França e o Amsterdam Music Festival, na Holanda, são exemplos de marketing territorial bem sucedido pois, ao divulgarem a arte, criam também uma marca responsável por identificar a cidade associada ao produto cultural. Em específico sobre o projeto Estação Topolò, a pesquisadora afirma: La “Stazione di Topolò” non è solo un festival né una semplice una mostra, ma piuttosto un’operazione che raccoglie lingue, culture e modalità espressive diverse. Il progetto è portato come esempio di possibile via per una rinascita sociale, culturale ed economica di luoghi che vivono, per motivi diversi, un forte disagio. (2014, p. 85)16

Se se confrontar a fala do representante do Confcommercio com a observação de Medeiros sobre Topolò, nota-se que o marketing territorial do festival transcorre por uma via de mão dupla: visa tanto a atrair a atenção do investidor de fora, com também a comunidade interna deve se sentir representada pelo evento, isto é, entendendo-o como expressão de sua cultura. Entre alguns dos benefícios do marketing territorial, isto é, de um marketing que atua no sentido de frear e denunciar o lucro irresponsável e que respeita a cultura e o ambiente locais, está a melhora da autoestima comunitária. Em 2014, o Festivalitteratura de Mântova contou um corpo de 700 voluntários que se dedicaram às atividades durante os 5 dias de evento. A fala de Mauro Molinari, um dos voluntários, é muito significativa em relação ao processo de identificação:

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Esta informação foi extraída do próprio site da Confcommercio de Mantova e está disponível no endereço: http://www.confcommerciomantova.it/notizie-confcommercio/finito-il-festivaletteraturaconfcommercio-fa-un-bilancio-sullimpatto-economico-della-rassegna/ - acessado em 10/10/2104. Numa tradução livre: “O Festivaletteratura é uma vitrine única para Mântova, uma ocasião para apresentar-se ao gosto de visitantes, os quais talvez retornem à capital para visitar com calma museus e monumentos. Com o Festival, a cidade se transforma, ressuscita, adquire uma nova face e dá o melhor de si. Por isso, mais que o impacto direto na venda de produtos, representa uma importante operação de promoção da cidade e de seu patrimônio”. Há outros indicadores de fortes benefícios econômicos da manifestação: “bares e restaurantes tiveram ótimos resultados – afirma Gola – e foram adquiridos pelo público souvenirs e produtos enogastronômicos típicos. Aproveito a ocasião para agradecer o Comitê organizador do Festival, que desde 1997, com o mesmo entusiasmo e o mesmo sucesso renova este evento fundamental para Mântova e para a cultura em geral.” 16 A “Estação Topolò” não é apenas um festival nem uma simples mostra mas, em vez disso, uma operação que articula língua, cultura e diversas modalidades de expressão. O projeto surge como exemplo de uma possível via de renascimento social, cultural e econômico do lugar que vive, por motivos diversos, uma forte crise.

Todas estas pessoas vêm para cá convictas do que fazem, penso que é um dinheiro bem gasto [referindo-se ao investimento público no festival], que ao fim do discurso é bom fazer parte disso, certo. [...] Eu moro numa província de Mântova. São 40 km daqui. Mas não se trata de ser 40 km, até 100 [eu faria], mas trata-se de estar bem. Quando estou aqui, pra mim, é como estar nos quatro cantos do mundo. Mesmo porque têm pessoas de toda parte. Gente de toda Itália vem aqui, mesmo de fora, mesmo da Alemanha, mesmo da Espanha, até da China. É um povo especialmente que esteve com a gente no Tortello Amaro, que além de tudo tem o tortelli amari. Esta será uma outra coisa que faremos aqui na sexta[...]17

O serviço de voluntariado, segundo a página do evento,18 encontra-se estruturado a partir de 10 atividades distintas, que exigem do candidato capacidade de trabalho em equipe, disponibilidade em atender, simpatia, assiduidade, asseio com as instalações e, em alguns casos, habilidades técnicas específicas para os condutores de debate, fotógrafos, videorepórteres. A positividade do serviço voluntariado, na fala de Molinari, decorre do fato de creditar o investimento de sua energia pessoal num trabalho de grande repercussão e sucesso na cidade, o que gera uma acolhida também por parte dos demais moradores. O voluntário é um elo significativo da cadeia do marketing territorial tendo em vista que, por meio da simpatia e da disponibilidade de ajuda, requisitos exigidos pela organização do festival, há a acolhida do visitante, chamando sua atenção para outras atrações turísticas e para o calendário de festividades da região.

O marketing territorial de um festival cumpre, assim, a função de colocar pessoas em sintonia com a arte local, promovendo a irrupção da atividade turística. À medida que os vários sistemas culturais engendram sua dinâmica, uma identidade vai se construindo em torno do festival, tornando-o uma marca local. A linguagem poética oriunda das várias artes e literatura que circulam por um festival tem a função de renovar e reconfigurar a identidade pela guinada na percepção de mundo que é capaz de provocar nas pessoas. A análise das várias performances, mostras a céu aberto, ambientes inusitados de produção e leitura propiciados pelos festivais visitados sintonizam o público e também seus produtores com outros códigos e formas de comunicação inusitados que, no fundo, levam a uma reflexão sobre representações de mundo. Portanto, o festival tem um princípio também desterritorializante na medida em que a linguagem poética cria uma ruptura com a comunicação local, reconfigurando o ambiente de expressão, de seu local de realização a cada edição. Trata-se de uma via de pensar a história literária, tendo em vista que ele se configura como espaço privilegiado de circulação e de promoção do texto e das artes no mundo contemporâneo.

Referências: BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 17

Entrevista de Mauro Molinari a Frederico Fernandes, realizada em Mântova no dia 03 de setembro de 2014. A transcrição foi feita em português, porém o original desta entrevista encontra-se em italiano. 18 Ver: http://www.festivaletteratura.it/volontari2.php - página acessada em 10/10/2014.

EVEN-ZOHAR, Itamar. Polissystem Studies. In: Poetics Today. International Journal for Theory and Analysis of Literature and Communication. vol.11, n.1, 1990. p.1-268. GENETTE, Gerard. Paratextos Editoriais. Trad. Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê, 2009. GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922. A Semana que não terminou. São Paulo: Cia das Letras, 2012. GUERZONI, Guido. Le ricadute economiche, sociali e culturali dei festival. Relatório de Pesquisa (Università “Luigi Bocconi”). Torino, 2013. MEDEIROS, Vivianne Nardi de Assis. Topolò, oltre i confini. Dissertação em design. (Poli.design. Consorzio del Politecnico dio Minalo). 116p. Milano, 2014. MINARELLI, Enzo. Polipoesia entre as poéticas da voz no século XX. Trad. Frederico Fernandes. Londrina: Eduel, 2010. ________ . As razões da voz: entrevistas com protagonistas da poesia sonora do século XX. Trad. e Org. Frederico Fernandes. Londrina: Eduel, 2014. NITRINI, Sandra. Teoria do Polissistema. In: Literatura Comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: Edusp, 1997. p.104-117. PERLOFF, Marjorie. Poetry on & off the page. Essays for emergente occasions. Illinois: Northwesterns University Press, 1998.

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