FETICHE: FORMA PRÁTICA, CONCEITO FILOSóFICO

May 29, 2017 | Autor: Imaculada Kangussu | Categoria: Walter Benjamin, Sigmund Freud, Karl Marx, Fetichismo
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A presente apresentação da origem do termo fetiche tem como base o artigo de FERRARI, Sonia. "Mercadoria e moda: o fetiche e seu ritual de adoração", em SELIGMANN-SILVA, Marcio (Org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP/Anablume, 1999. Por sua vez, neste ponto, a fonte da autora é o texto de ERCKENBRECHT, Ulrich. Des Geheimnis des Fetischismus. Frankfurt: Europäisches Verlagsanstalt, 1976.
MARX, Karl. O Capital. Trad. Flavio Kothe e Regis Barbosa. São Paulo: Abril Cultural, 1983; p.70.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1133b, p.129; citado em MARX, O Capital, p.62.
MARX, O Capital, p.48. "Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com grau social médio de habilidade e de intensidade de trabalho."
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, livro IX, 1164a.
MARX, O Capital, p.72.
MARX. O Capital, I, p.71.
BENJAMIN. Passagen-Werk (Gesammelte Schriften V). Orgs. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhauser. Frankfurt a.M.:198; [X 8a,I].
BENJAMIN. Passagens, [J 80a, 1].
MARX. O Capital, p.70.
BENJAMIN. Passagens, [J 92, 4], p.488.
LUKÁCS. História e consciência de classe. Porto: Escorpião, 1974; p.68.
LUKÁCS. História e consciência de classe, p.81.
BENJAMIN. Passagens, [B 9, 2], p.130.
BENJAMIN. Passagens, "Exposé de 39", p.66.
BENJAMIN. Passagens, [B 6a, 1], p.124.
BENJAMIN. Passagens, [J 75, 3], p.456.
BENJAMIN. Passagens, [B 1a, 2], p.112.
MARX. "Manuscritos Econômico-Filosóficos", em Karl Marx, coleção Os Pensadores. Trad. Jose Carlos Bruni. São Paulo: Abril, 1974; p.22-23.
BENJAMIN. Passagens, [K 6, 4], p.505.
MARX & ENGELS. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010; p.43.
Cf. Benjamin, "Capitalismo como religião", em O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
LAPLANCHE, Jean. Vie et mort en psychanalyse. Paris: Flammarion, 1989; p.58.
FETICHE: FORMA PRÁTICA, CONCEITO FILOSóFICO


Etimologicamente, "fetiche" deriva do termo português "feitiço", por sua vez derivado do latim factítius, adjetivo que significa "feito", "artificial", i.e, algo distinto do natural. Fascinação, encanto, bruxaria, significados hoje ligados ao feitiço, surgiram quando o termo foi usado por navegantes portugueses para denominar objetos feitos pelos africanos que a eles atribuíam poderes mágicos. Os objetos fabricados pelos "selvagens" da África, para protegê-los das ameaçadoras forças naturais, parecem ter sido os primeiros fetiches conhecidos com esse nome. E era bastante curiosa a relação entre os criadores e o objeto criado: se por um lado, os primeiros pareciam ser dominados pelo último; por outro lado, quando o objeto fetiche revelava-se incapaz de realizar o resultado dele esperado ele podia ser abandonado e trocado por outro. O que permanecia era a dependência do fetiche, mesmo que seu possuidor soubesse ser algo feito – às vezes por ele mesmo – e passível de ser substituído, caso não produzisse o efeito desejado.
Desse modo, o fetiche sinaliza uma ausência (no caso dos "selvagens" de força diante das ameaças da natureza) ao mesmo tempo que pretende superá-la. Estamos diante de fenômeno semelhante ao que Marx denomina de "falsa consciência", criado por atividades reflexivas que fazem aparecer na consciência uma representação da realidade que, na verdade, não corresponde a ela. Para Freud, o fetichismo advém da recusa em tomar conhecimento de uma falta, cuja percepção seria insuportavelmente dolorosa, e o fetiche é o objeto que ajuda a fingir que a falta não existe. A psique divide-se então entre a percepção indesejada e a intensidade do desejo contrário, que a faz negar o fato percebido – divide-se entre a realidade intolerável e a ficção que a ultrapassa. O desejo em luta contra a verdade insuportável fabrica um objeto, uma fantasia, onde se abriga.
O fetiche presentifica o ausente, cria um desvio para além dele, transcende-o ao negar o dado, e como o desejo que ele representa é inalcançável, ele, o fetiche, pode ser substituído ad libitum sem nunca efetivamente realizar o desejado, porque o desejado é que não existisse a falta existente – cuja existência é mais do que o sujeito pode suportar. O efeito fetichista reside na oposição entre a presença efetiva e seu outro, a ausência não admitida; entre a fantasia e o saber que não se deseja saber.
O fetichismo implica uma relação de transferência com o objeto enfeitiçado, que representa algo ausente. O objeto fetiche incorpora a recusa de assumir algo que se sabe, incorpora o desmentido do conhecimento, o fetichismo dá corpo a uma recusa ao saber. A partir de Freud, o fetichismo pode ser percebido como o protótipo da denegação (Verleugnung), i.e, não da não percepção, nem da percepção recalcada, e sim da percepção desagradável negada a partir de uma presença ficcional: ao mesmo tempo em que o sujeito nega a indesejável percepção real e afirma sua fantasia encarnada no fetiche, ele também percebe a ausência negada. O fetiche testemunha a falta ao ser tomado como uma forma de superá-la. A denegação caracteriza uma percepção baseada em um desejo contraditório: a vontade de saber e a vontade de não saber. A denegação, como o fetiche, deixa ver, simultaneamente, a carência, o vazio, e sua anulação imaginária. O fetichismo serve de suporte para a denegação: no objeto fetiche encontram-se encarnados (1) a recusa em saber algo que se sabe e (2) o desejo de iludir-se.
O fetichismo não opera com o conhecimento distorcido e sim com a própria ilusão – ameaçada de morte pelo conhecimento – sem a qual o conhecimento seria insuportável. Longe de obscurecer o conhecimento "realista" de como são as coisas, o fetiche, ao contrário, é o meio que permite ao sujeito aceitar esse conhecimento sem pagar por ele o preço exigido. O sujeito sabe como as coisas são na realidade e consegue suportar essa verdade amarga graças ao fetiche, no qual encarna a ilusão de que as coisas não são assim na realidade

Conforme se sabe, o conceito de fetichismo da mercadoria aparece no início do famoso item 4 do primeiro capítulo de O capital, "O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo", onde encontra-se a conhecida afirmação de que, "à primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a vê-se que ela é muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas".
Segundo Marx, mercadoria é um produto qualquer destinado à troca, que tem um valor uma vez que foi despendido determinado esforço para produzi-lo. A utilidade confere valor de uso ao produto, mas quando o objeto útil é transformado em mercadoria, em algo destinado ao comércio, seu valor não mais será medido pela utilidade. O valor de uso dá lugar ao valor de troca. E para que a troca seja possível é necessário encontrar algo comum aos produtos a serem trocados, algo que permita a avaliação. Quem primeiramente analisou a forma de valor, conforme observa Marx, foi Aristóteles. O filósofo grego atribuiu à dificuldade de expressar o valor de um objeto em outro objeto (quantos sapatos vale uma casa, por exemplo) a necessidade de estabelecer uma medida de comum acordo: alguma espécie de dinheiro ( que exista por ( - ecos destes termos ainda ressoam em "numerário". Para que se descubra a relação proporcional entre os bens, é preciso que eles sejam iguais de alguma maneira, que sejam medidos por uma só e mesma coisa. A troca não poderia existir sem a igualdade e "nem a igualdade se não houvesse a comensurabilidade". Como Marx ressalta, Aristóteles não segue adiante com sua análise porque lhe falta justamente o conceito de valor, a percepção do que seja realmente a essência comum dos objetos a serem trocados.
A partir de uma época historicamente determinada, relata Marx, o produto do trabalho transforma-se em mercadoria. E o valor desta será medido pelo "tempo de trabalho socialmente necessário" para sua produção. Mercadorias são trabalho sedimentado, e o mundo das mercadorias transforma o trabalho – sem fazer distinção entre os diferentes tipos – em quantidade de tempo, substrato igualizante, igualdade qualitativa que identifica o valor de troca dos produtos. O que os produtos têm em comum, segundo Marx, é que sua produção exigiu o dispêndio de determinada quantidade de trabalho humano. É isso que vai medi-los. O trabalho despendido na produção do objeto é propriedade objetiva do mesmo: seu valor. O problema é que, transformar "tempo de trabalho" em unidade de valor exige que se considerem os trabalhos indiferenciadamente, reduzidos a trabalho abstrato. Em outras palavras: equiparar trabalhos distintos implica abstrair as diferenças existentes entre eles e reduzir os diversos tipos de trabalho ao caráter comum que eles possuem como dispêndio de tempo e de força.
Se o valor da força de trabalho é a soma do que o trabalhador precisa para repor sua própria força de trabalho, há uma dupla face na questão, e o próprio Aristóteles já perguntara: "quem fixará o valor do serviço: o que se sacrifica ou o que alcança a vantagem?" Os termos usados – de um lado, sacrifício, do outro, vantagem – indicam para onde pende o pensamento do filósofo. Também é interessante notar que o exemplo de serviço, dado pelo Estagirita, é a musica, a mais imaterial das mercadorias. Quem define o preço: o músico ou quem o contrata para tocar? Isso sem mencionar que o valor de um tempo em uma vida é incomensurável e impossível de ser reposto.
Marx adverte que o preço pago ao operário por seu tempo de trabalho é inferior ao preço daquilo que foi produzido durante esse tempo: o valor da força de trabalho confunde-se com o valor do trabalho, criando a ilusão de que o trabalho foi pago em sua totalidade. Duas medidas sinalizam o território ambivalente onde são resolvidas as questões de atribuição de valor. A maior valoração da mercadoria, em relação ao que foi pago à força que a produziu, é a mais-valia do proprietário, é o lucro produtor do capital do patrão. Com esse quid pro quo, "o valor transforma cada produto do trabalho em um hieróglifo social", afirma Marx, e as "pessoas tentam então decodificar o sentido do hieróglifo para penetrar no segredo do seu próprio trabalho social".
O mundo do trabalho desaparece na sutil, manhosa e enfeitiçadora mercadoria, capaz de dirigir e dominar a visão, desde o momento em que surge na cena. Marx descreve esse fenômeno dizendo que:

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais de seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como propriedades naturais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos.

Produto do trabalho humano, a mercadoria oculta isso em segredo; e o ser humano – estranho ao mundo que criou com seu trabalho – não se reconhece na sua produção, que também não o reconhece como produtor: encontra-se perdido entre fetiches, que são produtos do mascaramento da gênese do objeto, levando-o a aparecer como que derivado de "fontes naturais". Marx compara esses produtos, que aparecem no mercado e enfeitiçam a humanidade como se fossem dotados de vida própria, com os deuses criados pela mente humana que aparecem como senhores soberanos dela, no mundo da religião. O mundo capitalista dissimula o fato de que o caráter de mercadoria do produto do trabalho humano é a expressão das relações econômicas entre as pessoas. Tais relações tornam-se, assim, indecifráveis: não há acesso imediato aos fenômenos originários que permitiriam desvendar o processo por elas sofrido. Assim, a humanidade torna-se incapaz de perceber outra racionalidade além dessa – onde as mercadorias são sujeito e ela objeto – que vai transformá-la, e a seus pensamentos e sentimentos, também em mercadoria.
Segundo Walter Benjamin (que, em carta a Gershom Scholem, de 20-05-1935, escreveu que o ponto central da obra das Passagens seria "o desenvolvimento de um conceito clássico": o caráter de fetiche da mercadoria), só sustentamos a idéia de que vivemos em uma sociedade de pessoas livres se permanecemos inconscientes da real relação entre assalariada/os e capitalistas. "Só podemos falar em igualdade e liberdade se considerarmos que as trocas são justas", se ignorarmos a exploração velada, as vezes refinada e difícil de desmascarar. "Um inferno ruge na alma da mercadoria", escreveu Benjamin.
Quando a coisa é uma mercadoria – que esconde as relações de trabalho nela impressas, através das quais chegou a ser um objeto e depois mercadoria – ela aparece como coisa inanimada portadora de relações vivas. Seu caráter fetichista tem origem no caráter social do trabalho que a produz, o segredo que ela esconde é sua realidade como objetivação da igualdade abstrata de trabalho, que se desenvolve numa "igualdade qualitativa" do tempo. Contra este fundo opaco, a mercadoria aparece com um fragor que fascina. Quando entra no mercado, separada do trabalho que a produziu, a mercadoria adquire uma objetividade espectral, uma vida autônoma, cheia das tais "sutilezas metafísicas e manhas teológicas", percebidas por Marx.
Enfeitiçada, a capacidade humana de experiência fica distorcida, a alienação mascarada, e a submissão dissimulada – ao contrário do que acontecia em regimes escravagistas ou feudais, por exemplo. Base do processo de dominação, o fetichismo das mercadorias é o instrumento através do qual o capital mantém sua hegemonia: a própria mercadoria detém o seu segredo, sendo, simultaneamente, enigma e chave para decifrá-lo. Marx assinala que a verdadeira natureza das mercadorias é imperceptível. Segundo Benjamin:

É somente sob a forma mercadoria que a coisa exerce sua influência alienante sobre os homens que ela torna estranhos uns aos outros. Essa influência ela exerce por seu preço. A identificação ao valor de troca da mercadoria, com seu substrato igualizante, é o elemento decisivo. (A igualdade qualitativa absoluta do tempo, no qual se desenvolve o trabalho que produz o valor de troca, é o fundo opaco contra o qual se ressaltam as cores escandalosas da sensação).

Sobre a subjetividade enfeitiçada, alienada e reificada, as produções materiais estabelecem facilmente seu domínio como uma segunda natureza. Confrontada com um mundo criado que funciona segundo suas próprias leis, a humanidade que o criou, mas não é sua senhora, vê-se forçada a conhecer essa segunda natureza, tal como uma vez na história precisou dedicar-se ao conhecimento da verdadeira (i.e, primeira) natureza. Se o mundo do capitalismo é ambíguo, ambiguidades estarão presentes em todas as relações, adverte Lukács, em História e Consciência de Classe. Elipses e deslocamentos permitem que, nas relações econômicas como nos fetiches, algo signifique o contrário do que é: os teóricos não conseguem resolver as contradições porque a realidade é em si contraditória, as antinomias não são devidas a inadequações da razão, mas a inadequações da realidade na qual a razão tenta encontrar-se. Segundo o filósofo húngaro, os pensadores burgueses encontraram uma barreira de irracionalismo que não são capazes de atravessar porque seu ponto de partida e o seu fim são sempre a apologia da ordem existente das coisas ou pelo menos a demonstração de sua imutabilidade. A barreira que faz da consciência burguesa uma "falsa" consciência é objetiva, salienta o pensador, "é a própria situação de classe". Para dominar a sociedade, a burguesia precisa possuir uma visão de mundo (Weltanschauung) própria. Mas se por um lado, ela precisa ter sobre cada questão particular uma consciência clara dos seus interesses de classe; por outro lado, essa consciência clara não pode ser estendida à totalidade: porque a dominação é exercida por uma minoria e com o interesse voltado para si, "é condição inelutável do regime burguês que as outras classes se iludam". Lukács observa que duas escolhas estão abertas aos partidários de tal dominação: (1) ou fechar-se a essa compreensão; (2) ou aprovar a ordem social estabelecida, em virtude dos seus próprios interesses, desconsiderando qualquer moralidade.
Consciente de tal processo ilusionista, Benjamin considera, nas Passagens, que o elemento original no processo de dominação é o fetichismo da mercadoria. A noção de fetichismo é uma tentativa radical de explicar o poder das mercadorias no capitalismo. E para falar do que denomina "sex appeal do inorgânico", o filósofo encontra na moda, que "prescreve o rito segundo o qual o fetiche que é a mercadoria quer ser adorado", a expressão adequada. A moda possui um concreto motivo social: o desejo das classes superiores de distinguirem-se das inferiores, daí suas rápidas mudanças e sua tirania, "a duração de uma moda é inversamente proporcional à rapidez de sua difusão". Ela fornece o critério exterior que revela, num piscar de olhos, a classe social do indivíduo. "A moda determina a cada instante a última norma de identificação". E revela a ligação entre o fetichismo da mercadoria e o fetiche erótico. Nos dois casos, o enfeitiçamento é provocado por uma relação de presença-ausência: há um significado recalcado, substituído pela presença sensível que o exclui ao mesmo tempo que o atesta. No fetiche sexual, o caráter de testemunho aparece mais forte que o de exclusão; no da mercadoria sucede o contrário: o caráter de exclusão sobrepõe-se ao testemunho. Supremo produto do fetichismo, a moda é uma das tentativas de prender os vivos ao mundo inorgânico, e, para atrair a carne viva ao mundo das coisas mortas, sua condição sine qua non é a atração inerente à novidade. O nascimento de algo novo entre coisas antigas é o seu "verdadeiro espetáculo dialético". Ao lado da estimulação erótica produzida pela novidade ligada ao corpo, que atrai imediatamente o olhar, está a satisfação provocada pela sensação de ser atual, neste jogo cujo adversário é o tempo.
Como vimos, a mercadoria apresenta-se no mercado fulgurante e atraente, sem história e sem passado. Sua significação social é o preço, a expressão contingente do valor. Vazia de significado e precisando ser possuída, ela se oferece astutamente às fantasias do coletivo. Nas palavras de Marx, "nenhum eunuco adula mais baixamente seu déspota ou procura com os meios mais infames estimular sua capacidade embotada de gozo, a fim de obter um favor, do que o eunuco industrial, o produto, para granjear para si mais moedas de prata e para fazer sair ovos de ouro do bolso de seus próximos, cristãmente amados". A riqueza das necessidades humanas é manipulada com a intenção de criar um consumo para os produtos, o sujeito é assujeitado, torna-se objeto, presa fácil nas mãos dos produtos industriais enfeitiçadores agora convertidos em sujeitos.
A capacidade de atrair consumo liga-se muito mais à potência de prometer significações do que a real utilidade. Os enfeitiçados consumidores e as enfeitiçadas consumidoras desejam mais e mais novos produtos, escravizam-se ao ciclo infernal de produção e consumo, em um abismo infinito, em uma temporalidade pautada pela última novidade, em um círculo que se inaugura a cada novo produto e joga para escanteio qualquer resquício de racionalidade. E não basta revelar o mecanismo para destruí-lo, o feitiço permanece: a mercadoria – objetividade espectral, fantasmagórica – é o fetiche ao qual o ser humano agarra-se. Segundo Benjamin, só uma racionalidade materializada no mundo dos fenômenos poderia interromper o círculo mítico: "enquanto houver um único mendigo haverá mitos".
Marx mostra como o mundo do capital é ambíguo – ambiguidade claramente perceptível, por exemplo, no desenvolvimento técnico-industrial que intensifica a exploração em vez de aliviar o lombo da humanidade. Em suma, além de apresentar a base econômica da ideologia, Marx revela o movimento de mão dupla ou a mão dupla do movimento, se preferirmos: a própria economia (base da ideologia) tem também uma espécie de base ideológica inerente à ela, um fenômeno ambíguo e misterioso, o chamado fetichismo da mercadoria. A base econômica que define a ideologia encontra-se com a base ideológica que define a economia quando ambas sustentam o consumo enfeitiçado, momento da realização da produção, de entrelaçamento da fantasia coletiva com a materialidade das mercadorias que lhe dão corpo. Assim, o capitalismo "substituiu as numerosas liberdade, conquistadas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio".
Marx refere-se ao caráter fetichista da mercadoria como "aparência objetivamente necessária". O fetichismo da mercadoria é mais do que uma ilusão subjetiva: é uma ilusão objetiva inscrita nos próprios fatos, na realidade social. A produção de uma ilusão primordial que transcende o sujeito, é denominada por Laplanche de próton pseudos. E, em suas palavras, "o termo 'próton pseudos' é algo diferente da mentira subjetiva; ele descreve uma espécie de mentira objetiva, inscrita nos fatos".
A inacessibilidade do próton pseudos, o fato de não podermos ter acesso direto a ele, abre espaço para o fetichismo da mercadoria. Encontramos assim, no ápice da crítica ao atual processo econômico, a exposição de uma fantasia inscrita na realidade mesma. Mais do que na multiplicidade dos desejos, o sistema capitalista está enraizado na própria pulsão humana de crescer e reproduzir – traduzida, no capitalismo, em expandir e acumular lucro e em consumir e acumular mercadorias. Diante dessa tradução material do universo pulsional, além de ser regulado por mecanismos objetivos exteriores a ele, o sujeito fica privado da experiência subjetiva de saber o que determina o modo como as coisas são para ele. Ousar saber parece uma audácia à margem, um luxo perigoso.

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