\"Ffeguras & Sinaees III. Heráldica do Mosteiro de Almoster\", ARMAS E TROFÉUS IX SÉRIE TOMO XVII 2015 (com Tiago de Sousa Mendes)

May 31, 2017 | Autor: Antonio Henriques | Categoria: Heraldry
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Tiago de Sousa Mendes e António de Castro Henriques

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ARMAS E TROFÉUS REVISTA DE HISTÓRIA, HERÁLDICA, GENEALOGIA E ARTE

IX SÉRIE TOMO XVII 2015

FFEGURAS & SINAEES III. HERÁLDICA DO MOSTEIRO DE ALMOSTER Tiago de Sousa Mendes António de Castro Henriques *

Introdução 1 É com doses iguais de admiração e de pesar que dedicamos à memória do heraldista Francisco de Simas Alves de Azevedo este terceiro trabalho da nossa série Ffeguras & Sinnaes. Pela erudição e perspicácia, a sua série de Meditações Heráldicas continua a ser uma referência sempre actual. O estudo de heráldica em contexto monumental, como a lápide de Fernão Gonçalves da Arca em Évora ou as armas dos Azevedos no mosteiro de Alcobaça (AZEVEDO, 1964; AZEVEDO, 1967) permanece como um dos aspetos mais cativantes destes textos. Escolhemos por isso trilhar este caminho e analisar dois conjuntos de representações heráldicas em relação com o monumento concreto que as abriga: o Mosteiro de Santa Maria de Almoster.

FEP-UP. Agradecemos a generosa e amiga colaboração do Comandante Sérgio Avelar Duarte que nos autorizou a fazer uso das suas fotografias.

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I Quem hoje for a Almoster, freguesia do concelho de Santarém, depara-se com o complexo arquitetónico do convento cisterciense de Santa Maria. Além da igreja que conserva grande parte da sua estrutura original, subsistem ruínas do claustro trecentista e a sala do capítulo. Para os interessados em heráldica, este mosteiro oferece amplos motivos de interesse. Logo no portal da igreja (Fig.  1), o visitante encontra dois pequenos escudos de cadeado de tipo francês esculpidos no capitel da segunda coluna da direita (Fig. 2). O  campo é esquartelado, sendo o I e IV quartéis alteados relativamente aos restantes, sugerindo uma diferença de esmaltes. Numa perspetiva heráldica é impossível não reparar também num conjunto de três flores-de-lis, em alto relevo lavradas na aresta da fachada. Será esta associação casual? Figura 1 – Portal da igreja monástica de Franqueado o portal da igreja, Almoster. O capitel armoriado está nas que foi aberto numa das extremas do colunas da direita. Fotografia de Tiago de transepto, o visitante atento percebe que Sousa Mendes. a flor-de-lis não tem uma função mera-

Figura 2 – Capitel do portal da igreja. Fotografia de Miguel Jianu.

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mente ornamental. Os capitéis do arco que abre a capela absidal do lado da epístola repetem as figuras do portal: do lado do altar o escudo em cadeado com o campo esquartelado (Fig. 3) e do outro as flores-de-lis desta vez porém enxaquetadas (Fig. 4). Na configuração original, que facilmente se descobre por detrás da azulejaria seiscentista, cada um dos cantos dos capitéis tinha os seus motivos heráldicos.

Figura 3 – Escudo de cadeado no capitel da capela absidal. Reprodução de Imagem publicada por Francisco Teixeira (2008).

Figura 4 – Flores-de-lis enxaquetadas. Reprodução de Imagem publicada por Francisco Teixeira (2008).

A associação intencional entre estes dois motivos manifesta-se novamente num dos capitéis do transepto. Aqui, a flor-de-lis subtilmente se entrelaça nos motivos vegetalistas típicos da escultura de Duzentos (Fig. 5). Esta repetição confirma de vez a intencionalidade da associação entre o esquartelado e a flor-de-lis. No último arco da nave está hoje uma outra representação heráldica que esclarece por fim quem estes sinais identificavam. Trata-se de um sino datado de 1292 (Fig. 6) com uma inscrição já lida e estudada por Mário Barroca (BARROCA, 2000: II-I, 1080-7):

Figura 5 – Pormenor de capitel da nave. Obtido a partir de fotografia de Francisco Teixeira (2008).

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+ SIGILLUM : BERENGARIE : ARIE : As figuras que acompanham o visitante desde o portal são afinal as de D. Berengária Aires de Gosende, a fundadora do Mosteiro. Mário Barroca sugere que esta gravação foi feita a partir da matriz sigilar de D. Berengária e que a composição representaria afinal as suas armas. Segundo a sua interpretação, esta senhora usaria um esquartelado em que o I e IV quartéis teriam como figura um escudo também esquartelado e os restantes quartéis uma flor flor-de-lis com pétalas preenchidas por pequenas “pérolas”. No escudo esquartelado que serve de figura os I e IV quartéis aparecem rebaixados com leve textura reticulada enquanto, tal como no portal, os II e III quartéis aparecem mais elevados. Tal como sugerido pelo capitel no portal, este tratamento diferente faz pensar numa diferença de esmaltes ou, mais provavelmente, entre esmalte e metal como se tornou habitual nos séculos seguintes. A interpretação de Mário Barroca carece de um reparo: como a comparação com o capitel da capela absidal demonstra (Fig. 4), a flor-de-lis não tem pérolas mas sim um enxaquetado (cujas arestas foram suavizadas pelo desgaste do suporte). Além do mais, não estamos de acordo a ideia que as armas de D. Berengária devam ser entendidas como um esquartelado com um escudo e uma flor-de-lis. É certo que as quinas de Portugal mostram como um escudo podia já funcionar como peça heráldica no século XIII. No entanto, a ocorrência da tipologia “de cadeado” por todo o mosteiro mostra que os escudos esquartelados seriam umas armas independentes perante as quais as flores-de-lis (enxaquetadas ou não) assumiam um plano secundário, à maneira das “memórias heráldicas” tão comuns na sigilografia feminina (ABRANTES, 1983: passim). Várias senhoras ostentaram no centro do seu selo as armas do marido dentro de escudos rodeados de sinais alusivos à linhagem paterna ou mesmo materna. São

Figura 6 – Selo de D. Berengária Aires no sino em Almoster. Fotografia do Comandante Sérgio Avelar Duarte, publicada com a sua autorização.

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os casos de D. Fruilhe Anes de Briteiros (HENRIQUES e MENDES, 2012), D. Isabel de Portugal (ABRANTES, 1983: n. 363) ou ainda de D. Constança Gil (ABRANTES, 1980). Estas manifestações heráldicas tornam-se menos intrigantes quando na outra extremidade do transepto se lê uma lápide (Fig. 7) que explica a função funerária da capela absidal. Rezava-se aí pelas almas da fundadora do mosteiro, D. Berengária Aires de Gosende, e de seu marido D. Rodrigo Garcia de Paiva. Repousariam nesta capela os corpos de D. Berengária, da sua mãe D. Sancha e talvez de sua filha D. Maria (TEIXEIRA, 2008: 236; REPAS, 2006: 112), mas não o do seu marido que se fizera enterrar anos antes em Vila Boa do Bispo (VENTURA, 1992: II, 680). Segundo Teixeira (1990), a lápide está sobre os sarcófagos de D. Berengária e de D. Sancha que foram deslocados da capela absidal, dedicada a S. João, para o lado junto da inscrição funerária, onde hoje se encontra (Fig. 7).

Figura 7 – Lápide e Túmulo de D. Berengária Aires. Fotografia de Tiago de Sousa Mendes

O sino mostra que o programa heráldico ainda hoje visível no templo era centrado em D. Berengária e não na sua mãe (o que seria admissível uma vez 87

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que esta interveio na fundação do mesmo) nem na sua filha (que foi abadessa entre 1310 e 1321). Considerando o conjunto do monumento, o selo representa a combinação entre um escudo de armas (esquartelado) e de outras figuras heráldicas. Considerados os aspectos materiais, é altura de conhecer melhor a fundadora e o seu contexto familiar de forma a interpretar estas representações injustamente esquecidas pelos heraldistas.

II O mosteiro cisterciense de Almoster, felizmente para nós, já mereceu uma diversificada bibliografia (TEIXEIRA, 1990; VARANDAS, 1995; BARROCA, 2000; REPAS, 2006; TEIXEIRA, 2008). A sua fundação deveu-se à vontade de D. Sancha Peres da Vide 2 que no seu testamento de 2 de Julho de 1287 encomendou à sua única filha D. Berengária Aires a edificação de um mosteiro no meu logo de Almoster (REPAS, 2006: 105). Uma vez que é D. Berengária que aglutina as representações heráldicas que se encontram na igreja do convento de Almoster, interessa conhecer melhor a sua família de origem e o seu marido. Acerca de D. Sancha Peres, mãe de D. Berengária, indica o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro que era filha de D. Pero Martins da Vide e de D. Teresa Afonso, neta materna de D. Afonso Teles de Córdova e de D. Maria Anes do Lima (LLB3; PIZARRO, 1987: 251-3). As Linhagens Medievais Portuguesas de J. A. Sottomayor Pizarro não incluem esta família. Se seguirmos as referências do Livros de Linhagens, D. Pero Martins da Vide nascera do rousso de Martim Gil da Vide a D. Guiomar Rodrigues de Nomães (LL33F2 e LL37E4). Ao contrário da família paterna, que não mereceu qualquer desenvolvimento na bibliografia relevante, a materna é bastante notável: a sua mãe era neta por varonia de D. Afonso Teles, O Velho (fl. 1220), o que pobrou Albuquerque, antepassado dos Meneses, possivelmente a mais importante família em Portugal no final da primeira dinastia. O seu irmão Martim Peres da Vide foi alferes de Sancho II em 1245 e em 1250 confirmou um diploma da corte. Em altura incerta (VENTURA, 1992: II, 728-9) deteve Arronches e Castelo de Vide, a fortaleza epónima da família. É de resto provável que o lugar e o padroado de Almoster coubessem a D. Sancha por herança, já que do defunto marido apenas se conhecem propriedades nas terras durienses Note-se que Luís Miguel Repas (2006: 105) a indica erroneamente como sendo “de Vides”, uma família diferente e melhor conhecida, o que pode induzir em erro até porque Sottomayor Pizarro regista uma Sancha Pires de Vides, monja de Lorvão, viva em 1320 (PIZARRO, 1999: II, 653, 654, 662).

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(VENTURA, 1992, II, p. 662). Para acrescentar algo a estas curtas notas extraídas da bibliografia, podemos ainda indicar a provável existência de um irmão (D. Aires Peres) e sugerir que em 1249 o seu marido estava exilado, uma vez que D. Sancha Peres dispôs sozinha dos seus bens num escambo com as freiras de Chelas no seu lugar de Almoster nesse mesmo ano (ANTT, Chelas, n. 172). 3 À altura do seu testamento, D. Sancha Peres era já viúva pelo menos desde 1269 de D. Aires Nunes de Gosende (BARROCA, 2000: II-2, 1367). Este era um discreto nobre da Corte de Afonso III que se encontra apenas documentado em 1240, junto com os irmãos, e em 1265, ano em que aparece como tenente de Abrantes (VENTURA, 1992: II, 662-3) e Sintra (VENTURA, 1992: II, 1028). Segundo Leontina Ventura, D. Aires era filho de Nuno Fernandes de Orzelhom (ou “de Gosende”, segundo Pizarro) e de Maria Vasques [de Bragança] (PIZARRO, 1999: II, 236) 4. As suas propriedades estavam concentradas entre o Tâmega e o Douro (VENTURA, 1993: II, 662). Dele fora também a quintã de Gosende que a sua filha repartia com Fruilhe, Sancha e Urraca Nunes de Chacim em 1290 (PIZARRO, 1999: II, 249). 5 A família deste cavaleiro deteve o padroado da igreja de Leça até 1240, ano em que o transfere para a Sé do Porto (VENTURA, 1993: II, 662) num documento em que, pormenor relevante, foi Martim Gil de Soverosa a selar, presumivelmente com um selo com as flores-de-lis em sautor próprias da sua linhagem (ABRANTES, 1980; PIZARRO, 1999: II, 815, nota 82). Em 1287, quando recebeu o encargo fundacional, D. Berengária Aires carregava mais de uma década de viuvez de D. Rodrigo (ou Rui) Garcia de Paiva com quem casara em 1265 (ANTT, Almoster, 4, 12). O seu marido era um destacado rico-homem da corte de Afonso III, cujo percurso é relatado na microbiografia que lhe dedicou Leontina Ventura (1992: II, 673-83). Deste casamento, extinto com a morte de D. Rodrigo em 1274, ficara uma filha, Maria Rodrigues, e um vasto património a Norte e a Sul com que D. Berengária e a própria herdeira acabariam por dotar o mosteiro ideado por D. Sancha. Por estas materiais razões se compreende que D. Sancha tenha cometido à filha a criação de um cenóbio Testemunham este documento D. Aires Peres, Martim Gonçalves cavaleiro, João Viegas cavaleiro, Pedro Eanes de Vale de Besteiros, Pedro Martins de Lisboa, cavaleiro, Gonçalo Eanes, prior de S. Miguel de Lisboa e João Garcia escudeiro de D. Aires. 4 José Carlos L. Soares Machado (2004: 281) sustém, baseado no Livro Velho de Linhagens, que Maria Vasques era filha de D. Vasco Peres de Braganca, o Veirom. 5 Tendo em conta que em 1307 a quintã de Gosende estava repartida entre a sua única filha (D. Berengária Aires) e as irmãs Fruilhe, Urraca e Sancha Nunes de Chacim há um parentesco próximo entre D. Aires e estas irmãs (PIZARRO, 1990: I, p. 251; FREIRE, 1906, p. 47). José Carlos L. Soares Machado (2004) refere que estas três irmãs eram filhas de D. Nuno Martins de Chacim, cujo avô materno (D. Nuno Peres de Bragança) seria irmão do avô materno de D. Aires Nunes de Gosende, por nome D. Vasco Peres de Bragança. 3

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no lugar de Almoster, onde certas estruturas antigas e o próprio étimo sugeriam a existência de um mosteiro anterior à Reconquista (TEIXEIRA, 1990). A construção da igreja, feita sob edificações anteriores (TEIXEIRA, 1990) começaria em 1289 (REPAS, 2006: doc. 3) mas a fundação de Almoster revelou-se muito exigente. Foi morosa a obtenção da licença para fundação do mosteiro junto do bispo de Lisboa, exigindo longas diligências por parte de D. Berengária. Apenas em 1294 conseguiu a fundadora obter a autorização episcopal para constituir o Mosteiro e aplicar na sua construção a terça patronal dos dízimos de Almoster (REPAS, 2006: 109). Mantendo-se embora pessoa leiga, D. Berengária continuou à frente do convento como abadessa. Falecida em 1310 (BARROCA, 2000: II-2, 1367), a filha de D. Sancha não veria o fim da sua obra já que as restantes construções, em particular o claustro, estavam ainda por completar em 1317 (Repas REPAS; TEIXEIRA, 1990; TEIXEIRA 2008).

III Os escudos esquartelados apresentados na Parte I constituem uma figuração inédita no armorial português. Considerando o contexto social da sua presença esboçado na secção anterior, ela só pode dizer respeito a três famílias: Vide, Gosende e Paiva. Tratando-se de linhagens das quais não se conhecem outras manifestações heráldicas coevas, 6 a atribuição é problemática. Do mesmo modo, não podemos dizer qual destas famílias se fazia representar através da florde-lis enxaquetada No entanto, há um dado claro: a primazia pertence claramente ao escudo esquartelado, sendo as flores-de-lis esquarteladas remetidas a um papel secundário. A possibilidade, à partida a mais remota, de o escudo esquartelado ser da linha materna de D. Berengária não se pode excluir com facilidade. Como referido, a iniciativa da fundação pertence a D. Sancha Peres da Vide que no seu testamento de 1286 a encomendou a sua filha já viúva. O próprio lugar onde o mosteiro se implantou correspondia ao “paço” de D. Sancha, possivelmente herdado do seu pai e do qual a igreja recuperou algumas estruturas (TEIXEIRA, 1990). O padroado da igreja pertencia de resto a esta família e não seria surpreendente que a detenção deste tipo de direitos pudesse influenciar a heráldica, como As armas dos Paiva estão registadas pela primeira no Livro do Armeiro-Mor, datado de 1509. Mas, como em outros casos, não sabemos se as armas aqui patentes dizem respeito às armas da antiga linhagem dos Paiva, extinta há mais de duzentos anos. Despontavam em Lisboa nesta altura outras famílias de apelido Paiva, como por exemplo a de Bartolomeu de Paiva, provedor das obras do reino no início do séc. XVI e sogro de D. Álvaro da Costa.

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acontece com honras, morgadios e tenências (MENDES e HENRIQUES, 2009; HENRIQUES e MENDES, 2012). A possibilidade de o esquartelado representar as armas dos Gosende tem também alguns argumentos. Antes de mais, seria difícil integrar nas práticas heráldicas deste período a omissão das armas paternas, se as existissem, sem uma razão patrimonial forte ou em caso de flagrante hipergamia por parte do pai. Ora, D. Berengária Aires ainda herdou bens paternos, nomeadamente, metade da quintã de Gosende. Aliás, no único documento que conhecemos em que a fundadora do mosteiro é designada pelo apelido, ela é chamada “de Gosende” (Gosendi) e não “de Paiva” e em 1301, já o mosteiro fundado, intitula-se “filha de Don Ayras Nuniz”. No entanto, ao contrário da sua mulher e filha, D. Aires não parece ter tido intervenção nesta fundação piedosa e o seu contributo material apresenta-se menos evidente que o dos da Vide ou os de Paiva. Por fim, apresentamos a hipótese que quanto a nós reúne de longe melhores argumentos: a de o escudo representar a linhagem do marido de D. Berengária. Em primeiro lugar, a tendência observável na heráldica feminina portuguesa, em concreto na sigilografia, é a do emprego das armas do marido. A amostra contemporânea é pequena e muitas das observações disponíveis são apenas atribuições mais ou menos seguras. Ainda assim, pode-se afirmar que nos selos de mulheres casadas, o escudo com as armas do marido ocupa o centro, sendo as figuras da família de origem remetidas para o papel de, para empregar uma expressão do Marquês de Abrantes, “memórias heráldicas”. Um bom exemplo é o selo de D. Maria Anes, filha de D. João Peres de Aboim/Portel que ostenta o escudo palado do seu marido D. João Fernandes de Lima rodeado por pequenas lisonjas que remetem para o campo lisonjado do seu pai (Abrantes 1983: n. 320). Em trabalho anterior já aludimos a Sancha Rodrigues e a Fruilhe Mendes de Briteiros (HENRIQUES e MENDES, 2012) que ostentam no selo as armas do marido, mas podemos ainda elencar os selos de D. Teresa Martins de Riba de Vizela (ABRANTES, 1983: n. 188), de D. Teresa Martins de Albuquerque (ABRANTES, 1983: n. 349) e de D. Maria Raimundes de Sequeira (ABRANTES, 1983: n. 208). Os casos de D. Leonor Afonso, senhora de Mortágua e de D. Guiomar Anes de Berredo, constituem a proverbial exceção que confirma a regra, na medida em que pertencem a linhas bastardas da casa real e, como tal, protagonizam situações de clara hipergamia por parte do marido. É de referir que no contexto europeu também parecem ser raras as exceções a esta regra. Um artigo sobre o protagonismo feminino na heráldica acaba por fornecer menos de uma dezena exemplos de ausência de protagonismo da heráldica do marido (KEEN, 2003). A maior parte, aliás, são opções facilmente explicáveis, como a de Devorguilla de Galloway, filha do Lorde de Galloway, neta por via 91

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materna de David, Conde de Huntington, neto legítimo do Rei da Escócia. Ora o seu marido, John de Balliol, era um nobre de menor estatuto que só por via deste casamento foi pai de João I da Escócia. O segundo argumento é de ordem material. Se da mãe D. Berengária herdou a vontade e a ideia de erguer o mosteiro, foi do seu marido que herdou os recursos materiais necessários para tão arrojado projeto. Com efeito, na lista das terras e direitos de D. Rodrigo coligida por L. Ventura avultam grande parte dos bens que ficariam a pertencer ao convento (VENTURA, 1992: II, 673-83). Era um património importante cuja herança, para mais, tivera de ser disputada com a Ordem do Hospital a quem caberiam alguns direitos. No plano patrimonial, a figura de D. Rodrigo avulta claramente perante os pais de D. Berengária. D. Aires, na verdade, nem sequer detinha a totalidade da Quintã de Gosende (repartida com Fruilhe, Sancha e Urraca Nunes de Chacim). Aliás, na sua lápide funerária, D. Berengária Aires é apresentada como quondam uxor Domini Roderici Garsie. Uma terceira ordem de ideias é relativa ao emprego do escudo dito de “cadeado”. Esta representação está longe de ser trivial e manifesta uma intencionalidade específica. Com efeito, as mais antigas representações conhecidas de um escudo com a sua correia encontram-se em contexto tumular masculino e leigo (BARROCA, 2000: II, tomo 2, 1677, n. 613; 1811, n. 646; 1853, n. 657; 1862, n. 659; 1927, n. 674). Se o escudo pleno pressupõe a sua plenitude funcional e simbólica, a visibilidade da correia representa a contrario a ausência do seu portador que deixou neste mundo as suas armas 7. Segundo esta interpretação o emprego do escudo em cadeado representa a viuvez de D. Berengária que esta não deixou de combinar com os seus sinais de nascimento. O argumento final encontra-se na relação entre a própria figura do escudo e o apelido da varonia de D. Rodrigo. O marido de D. Berengária era neto, por via paterna, de Fernão Ramires “Quartela” (VENTURA, 1992, II, p. 673), fazendo com que Pizarro chame a esta família “Quartela-Paiva”, distinguindo-a dos “Paiva” oriundos de João Soares de Paiva (filho de Soeiro Pais, o “Romeu”). Ora, “quartela” é precisamente o étimo do termo “esquartelado” que ainda hoje empregamos em heráldica. Sem avançar qual a direção da casualidade entre o nome e os sinais, parece aceitável que este apelido da família e a figura do escudo estão associados, seja porque fossem as armas falantes ou porque o apelido descrevesse os sinais. Um possível argumento contrário é a existência das três flores-de-lis em contrabanda nas armas posteriores dos Paivas. No entanto, os armoriais quinhen O selo de D. Berengária gravado no sino que não apresenta a correia pode datar-se ainda de um período anterior à sua viuvez.

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tistas nem sempre constituem fontes fidedignas sobre a heráldica de famílias extintas séculos antes, sobretudo no caso de apelidos geográficos comuns 8. Atribuído o esquartelado aos Quartela-Paiva, fica por esclarecer a flor-de-lis enxaquetada. Admitindo que se trata de heráldica familiar, há duas principais hipóteses: ou a flor-de-lis enxaquetada pertence a um dos pais de D. Berengária ou representa uma combinação das figuras duas linhagens. Apesar da ausência de mais testemunhos associáveis a estas famílias, aliás pouco conhecidas, não é inteiramente arbitrário atribuir a flor-de-lis aos Gosendes e o enxaquetado à linhagem materna. Com efeito, Aires Nunes tinha uma relação próxima com Martim Gil de Soverosa que, como ficou argumentado pelo Marquês de Abrantes (1980) e comprovado por J. A. Sottomayor Pizarro (1999: 2, 827, nota 82), portava nos seus sinais a mesma figura heráldica. Por outro lado, há um discretíssimo indício que liga D. Sancha Pires ao emprego do esquartelado: a vassalagem (VENTURA, 1992: II, 681) entre D. Berengária e o cavaleiro Estevão Raimundes de Portocarreiro. Ora, esta família viria a usar um enxaquetado, pelo menos desde o segundo conde de Medellin (Juan Portocarrero y Pacheco, n. 1455). Na igreja da Graça em Santarém existe ainda um túmulo anepígrafo cujo habitante provinha certamente desta linhagem. Uma vez que a flor-de-lis acompanha o escudo esquartelado, a possibilidade de as flor-de-lis enxaquetadas constituírem uma “fusão”, para usar uma expressão de Pardo de Guevara, dos sinais dos Gosende e do esquartelado dos Quartela-Paiva é mais remota.

IV Almoster contém outras representações heráldicas dignas de estudo que não podemos passar em claro. Desde logo, avultam os sinais de D. Gil Eanes da Costa Para certos apelidos, como Maia ou Valadares, não há coincidência entre as armas iluminadas nos armoriais quinhentistas e as empregues nos século XIII e XIV. Este fenómeno poderá ser explicado se considerarmos que as representações nestes armoriais dizem respeito às famílias suas contemporâneas e não às vetustas linhagens homónimas. O caso das armas dos Valadares é paradigmático. As armas desta linhagem sobreviveram no selo da comendadeira de Santos D. Joana Lourenço de Valadares, datado de 1337 (ABRANTES, 1983: n. 374) e são distintas das armas atribuídas aos Valadares no Livro do Armeiro Mor. Os sinais figurados neste armorial são idênticos aos do túmulo do primeiro arcebispo de Lisboa D. João Anes (ABRANTES, 1982), pai de Rodrigo Anes de Valadares, documentado como ouvidor de D. João I (HOMEM, 1985: II, 185), cuja carreira ocorreu no início do século XV. Julgamos que as armas no Livro do Armeiro Mor correspondem às armas dos Valadares descendentes do arcebispo cuja ligação aos primeiros é desconhecida e possivelmente inexistente. Um caso semelhante pode ter ocorrido com as armas dos Paivas.

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que constituíram objeto de um trabalho recente (SEIXAS e GALVÃO-TELLES, 2013). Também a sala do capítulo está ainda pavimentada por cinco túmulos heráldicos de velhas abadessas, designadamente D. Maria Teixeira, D. Briolanja (?) de Sousa, D. Isabel da Cunha e D. Brites de Mendonça, bem como uma lápide anepígrafa com as armas de Fonseca (de Sancha Vasques ou da sua sucessora Maria Rodrigues). 9 Apesar de as inscrições não se encontrarem estudadas, não nos vamos deter nestas lápides uma vez que estas pertencem a um período posterior na vida do convento. Já nas ruínas do claustro deparamos com um heráldica contemporânea da fundação do mosteiro. Com efeito, numa das duas arcadas sobreviventes, encontra-se ainda um par de capitéis armoriados (Fig. 12), caso único entre os 30 pares de capitéis que ainda existem. Apesar do desgaste do suporte e da rudeza do traço, os quatro escudos permitem um leitura mínima: – Capitel do lado do pátio º Na face direita, escudo com campo com cinco faixas (Fig. 8) º Na face esquerda, escudo com campo semeado de mosquetas de arminho com contrabanda (Fig. 9) – Capitel do lado do claustro º Na face direita, cruz (florenciada? occitana?) vazia (com bordadura?) (Fig. 10) º Na face esquerda, campo com seis faixas (Fig. 11)

Figura 8 – Escudo faixado no claustro. Fotografia de Miguel Jianu.

Infelizmente, os motivos heráldicos da sepultura de D. Maria Teixeira encontram-se mutilados. No entanto, a inscrição não deixa dúvidas: AQ[U]I: IAZ: | D.: MARIA: TEIXEIR|A ABADE|SA: DESTE: M[OSTEIR]º +.

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Ao contrário do que acontecia com os escudos da igreja, é possível atribuir uma destas manifestações heráldicas, com segurança, a uma linhagem concreta. A  contrabanda e os arminhos constituem inequivocamente os sinais contemporâneos dos Chacim (BARROCA, 1996); já a cruz, cujo formato é de difícil interpretação, foi no século XIII empregue, pelo menos, pelas famílias Pereira, Riba de Vizela, Briteiros (HENRIQUES e MENDES, 2012) e por uma linhagem nortenha que se estabeleceu em Santarém: os Dades (ABRANTES, 1983: n. 173 e n. 270). O uso de campos faixados durante os séculos XIV e XV está documentado ainda por várias linhagens (Leitões, Silveiras/Pestanas, Ferreiras), além de outras que talvez já as envergassem (Mascarenhas, Alvarenga, Avelar). Ainda no século XIII, os Fornelos tinham o seu campo faixado (HENRIQUES e MENDES, 2009). De resto, na sigilografia eclesiástica (v. g. SARAIVA, 2003: 217 e 277;) e na heráldica monumental (v. g. os túmulos anepígrafos trecentistas em Santa Clara-a-Velha, São João de Tarouca e na igreja de Santa Cristina de Serzedelo, Guimarães) são comuns os escudos faixados. Ou seja, além destas, muitas outras linhagens terão usado faixas e o mesmo se pode dizer das cruzes. Como tal, não vinga a possibilidade de a função destes escudos ser ornamental ou simbólica, a exemplo do cavaleiro com o escudo com cinco vieiras em sautor esculpido num capitel do mosteiro de Celas que foi identificado como Santiago Matamouros (REAL, 1986: 73).

Figura 9 – Escudo de Chacim no claustro. Note-se como as mosquetas seguem a orientação diagonal da contrabanda e conservam pequenos traços na ponta. Fotografia de Miguel Jianu.

A tarefa de identificar os indivíduos que aqui recorreram à heráldica para gravar a sua memória não é simples. Enquanto aguardamos estudos sobre a origem social das cistercienses portuguesas, 10 podemos recorrer à enumeração das donas mencionadas na documentação de Almoster criada por José Manuel Varandas Aguardemos a dissertação de doutoramento em curso na Universidade de Coimbra do Mestre Luís Miguel Repas sobre a sociologia das comunidades cistercienses femininas.

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(1995: 46-7). É ainda possível expandir os nossos conhecimentos com os Livros de Linhagens (que confirmam apenas duas destas donas: Dórdia Rodrigues “de Carvalho” [da Fonseca] e a abadessa Guiomar Afonso Michom e fazem entrar em Almoster duas outras monjas: Maria “Raimundes” [Esteves] Barreto e Sancha Garcia de Pereira) e ainda com os trabalhos de J. A. Sottomayor Pizarro (1999: 2, 1011) que através dos documentos de Arouca encontrou como abadessa de Almoster em 1303 D. Aldonça Anes de Molnes. No entanto, não basta conhecer as cistercienses e suas linhagens para identificar os detentores dos sinais do claustro. Como o caso da igreja monástica ensina, a presença heráldica no espaço sagrado, quando dissociada de manifestações funerárias, pode estar associada ao patrocínio material. Ora, as dotações entregues pelas famílias das monjas ao convento asseguravam as despesas regulares imputáveis a cada monja mas não necessariamente a edificação do mosteiro. É deste modo provável que estes escudos marquem atos de patrocínio para a construção do claustro, um dos maiores do seu tempo. Certos testemunhos indicam aliás que a sua edificação enfrentou consideráveis dificuldades. De acordo com Francisco Teixeira (2008: 240), a Rainha Santa reservou nos seus testamentos em 1314 e 1327 somas para a sua construção. A duplicação do valor destes legados (de 500 para 1000 libras) sugere que em 1327, a sua edificação ainda estaria longe de estar concluída. A Rainha D. Isabel não foi decerto a única patrocinadora do claustro. O próprio Afonso IV, em 1326 considerou que o “moesteiro era pobre” e autorizou a compra de herdades no valor de 1000 libras (VARANDAS, 1995: 77). Apesar da associação entre Santa Isabel e o mosteiro, é até admissível que este já se encontrasse terminado aquando da sua morte em 1336. De resto, os escudos armoriados encontram-se na galeria Sul que, correndo rente à parede da igreja, terá sido a primeira a ser encetada e por isso não deverão ter sido custeados pelo legado da Rainha Santa. Como referido, o dado mais seguro é que o campo de arminhos com contrabanda identifica a família Chacim. Há duas ligações possíveis desta família a D. Berengária e a Almoster. Desde logo, como referido, havia um parentesco próximo entre os Gosende e os Chacim e, em 1307 a quintã de Gosende parecia estar em grande parte nas mãos das irmãs Fruilhe, Sancha e Urraca Nunes de Chacim. Em segundo lugar, Maria Rodrigues de Chacim, a principal herdeira desta família, era casada com Martim Fernandes Barreto. Ora este cavaleiro participou na demarcação do couto de Almoster logo em 1298, como sabemos por uma versão tardia da respetiva carta. 11 Uma sobrinha deste Martim Fernandes, Na versão recolhida na Monarquia Lusitana (V Parte, fol. 151) por Fr. Francisco Brandão, Martim Fernandes aparece entre os outorgantes por parte do concelho. No registo da chance-

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Maria “Raimundes” [Esteves] Barreto filha do seu irmão Estevão, haveria mesmo de professar em Almoster. A segunda relação parece mais promissora. Sabe-se que quase toda a quintã de Gosende em 1307 estava de facto nas mão das “ordeens” (FREIRE, 1906: 47) mas as parentes Chacim tinham professado noutras casas (Santos-o-Novo e Arouca) e não se encontra na dissertação de José Varandas qualquer menção à posse desta quintã por parte de Almoster. Como tal, o apoio de Martim Fernandes Barreto e de Maria Rodrigues à fundação da sua parente D. Berengária tem maior plausibilidade. Se as armas representam Martim Fernandes Barreto e Maria Rodrigues Chacim ou a sua descendência, então o campo faixado que acompanha as armas dos Chacim deve ser atribuído a Martim Fernandes. Ora, esta conjetura choca com o uso de um campo pleno de arminhos, bastante invulgar na heráldica portuguesa, por parte dos Barretos. No entanto, parece mais provável que os descendentes de Martim Fernandes Barreto tenham recorrido às armas dos Chacim, pudicamente dispensando a contrabanda. Ao reclamarem os arminhos, os Barreto reivindicavam não só a sua ligação a uma figura importante como Nuno Martins de Chacim (BARROCA, 1996) como, por via dele, a uma das cinco canónicas linhagens “que andaram a la guerra afilhar o reino de Portugal”: os velhos Bragançãos. Com efeito, há razões para considerar que estas eram as armas desta linhagem extinta. É plausível que Nuno Martins de Chacim assumisse como armas as dos Bragançãos, diferenciadas por uma contrabanda marcando a ilegitimidade da sua mãe. Relativamente a esta linhagem tem vigorado a tese de que tinha por armas um escudo com cinco crescentes (ABRANTES, 1983: p. 102-3; MACHADO, 2004: p. 218). Esta atribuição é, porém, alicerçada numa matriz sigilar encontrada em Adeganha (concelho de Torre de Moncorvo) que exibia cinco crescentes em sautor e o nome do seu possuidor D. Pedro Garcia. Uma vez que o achado teve lugar em Trás-os-Montes, este Pedro Garcia foi identificado pelo Marquês de Abrantes como sendo o Braganção do mesmo nome documentado em 1218-35 (MACHADO, 2004: p. 215) e não o seu contemporâneo e homónimo Sousão (PIZARRO, 1999: I, 220). Não é conhecida nenhuma reprodução desta matriz, já que o Marquês de Abrantes não teve possibilidade de a fotografar. O facto de o Livro do Armeiro-Mor conter as armas de uma família “Bravança” compostas por cinco escudetes em sautor não constitui uma validação aceitável desta tese nem

laria de D. Dinis (ANTT, Chancelaria de D. Dinis, Lv. 3, fl. 3-3v) é omitida a lista de outorgantes do lado do concelho.

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tão-pouco a atribuição não justificada dos mesmos cinco crescentes aos descendentes de Fernão Mendes o Bravo (v.g. FERREIRA, 1920: p. 59). Há alguns anos, Soares Machado aceitou a atribuição do Marquês de Abrantes mas acrescentou uma hipótese sagaz relativa a D. Vasco Peres de Bragança, apodado de O Veirom pelos Livros de Linhagens. Esta alcunha explicar-se-ia pelo uso em vestes ou em escudos de peles de animais, o que Soares Machado relaciona com os arminhos dos Chacim (MACHADO, 2004, p. 281-2), alegando que a palavra “veiros” designava indistintamente as duas peles heráldicas. Contudo, há razões para crer que o uso de peles pelos Bragançãos e pelos Chacim não era tão conjuntural: estes sinais evocavam a dignidade régia. Com efeito, nas conhecidas iluminuras da I parte do Tumbo A, redigido em 1129 na Catedral de Santiago, encontramos Afonso VI, o Imperador e sua filha D. Urraca com mantos cujo forro é veirado, enquanto o Conde Raimundo e o seu filho (o  Imperador Afonso VII) ostentam capas forradas de arminhos (v. MATTOSO, 1993, p. 10-11, 27, 49, 55). Nas adições a este cartulário, o mesmo forro de arminhos é envergado por Afonso IX de Leão, neto por varonia de Afonso VII. A associação entre os veiros e a dignidade real era reconhecida no Portugal do século XIII, como mostra a representação alcobacense do Rei David com manto veirado (MATTOSO, 1993: 268 e 270). Ora, os Bragançãos tinham boas razões para ostentar as peles. Com efeito, nas suas veias corria sangue real, já que Fernão Mendes de Bragança I casara com uma bastarda de Afonso VI, o Imperador (PIZARRO, 1999: I, 228). Se atendermos à iluminura compostelana de Afonso VI e ao apodo “Veirom”, as peles seriam veiros. No entanto, a utilização das mosquetas de arminhos sublinhava a ligação da família às suas (possivelmente lendárias) origens arménias. Com efeito,

Figura 10 – Escudo com cruz de tipo não identificado. Fotografia de Miguel Jianu.

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a pele de arminho (mus armenia no Latim tardio) evocava foneticamente a “filha d’el rei de Armenia” em quem D. Alão fez dois filhos “domde vieram os linhagens dos Bragançãos”. Considerando que o campo de arminhos é empregue por Nuno Martins de Chacim, o herdeiro de parte do património desta linhagem, faz certamente mais sentido que os arminhos, reclamados posteriormente pelos Barreto, fossem afinal os dos Bragançãos. A transmissão deste motivo dos Bragançãos para os Barretos por via dos Chacim constitui assim uma forte possibilidade. Se o escudo dos Chacins é de fácil identificação, o mesmo já não pode ser dito do escudo com uma cruz, vazia, cujo tipo não conseguimos identificar corretamente (Fig. 10). Tanto pode corresponder às armas dos Pereiras quanto às armas de outras linhagens ligadas à urbe escalabitana, como os Dades (ABRANTES, 1983: n. 173 e 270). A própria possibilidade de pertencer aos Teixeira não pode ser excluída. É ainda, claro, tentador associá-lo a D. Sancha Garcia Pereira, viúva de Francisco Martins e filha do cavaleiro Garcia Pires de Pereira, que professou inicialmente em Celas sendo posteriormente dona do Mosteiro de Almoster (PIZARRO, 1999: II, 302; MORUJÃO e SARAIVA, 2001-2002). Ao professar, D. Sancha vendera ao seu primo, o arcebispo D. Goncalo Pereira, a sua parte na quintã de Pereira (PIZARRO, 1999: II, 301; MORUJÃO e SARAIVA, 2001-2002). Neste caso, contudo, não temos nenhuma hipótese forte para o escudo faixado que se encontra ao lado deste (Fig. 11 e 12). Poderia ser do seu marido, de quem enviuvara, um certo Francisco Martins de Santarém, ou da sua linhagem materna, os Fermoselhe/Urgeses. De nenhum destes se conhecem armas. 12 A cruz de tipo incerto poderia ainda representar os Teixeiras ou os Dades. Estas famílias tiveram relações com os círculos familiares ligados a Almoster. Maria Rodrigues Michom, sobrinha da abadessa Guiomar Afonso Michom casou-se com João Lourenço de Urgeses, fruto do casamento de Maria Lopes Teixeira com Lourenço Anes de Urgeses. Se aceitarmos a cruz como armas dos Teixeira, de novo poderíamos interpretar o faixado como as armas de Urgeses. Por outro lado, sabe-se que Martim Martins Dade, alcaide de Santarém e conselheiro do rei (PIZARRO, 1999: II, 460–463) usava um escudo com três cruzes occitanas (ABRANTES, 1983: n. 273) e o selo do seu pai Martim Pais Dade (PIZARRO, 1999: II, 459) exibe a mesma cruz occitana (ABRANTES, 1983: n. 270). Ora, a isto podemos acrescentar que Teresa Martins Dade, filha de Martim Caso se referissem a Francisco Martins “de Santarém”, seria tentador atribuir os faixados que se repetem nos capitiéis a uma família com esse nome. Com efeito, segundo os Livros de Linhagens uma dona de Almoster Maria “Raimundes” [Esteves] era filha de Estevão Fernandes Barreto e de uma certa Joana Esteves “de Santarém”, sendo incerto se se trata realmente de um apelido. No entanto, este Estevão Fernandes não é descendente dos Chacim, pelo que não deveria usar os tão característicos arminhos.

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Martins, casou com o cavaleiro Mem Pires Pestana (PIZARRO, 1999: II, 463; VIANA, 2005: 2012). Teresa Martins terá morrido ainda em 1270, pelo que as armas poderiam ser dos filhos deste casamento. De resto, uma das professas em Almoster, chama-se Maria Gonçalves da “Silveira” (VARANDAS, 1995: 46), família eborense cujas armas são idênticas às dos Pestanas. Nenhuma destas hipóteses avulta perante as outras.

Figura 11 – Escudo com seis faixas. Fotografia de Miguel Jianu.

Conclusão A análise das manifestação heráldicas na igreja monástica de Almoster permitiu identificar as armas até agora desconhecidas dos Paiva-Quartela. Deixámos ainda como hipótese que as armas dos Gosende deveriam ser constituídas por flores-de-lis e que houve uma transmissão das armas dos velhos Bragançãos para os Barretos. Parecem, à primeira vista, resultados modestos. Contudo, Almoster permitiu também refletir sobre os usos da heráldica nos séculos XIII e XIV. Desde logo, foi possível identificar dois casos em que há uma relação de causalidade entre os sinais usados e alcunhas que permaneceriam obscuras sem a luz emprestada pela heráldica (Veirom, Quartela). As propostas sobre a ligação entre as práticas funerárias e a heráldica na viragem dos séculos XIII e XIV merecem igual atenção. Ficou defendida a ideia de que o escudo “de cadeado” sinalizava a morte do seu portador. Neste caso, as armas da nave e do portal comunicam o patrocínio material que a herdeira de D. Rodrigo Garcia concedeu ao mosteiro, remetendo as flores-de-lis da família da fundadora para uma posição marcadamente subordinada (só na capela funerária se aproximando da paridade). Já na bem conservada lápide funerária de D. Berengária não existem quaisquer sinais. Ora, esta decisão da funda100

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dora nada teve de extraordinário, já que lápides e túmulos armoriados são raros no século XIII, sendo a maior parte da heráldica coeva conhecida por via da sigilografia e não da tumulária. O contraste com as sepulturas armoriadas trecentistas e quatrocentistas da sala do capítulo é grande. Num outro monumento cisterciense, Alcobaça, encontramos uma situação semelhante: as peças dos Sousãos (os crescentes, tipicamente em caderna) estão em todo o lado mas a maior parte das lápides funerárias consiste em inscrições simples. A exceção é a lápide daquele que podemos considerar o “chefe” da família: D. Gonçalo Mendes. Por outras palavras, Almoster confirma como a heráldica do século XIII ainda não assumiu em contexto fúnebre o protagonismo que ganhará mais tarde (SEIXAS e PORTUGAL, 2012; ROSAS, 2013) mas que já se encontrava suficientemente bem difundida para reclamar para uma família o patrocínio de um edifício. No claustro, a presença das armas dos Chacim e de outras famílias sugere que a heráldica está também a marcar a contribuição material para a construção ou algum outro favor (como a proteção junto do rei). Desta forma, as nossas meditações heráldicas pelas ruínas de Almoster proporcionaram novas hipóteses para avançar nos caminhos abertos por autores como Francisco de Simas Alves de Azevedo.

Figura 12 – Os capitéis armoriados do claustro de Almoster. Fotografia de Miguel Jianu.

Documentos Manuscritos “Carta de Arras entregues por D. Rodrigo Garcia de Paiva para o casamento com D. Berengária Aires de Gosende”, 1265, ANTT, Mosteiro de Santa Maria de Almoster, maço 4, n. 12. 101

Tiago de Sousa Mendes e António de Castro Henriques

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