Fichamento da obra \"Fundamentos do Direito\", de Miguel Reale (in memoriam)

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Fichamento elaborado por MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA contato: [email protected]

Fichamento – escrito em 2011 Nota do autor: → Fiz este fichamento em 2011 e decidi torná-lo público em julho de 2015, como lembrança e homenagem ao grande MIGUEL REALE. → Por gentileza, respeite o esforço: se pretende citar este material, não deixe de fazer referência.

*** Em homenagem àquele que nos deixou há quase 10 anos...

Prof. MIGUEL REALE ✫ 06 nov. 1910 †

14 abr. 2006 ***

Obra fichada: REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3ª ed. São Paulo: RT, 1998.

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Introdução Capítulo I – O Direito como Pura Categoria Racional 1. Um princípio fundamental de Aristóteles p. 3 Para MIGUEL REALE, não há expoente de igual porte ao de Aristóteles, no que diz respeito à criação deste, “de maneira cristalina”, de que o homem é um “animal político”, cuja natureza lhe destinou a vivência em sociedade, “de sorte que a idéia do homem exige a de convivência civil”. p. 4 Em Aristóteles, prossegue REALE, o homem é um ser naturalmente político, que vive – por destinação – em sociedade. Não haveria qualquer outro conjunto químico complexo capaz de absorver e transformar energia por conta própria (p. ex., abelhas, ou mesmo todos os outros animais reunidos) que seja tão sociável quanto o homem. “A natureza não faz nada em vão”. O homem, também por ter a faculdade de falar, tem o condão de expressar, pela linguagem, “o útil e o nocivo [...] o justo e o injusto”. O que distingue o homem, na perspectiva de Aristóteles, é a sua capacidade de distinguir o bem e o mal. Tais lições aristotélicas, diz REALE, são tidas como “verdades que estão a entrar pelos olhos de toda a gente”, e que embasam uma série de pesquisas de notável importância. O chamado princípio “maestro di color che sanno” (= “the master of the men who know”) tem sofrido desgastes da história (como todos os grandes princípios), de forma que fique fora de qualquer paralelismo com os atuais paradigmas sociais. Para REALE, são vários os autores e escritores que tomam ao pé da letra os ensinamentos de Aristóteles, de forma a esbanjar um naturalismo exagerado, postura esta que acaba deformando as linhas da doutrina original. “Não se compreenderia, porém, o real significado desses exageros se uma referência, embora ligeira, p. 5, àquelas teorias que se apartaram da doutrina em apreço, ou foram elaboradas em uma direção diametralmente oposta. É claro que estamos nos referindo às múltiplas expressões do contratualismo que fizeram da sociedade e do Direito meras criações do espírito humano”. 2. Formas de contratualismo REALE adverte que não é nesta obra que fará apreciações das primeiríssimas formas de contratualismo, o que remontaria a análise de correntes do pensamento do mundo helênico, dirigindo o autor, para tanto, aos seus “Atualidades de um mundo antigo”; “Horizontes do Direito e da História” e “Filosofia do Direito”.

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Basicamente, o contratualismo se caracteriza pelo intuito “de explicar a sociedade e o Direito, partindo de um homem concebido como anterior à organização da convivência social, do homem em „estado de natureza‟”. O que cria o homem natural é a razão, o qual tem qualidades e tendências com variáveis facetas, “ora como um lobo de outros homens, em geral desligado de laços de interdependência, um ser essencialmente autárquico”. p. 6. A sociedade humana, constituída de homens naturais, se forma por um contrato, criação humana que pode, ao depois, ser desfeita ou alterada por um ato incondicionado. Pelo contratualismo, pode-se chegar a um leque de conclusões, e isto justamente porque a sociedade se assenta sobre um arbítrio humano. Desse modo, a teoria foi útil aos mais variados fins, “ora a serviço dos governantes, ora em prol da monárquica e ora a favor da causa republicana, ora como explicação histórica da gênese da sociedade e do Direito, ora como simples método de estudo de uma ordem social formada por homens livres”. Mas o mais certo, a esta altura, diz REALE, é compreender o contratualismo “sem o p. 7 calor polêmico dos que visam mais destruir do que compreender”. É o contratualismo uma grande manifestação ideológico-sentimental (?), característica esta que não pode ser deixada de lado para a compreensão mais exata das afirmações dos contratualistas. Foi com vistas ao sistema geral da cultura que foram se desenvolvendo as teses de Locke e de Rousseau, as quais lograram repercussão, “representando conjuntos admiráveis de idéias-força de grande sucesso no plano da ação política”. O contratualismo deve ser compreendido ao seu tempo; e não lançado “à luz de situações peculiares ao nosso tempo”. Então, uma coisa é o estudo do valor histórico das doutrinas contratualistas, sendo outra a postura de se analisar a “procedência de maneira absoluta, como sistemas universais de explicação da realidade social, ou seja, a consideração de ser valor lógico para a interpretação dos acontecimentos sociais e da natureza humana”. Nesta altura do texto, REALE avisa que fará o estudo das doutrinas contratualistas segundo três pontos de vista: a) o da extensão e força dos contratos; b) o da sua historicidade; c) o da índole natural dos indivíduos contratantes. Primeiramente, é preciso diferenciar o contratualismo “segundo a força do contrato” em: p. 8 a.1.) contratualismo de governo ou contratualismo moderado e a.2.) contratualismo de sociedade ou contratualismo institucional. No contratualismo de governo ou contratualismo moderado (a.1.), tem-se que ele exerceu notável influência já no início da idade moderna, diferenciando-se por ser uma fonte de explicação do poder do Estado, “cuja primária formação natural não era posta em dúvida”. REALE dá o exemplo dos monarcômanos1, os quais não intentariam 1

A expressão “monarcômacos” tornou-se o termo de referência para aqueles que combatiam o absolutismo monárquico e a tirania dos soberanos. Ela é aplicada primeiramente aos escritos e, por extensão, aos seus escritores. Essa diferenciação

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explicar contratualmente a própria formação primária, “mas sim a origem dos governos”, objetivando “fixar as prerrogativas e os direitos recíprocos do povo e do rei”. Já o contratualismo de sociedade ou contratualismo institucional (a.2.) foi esboçado por Althusius e por Grocio, mas quem tratou pela primeira vez, de maneira sistematizada, foi Hobbes, que teve o mérito de dar a esta tese um alcance poderoso (“não só no plano histórico-político, como nos domínios do pensamento jurídico puro”). Foi assim que se operou o abandono total do princípio posto por Aristóteles (chamado por REALE de “gênio aristotélico”), dando ao Estado e ao Direito a marca de serem estudos como entidades racionais, com o consequente compreender, pelo estudioso, com deduções da “natureza humana pré-social”, e não à luz da história. Tratou-se de um progresso na “fuga do real”, axioma da época. Passando ao ítem b), REALE avisa que o contratualismo histórico é um contratualismo indicado como um fato histórico e realmente verificado. Há ainda o contratualismo hipotético ou ficcionalista, que se traduz num processo lógico de fundamentação do Direito e numa apreciação axiológica da ordem jurídica vigente “como se tivesse havido um contrato”. p. 9 Este contratualismo hipotético ou ficcionalista pode ser de base psicológica (Hobbes e Rousseau2) ou de cunho lógico (Kant3). A primeira forma deste contratualismo histórico é a que pode ser vista nos escritos de Locke e em alguns fragmentos de Pufendorf, sendo mais diverso e profunda as apreciações de Hobbes e de Rousseau. REALE menciona que, se quaisquer dúvidas sobre o caráter histórico da doutrina contratualista de Hobbes, não há o mesmo em Rousseau4. Para REALE, os estudos de Renouvier, Stammler, Del Vecchio e Jellinek foram decisivos para atribuir este caráter ficcionalista para os escritos de Rousseau. “O contrato social é para Rousseau uma aplicação valorativa da ordem política, um processo prático para resolver a questão da legitimidade dos governos em uma comunidade de homens livres”. REALE aduz que a grande preocupação de Rousseau não é buscar tempos remotos para apreender a origem da sociedade (frase: “longe de pretender mostrar como a sociedade se origina na noite dos tempos, o que Rousseau visa a revelar são as condições segundo as quais os homens devem se organizar no presente, sem sacrifício da liberdade”). A argumentação dele é que, para REALE, se mostra incontestável. Todavia, mesmo conceitual é importante, haja vista o fato de que nem todos os autores monarcômacos tiveram sua prática centralizada na completa teoria que defendiam em suas obras. 2 Ambos são analisados por GÜNTHER JAKOBS 3 Também arduamente visto em GÜNTHER JAKOBS. 4 Cf. nota de rodapé 4: “Abandonamos aqui a opinião que sustentamos com muita rigidez sobre o caráter histórico do contratualismo hobbesiano in O ESTADO MODERNO, Rio, 193, 3ª ed., p. 64. Para maiores esclarecimentos, v. nosso ensaio sobre Contratualismo, posição de Rousseau e Kant, no volume Horizontes do Direito e da História, cit., p. 145 e SS.”

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erro incorre quem afirma ter Rousseau acreditado p. 10 num “estado de natureza” como fato histórico. Rousseau intentou, em verdade, uma construção teórica a priori acerca do fundamento contratual da sociedade e do Direito, imaginando o pacto social da maneira que lhe parece mais útil ao seu intuito de findar um regime austero para iniciação doutro sobre melhores bases5. p. 11 Independentemente de quaisquer paradoxos, o que queriam os contratualistas era demonstrar que o Direito significa uma construção do homem, sendo a sua vigência paralela à vontade dos obrigados. Mesmo aqueles que admitiam a soberania nas mãos do monarca não abandonaram o fundamento contratualista. 3. A «contratualização» da sociedade segundo Maine e Spencer É o contratualismo a base central do Direito Natural pelo fato de hipertrofiar o elemento “vontade” como foco originário do Direito e do Estado. Deste ponto se serviu Hobbes para negar o ideal de Direito Justo no estado de natureza. REALE chama atenção, contudo, ao que pensa ser uma ocultação de uma grande verdade na corrente contratualista: o afirmar “de que o Direito e o Estado não são formações naturais da mesma ordem daquelas que se processam em obediência às leis que governam o mundo físico”. E menciona que instituições políticas e jurídicas não são “pedaços da natureza, explicáveis segundo pesos e medidas das ciências físico-matemáticas”. p. 12 Certos pensadores, pois, afirmavam haver uma natureza mecânica e causal dos fatos histórico-sociais, sofrendo, ao mesmo tempo, a necessidade de reconhecerem a sociedade contratual. No próprio âmbito do naturalismo sociológico se desdobrou, assim, uma corrente intelectual que se apresenta como “um verdadeiro contratualismo de segundo grau, um contratualismo dinâmico, de processo”. Summer Maine, com teorias bem vindas por Herbert Spencer, Greef e Fouillée, pensava que “a sociedade humana é natural e se desenvolve no sentido de assegurar cada vez mais a autonomia dos indivíduos, o que se opera mediante uma passagem lenta do regime de status ao regime de contrato”. p. 13 REALE critica Maine. Chama a teoria deste de inaceitável para propor uma explicação do desenvolvimento da sociedade. Mas reconhece uma parte como verdade: “a capacidade de interferência do homem na histórica aumenta à medida em que se alargam os cálculos de nossa cultura”6. 5

Conferir: MIGUEL REALE, Teoria do Direito e do Estado, SP, 1940, cap. VII; O Estado Moderno, cit. p. 64 e SS e Formação da Política Burguesa, Rio, 1934, cap. XIX, e Horizontes do Direito e da Histórica, loc. cit. 6

Cf. nota de rodapé 7, continuação em p. 14: “Já antes Durkheim refutara a doutrina de Spencer e Maine, declarando que não seria possível pensar um sistema garantido de contratos sem base de estabilidade institucional e que, além do mais, o próprio contrato

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p. 14 Reale passa a analisar Spencer. Aduz o princípio deste: o da “contratualização da sociedade”, que se justapõe com um outro princípio de ordem geral, com a seguinte regra: “são as condições dadas e não as intenções conscientes que determinam a forma política”. REALE cita Harald Höffding, o qual entendia ser esta regra válida apenas para os tempos primitivos. Este mesmo pensador ainda observou, diz REALE, que esta principiologia de Spencer significou um apogeu da reação contra “a confiança entusiasta mas ingênua p. 15 que teve o século XVIII na razão e no governo do mundo pelas idéias”7. 4. O neocontratualismo de Bierling Neste capítulo, REALE propõe demonstrar a solução encontrada pelos sociólogos que não se contentaram com a tese spenceriana. p. 16 A doutrina de Bierling, conhecida por “doutrina do reconhecimento” (Anerkennung), pregava ser a validade do Direito um embasamento no consenso tácito ou expresso dos membros da sociedade, ou seja, com a adesão geral às normas declaradas pelas autoridades. Para Bierling, impossível é a concepção de um Direito sem reconhecimento. Necessita o Direito de cumprimento, de princípios a serem imperativamente exigidos. E este reconhecimento deve ser ininterrupto. p. 17 Os grandes tratadistas trataram de apontar defeitos nesta doutrina de Bierling. Trendelenburg, em meados do século XIX, apontou “o perigo que há em se colocar o fato do reconhecimento público em primeira linha, observando que o jurista, por esse caminho, seria necessariamente reconduzido à condenada explicação contratualista do Direito e do Estado” 8. Este mesmo Trendelenburg ainda pregava que o reconhecimento externo só poderia ser aceito como uma fundamentação do Direito objetivo e legal, mas nunca elencado como elementar no conceito de Direito em si, vez que “o Direito deve valer até mesmo quando não reconhecido”. Neste mesmo sentido, avisa REALE, se manifestou Rosmini, o qual dissera que o “Direito brilha com esplendor insólito onde e quando violado”9. “Na verdade [...] a doutrina do reconhecimento por si só não vale nem mesmo para o Direito in civitate positum, visto como ela destrói a própria idéia de validade, fazendo-a depender da vontade p. 18 arbitrária dos súditos [...]”. pode ser fonte de Direito estatutário para novos grupos irredutíveis à soma de seus membros (...)”. Cf. MIGUEL REALE, Teoria do Direito e do Estado, caps. Vi e VII, ns. 15-18. 7 Höffdign, Morale, trad. De Poitevin, Paris, 1906, p. 531. 8 Será que não foi isto que aconteceu com Jakobs? Seria ele uma vítima deste caminho? 9 Trendelenburg, Il Diritto Natuale sulla base dell‟Etica, trad. De Niccola Mogudno, Nápoles, 1873, §§ 46 e 49.

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5. Autonomia e heteronomia do direito Ao lado dessa fundamentação sociológica do contratualismo, vista nos itens 4 e 5, há outra corrente que apresenta o contratualismo como processo técnico de justificação da validade legal, como construção lógica apta a demonstrar por qual motivo e em que sentido o Direito vale. REALE começa por Radbruch. Para REALE, este dá este tom lógico à doutrina de Bierling. REALE cita longo fragmento de Radbruch: “Para a escola do Direito Natural, o contrato era como se sabe, o fundamento de todo o Direito, fornecendo a solução do problema básico da Filosofia jurídica individualista – isto é, o problema de saber como é possível que o Direito, que foi inventado para servir exclusivamente os indivíduos, pode também obrigá-los e vinculá-los ao mesmo tempo. Fundar o Estado com todo o seu poder jurídico soberano sobre a idéia dum contrato celebrado entre os seus membros, pareceu ser o suficiente para poder apresentar, em última análise, toda a obrigação como auto-obrigação. Julgou-se encontrar assim na idéia de contrato social o meio que permite reconduzir com pleno êxito toda a heteronomia a uma autonomia e deste p. 19 modo resolver todo o direito público no direito privado”10. Neste teor, seria o contratualismo uma tentativa de resolver “a oposição fundamental entre autonomia e heteronomia”. O jusnaturalismo teria como ideal jurídico a perfeita autonomia. Seria uma aspiração “em ver no sujeito ao mesmo tempo um legislador e um súdito, o artífice da lei e o servo da lei”. Nota-se, tanto em Rousseau como em Kant, um grande paradoxo interno no sistema contratualista, “uma justaposição impressionante de elementos autoritários e de elementos liberalistas”. Radbruch, diz REALE, contesta o realizar, pelo viés do contratualismo, da autonomia, já que observa que no p. 20 simples fato de haver um contrato há também um elemento heterônomo. A uma porque o contrato origina uma situação de fato, mas não uma obrigação. A duas porque o contrato social não é uma explicação histórica da gênese social, mas sim um critério de avaliação das atividades políticas. Radbruch declara ser o contrato um “critério de valoração”, p. 21 que se renova ulteriormente e em todo momento. “Em conclusão, a teoria do reconhecimento de Bierling, tanto numa como na outra das interpretações dadas [...] não é senão uma forma nova e disfarçada das doutrinas contratualistas”. “Também Hans Kelsen estabelece uma íntima ligação entre a teoria de Bierling e as formas do antigo contratualismo”. p. 22 [...] 10

Radbruch, Filosofia do Direito, trad. De Cabral de Moncada, São Paulo, 1937, p. 207.

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p.23 6. O neokantismo e a fundamentação «a priori» do Direito “Não é por mera coincidência”, diz REALE, “que os mais profundos intérpretes do contratualismo ‘como critério de valoração do Direito Positivo e do Estado’ pertencem ao neokantismo ou se ligam diretamente a Kant, como é o caso de Rnouvier, de Stammler, de Del Vecchio, de Kelsen e de Radbruch”. p. 24 Justifica REALE que não retorno a Kant que não signifique, pelo menos em partes, um retorno a Rousseau. É que ambos propuseram encontrar “uma explicação para a obrigatoriedade do Direito e da Ética resolvendo toda oposição entre autonomia e heternomia, reduzindo toda obediência à lei a uma obediência a si mesmo”. p. 25 Trata-se de uma preocupação de liame muito subjetivo no mundo jurídico. Uma busca no recesso do eu aos conceitos a priori do mundo jurídico, com a conseqüente não utilização do propósito de partir da experiência histórica como algo externamente posto como um dado naturalístico. p. 26 7. Posição de Del Vecchio Para REALE, é Del Vecchio “o mais claro expositor da doutrina, segundo a qual só é possível conceber e fundamentar o Direito a priori”. p. 27 A forma lógica do Direito, para Del Vecchio, não é empírica, sendo, isto sim, um dado a priori. Até mesmo o senso de justiça seria um conteúdo p. 28 particular. Para Del Vecchio, o conceito de Direito não pode ser técnico-material, mas sim exclusivamente lógico-formal. Del Vecchio diz que “Direito é a coordenação objetiva das ações possíveis entre vários sujeitos, segundo um princípio ético que as determina excluindo todo impedimento” 11. Logo, Del Vecchio criou uma noção sem buscar a experiência, valendo-se, apenas, de uma pura forma a priori. p. 29 [...] p. 30 [...] p. 31 A única coisa que Del Vecchio usa da experiência é a busca, nela mesma, de um plano para “uma nova demonstração dessas mesmas verdades”. REALE se utiliza deste pretexto para argumentar. “É exatamente esta análise que Del Vecchio elabora a seguir esta apreciação de elementos históricos, de dados psicológicos, de contribuições sociológicas e antropólogas etc., que constitui, a nosso ver, uma condição essencial ao conhecimento do jurídico”. Não se pode, assim, passar de uma situação fática 11

DEL VECCHIO, Filosofia Del Derecho, cit., p. 75, I presuposti filosofici della noziomo Del Diritto, cit., p. 150.

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para uma situação normativa, muito embora é pensável que, “se o nosso espírito alcança a idéia de justiça e o conceito de Direito, isto só o consegue partindo da realidade, ou inserindo-se nela, pois na base de tudo, na ordem gnoseológica, há a experiência, muito embora não deva ser sempre a experiência empírica das ciências positivas”. p. 32 Em REALE há um meio termo. Não devemos pretender “arrancar tudo de nós mesmos”, mas, também, não devemos “ficar jungidos à descrição empírica do real, julgando que tudo se esgota na própria experiência causalmente entendida”. A experiência significa, para REALE, não o tudo, mas a “condição de todo conhecimento” 12. “Sem adiantarmos as conclusões desta monografia [...] vamos nos ater à consideração de duas conseqüências do subjetivismo lógico-formal tão bem defendido por Del Vecchio e que, como dissemos, conta com imponente séqüito na Filosofia jurídica contemporânea”. 8. Da juridicidade das associações ilícitas Assim como os neokantistas, Del Vecchio preocupava-se em encontrar “um conceito de Direito aplicável a todos os sistemas jurídicos positivos do passado, do presente e do futuro e até mesmo aos imaginários como seria os da Ciià del Sole, de Campanella”. Com fidelidade ao criticismo de Kant, estes pensadores afirmaram que a validade universal e necessária pressupõe um caráter formal. Daí, então, a feição de uma distinção entre a idéia do Direito e o conceito de Direito e a tentativa de lograr aprioristicamente um conceito de Direito adiáforo, sem conteúdo. p. 33 Em Stammler, não há uma natureza humana absoluta e universalmente igual, “da qual se possa deduzir um conceito de Justiça para todos os tempos e lugares”. Logo, os juristas que buscaram um conceito puramente formal do Direito, “não deixam depois de deduzir todas as conseqüências lógicas da doutrina, inclusive aquelas que repugnam à consciência tradicional do justo”. “Se o conceito de Direito é meramente formal, se é adiáforo, se é aplicável e válido para todos os sistemas de coordenação objetiva de relações intersubjetivas, então não é possível negar igual juridicidade p. 34 ao regulamento de uma sociedade ilícita, de um bando de salteadores e de falsários” 13. REALE exemplifica com Alessandro Levi, que fora “um dos mais reputados juristas da corrente crítico-formal”, o qual declarou ser preciso admitir a existência de um Direito, de um Ordenamento Jurídico, em toda sociedade, “inclusive nas sociedades de criminosos, sendo necessário distinguir o ponto-de-vista lógico ou gnoseológico [...] de toda e qualquer consideração ética, bem como de toda pretensão deontológica”. Este mesmo Alessandro Levi chegou a observar não ser possível negarmos a perfeita juridicidade de “ordenamentos ilíticos”, “os quais podem ser considerados ilícitos 12

Conferir REALE, MIGUEL. Filosofia do Direito, São Paulo, 1953, vol. I, p. 125 e SS. Aqui é possível fazer um paralelo com o Direito Penal do Inimigo. É que os “inimigos” fazem seus universos “jurídicos” (?) paralelos, negando o Ordenamento Jurídico que prevalece no local. 13

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pelo Estado e condenados p. 35 pela razão ética, mas nem por isto deixam de ser jurídicos: a ordem jurídica só se caracteriza por seus requisitos formais”. Tratou-se de uma conclusão apegada ao princípio da coerência lógica, dita por Kant como o primeiro dos deveres no estudioso de Filosofia do Direito. p. 36 Esta teoria lógico-formal do Direito ainda encontrou outros entraves. Se há um dever do eu, qual o dever da sociedade? O que explica tal heteronomia do Direito? Foi um discípulo de Del Vecchio, Alfredo Poggi, que resolver a questão. Para tal pensador, “o elemento ético é essencial ao vínculo jurídico que não pode prescindir de seu conteúdo deontológico, devendo a idéia do Direito ser reconduzida ao único ideal próprio do ser racional: ao respeito da dignidade humana”. Eis o erro em se buscar o Direito ou pelo viés puramente gnoseológico, ou pelo viés puramente empírico14. p. 37 Para este Alfredo Poggi, o eu põe, além do não-eu, além do outro-eu, a sociedade. É a sociedade exterior uma mera projeção da sociedade já preformada no espírito. “Isto quer dizer que o contrato social de Rousseau apanha um segundo momento, ilusório, da vida do espírito: o espírito, quando se põe, já põe a sociedade, e a razão de obedecer e comandar”. Para REALE, trata-se de uma explicação engenhosa, mas que não convence. p. 38 REALE aduz que o contratualismo jusnaturalista e o idealismo subjetivo falham na tentativa de resolver antinomias do Direito partindo do homem natural ou do eu puro, sem se referir à idéia do Direito, ao ideal que a ordem jurídica integra. [...] p. 39 [...] 9. Conceito de direito e idéia de justiça REALE aduz que, ainda durante a obra, o leitor terá a oportunidade de verificar a apreciação do autor sobre aspectos fundamentais da axiologia jurídica “de nossa época”. Mas pede atenção ao fato de que este movimento axiológico, em todos os seus vértices, “originou-se da crítica movido ao formalismo jurídico”. Mesmo na parcela idealista, p. 40 se verificou a importância do estudo do fim, ou do valor do Direito para a melhor compreensão da natureza, do fundamento e da validade do Direito, “como veremos apreciando a doutrina de Münch, Lask, Mayer, Ravâ, etc.”. O retorno aos estudos do Fim do Direito (= do Valor do Direito, pelo menos é isso que entendi na leitura da obra de REAL e) como pressuposto basilar da ordem jurídica marcou, se se considerar esse ponto de vista, um retorno de Jhering, “muito embora tenhamos superado suas colocações puramente empíricas e demasiadamente imprecisas”.

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ALFREDO POGGI, Il concetto del Diritto e dello Stato, cit., p. 44, 49, 50 e passim.

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Mas o mencionado romanista teve o mérito de lembrar que “só o conteúdo do Direito nos ensina a sua verdadeira utilidade social”15. p. 41 Para REALE, mesmo com os planos da axiologia jurídica serem muito mais amplos do que pensou Jhering, entende REALE ser o mencionado pensador o “que está mais próximo de nós”. Aí vem a interessante pergunta de REALE: este questionamento acerca do Fim (do Valor) do Direito é estranho (alheio) aos adeptos daquele idealismo jurídico “que reduzem o Direito a uma pura forma lógica?”. Adiante que apreciará, ao depois, o valor real do finalismo na obra de Stammler, mas sublinha que “já vimos que Del Vecchio não separa de maneira absoluta a idéia de Justiça do conceito de Direito”. Só que Del Vecchio, “que com tanta penetração discorre sobre o justo” e recoloca o famoso brocardo de Cícero, para quem natura hominis repetenda est natura16, acaba por lançar o fundamento último do Direito no eu puro, no eu noumenal “em que reside a liberdade”, e não na natureza humana compreendida como uma plenitude de suas expressões. Del Vecchio ficou fiel a Kant, o qual identificara personalidade e liberdade. Del Vecchio pregou que apenas a invocação para a subjetividade, “a redução do mundo aos termos de uma criação individual e de uma emanação do eu torna possível um fundamento para a Moral e para o Direito, os dois campos da Ética”. Esta visão de Del Vecchio, de ser o eu uma espécie de “retroprojetor” do mundo, representado, é o que faz resultar este caráter absoluto da pessoa, “o único princípio que permite a reta e adequada visão do mundo ético”. O fundamento do Direito está, pois, nas nascentes do mencionado eu noumenal, sendo que a lei ética brota p. 42 “da própria essência do homem enquanto transcende a natureza em seu sentido físico”17. Logo, conclui REALE, o fundamento do Direito apresentado por Del Vecchio nada mais é do que uma “repetição” do que já fora feito em Kant. REALE cita longo fragmento de Del Vecchio para expor sua conclusão do capítulo: p. 43 “Age não como meio ou veículo das forças da Natureza, mas como ser autônomo, com qualidades de princípio e de fim; não como impelido ou arrastado pelas ordens dos motivos, mas como dominador deles; não como pertencente ao mundo sensível, mas como partícipe do inteligível; não como indivíduo empírico (homo phaenomenon), determinado por paixões e afetos físicos, mas como eu racional (homo noumenon), independente delas;age, enfim, na condição da pura espontaneidade de tuas determinações, do absoluto e universal de teu ser, e,

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JHERING, El Fin em el Derecho (Der Zweck im Recht, trad. de Leoanrdo Rodriguez, Madri, p. 270. 16 Em rápida tradução do Google = “natureza do homem é natureza da demanda”. 17 DEL VECCHIO, Filosofia del Derecho, cit. Vol. I, p. 435. Conferir REALE, MIGUEL. Filosofia do Direito, cit. vol. II, p. 302 e SS.

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portanto (pois outra coisa isto não quer dizer)de tua identidade substancial com o ser de todo outro sujeito”18. [...]. p. 45 Capítulo II – O Direito como Fato Histórico ou Social 10. O romantismo da escola histórica O contratualismo deu um tom exagerado ao poder criador do homem. Este, por sua vez, concebido fora da sociedade, “seguiu p. 46 o destino que Aristóteles lhe traçara nas pontas de sua alternativa: ou um bruto (Hobbes) ou um deus (Rousseau)”. Sendo o homem natural lançado no patamar central do Direito e do Estado, a razão tomou moldes de fantasia, e uma gama variada e impressionante de sistemas jurídicos se emanara, sendo um mais abstrato que o outro, sendo que cada um buscou levar mais adiante as pretensões “de traçar, sem recurso à realidade social e histórica, verdadeiros códigos herméticos de leis naturais válidas para todos os tempos e lugares”. Soberano restou, diz REALE, o dedutivismo. E o jurista se transformou num matemático, porque aquele passou a almejar, a partir de princípios evidentes, uma forma pura e invariável do Direito. A Ciência Jurídica (REALE sempre se refere às Ciências Jurídicas com o termo “Jurisprudência”, “J” maiúsculo) perdeu o contato com os fatos, com a experiência. Passou a Jurisprudência a viver de uma experiência reflexa, subentendida, sendo criação da razão pura. Nesse contexto viveram os homens à época da Revolução Francesa. Não se pode negar, diz REALE, por isto, o caráter revolucionário do Direito Natural dos séculos XVII e XVIII. p. 47 REALE faz a observação, para o leitor, de que se atentará à base do historicismo de Savigny, com especial atenção ao que o pensador atribuiu ao que ele entendia por formação da sociedade, do Direito e do Estado. p. 48 Sob o ponto de vista do fundamento do Direito, a Escola da Savigny e de Puchta significou uma contraposição, “ponto por ponto”, do contratualismo. Uma reação, diz REALE, contra a abstração do homem natural e, também, contra as edificações artificiais (ficcionalistas) da sociedade e do Direito (= Escola Histórica). Savigny e seus seguidores falavam de um vegetalismo jurídico (para REALE, um exagero), com oposição ao criacionismo racionalista dos autores jusnaturalistas. Para a Escola Histórica, há um ideal fundamental do Direito, que, na tese, “cresce e se desenvolve lentamente como uma árvore, como atualização das forças internas de 18

DEL VECCHIO, Filosofia del Derecho, cit. Vol. I, p. 435. Conferir REALE, MIGUEL. Filosofia do Direito, cit. vol. II, p. 445 e SS.

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crescimento espontâneo”. Este é um pensamento de De Maistre, resumido por Alexandre Correia19. p. 49 Tal analogia, para REALE, se levada ao exagero, acaba por se traduzir num “erro que Jacques Leclercq muito acertadamente atribui a uma miopia manifesta que limita o seu campo de percepção a um aspecto do real”20. É que a participação efetiva e criadora do homem é sempre uma subordinação de fatos e valores. Há uma harmonização do mundo do ser com exigências do dever ser, uma correlação ontodeontológica. Não é certo, diz REALE, “aceitar como naturais p. 50 unicamente os produtos de uma lenta formação histórica”. 11.

A crítica de Jhering

Acerca do chamado princípio aristotélico sobre a formação natural da sociedade, apregoa REALE que ele não pode ser visto no sentido de que as instituições políticas se desenvolvem “como um simples processo do mundo orgânico”, sem a interferência da vontade21. Os expoentes da Escola Histórica não quiseram criar uma Física social. Porém, houve certo exagero, por parte deles, em acentuar o caráter espontâneo e automático das organizações humanas. “O paralelismo que fazem entre a formação do Direito e da linguagem é por demais significativo”. Sobre este particular aspecto, p. 51 Jhering já se manifestou, expondo “os perigos que ameaçam o Direito quando se esquece a parte ativa desempenhada pelo homem na história com a sua inteligência e a sua vontade orientada para o alcance de um fim”. REALE aduz que Jhering se referia à Escola Histórica também por “Escola Romântica”, por causa de uma falsa idealização das circunstâncias do passado (+ - na p. 12 da Luta pelo Direito). p. 52 REALE entende que a Escola Histórica se aproxima, por demais, do ideal de Rousseau. “Podemos dizer que a Escola Histórica repudia o criacionismo abstrato, que caracteriza o contratualismo, mas não se liberta da religião da natureza que é o elemento animador e romântico da obra de Rousseau, explicando, assim, a combinação de elementos empíricos e meta-empíricos em sua concepção”. O Volksgeist se atribui à Savigny como a volonté générale se atrivui à Rousseau. O francês, todavia, “reduz seu impulso romântico ao esquematismo lógico de um contrato, logicizando como bom racionalista, segundo as exigências do cartesianismo que é uma feição característica do pensamento francês”; enquanto para o alemão, “com essa 19

Alexandre Correia, op. cit., p. 30-31. Também Puchta, diz Reale, faz análoga comparação entre o crescimento do Direito e o de uma árvore. Cf. Solari, ob. Cit., vol. II, p, 179. 20 Jacques Leclercq, Leçons de droit naturel – Le fondement Du droit ET de La societé, 2ª ed., 1993, p. 375. 21 REALE diz, em rodapé n.7: “Sobre o princípio da descontinuidade na História, v. MIGUEL REALE, Formação da Política Burguesa, cit. Prefácio”.

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coloração religiosa da qual os alemães sentem necessidade até mesmo quando praticam irreligiosidades, concebe o espírito do povo como p. 53 uma fonte misteriosa de preceitos e de normas, na espontaneidade irracional das forças obscuras e silenciosas. Um arranca tudo de si mesmo e se transforma na voz da Revolução; o outro, na aurora do evolucionismo, ainda não influenciado pelas obras de Darwin e pelos esquemas frios da ciência positiva do século XIX, vê o Direito brotar do espírito popular traduzindo os imponderáveis de cada região e de cada estirpe”. Mesmo com as diferenças anotadas, são ambos, na palavra de REALE, “românticos”. Rousseau “teima em estabelecer o primado dos impulsos irracionais”. Savigny é “o romântico que transforma o espírito popular em fonte de energia para aquecer e vitalizar os quadros do Direito petrificados pela silogística das abstrações jusnaturalistas”. REALE menciona que, por causa destas considerações, levou-se a crer que os historicistas tinham em si a existência de elementos contratualistas; quando, na verdade, o que existe na obra deles é o mesmo espírito naturalista e otimista que era posto num contrato. p. 54 [...] 12. A escola histórica e o positivismo Queiram ou não, p. 55 há claros elementos jusnaturalistas na doutrina da mencionada Escola Histórica, “sendo justo relevar um lugar à parte a Adam Müller que distingue entre idéia do Direito e conceito de Direito, notando naquela „dois elementos, um corpóreo ou positivo, e outro, espiritual ou geral, que é exatamente o que os ideólogos denominam direito natural (Naturrecht) e que constitui o objeto do conceito (Bregiff) do direito”. Savigny e Puchta também não podem ser taxados como positivistas no sentido técnico da palavra, vez que ambos não rejeitam quaisquer atitudes axiológicas e, ainda, recorrem a uma noção obscura e romântica, “à de espírito do povo ou consciência racional”, a base misteriosa das concordâncias preexistentes no mundo do Direito. p. 56 [...] p. 57 REALE cita Georges Gurvitch, o qual examina a Escola Histórica com outro ponto de vista, e também conclui que Savigny e Puchta não estão isentos de jusnaturalismo, “mas o seu argumento é por demais precário”, diz REALE. Em Georges Gurvitch, os fundadores da Escola Histórica distinguem, entre Direito estabelecido pela autoridade (= Direito Legislado?) e o Direito vivo do povo (lebendiges Volksrecht), dado imediato da consciência coletiva do Direito de um povo (inmittelbare Rechtsüberzeugung des Volkes). p. 58 A proposta da Escola Histórica era explicar historicamente o Direito, a ordem jurídica positiva. “Mas os seus mentores mais esclarecidos não puderam deixar de reconhecer que, na história do Direito, ao lado do natural, do espontâneo, do necessário, há também o elemento consciente, reflexo, criador”.

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A tentativa da Filosofia jurídica positiva era agnóstica e se ateve somente “à mera descrição dos acontecimentos”. É fora da Escola Histórica que encontramos o desenvolvimento mais claro sobre a teoria do Direito como produto da natureza, “que culmina em certas expressões do materialismo histórico que tentam uma explicação do mundo jurídico como uma superestrutura de condições objetivas de ordem simplesmente econômicas”. p. 59 13. A teoria de Durkheim REALE avisa que não pode examinar na obra todas as teorias do Direito Positivo (= teorias que reduzem o Direito), e que, portanto, irá restringir à análise daquelas que mais diretamente influenciaram o mundo jurídico latino. Nota REALE que essas teorias (“ainda mesmo quando pretendem explicar a gênese histórico-social tanto das formas reais como dos próprios valores ideiais do Direito”) acabam sempre levando à idéia de um puro experimentalismo que defendem de maneira tão extremada. Para REALE, o estudioso do Direito, quando se dispõe a considerar a problemática envolvendo a formação de seu objeto de estudo (o Direito), sempre há de se impor uma atitude valorativa, axiológica, em face dos fatos: “acima da fria exposição do Direito Positivo, põe-se também a necessidade de uma análise mais aprofundada capaz de explicar a razão de ser da própria ordem jurídica positiva”. A atitude neopositivista (chamada por REALE de agnóstica), “de total indiferença pela questão inicial da gênese das instituições sociais, comportaria a posição daqueles juristas que pretendem não ir além de uma Teoria Geral do Direito, mera investigação empírica do Direito em busca dos princípios gerais (generalia) indispensáveis p. 60 à sistemática das diferentes ciências particulares”. p. 61 14. REALE realça a chamada consciência coletiva, presente nas obras de Durkheim e Davy como uma “fonte primordial de todo Direito”, porquanto a lei significa a expressão consciente da vontade coletiva da sociedade. Neste ponto, absolutamente conexa a sociologia durkheimiana com a tese do Volksgeist da Escola Histórica e com a volonté générale de Rousseau22. Para Durkheim, é o Direito uma expressão exterior do fato da solidariedade social. Aliás, foi através do Direito que Durkheim pretendeu estudar a solidariedade, fenômeno de ordem moral “que não se prestaria à observação exata e à medida”. p. 62 Verificar a Filosofia do Direito (REALE), v.I, p. 383 e SS. para eventual aprofundamento. 22

Sobre a influência de Rousseau sobre Durkheim, conferir MIGUEL REALE, Teoria do Direito e do Estado, cap. VI.

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Assim, a escola sociológica se empenha em demonstrar que as instituições jurídicas são manifestações da tal solidariedade social, expressão da consciência coletiva. p. 63 Em síntese, o que norteia a escola de Durkheim é a afirmação de que, em havendo um valor ideal no Direito, deve-se reconhecer que aquele não resulta imediatamente da natureza humana, “mas constitui o resultado final de um longo e tormentoso processo de decantação do fenômeno social, primeiro, e do Direito positivo depois”. Mesmo que o valor ideal atrelado ao Direito seja uma conquista histórica, não se diz, por isto, que ele deixa de ter uma certa realidade objetiva. REALE cita Cuvillier, que, expondo a doutrina de Durkheim e de Davy, observa que estes “valores ideias” existem, com efeito, na consciência coletiva, sua principal criadora. A pessoa humana é considerada o centro dos valores ideais que constituem o Direito porque a sociedade assim o fez, consagrando o indivíduo como a coisa respeitável por excelência23. p. 64 A sociologia jurídica objetiva, assim, chegar ao Direito como um valor ideal, partindo do fenômeno social concreto para observá-lo. “Mas é aqui que surge a pergunta que os sociólogos não quiseram deixar sem resposta: „Como é que do fato social do Direito brotou o valor ideal do Direito? Como se efetuou a passagem do ser para o dever ser, do fato para a norma?‟”. 15. Fundamentação do direito na escola de Durkheim Os autores mais conexos às premissas postuladas e ao rigor do mencionado método escolhido (em especial Lévy Bruhl), apregoaram não haver valores fora da consciência coletiva e que não existe razão para uma oposição entre real e ideal24. p. 65 A redução dos fins ao real, ou do dever ser ao ser não é, para REALE, uma resposta, mas a fuga do problema: “perguntamos como devemos agir e respondemnos como agiram no passado os homens que nos antecederam. Perguntamos porque o Direito é um valor ideal, e respondem-nos que não há razão para opor o ideal ao real”. [...] “Durkheim era pensador de outra envergadura filosófica para se contentar com a crua solução apresentada por Lévy Bruhl. Segundo o autor da p. 66 Division du travail social a Sociologia não pode explicar toda a Moral, e nós ignoramos não só as causas, mas também as razões teleológicas que justificam „a maior parte de nossas instituições morais‟”. Daí que Durkheim exibe o caráter valorativo metafísico de sua tese, de sua concepção de consciência coletiva, transformando-a num verdadeiro mundo espiritual a priori, “irredutível às consciências individuais, em uma individualidade psíquica de novo gênero”. O Direito é um valor ideal, e isto por que ele advém da consciência coletiva. A consciência coletiva, por sua vez, é criadora, por excelência, dos valores ideais. 23 24

Cuvillier, Manuel de Philosophie, Paris, 1929, tomo II, p. 263. Lévy Bruhl, La Morale et la Science lês moeurs, Paris, 1903, p. 154.

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p. 67 É o Direito, por isto, um símbolo, um signo, da solidariedade, ou como um complexo valorativo ou como um ideal coletivo, “mas não nos é explicado como esses valores se formam e como se impõem, de maneira imperativa, às consciências individuais”. p. 68 Durkheim reduz (como Lévy Bruhl) o ideal ao real, porém, transformando a realidade da consciência coletiva em um mundo de valores e de “dever ser”, traduzido como a consciência coletiva com um Espírito metafísico, um Bem Supremo. p. 69 A doutrina de Durkheim se orienta paradoxalmente ao partir da idéia de consciência social para a explicação d’autonomia moral de consciências individuais, ao partir do real para lograr os ideais que ele considera. p. 70 16. A doutrina de Léon Duguit “Este rápido apanhado que fizemos de alguns pontos essenciais da teoria durkheimiana basta para nos fazer compreender que estamos no extremo oposto da linha de Rousseau: não são as vontades individuais que formam a volonté générale, mas é a conscience colletive que forma as consciências individuais.”25. Essa doutrina sociológica exerceu influência pesada sobre vários juristas. REALE começa a sua apreciação em um deles: Léon Duguit. Léon Duguit não aceita o princípio basilar da sociologia de Durkheim – idéia de uma consciência irredutível às consciências individuais – procurando, entretanto, também os fundamentos do Direito p. 71 “segundo uma doutrina social e objetiva, livre de todos os pressupostos do individualismo subjetivista”. REALE faz a menção de que o objetivismo de Léon Duguit é muito conhecido, e que será possível focar nos pontos mais essenciais de sua doutrina. Afirma também que Léon Duguit teve seus méritos “inegáveis”, mas que as afirmações dele não o convenceram. p. 72 A finalidade da tese de Léon Duguit é dupla. Numa primeira face, de ordem mais geral, fala-se no Direito in abstracto (= Direito como valor ideal), explicado objetivamente. Na segunda, parte-se para o problema particular da obrigatoriedade do Direito, da validade do Direito Positivo e da fundamentação da obrigatoriedade jurídica.

25

“Como se vê, a influência de Rousseau sobre Durkheim não é direta, mas resulta de uma contraposição. Geneticamente eles divergem, quanto ao modo de explicar a relação „indivíduo-sociedade‟, mas se poderá afirmar que, do ponto-de-vista deontológico, ambos proclamam a excelência do moi commum ou da conscience collective”. Em sentido diverso, v. Gofredo Telles Júnior, A criação do Direito, São Paulo, 1953, v. II, p. 333. (cf. rodapé 33)

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Léon Duguit, então, não aceita que os ideais jurídicos se originam do seio da sociedade “como algo que venha de fora e se imponha imperativamente como norma de conduta aos membros da convivência”. p. 73 REALE adentra na argumentação de Léon Duguit para demonstrar a possibilidade de se explicar sociologicamente o Direito, sem o socorro do fundamento da consciência coletiva. 17. “O deus ex macinha do objetivismo jurídico de Duguit se chama solidariedade social”. Esta “solidariedade social” é “o ponto de partida e de chegada” de toda a sua construção teórica envolvendo sua concepção do Direito: “onde Durkheim diz consciência coletiva, Duguit diz solidariedade social”. Em Léon Duguit, “não gá Direito além da regra de Direito, além do Direito Objetivo”, sendo este uma natural expressão do fato da solidariedade social, “da interdependência que obriga os homens a viver em sociedade em virtude de sua constituição física, intelectual e moral”. p. 74 Livre ou não, é o homem um ser que age conscientemente. [...] p. 75 Das leis do mundo físico não existem confusão com as leis relativas às atividades humanas, cujas leis implicam um fim (= normas). “Referindo-se à conduta do homem que vive em sociedade, todas elas são normas sociais”, as quais não envolvem quaisquer indagações metafísicas (além de não exigirem pressupostos a priori), sendo todas resultantes de uma realidade que ninguém contesta. É uma mera verificação da solidariedade ou da interdependência social. [...] p. 76 “Assim como as células de um organismo se subordinam às leis do organismo, os atos humanos são coordenados segundo as leis do grupo. Só que estas implicam um fim consciente e são normas. Além p. 77 desta, nenhuma outra diferença existe entre umas e outras leis, pois também o mundo orgânico obedece um fim, embora de maneira inconsciente, diferenciando-se do mundo físico em relação ao qual não teriam sentido algum uma questão de valor”. p. 78 A norma social, nesta doutrina, é uma expressão da solidariedade social, e se impõe a todos indistintamente, tanto a governantes como a governados. Quando uma determinada norma, de índole econômica ou moral, passa a ser tratada como essencial por uma generalizada repulsa contra quaisquer violações, tal norma passa a ter status de norma jurídica. É o que a distingue: a adesão da massa dos espíritos, tudo segundo uma régua, uma exigência social da solidariedade. “Quem atenta contra a solidariedade, provoca contra si o sentimento de socialidade, dando p. 79 lugar à coação. Toda vez que se produz uma reação enérgica contra a violação de uma regra, sob a forma da coação hoje monopolizada pelo Estado, podemos dizer que estamos diante de uma norma jurídica”. O Estado se limite a reconhecer a norma como norma jurídica: não é ele que a cria.

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[...] p. 80 [...] p. 81 [...] p. 82 [...] p. 83 18. Sociologia e sociologismo O apanhado crítico feito, na presente obra, do historicismo e do sociologismo jurídicos teve o objetivo, diz REALE, de demonstrar a insuficiência destas explicações do Direito, “não obstante sejamos dos primeiros a reconhecer toda a vantagem que há para o jurista de não perder contato com a realidade histórico-social”. O que REALE nega é a tentativa destas escolas analisadas em tentar transformar fatos em valores. p. 84 As devidas e necessárias apreciações valorativas não podem ser alcançadas “enquanto não saímos da sucessão empírica dos fenômenos sociais: a Sociologia Jurídica, por si só, não nos pode dizer porque o Direito obriga, nem resolver o problema geral do fundamento do Direito”. p. 85 Kant foi um pensador que “acentuou a antinomia entre o mundo da natureza e o mundo da liberdade, levantando entre a causalidade fenomênica e a liberdade p. 86 noumenal uma oposição que Lachelier considera fundamental da Filosofia” 26. “A Filosofia de Kant já nos ensinou que é impossível extrair daquilo que é aquilo que deve ser [...]. Jamais alguma coisa será justa só porque é ou foi, ou mesmo só porque será. Daqui se conclui que são de rejeitar o positivismo, o historicismo e o evolucionismo; o primeiro porque infere o dever ser do ser; o segundo, porque infere o dever ser daquilo que será ou tende a ser”27. 19. Devido à preocupação comum do historicimso e do sociologismo em procurar as raízes do Direito na evolução social, p. 87 seus adeptos acabaram no exagero de esquecer o valor positivo “representado pela inteligência humana e pela vontade no processo dos acontecimentos”. p. 88 [...] p. 89 [...] p. 91 Capítulo III – O Direito como Fato e como Norma

26

Apud Lalande, Vocabulaire technique et critique de La Philosophie, Paris, 1932, II, p. 503, nota Nature. 27 Na obra Filosofia do Direito de MIGUEL REALE. +- p. 14.

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20. Posição de G. Jellinek Jellinek, aponta REALE, compreendeu bem as insuficiências das compreensões unilaterais, “tanto de uma concepção puramente sociológica quanto de uma concepção puramente racionalista e normativista do Estado”. Jellinek foi rigoroso com seus princípios metodológicos, preferindo justapor tais pontos de vista, ao invés de propor uma visão que superasse um ou outro ponto de vista. p. 92 Jellinek construiu uma Teoria do Estado e veio a se figurar como uma base bibliográfica para a Teoria Pura do Direito, extrapolando mesmo no sentido de criar princípios gerais de Direito “que exerceram talvez mais influência sobre as correntes atuais da Filosofia do Direito do que os trabalhos de Merkl, Bierling ou Binding” 28. Jellinek apontava como falho as duas grandes tendências que se originaram dos estudos envolvendo formação do homem na sociedade, as quais seriam “igualmente falhas e unilaterais para a explicação da gênese das instituições políticas: uma concebendo o Estado e o Direito como criações conscientes do homem; a outra, apreciando-os como formações naturais inteiramente subordinadas à lei de causalidade”. A corrente que concebe Direito e Estado como criação embasada na consciência do homem era dita por Jellinek como sendo contradita à experiência histórica. A corrente que apreciava Direito e Estado como formações subordinadas à causalidade “contraria essa verdade essencial que „nenhuma instituição pode surgir sem a colaboração da vontade humana consciente de um fim‟, pois até mesmo as instituições e os usos dos povos primitivos „possuem sempre, desde as origens, uma finalidade consciente, que pode ser talvez ridícula ou prejudicial, mas que exprime sempre uma necessidade psicológica” 29. p. 93 Jellinek, tratando da problemática de forma realista, criticou o contratualismo e o historicismo. Nega, portanto, tanto o ficcionalismo de Rousseau quanto o historicismo romântico de Savigny. Jellinek, contudo, “declara que a teoria clássica sobre a formação natural do Estado deve ser melhor entendida do que tem sido até agora pelos técnicos do Direito”. As interpretações de Jellinek sobre a doutrina aristotélica acaba por dar a tal um tom que “está mais ou menos de acordo com a lição dos fatos e com o sistema éticopolítico do estagirita, necessitando , porém, de uma correção e de um complemento como se verá no decurso deste ensaio”. p. 94 Em Jellinek, que se achega a Jhering, há a lição de que “o Estado não se forma arbitrariamente, independentemente de condições materiais, mas não se constitui tampouco prescindindo de toda a idéia de fim”. Todavia, não é sempre que os atos humanos atingem seus fins. Não podemos, de antemão, dizer quais são as consequencias desses atos. “Neste ponto Jellinek quer se referir, evidentemente, ao princípio que Wundt soube tão bem ilustrar 28

“Nesse sentido, Mayer. De opinião contrária parece ser Sauer”. Apud G. Jellinek, La dottrina dello Stato, trad. de Modestino Petrozzielo, com Note de V. E. Orlando, I vol., Milão, 1921, pag. 114 e segs. 29

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relevando a heteronomia dos fins”: “Cada ação pode ter efeitos sociais que não podemos avaliar, e muitas vezes nem mesmo prever. Em virtude da imensa complexidade e variedade das relações sociais, a atividade humana é também fonte de efeitos imprevistos (...). Na íntima concatenação de todos os acontecimentos sociais, o efeito de um ato histórico – rigorosamente determinado aos olhos de seus autores, do ponto-de-vista teleológico – pode superar toda e qualquer medida suscetível de previsão” 30.

30

Apud Jellinek, ob. Cit., vol. I, pág. 118.

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