Ficções estético-políticas e a produção simbólica do espaço urbano contemporâneo: arquitetura e arte urbana com sinais trocados.

June 6, 2017 | Autor: Vera Pallamin | Categoria: Arte contemporáneo, Arquitetura Contemporânea, Cidades Contemporaneas
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COLÓQUIO INTERNACIONAL 2016 - Construir e habitar a terra: cidades inteligentes e poéticas urbanas Tema: Os papéis das utopias no século XXI; Ficções estético-políticas e a produção simbólica do espaço urbano contemporâneo: arquitetura e arte urbanas com sinais trocados.

Vera Pallamin / FAUUSP

Em seu livro ‘O novo tempo do mundo’ (2014), o filósofo Paulo Arantes joga com a ambiguidade do título: o que à primeira vista poderia ser tomado à luz de certa tradição utópica - numa linhagem que remontaria à publicação de ‘Utopia’, de Thomas Morus (1516) e propostas posteriores associadas às ideias de superação das desigualdades socioeconômicas e de reconhecimento moral – diz respeito, pelo contrário, ao que o autor denomina como ‘a era da emergência’. O ‘novo tempo do mundo’ refere-se ao tempo presente, pautado por um horizonte de expectativas despotencializado frente à ampla derrocada das experiências revolucionárias. Esse tempo vem se desenrolando desde os anos 1970, ou mais especificamente, após o fim da trégua dos chamados 30 anos gloriosos do Estado do Bem-Estar nos países centrais. Durante esses 30 anos, associados ao keynesianismo, permaneceu a mobilização de promessas emancipatórias que perpassaram todo o século XX, mas que foram sendo progressivamente desmanteladas, o que se consolidou com a queda do muro de Berlim em 1989 e com a dissolução da União Soviética, em 1991. A hipótese de que a forma social do comunismo seria aferida como decorrência das transformações do capitalismo mostrou-se historicamente equivocada e o que se viu “foi a vitória do comunismo do Capital sobre o comunismo dos comunistas.”, diz Rancière (2010:174, trad. da A.). Após o colapso soviético reinou por duas décadas a utopia capitalista, “a utopia de uma perfeita autorregularão do livre mercado e da possibilidade de organizar todas as formas

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de vida humana de acordo com a lógica do mercado”, reinado seguido de uma profunda crise sistêmica (idem). Nesse ‘novo tempo’, certas formas sociais foram ultrapassadas historicamente e outras foram reafirmadas. A era da emergência coincide com a adoção de novas estratégias de valorização do valor (D-M-D’) num período de dominância financeira, cujo objetivo é ampliar a acumulação – com crescente concentração de riquezas - e realimentar o mesmo circuito, às custas de uma patente irracionalidade social e ambiental. Segundo Pierre Dardot e Christian Laval em ‘A Nova Razão do Mundo’ (2013), essa matriz, mais do que uma política econômica, consiste numa ‘racionalidade’ que estrutura a ação de governantes e a conduta dos governados, efetuando-se por meio de um conjunto de práticas, discursos e dispositivos configurados em torno da competição. Essas práticas e dispositivos tornam-se um modelo de subjetivação e são internalizadas em sua lógica normativa, constituindo-se como um dos pilares da reprodutibilidade do sistema, em meio às constantes crises e danos por este provocados. A pergunta crucial que esses autores fazem é: “como é possível que, apesar das consequências cada vez mais catastróficas a que nos têm levado as políticas neoliberais, que elas sejam cada vez mais ativas, associando Estados e sociedades em crises políticas e regressões cada vez mais graves?” (Laval;Dardot, 2013:13, trad. A.). A resposta que propõem é a de que se trata de uma maneira mesma de organização da realidade, de uma razão regida pelo princípio da concorrência e pela forma-empresa. No modelo de subjetivação ativado pela racionalidade neoliberal, o sujeito introjeta a lógica de valorização do valor estabelecendo, de modo homólogo ao capital, uma relação “com ele mesmo como ‘capital humano’ que deve aumentar indefinidamente, um valor que tem que aumentar cada vez mais” (idem:21). O que está aí em jogo é uma lógica normativa que é assimilada de modo transversal, desde o plano pessoal, da subjetividade, até aquele governamental (idem:24). Na era da emergência – que corresponde a um estado de crise permanente em que se reintroduziu a insegurança social - o binômio esperança / medo, afetos estes

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complementares que “estão vinculados em sua dependência mútua em relação à temporalidade da expectativa” (Safatle, 2014:70), e cuja tensão interna acompanhou inúmeros debates modernos sobre utopia, tende a dar lugar ao binômio urgência / risco, no qual a distância entre o que se aspira e o que se faz é agudamente encurtada, e em que muito da luta social é feita em nome de um futuro que ‘não seja pior’. Nesse ‘novo tempo’, a matriz dominante quanto à relação com o futuro mudou significativamente. Na fase anterior de predomínio do capitalismo industrial, a estrutura temporal foi marcada pela linearidade e pela abertura utópica fomentada pela noção de progresso: por um lado, tratava-se de se buscar produzir mais dentro de um mesmo intervalo de tempo, visando-se obter maiores quantidades e de modo mais rápido; por outro lado, essa aceleração articulava-se a um horizonte aberto do porvir e à fé no avanço constante em direção ao aperfeiçoamento social, crença esta que vigorou até meados do século passado. O colapso da ideia de progresso foi parte das transformações que deslocaram a relação dominante entre presente, passado e futuro em direção a uma dinâmica em que o presente tende a substituir o porvir, conformando, nos termos de Helga Nowotny, um ‘presente prolongado’ (1992:49). No plano das trocas mercantis, “o futuro é um crédito ao qual se recorre incorporando-o a um presente prolongado e esperando que o presente será suficiente para reembolsar a soma necessária dos interesses exigidos – e a mais valia. Dispõe-se do futuro como se ele estivesse presente e assim se engendra um presente prolongado” (idem: 51, trad. A.). A dinâmica gerada pela economia-mundo capitalista passou a ser cada vez mais presentista, efetivando-se numa experiência do tempo assentada, por um lado, em fluxos de aceleração, de novidade (como também de obsolescência) e mobilidade e, por outro, na estagnação social de amplas populações, cujo projeto (se assim pode-se dizer) é o da sobrevivência. A celeridade já não evoca um futuro radioso, ao mesmo tempo em que se testemunha a debilitação de projetos a longo prazo, típica da racionalidade competitiva neoliberal: “o futuro das crianças não é mais interpretado em geral de modo individual – como um desejo de promoções e de bem-estar social – mas como uma questão de sobrevida coletiva” (Nowotny, 1992:51, trad. A.). As velocidades relativas da

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inovação, repetição e destruição são fortemente moduladas, no presente prolongado, por ciclos de vida de tecnologias ativadas por um capital-risco criado e destruído a fim de que a acumulação e a circulação continuem. Nessa modulação, a simulação de eventos e processos (em bases estatísticas) sobrepõe-se cada vez mais ao imprevisto, num empenho em previsões e prognósticos que concorrem material e simbolicamente para um encolhimento do que está por vir. Dois outros fatores intervêm agudamente nesta hipertrofia do presente: o primeiro, refere-se à conformação da era do trabalho precarizado e do desemprego estrutural, que acompanhou a reorganização produtiva denominada como acumulação flexível, em curso desde os anos 1970. De um lado, contratos de trabalho pautados em tarefas e curto prazo, sem garantias de continuidade, colocando os contratados numa eterna corda-bamba; de outro, o desempregado, para quem o futuro torna-se aprisionado, aniquilando seus projetos (e a estes podem se juntar, atualmente, o número crescente de milhões de imigrantes). O segundo fator, intimamente ligado ao primeiro, é o do endividamento: o poder da dívida atinge tanto os que estão em atividade quanto os desempregados, as famílias, empresas e o Estado, e apresenta-se como “se não fosse exercido nem pela repressão nem pela ideologia. ‘Livre’, o devedor não tem, no entanto, outra escolha a não ser inscrever suas ações, suas escolhas no caminho definido pelo reembolso da dívida que contraiu (...). As modalidades de gestão da dívida comprometem as gerações por vir. E conduzindo os governos a prometer e honrar suas dívidas, o capitalismo se apodera do futuro” (Lazzarato, 2012). No campo da arquitetura e do urbanismo, a experiência presentista conformase bem naquilo que Rem Koolhaas denominou como cidade genérica e espaço-lixo, nas formas de produção do espaço em que o tempo vai sendo afastado em prol de “renovação local ou precariedade habitacional ultrarrápida”, afirma François Hartog (2014:15). Como não comentar, nestes termos, sobre uma pérola dessa arquitetura presentista, entre nós: o recém inaugurado Museu do Amanhã, no Pier Mauá (RJ), a começar pelo seu nome... Outro poderoso instrumento presentista, continua Hartog, é o turismo, efetuando a ideia do mundo todo ao alcance da mão (idem,148). Nessa ordem temporal

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observa-se uma mudança no regime de memória, pois “ ‘a memória não é mais o que se deve reter do passado para preparar o futuro que se quer: ela é o que faz com que o presente seja presente para si mesmo’.” (Pierre Nora apud Hartog, 2014:163). Ela tem sido manipulada como um instrumento presentista, sem capacidade performativa. O tempo midiático, assim como o tempo do mercado e da economia são elementos dessa ordem temporal e realimentam sempre as mesmas premissas, a despeito do devir constante. A radicalização da forma-mercadoria nos vários domínios socioeconômicos do último meio século, que está na raiz dessa matriz temporal, implicou transformações significativas na produção do espaço e na generalização do urbano, atingindo diretamente a produção da arquitetura e do espaço público produzidos neste país. Isso provocou uma troca de sinal da arquitetura: no presente, ela traz, como condição histórica de sua concepção e imaginação crítica, a profunda fragilização daquele campo de negatividade e de possibilidades de experiência social associado ao tempo das promessas emancipatórias, que alimentou tantos projetos. Do ponto de vista sistêmico, uma questão que se pode extrair é: como nossa arquitetura tem enfrentado essa condição em que, socialmente, algo de realmente significativo se desfez? Nessa condição, a noção de espaço público tem sido atacada em seu núcleo, uma vez que a ideia de democratização de práticas coletivas tem sido substituída pela ideia do risco associado a essas práticas, muitas vezes acompanhadas de duras repressões: “Estamos vivendo numa sociedade securitária de risco”, argumenta Paulo Arantes, “cujo governo é a somatória de um sem-número de estratégias preventivas, nos moldes do Direito Penal do Inimigo, pelo menos como ponto de fuga ‘normativo’. A mesma lógica parece reger algo como uma situação de perene emergência econômica (...)” (2014:318). Comparativamente, quando a FAUUSP foi inaugurada, em 1969, em pleno regime militar, seu projeto trazia em cada metro quadrado a afirmação de uma tese socializante, como resistência política. Quase meio século depois, como detalha Giorgio Agamben em ‘Estado de Exceção’, a suspensão das regras tornou-se técnica usual de governo. Os tempos atuais de urgência – agora normatizados em vários níveis – provocaram um deslocamento valorativo no quadro da arquitetura: nesse país, cada

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metro quadrado agora construído (salvo raríssimas exceções) reduz-se às exigências da mais crua rentabilidade econômica, levando a funcionalização da arquitetura a patamares críticos inéditos. Esses patamares têm colaborado para desconstruir a cidade em vários sentidos, sobretudo quanto ao valor de seus espaços coletivos comuns. O Programa MCMV, em sua escala nacional, sem dúvida é um exemplo consensual dessa sistêmica desconstrução citadina e de espaços coletivos, mobilizando um montante de recursos de enorme envergadura. Nesse ‘novo tempo do mundo’, pode-se dizer que, entre nós, o campo do projeto de arquitetura e suas fabulações sofreu um ataque matricial, perdendo muito do seu possível estofo sociopolítico, em prol de um pragmatismo exasperado. Além disso, o fato dos projetos públicos terem diminuído consideravelmente, tem favorecido a hegemonia do privado, tradicionalmente pouco afeito à valorização do social em nossa cultura, o que tem criado uma condição bastante delicada para a atuação de nossos arquitetos e urbanistas. Esse cenário contemporâneo, se, por um lado, tem acarretado entre nós este acantoamento do potencial cultural da arquitetura e de suas ficções (entendidas aqui como criações imaginárias calcadas no real) –- por outro, contraditoriamente, tem sido campo de atuação e matéria-prima de uma profícua produção de ficções artísticas, transformando sensivelmente os espaços urbanos em que se envolvem. Tomado em amplo espectro, o que se tem visto nas últimas cinco décadas no país é um florescimento qualitativo notável desse âmbito artístico, produzindo novas formas estéticas e gerando uma pluralidade tanto de produtores quanto de espectadores, de modo a reconfigurar completamente a cena urbana neste campo da cultura. Vetores de proposição e atuação artística que nos anos sessenta e setenta estavam apenas despontando, transmutaram-se num espaço de produção diversificado, amplo e rizomático. Do ponto de vista econômico, este domínio de ação também experiencia de forma danosa os efeitos da racionalidade mercantil, já que não existe ilha neste sistema. Porém é preciso lembrar que se, por um lado, os produtos da cultura foram em muito assimilados à mercadoria – como Adorno e Horkheimer apontaram desde os anos 1940,

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quando da proposição do conceito de indústria cultural – por outro, na cultura também abriga-se um potencial de ação antibarbárie constituindo-se como um solo de germinação de possibilidades. É neste solo que situo aqui as ficções estético-políticas, que se caracterizam por mobilizar simultaneamente a invenção artística e a efetuação crítica, dissensual, questionando reflexivamente as tramas da racionalidade dominante. Nessa constelação, ressalto trabalhos que se voltam para os espaços urbanos, protagonizando-os, como ocorreu em um monumento horizontal demarcando o lugar na rua onde um jovem foi morto por policiais; numa procissão noturna pelas ruas de um bairro semi-destruído pelo mercado imobiliário; na transformação de lotes vagos em espaços de uso público e coletivo; em ônibus sem catraca; em cozinhas temporárias abertas num bairro, como forma de socialização coletiva. Um dos eixos políticos que atravessa trabalhos como esses é uma insistência em se repensar o comunitário, o engajamento de coletividades, ao mesmo tempo em que formulam-se sínteses críticas e um investimento no potencial de latências coletivas, antepondo-se a injunções que desestabilizam a vida socialmente. Neles, o porvir de um outro modo de viver é ensaiado no presente, tomando corpo, mostrando-se em uma de suas facetas. Duas peças paulistanas de teatro político trabalharam de modo incisivo com as questões anteriormente colocadas. A primeira, intitulada ‘O Farol – A máquina do tempo ou o longo agora’, de autoria do coletivo teatral OPOVOEMPÉ, foi realizada em 2012. Trata-se de um experimento cênico organizado em três partes, sendo O Farol a primeira delas (OPOVOEMPÈ, 2012). Essa peça entrelaça a questão do presentismo e da aceleração do tempo, ao tema do grande capital e suas típicas estratégias imobiliárias neoliberais de produção do espaço urbano na metrópole. Nas palavras do grupo, “O Farol seria o experimento focado na cidade. A cidade determinou sua dramaturgia. [E] O espaço constitui seu primeiro eixo dramatúrgico” (2012). A encenação consiste num percurso que se desenrola a partir do interior de uma das torres do World Trade Center, numa região emblemática próxima à Ponte Estaiada, no Rio Pinheiros, ambos ícones da arquitetura do grande capital na cidade, e segue por trem até a estação final da CPTM, em Presidente Altino, onde a paisagem é tipicamente periférica. Um fone de ouvido é utilizado, não como guia mas com uma certa trilha sonora.

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Do ponto de vista propriamente teatral há experiências testadas, como: o número de espectadores admitidos a cada percurso – no máximo 2, os quais são acompanhados por uma atriz (“um facilitador da experiência, quase invisível”) alterando-se a relação usual entre artistas e público no âmbito cênico; e a ausência de representação e de texto, num modo de pesquisa e desenvolvimento de novas formas estéticas em sintonia com o teatro de tipo pós-dramático. Ao longo do percurso urbano proposto, as arquiteturas, as paisagens e os espaços são os protagonistas, observando-se como a cidade revela o seu tempo, os fortes contrastes econômicos, fronteiras sociais, assim como a ausência de espaços públicos não utilitários; caminha-se na marginal de um rio morto transformado em esgoto; vê-se ainda, de um lado, a ostentação financeira, material e estética dos edifícios, até espaços completamente técnicos e funcionais como o próprio pátio da CPTM com os vagões estacionados, em fim de linha. O espetador que essa peça trabalha é muito próximo daquele que Rancière denomina como o ‘espectador emancipado’: é o seu olhar, sua subjetividade, memória, ideário e suas montagens – e não as falas ou representações dos atores – que darão conta (ou nâo) de elaborar este percurso cênico como uma experiência artística e crítica. No registro escrito por um deles, lê-se: ”Dali a pouco, o trem me leva ao subúrbio da metrópole. A um subúrbio próximo, que outros muito mais distantes existem. Todos eles, quanto mais longínquos mais desprovidos das torres gigantescas, dos vidros espelhados, de condutores de ar condicionado, de elevadores falantes, de confortos, de avenidas grandiosas, de carros velozes. Tão mais parados. (...) Fico mais uma vez a me perguntar: o que justifica a continuidade dessa diferença na distribuição das benesses vindas do conhecimento que se acumula?” (Opovoempé, 2012)

A segunda peça intitula-se “A última palavra é a penúltima’,1 é da autoria do Teatro da Vertigem, e foi encenada numa passagem subterrânea, fechada há anos, da Rua Xavier de Toledo, em frente ao Teatro Municipal, no centro de São Paulo. Foi realizada, primeiramente, em 2008 e remontada em 2014 para a edição da Bienal de

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Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MB4jJXSqugo – acesso janeiro de 2016.

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Arte de São Paulo. Baseia-se em um escrito do filósofo Gilles Deleuze intitulado ‘O esgotado’, em que se diz: “o esgotado é muito mais que o cansado. ‘Não é um simples cansaço, não estou simplesmente cansado, apesar da subida’. O cansado não dispõe mais de qualquer possibilidade (subjetiva) – não pode, portanto, realizar a mínima possibilidade (objetiva). Mas esta permanece, porque nunca se realiza todo o possível; ele é até mesmo criado à medida que é realizado. O cansado apenas esgotou a realização, enquanto o esgotado esgota todo o possível. O cansado não pode mais realizar, mas o esgotado não pode mais possibilitar.” (Deleuze, 1992:67 –trad.). Esse experimento cênico, também pós-dramático, exime-se de textos e falas. O público, a cada sessão, foi alocado dentro das vitrines laterais ao longo do corredor da galeria, assumindo-se a ambiguidade dessa situação. Nela trabalha-se uma perspectiva crítica sobre a vida urbana contemporânea: é a cidade que ‘passa’ pelo espaço linear central, em conflitos, urgências, riscos, espera, obrigação, anseio, desencontro, solidão, vigilância, ódio, medo, estranheza, silêncio, cansaço, exaustão, esgotamento. Ambiguamente, este esgotamento reafirma as cruezas e impasses comentados inicialmente, ao mesmo tempo em que mostra que todo o possível ainda não foi esgotado, e que há algo por fazer. A ideia de que o campo da experiência estética tenha certa força indutora no campo social, de que aos poucos sejam elaboradas certas experiências que poderão modificar a sensibilidade e tenham força política num plano mais amplo, já estava presente na teoria estética de Adorno, e foi reafirmada - segundo uma outra formulação filosófica - por Rancière em sua proposição conceitual da partilha do sensível. Esta partilha implica, simultânea e contraditoriamente, o compartilhamento de algo comum e a divisão deste sensível em partes exclusivas. A ação política, nestes termos, consiste na reconfiguração dessa distribuição, implicando a mútua constituição entre o estético e o político, de modo que algo de um modifica o outro internamente. A ação política liga-se à ideia de utopia “quando a utopia serve para variar as percepções de um mundo e a fazer aparecer outro, a constituir a cena de oposição de dois mundos” (Rancière, 2001: 73-4). As ficções artísticas, em meio a muitos obstáculos,

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têm, a seu modo, constituído essas cenas, oxigenando-nos. Resta-nos a imensa tarefa social de reconfigurar tais ficções, em relação à arquitetura. ........................ Referências Agamben, Giorgio (2004). Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo, Boitempo. (orig.:2003). Arantes, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo, Boitempo, 2014. Deleuze, Gilles (1992). L’Épuisé. In: BECKETT, Samuel. Quad et autres pièces pour la télévision. Paris: Minuit. Tradução de Ovídio de Abreu e Roberto Machado, disponível em: http://www.zahar.com.br/sites/default/files/arquivos//t1303.pdf Hartog, François (2014). Regimes de Historicidade. Presentismo e experiências do Tempo. Trad. Andréa S. Menezes; Bruna Beffart; Camila R. de Moraes; Maria Cristina de A. Slva; Maria Helena Martins. Beho Horizonte, Autêntica (orig.: 2003). Laval,Christian; Dardot, Pierre. La nueva razón del mundo. Trad. Alfonso Diez. Barcelona, Editorial Gedisa, 2013 (orig. 2009). Lazzarato, Maurizio (2012). A era do homem endividado. End: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1108. Acesso: 10/01/2016. Nowotny, Helga (1992). Le temps à soi – genèse et structuration d’un sentiment du temps. Trad. Sabine Bollack; Anne Masclet. Paris, Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme (orig.: 1989). Opovoempé (2012). A Máquina do tempo (ou o longo agora). End.: http://opovoempe.org/site/wp-content/uploads/2012/08/7.Publicacao-Maquinado-Tempo-A4.pdf Rancière, Jacques (2010). « Communistes sans communisme ? », in L’Idée du communisme. Conférence de Londres, 2009, sous la direction d’Alain Badiou et Slavoj Žižek, Paris, Nouvelles Éditions Lignes. ________ (2001). Sens et usage de l’utopie. In: Michèle Riot-Sarcey. L’Utopie en Questions. La philosophie hors de soi. Saint-Denis, Presses Universitaires de Vincennes.

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