Ficções monstruosas, narrativas degeneradas: trajetória intelectual e escrita literária de Bram Stoker (1847-1912)

June 28, 2017 | Autor: Evander Ruthieri | Categoria: Nineteenth Century British History and Culture, History and literature, Bram Stoker
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Ficções monstruosas, narrativas degeneradas:
trajetória intelectual e escrita literária de Bram Stoker (1847-1912)


Evander Ruthieri da Silva
Mestrando em História/PPGHIS-UFPR,
Bolsista da CAPES.
[email protected]


Resumo: A intenção desta pesquisa propõe uma análise sobre a literatura de
horror do romancista anglo-irlandês Bram Stoker (1847-1912), com atenção
especial às suas ficções de monstruosidades, elementos indicativos de
ansiedades cultivadas ao final do século XIX e relacionadas às noções de
degenerescência e declínio imperial.

Palavras-chave: História e Literatura; Bram Stoker; monstruosidades.


Résumé: L'objectif de cette recherche propose une analyse de la littérature
d'horreur de le romancier anglo-irlandais Bram Stoker (1847-1912), avec
attention particulière à leurs fictions de monstruosités, éléments
indicatifs des anxiétés cultivés dans le fin-de-siècle, et liées à la
notion de dégénérescence et déclin impérial.

Mots-clé: Histoire et Literature; Bram Stoker; monstruosités.



Londres, fins do século XIX: a expressiva circulação de romances,
contos e novelas folhetinescas contribui para a constituição de um
imaginário social acerca da monstruosa periculosidade que se esconde nas
ruas enevoadas e labirínticas da metrópole. Romances como o folhetim The
goddess: a demon (1900), de Richard Marsh, a novela The strange case of Dr.
Jekyll and Mr. Hyde (1886), de Robert Louis Stevenson, ou as aventuras
detetivescas de Sherlock Holmes, personagem criado por Arthur Conan Doyle
(A study in scarlet, 1887), evocam tensões e ansiedades que se constituem
nesta cultura finissecular, em um misto de pavor e fascinação, por parte de
artistas, literatos e romancistas, diante dos problemas sociais que
emergiam nos centros urbanos. Os alvos preferenciais da literatura de
horror ou mistério são, em geral, personagens estrangeiros ou oriundos das
camadas sociais menos abastadas, em cujas representações vislumbram-se os
estigmas atávicos das instâncias da degenerescência, a qual supostamente se
abate sobre a sociedade europeia do fin-de-siècle produzindo desordem
física e mental, histeria e retrocesso moral, sobretudo nas chamadas
"classes perigosas".

Na medida em que o século vitoriano aproxima-se do fim, proliferam-se
metáforas apocalípticas, de crise moral e anarquia sexual, constituintes do
espectro de insegurança cultural derivado de um suposto enfraquecimento da
potencialidade nacional e da possibilidade de degeneração da "raça" anglo-
saxônica como um todo (SHOWALTER, 1993; ARATA, 1996). As sensibilidades
literárias e impressas aguçam-se em torno dos sintomas da decadência, qual
sejam, a marginalidade oculta no fenômeno das multidões urbanas, a pobreza
e a fome, o alcoolismo e a violência sexual. Textos literários e
ensaísticos, a exemplo do panfleto The bitter cry of outcast London (1883),
de W. C. Preston, ou das gravuras de Gustave Doré, publicadas em London: a
pilgrimage (1872), colaboram com a formulação de um imaginário de
marginais, monstros e criminosos, personagens que catalisam temores e
incertezas das respeitáveis camadas médias da sociedade, responsáveis por
parte expressiva da produção e do consumo de romances e folhetins. Estes
literatos oitocentistas, ansiosos e atormentados, exploram a intrincada
tessitura social, destrincham as seduções do poder, denunciam os embates na
vida pública e na esfera privada, e transformam seu tempo em uma "era do
romance da sociedade" (GAY, 2000, p.120), na qual prevalece a crença de que
a leitura e literatura garantiriam o aprimoramento moral e a coesão social.

O objetivo da pesquisa de mestrado (PPGHIS/UFPR-2014) que ora se
apresenta é analisar a trajetória intelectual e as representações de
personagens monstruosas na produção literária do romancista anglo-irlandês
Bram Stoker (1847-1912). A atenção especial recai sobre as interpenetrações
entre as narrativas ficcionais e saberes oriundos da medicina e da ciência
oitocentista, sobretudo no que se refere à noção de degenerescência,
basilar na formulação de uma rede de interlocução textual demarcada pelo
temor diante de figuras sociais interpretadas como moralmente ambíguas,
incivilizadas ou periculosas.

O ponto de partida do estudo pressupõe uma articulação entre história
e literatura, por compreender que a imensidade de detalhes existentes nos
romances oitocentistas situa-se em uma intersecção estratégica entre o
indivíduo e a cultura, reafirmando ideais, conflitos e práticas (GAY, 2010,
p.16). Além do mais, a problematização da ficção demonstra a inserção
destes intelectuais na promoção de imaginários e na partilha de
sensibilidades, pois os textos literários "definem modelos de palavra ou de
ação, mas também regimes de intensidade sensível. Traçam mapas do visível,
trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos do ser, modos
do fazer e modos do dizer" (RANCIÈRE, 2005, p.59).

Na análise proposta, o esforço está centrado na trajetória
intelectual e em parte da produção literária de Bram Stoker: os romances
Drácula (1897), The Jewel of the Seven Stars [A jóia das sete estrelas]
(1903) e The Lair of the White Worm [O covil do verme branco] (1911). Estes
romances fazem parte do que poderia chamar-se de uma fase londrina de
escrita do ficcionista anglo-irlandês, entre 1878 e 1912, período no qual
reside na metrópole inglesa e ocupa funções administrativas no Lyceum
Theatre, em Westminster. Suas narrativas literárias evidenciam tensões
sociais reafirmadas por meio de personagens monstruosas (o vampiro
aristocrata, a mulher fatal, o louco moral, o estrangeiro bárbaro),
infiltradas no coração do Império Britânico. Por meio destas, a imaginação
literária de Stoker sugere aproximações e ressignificações das teorias da
degenerescência e de suas implicações literárias, altamente sintomáticas
das interlocuções entre a ciência oitocentista, moralista e em grande
medida darwiniana, a cultura escrita e as narrativas ficcionais ao fin-de-
siècle.

Entre a literatura de horror e a ciência médica na segunda metade do
século XIX, vislumbra-se um interesse ávido por dissecar corpos, corações e
mentes de personagens, em vias de compreender suas ações e limitações,
proezas e hipocrisias, na esfera pública ou privada. Uma conjunção de
circunstâncias adensou este olhar aguçado, compartilhado por homens da
ciência e homens das letras, dentre as quais: 1) a percepção dos progressos
da individualização, que acarretam novos sofrimentos íntimos e incansáveis
tentativas de expressão, por meio de diários, correspondências, biografias,
autobiografias, entre outras formas de escrita íntima (CORBIN, 1991; GAY,
1999); 2) a valorização da intimidade e da introspecção, sobretudo pelas
classes médias, em consonância a distinções rigorosas e aproximações
periculosas entre a sociedade civil e a vida privada; 3) a proliferação de
práticas e representações (na medicina, na literatura ou na jurisprudência)
sobre o corpo e a sexualidade, os perigos hereditários e as ameaças da
miscigenação racial (GAY, 1988; FOUCAULT, 1988).

Efetivamente, Alain Corbin enfatiza que nos Oitocentos, "a ciência
médica estende suas injunções até o discurso das paixões, os devaneios das
almas e, meticulosamente, o uso dos sentidos. O conteúdo dos sonhos não lhe
é indiferente. Em tudo convém encorajar a moderação, o justo meio, conter o
excesso, abater a exaltação" (CORBIN, 1991, p.599). Os paradigmas
científicos, ansiosíssimos por perscrutar as taras hereditárias, os vícios
e as deformidades, informam e dialogam com a literatura, localizada "em um
ângulo estratégico notável para a avaliação das forças e dos níveis de
tensão existentes no seio de determinada estrutura social" (SEVCENKO, 2003,
p.28). Ainda mais entre as décadas de 1880-1900: momento histórico
caracterizado pela ampla ambivalência cultural e uma sensação de desgaste
que acentua o fin em fin-de-siècle em um clima de "instabilidade política,
adversidade pessoal, escândalo público e clamorosa crítica social" (WEBER,
1998, p.11).

Enquanto fonte, a literatura ocupa "a função de traço, que se
transforma em documento e passa a responder às questões formuladas pelo
historiador" (PESAVENTO, 2012, p.82), imbuído do escopo de problematizar os
indícios dos modos pelos quais os atores históricos – literatos e
romancistas – pensavam sua realidade social, seus contemporâneos e a si
mesmos. Destarte, a aproximação com a experiência humana no tempo pretérito
por meio da literatura é tributário ao conceito de "imaginário social",
expressivo das vias pelas quais "uma coletividade designa a sua identidade;
elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis
e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns" (BACZKO, 1991,
p.309). A referência teórica encontra-se em sintonia com a noção de
"representação", atenta à multiplicidade de sentidos relacionados às
classificações, divisões e delimitações que organizam o mundo social. E,
implica em cercar o texto literário em sua capacidade de dar significados à
realidade e pautar valores e condutas, em um olhar que "ordena o real e lhe
confere um valor" (PESAVENTO, 1999, p.14).

Não se trata, todavia, de negligenciar os aspectos estéticos ou
formais da escrita literária, mas sim privilegiá-los enquanto parte do
destrinchar da dimensão histórica relacionada à narrativa ficcional, por
meio do escrutínio das vias pelas quais ela representa ou constrói suas
relações com o mundo social e cultural. Até porque, o aporte teórico da
noção de representação, proposta por Roger Chartier, está ligado às
"estratégias simbólicas" capazes de orientar "posições e relações e que
constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-percebido constitutivo
de sua identidade" (CHARTIER, 1991, p. 184). Nas representações sociais na
literatura de horror, vislumbra-se uma miríade de personagens vitorianos
atormentados por figuras monstruosas, sintomáticas de uma sensação de
insegurança, decadência social e declínio imperial. Com efeito, Stoker
caracteriza o cenário de The Lair of the White Worm como um lugar onde
"tudo havia sido afetado; e a tristeza era a nota predominante. A alegria
parecia ter desaparecido como um fator da vida (...). Após alguns dias, os
homens começaram a desesperar-se; suas próprias palavras, bem como os seus
sentidos pareciam estar em ruínas." (STOKER, 1999, p. 89).

A sensação de deterioração, a força das ansiedades modernas advindas
da agitação das metrópoles, bem como o temor da monstruosidade e da
degenerescência são elementos que permeiam a sociedade europeia no final do
longo século XIX e recebem visibilidade nas sanguinolentas páginas dos
romances de horror. Estes romances evidenciam uma ressignificação sensível
da ideia de degenerescência e devidamente apropriada para articular
hostilidades sociais e tensões culturais. A circulação de textos e imagens
sobre a degenerescência deveu-se, outrossim, à popularização de saberes
científicos na cultura escrita finissecular, mas a sistematização do
conceito remete à formulações da medicina alienista na metade do século
XIX.

O médico francês Bénédict Augustin Morel, em seu influente Traité des
Dégénérescences Physiques, Intellectuelles et Morales de l'Espèce Humaine
(1857) almeja propor uma classificação etiológica das doenças mentais
decorrentes da degenerescência. Para o alienista Morel, "a espécie humana
se perpetuaria a partir de um tipo primitivo ideal que conteria o conjunto
dos elementos da continuidade da raça, e qualquer desvio desse esquema
corresponderia a uma degenerescência de nossa natureza" (DARMON, 1991,
p.41). Indivíduos degenerados, marcados por taras físicas e mentais,
resultariam da influência de elementos de origem patológica (a exemplo da
tuberculose e da sífilis) ou nocividades de aspecto social (a
industrialização, a pobreza, o alcoolismo ou o tabagismo). Estes indivíduos
degenerados seriam capazes de entregar-se "instintivamente ao mal, e seus
atos, prejudiciais e perversos, são, indevidamente em muitas
circunstâncias, designados sob o nome de monomanias" (MOREL, 1857, p.391).
Ao final do século, as contribuições de Morel às tipificações de indivíduos
degenerados influenciam a antropologia criminal de Césare Lombroso, os
ensaios sobre a degenerescência do jornalista austríaco Max Nordau e, por
via destes, a literatura de Bram Stoker e seus atormentados personagens
vitorianos.

A atenção às causas externas da degenerescência reverbera na
literatura de Stoker, pois o peso do ambiente social decadente atinge
intimamente a delicada personagem Lilla Watford, em The Lair of the White
Worm, por meio de "uma condição catatônica, com marcas negras em torno de
seus olhos, pálida até mesmo em seus lábios, e um instintivo tremor do qual
ela não conseguia reprimir" (STOKER, 1999, p.231). Jonathan Harker, o
angustiado protagonista do romance vampiresco Drácula, é igualmente
descrito como um homem afetado pelas experiências traumáticas derivadas do
contágio com a monstruosidade representada pelo antagonista, o vampiro
estrangeiro, portador da degenerescência e da infecção pelo sangue. "Ele
estava macilento, lívido e de aparência doentia", descreve sua noiva, Mina
Murray, em correspondência à amiga e confidente Lucy Westenra, "toda a
força de vontade parecia ter desaparecido de seus olhos ternos, e a
dignidade silenciosa da qual lhe relatei havia sumido de sua face" (STOKER,
1994, p.127).

O vampiro Drácula, um aristocrata decrépito que dos confins do leste
europeu infiltra-se nas ruas sombrias de Londres em vias de saciar sua sede
pelo sangue de mulheres, também é representado como um indivíduo
verdadeiramente degenerado: "o Conde é um criminoso e do tipo criminoso",
afirma Mina. E conclui, ao enfatizar que "Nordau e Lombroso o
classificariam desta forma, pois se trata de um criminoso cuja mente é de
formação imperfeita. (...) Seu intelecto é limitado e suas ações baseadas
em egoísmo (...)" (STOKER, 1994: 406-407).

A referência a Césare Lombroso, principal exponente da criminologia de
vertente italiana, evidencia a ressignificação, por parte de Bram Stoker e
de seus personagens, da ideia de "tipo criminoso" ou de "criminoso nato",
em voga nas proposições médico-científicas do final do século. Lombroso, em
seu L'Uomo Delinquente (1876), defende que o indivíduo criminoso é marcado
por sinais atávicos, estigmas de suas propensões sanguinárias, evidências
do declínio físico e moral que caracterizariam a criminalidade moderna. O
cientista convence-se de haver cercado "a chave para o problema que
começava a atormentar outros membros da profissão médica: o medo da
degeneração, a possibilidade de que a população da Europa não fosse mais
capaz de suportar as exigências da vida civilizada" (HERMAN, 1999: 120). De
Morel, Lombroso conservou a ênfase na hereditariedade e na dimensão
biológica que condicionaria o "tipo criminoso", proposição exposta às
críticas que, no final do século, trazem à baila os elementos sociais que
levariam à delinquência.
De toda forma, a degenerescência enquanto chave interpretativa de
Lombroso influenciou o trabalho de Max Nordau, Degeneration (1892). Para
Nordau, o fin-de-siècle soava com um tom pessimista, caracterizado pela
força da degenerescência nas artes e na literatura, por meio de sintomas do
declínio racial, histeria e retrocesso moral. Desta forma, Nordau denuncia
as formas de "arte degenerada", desprovidas de senso moral, repletas de
abstrações e altamente sugestivas do caráter degenerado de seus autores e
de seus possíveis leitores, pois defende que "livros e obras de arte
exercem uma poderosa influência sobre as massas. É a partir destas
produções que uma época deriva seus ideais de beleza e moralidade" (NORDAU,
1895: viii).

Muito possivelmente, Bram Stoker toma contato com esta tendência
científica por intermédio da publicação inglesa de Degeneration, obra de
ampla popularidade e numerosas edições[1]. Na literatura de Stoker, a
problemática da degenerescência entrelaça-se a elementos do imaginário e
inúmeros referenciais culturais: o vampiro, a exemplo, é um personagem
oriundo do imaginário do leste europeu medieval, mas ao ser apropriado pela
cultura finissecular, torna-se depositário de tensões e ansiedades
relacionadas à transmissão de doenças por meio do sangue, às sexualidades
desregradas e à periculosidade representada pelo elemento estrangeiro.
Estas narrativas de degenerescência estendem-se às figurações das mulheres
fatais na produção literária de Bram Stoker, a exemplo da "natureza fria",
de Lady Arabella March, a antagonista de The Lair of the White Worm, o que
"a tornava imune a qualquer coisa referente à dor ou aos problemas alheios"
(STOKER, 1999, p.89). Em Drácula, além das noivas vampirescas do conde
decrépito, a jovem Lucy Westenra é transformada em uma criatura lasciva e
periculosa, que passa a raptar crianças e alimentar-se de seu sangue,
distorcendo a imagem sacralizada da mulher doméstica e angelical, cultivada
entre os grupos conservadores do século vitoriano.
Lucy degenera em uma mulher fatal e monstruosa, uma devoradora de
homens, cujo olhar passa a refletir o "pecado e a sordidez", "com uma luz
demoníaca e um sorriso voluptuoso [que] lhe assomava os lábios" (STOKER,
1994: 253), tal qual descreve o ansioso médico John Seward. Em parte, esta
constelação de imagens e textos misóginos é decorrente de uma conjuntura
histórica marcada pela reação de setores da sociedade europeia diante da
constituição de movimentos favoráveis aos direitos civis das mulheres, à
sua emancipação sexual, autonomia profissional e o acesso ao voto, os quais
eram ligados às intrínsecas exigências de mudanças decorrentes da
modernidade (PERROT, 1991, p. 499).

Estas ansiedades em relação à emancipação feminina ficam evidentes em
The Jewel of the Seven Stars, na qual a protagonista, Margaret Trelawny,
possui uma semelhança assustadora com a múmia da imortal rainha egípcia,
Tera. Sua personalidade angelical transforma-se, de modo a apavorar o
protagonista, seu noivo Malcolm Ross: "Margaret estava mudando! Por vezes,
durante os últimos dias, eu dificilmente reconhecia-a como a garota que
conheci no piquenique, e com quem dividi vigílias durante a enfermidade de
seu pai. (...) Agora ela estava em geral distraída, e por vezes em um tipo
de condição negativa, como se sua mente não estivesse presente!" (STOKER,
1903, p.257). A "face distorcida pela malícia" e a "aparência carnal"
(STOKER, 1994: 254; 256) de Lucy Westenra são indicativos destas
representações, no cerne da cultura literária oitocentista, da mulher
fatal, um símbolo da decadência moral e da degenerescência social.

Os homens, nos romance de Stoker, também são atingidos e atormentados,
levados à loucura e às monomanias, a exemplo de Renfield, o paciente louco
em Drácula. O zoófago Renfield, atordoado pela presença de Drácula e por
sua perigosa influência, é obcecado pela possibilidade de devorar a vida de
outros animais, a exemplo de moscas e aranhas. Segundo o médico Seward,
personagem responsável pelo cuidado dos corpos e mentes do núcleo vitoriano
em Drácula, Renfield é atingido por um "temperamento sanguíneo" que se
caracteriza por "grande força física; excitação mórbida; períodos de
depressão que terminam com a fixidez de uma ideia que ainda não consegui
determinar" (STOKER, 1994, p. 78). A atenção às expressões faciais de
Renfield, que revelam à Seward "uma advertência de perigo, pois espelhou
súbita ferocidade e disfarce, o que significava desejo de matar" (STOKER,
1994, p.89), ainda evidenciam resquícios das leituras fisionômicas,
derivadas dos escritos de Johann Kaspar Lavater, cujos Essays de
physiognomie (1781-1787) figuram no catálogo da biblioteca particular do
literato anglo-irlandês (CATALOGUE..., 1913, p.16). Estas referências
culturais, ressignificados na literatura de Stoker para demarcar a loucura
e a crueldade de homens periculosos e degenerados, estendem-se a Edgar
Caswall, o aristocrata monomaníaco em The Lair of the White Worm.

O herdeiro Edgar Caswall é representado como um personagem cruel e
sádico, um indício das instâncias da degenerescência creditadas na
literatura aos aristocratas oriundos de antiquíssimas famílias, adversos ao
exercício de qualquer profissão liberal e "intimamente relacionados ao
crescimento de uma classe ociosa que era sócio-economicamente
irresponsável, frustrada e disponible" (WEBER, 1988, p.26). Neste sentido,
o personagem Nicholas de Salis adverte acerca das "características
predominantes desta raça, as quais foram mantidas e são imutáveis; todos
eles são idênticos: frios, egoístas e possessivos, imprudentes quanto às
consequências advindas de seus próprios caprichos" (STOKER, 1999, p.16-17).
A degenerescência aristocrática em The Lair of the White Worm está pautada
nas noções de hereditariedade, mediante as quais características atávicas
seriam transmitidas entre as gerações da família Caswall, o que leva Edgar
ao "declínio intelectual" marcado por um comportamento "egocêntrico,
desdenhoso e egoísta" (STOKER, 1999, p.93; p.126). Mas também às condições
sociais, pois é a posição abastada de Caswall que o leva ao desgaste moral.
Caswall torna-se um monomaníaco socialmente isolado, uma representação
literária do aristocrata que se alinha a um conjunto de textos e imagens
empenhados em denunciar a suposta imoralidade da aristocracia na segunda
metade do século XIX.

Se, por um lado, "Caswall parecia de fato um selvagem – mas um
selvagem aculturado" (STOKER, 1999, p.29), o mesmo não poderia ser dito
acerca de seu lacaio negro, Oolanga, descrito em The Lair of the White Worm
como incivilizado e periculoso, um representante das ameaças provenientes
das regiões coloniais ou das zonas limítrofes dos interesses imperiais.
Desta forma, as teorias raciais, caras a algumas vertentes da
intelectualidade oitocentista, sobretudo a partir das teses eugenistas ao
fin-de-siècle, tornam-se um dos fios condutores da literatura de Bram
Stoker. Estes personagens representam um medo da "colonização reversa",
como denomina Stephen D. Arata (1995), um temor das reações e resistências
coloniais, cristalizados em torno de personagens estrangeiros que se
infiltram no coração do Império, de modo a ameaçar a soberania inglesa,
espalhar doenças e acelerar os processos de degenerescência.

Em The Lair of the White Worm uma série de estereótipos pautados na
hierarquia racial partilhada por influentes setores da intelectualidade
oitocentista recai sobre o degenerado negro Oolanga: "em estado puro e
intocado, um bruto selvagem, portando em si todas as terríveis
possibilidades de uma cria demoníaca da floresta e do pântano - a mais
baixa e repugnante de todas as coisas criadas em alguma forma aparentemente
humana" (STOKER, 1999, p.30). Oriundo da África ocidental e envolto em
inúmeras superstições, o lacaio de Edgar Caswall é ainda descrito como um
"monstro pertencente a um primitivo e rudimentar estado de barbarismo"
(STOKER, 1999, p. 60), definição altamente alusiva às teorias oitocentistas
acerca dos estágios da evolução humana – selvageria, barbárie e
civilização. O desconforto em relação aos estrangeiros está evidente em
outros romances de Stoker: em The Jewel of the Seven Stars, os personagens
são atordoados pela sombra imortal da mumificada rainha egípcia Tera, e em
Drácula, o vampiro estrangeiro é protegido por um séquito de ciganos
romenos, representados como supersticiosos, combativos e incivilizados. A
honra, valorizada entre os vitorianos, contrasta com a violência
desenfreada dos ciganos, que atacam "de modo desigual, e aos empurrões,
ansiosos" (STOKER, 1994, p.446).

As representações literárias de personagens monstruosos ou criminosos,
bárbaros estrangeiros e mulheres periculosas, fornecem o fio condutor desta
pesquisa. A literatura de Stoker evidencia uma série de ansiedades que
permeavam a sociedade europeia finissecular, tensões sociais e temores
relacionados à ideia de degenerescência. Ao escrever seus romances, Stoker
apropria-se de diversos contextos de referência e elementos do imaginário,
molda-os a partir de suas concepções de mundo e incrementa o texto
ficcional com formas de organizar e ofertar significados ao real. Afinal,
literatos e romancistas são "espectadores privilegiados do social"
(PESAVENTO, 1999: 10), amplamente engajados com questões sociais e debates
culturais de sua vivência histórica. Intelectuais sensíveis às certezas e
incertezas de seu tempo, constituem narrativas que investem nos movimentos
da sociedade em que circulam, ofertam coerência e legitimidade, pautam
condutas e inspiram ações. Ainda há muito que pesquisar, mas, ao seguir os
fios e os rastros da ficção, vislumbram-se fragmentos de sensibilidades,
representações e imaginários inscritos na literatura deste imaginoso e
ansioso Bram Stoker.



Referências

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STOKER, Bram. The Lair of the White Worm. Londres: Pulp publications, 1999.

-----------------------
[1] Convém frisar que a obra, publicada em 1895 na Inglaterra, teve uma
tiragem de sete edições ainda no mesmo ano, evidencia da popularidade da
obra de Nordau entre os leitores britânicos. Cf. ARATA, Stephen. Fictions
of loss in the Victorian Fin-de-Siècle: Identity and Empire. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996.
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