Fiction: rua da felicidade

May 27, 2017 | Autor: Ian Watts | Categoria: Creative Writing, Macau, Macau studies
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Macau Pages January 1998 Ian Watts rua da felicidade

(para a sarita e a joana) É a véspera de terça-feira e a rua está completamente deserta. Caminho por uma névoa oscilante de vermelho e verde num beco pequeno situado perto da porta nesta cidade no delta do Rio de Pérolas. Este beco é o além dito, “Rua da Felicidade.” Que felicidade oferece? -- eu lhe pergunto. Algumas latas deixadas tombam na chuva furiosa que aparece e desaparece e ressonam contra a calçada dura. Há música no fundo e risos... os sons de prazer. Cada noite é o mesmo, todas as faces são iguais. Todas desejam o mesmo de mim. Ali, no fim do beco, uma figura solitária avança. Tinha quarenta e tal anos, boca delgada, bochechas amarelas e olhos vagabundos, ele parece como uma boa espécie. Com uma expectativa divertida, examino este homem e digo subconscientemente: “Tu, bebê. Sim tu... Vim. Vim. Mostra-me o que tu desejarias.” Os meus lábios atraem-mo com ficções. A cara polvilhada e branqueada -- a cor duma vela de cera virgem de abelha -- e uma boca vermelha como o sangue seduzem-mo. Ponho o braço esbelto e sólido dele ao redor da minha cintura. Inclino a cabeça no ombro dele e murmuro: “Gostas de mim?” Os cabelos dele cheiram mal da graxa dum porco sujo; um odor profundamente horrível. Um açougueiro. Tento sorrir. Ele segue-me no quarto. A lâmpada vermelha e nua balança sem vergonha no teto de estuque. As sombras dançam. “Não agora... espera,” sussurro. No nosso abraço rápido, ele tratava de esconder o desejo nos olhos. Fixam-se nos dentes entrosados cruzando os meus seios quando deixo a cheong-sam cetim.i Ele move os dedos ligados e eles cruzam o meu corpo -- dos meus ombros às minhas ancas. Eu sinto uma pulsa no útero. Pois, eu sinto a morte, devo ser morte. Olho às gotas da chuva que pingam no tanque de água para salvação e para esquecer este momento. A língua quente e apertada dele passa nos seios. Vou vomitar. Eu quase gosto deste bastardo, quase, mas não posso, não. Hipnotiza-me, ventoinha no teto a girar. Gira languidamente. Gosto de esquecer tudo desta vida. Gosto... que si m, ah que sim. . . Animal! Ele mastiga a pele! Deito os saltos e apunhalo o porco nas órbitas e no nariz. O filho-da-puta ri e grita chocando com a parede num baque e tropeça divertido no beco. Os meus dedos tocam o corte sangrento, um dano profundo e doloroso. Ele não me paga. “Bastardo! Perverso detestável! Pague! Pague!” Ele não ouve os meus gritos. Preciso do dinheiro. O que vou fazer agora?

Necessito de fumar. Merda. Este cachimbo está obstruído com este resíduo impossível de piche do ópio. . O que é isso? Porque late o cão?. Basta. Basta! Ai, é exatamente como a minha sorte... Há algum outro perverso esperando e agachando-se nas sombras para mim. “Vá para longe! Permite-me fumar em paz!” Que patética sou eu. Trato de esconder o seio pulsando com a mão dada em forma de cálice. “Vá embora, para longe! O que é que você está a olhar?” Não gosto de me repetir. A cabeça dela vira no brilho vermelho. Nossos olhos encontram-se momentaneamente. Os olhos dela são negros como carvões e claros. Eu conheço esta moça. Parece familiar. Como? Um a um espreitam-nos os olhos denunciam-nos sonhos de felicidade iludida por becos servida em travessas até a eterna abraça um pátio * * * Quero que ela diga-me por que ela tropeça esfomeada e esperançosa no meu beco. Eu sei a resposta dela. Lembro a mesma fascinação quando tinha doze anos: a esperança da segurança, da fama e do dinheiro; esta casa representou o fugir do mundo dos homens e o buscar para um lugar onde as mulheres controlam tudo e são livres. Foi um erro, um engano grande. A noite quando as mulheres desta casa me receberam, lamentavam em cheong-sam brancas e longas, moldadas para cativar e revelar. Apareciam como fantasmas: pálidas dos pés às cabeças. A dona da casa me viu. Nunca esquecerei a cara dela: formosa, severa e séria e quase compassiva com esses olhos imóveis e ossos malares magros. Ela acenou com a cabeça como se dizer: “Vem aqui. Entras e eu vou fazer-te formosa.” Me tornei numa das filhas dela, e em pouco tempo, a favorita. Pelos anos aprendia a arte de como polvilhar e pintar a cara, aplicar os córregos de fluido negro nas pálpebras, pintar lentamente as curvascomo-montanhas nos lábio s uma profunda cor vermelha, e naturalmente, tudo com prazer. A minha beleza era como fantasma com pele branca e sem defeito e cabelos mais negros do que a noite que pendiam de longe nos ombros. Era tão formosa, mas nada mais. A beleza física não valia nada. Com rapidez o jogo tornou-se velho. Estava cansada com os desordeiros da rua e os indivíduos perversos das casas de jogo. Eu começava a atrair marinheiros brancos; aqueles que têm o odor de bois. Não convencia as irmãs da casa em que tão bonitos e carinhosos como estiveram alguns estrangeiros. Eu lembro algum “Pedro” que deixou um terço de pau-rosa para mim. Um dia a oração e a praga entrou na casa quando minha Mãe descobriu que eu estava grávida. Ela dava-me umas pancadas com a palma da mão aberta na cara até que ela machucou as mãos com sangue. A rua inteira me ouvia, mas todo o mundo fechou as janelas. Ela me golpeava dia e noite por nove meses. “Tu não tens valor. Não foste nada,” me trouxe à memória, “Eu pus joias nas tuas tranças... Eu te dei uma educação para ser uma mulher de classe e tu tão rápido tentas me apunha lar. Putas sempre serão putas, nada mais!”

Ela tratou de tirar a criança do meu útero, e deu-me uma sopa venenosa. Mas, após o primeiro tufão do ano e na luz da lua avermelhada eu tive a criança. Não me lembro muito do nascimento. Na minha mente tudo era azul e vermelho, e escuro no beco. A dor era intensa e imensa. E o sangue nas minhas pernas... que sangue! Mas, ouvir o seu grito era como uma canção do céu. Ela era formosa nos braços. Sim, formosa. Pensei que todas as minhas irmãs, quando vissem o brilho dela, me desculpassem. Mas, todas elas puseram-se contra mim. A sua canção ecoou entre as paredes: “Filha mestiça sua mãe tancareira seu pai desconhecido sua mãe puta te afogará na água.” Na mesma noite, Mamãe rasgou em tiras e queimou todos os meus vestidos de seda e baniu-nos. Eu e a minha filha fomos postas para fora de casa. Liguei a minha filhinha ao tórax e dormimos juntas num poço seco. A boca arredondada dela alimentava-se constantemente a minha correnteza de leite misturada com lágrimas. “Ela não vai sofrer nesta vida. Nós não vamos sofrer aqui,” gritei aos deuses. Enroscamos na profundidade das rochas. O dia seguinte, quando a freira do hábito negro me acordou, pensava no porquê da maneira estranha em como o sol iluminava a sua cara, e como as nuvens se dispersavam por cima da sua cabeça que ela fosse algum espírito salvador. Mas, não salvou ninguém. Cortou o cordão sangrento que serpenteava e estrangulava a respiração da criancinha de sono. Mulher cruel, por que nos trouxe à vida? As memórias do tempo após esse momento são nebulosas... Dias, semanas e anos nadam languidamente num redemoinho vertiginoso. Este encanto, piorado com o apoio duvidoso do pó branco, me capturou por dez anos. * * * Um a um estendem-se-nos em ruas oferecem-nos fitas e ficções tecidas por pei-pa-t’chai amores e mortes que a História cola em mil vidas “A freira me disse que você é a minha mãe,” o fantasma da moça diz com lábios partidos. Por qualquer razão, não quero crer em nada disso... dela. Isto é uma mentira enjoada. Mas, a língua seca-se e os olhos descem nas órbitas. Eu estendo a mão através da fumaça vermelha para tocá-la. Tomo as mãos dela nas minhas. A fumaça parte.

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Cheong-sam (pl. cheong-sam) ou qipao é um vestido chinês tradicional. A palavra macaísta para cheong-sem é cabaia.

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