Fidelidade em três tempos: relações de escuta, tecnologia e mercado

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Universidade de São Paulo Escola de Comunicação e Artes Programa de Pós-Graduação em Música Disciplina: Música e Cultura das Mídias Prof.: Heloísa de Araújo Duarte Valente

Fidelidade em três tempos: relações de escuta, tecnologia e mercado

José Guilherme Allen Lima

São Paulo 2011

Sumário 1. Introdução 2. Mito e deslocamento 3. Primeiro tempo – a Era Mecânica e a fidelidade mágica 4. Segundo tempo – a Era Eletromagnética e a fidelidade científica 5. Terceiro tempo – a Era Digital e a fidelidade múltipla 6. Conclusões 1. Introdução Este texto propõe uma análise e discussão sobre a questão da fidelidade dos meios de produção e reprodução de música, ligada ao desenvolvimento da indústria fonográfica a partir de seu surgimento em fins do século XIX até os dias de hoje. Para tal, estabeci como referencial a noção, apresentada por Chion (1997, p.81-91) em seu texto “Os três mitos tecnicistas”, de que o conceito de alta-fidelidade não está ligado a valores musicais intrínsecos, ou mesmo ao processo de percepção e escuta per se, mas representa uma ferramenta da indústria fonográfica e de indústrias correlatas, como a de eletrodomésticos ou de equipamentos musicais, utilizada para a manutenção de seus mercados. Para fins de análise e discussão proponho a divisão da história da fonografia em três tempos, ou eras: A era Mecânica, que se estende desde o surgimento do fonógrafo de Edison em 1877, até o início da transição para a era Eletromagnética, situada entre a década de 1920 e o pós-guerra, no final da década de 1940; A era Eletromagnética, que vai do pós-guerra até os anos 1980; e a era Digital, que tem seu início durante os anos 1980 com a introdução dos primeiros suportes e equipamentos de reprodução de áudio digital. A este respeito, é importante notar que essa divisão temporal não subentende a exclusão dos aparatos de uma “Era” na seguinte. Ao contrário, como se observa ao longo do texto, o desenvolvimento do mercado fonográfico e das tecnologias do entretenimento sempre manteve, na medida do possível, a compatibilidade reversa1 entre seus aparelhos 1 Por compatibilidade reversa entende-se o processo pelo qual novos produtos ou aparelhos – neste caso específico, reprodutores de conteúdo – podem interagir com formatos desenvolvidos para modelos anteriores. Um exemplo prático deste processo é o fato de ser possível, em um toca-discos projetado para reproduzir discos de vinil de 33 ou 45 rpm, ouvir discos 78 rpm mais antigos (Chanan, 1995, p.56). Mais informações disponíveis em , acesso em 01 de agosto de 2011.

e formatos de fixação, o que gerou um acúmulo de tecnologias ao longo do tempo2. A partir desta divisão, analiso como em cada uma destas épocas o conceito de altafidelidade se modifica de acordo com o direcionamento comercial adotado pela indústria e com a resposta de mercado dos ouvintes e consumidores.

2. Mito e deslocamento Chion (1997) define o mito da alta-fidelidade como “um conceito comercial que, acusticamente, nada quer dizer de concreto”. Essa definição parte da observação de uma estratégia comercial associada às diversas gerações de sistemas reprodutores de música e audiovisual que foram introduzidas para o grande público, notadamente após a Segunda Guerra Mundial. Em si, o conceito de alta-fidelidade pressupõe que o material sonoro reproduzido por meio de determinada tecnologia é uma representação adequada do evento sonoro ou da música “originais” (Iazzetta, 2009, p.114), como teriam sido presenciados pelos ouvintes. A necessidade deste mito e seu surgimento podem ser associados em parte à busca de uma forma de compensação para aquilo que Emmerson (1994, p.95) chama de deslocamentos “acusmáticos” 3 para descrever, de um modo geral, a quebra nas relações de causalidade entre som e fonte sonora decorrentes do uso de diversas tecnologias. Este processo também é analisado em Schafer (1992), que o define através do termo “esquizofonia”4, e em Chion (1997, pp.13-22), que identifica seis “efeitos técnicos de base” para delinear o desenvolvimento das tecnologias musicais a partir das últimas décadas do século XIX, os quais relaciono aqui com os três tipos de deslocamento acusmático: Deslocamento I – Temporal: O deslocamento entre som e fonte sonora em seu aspecto temporal consiste na possibilidade de se reproduzir um determinado som em momento posterior ao da sua produção, e se dá através de dois efeitos técnicos de base: a Captação e a Fonofixação. O primeiro consiste na transformação de vibrações sonoras em propagação pelo ar em outra forma de energia, normalmente mecânica ou elétrica, de modo análogo5 através do uso de captadores ou microfones. Já o processo de 2 Apesar da compatibilidade reversa, nem todas as tecnologias desenvolvidas tendo em vista o entretenimento e a comunicação permanecem ativas no mercado. Um panorama interessante deste processo de acúmulo é proposto pelo Dead Media Project, cujo objetivo é catalogar tecnologias em processo de obsolescência. Disponível em: , acesso em 01 de agosto de 2011. Na data do acesso, o site oficial do projeto encontra-se em manutenção. 3 Schaeffer (1966, p.91) propõe a apropriação do adjetivo e seu uso no contexto da música ouvida através de alto-falantes, partindo da definição de “Acusmático” do dicionário Larousse: “diz-se de um ruído ouvido sem que se vejam as causas de onde provem” (Trad. do autor). 4 Combinando os termos no grego para som – phono, e separado – schizo (Schafer, 1992, p.171) 5 De modo que a direção da propagação, e sua pressão sonora são traduzidos através da profundidade e largura de sulcos em uma superfície, ou pela polaridade e amplitude de um sinal elétrico.

fonofixação consiste na fixação da resultante do processo de captação em algum tipo de suporte físico, ou através de sua representação digital. Deslocamento II – Espacial: Em relação ao espaço o deslocamento acusmático se dá de duas maneiras diferentes. Através da Telefonia o som, uma vez convertido em sinal elétrico, pode ser transportado a distâncias muito maiores do que sua propagação pelo ar permitiria, sendo possível ouvir um som simultaneamente à sua produção, sem que seja necessário estar fisicamente presente no espaço onde ele está sendo produzido. Já por meio da Amplificação, modifica-se a intensidade sonora por meios elétricos e eletrônicos, alterando assim o alcance da sua propagação no espaço que o circunda, e suas características de dissipação. Deslocamento III – Causalidade mecânica: Apesar dos efeitos técnicos relacionados com a quebra da causalidade mecânica entre som e fonte sonora serem historicamente mais recentes, possivelmente é este o deslocamento acusmático que cria uma ruptura mais radical no processo de como um determinado evento sonoro é percebido6. Seja por meio da Remodelagem sonora, em que as características de um determinado som são manipuladas dentro de um sistema gerando resultados que podem ter pouco ou nada a dizer sobre seu conteúdo original, ou da Geração elétrica ou eletrônica de som, a impossibilidade de detectar as correlações entre gesto e resultado sonoro provocam no ouvinte a necessidade de criar suas próprias soluções para este mistério. Além dos deslocamentos acusmáticos, outro sustentáculo do mito da alta-fidelidade tem sido as demandas pela manutenção de um mercado de bens de consumo. Desde o início da fonografia, tanto o suporte físico do conteúdo sonoro e musical, quanto o aparato tecnológico utilizado para sua reprodução são inseridos nas sociedades como produtos de uma cadeia comercial (Iazzetta, 2009, p.89). A afirmação é extensível para todos os outros equipamentos envolvidos na produção de um fonograma que também são, essencialmente, produtos que podem ser comprados e substituídos visando estar em dia com as demandas da alta-fidelidade. Se observados como parte de um grande conjunto os mercados de venda de fonogramas, de apresentações ao vivo e de equipamentos voltados para “ouvintes”, “amadores” e “profissionais” da música, é fácil perceber que o mito da alta-fidelidade possui tanto um suporte sensorial e psicológico quanto um suporte financeiro adequados para sua constante recriação. 6 Observo aqui que hoje em dia as pessoas já estão acostumadas a ouvir outras falando através do telefone, cantando em discos e aparecendo na televisão. No entanto, especificamente no que diz respeito à técnica instrumental e à produção de sons vocais, a presença do computador ainda causa estranhamento (Iazzetta, 2009, pp. 203-205).

3. Primeiro tempo – a Era Mecânica e a fidelidade mágica No final do século XIX o fonógrafo de Edison surge como consequência das diversas pesquisas de sua época sobre meios de transmissão e fixação sonora, cujo principal objetivo era o desenvolvimento tecnológico das telecomunicações. Deve-se levar em conta que as inovações tecnológicas neste campo durante o século XIX estavam ocorrendo simultaneamente ao redor do mundo, com uma considerável prevalência dos países industrializados – em especial a França, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos – e se observa a superposição e a influência mútua entre novas patentes e protótipos. Ao longo desta época diversos aparatos que surgiram como consequências indiretas de pesquisas científicas foram transformados em bens de consumo. Desta maneira, ao ser introduzido o fonógrafo não se prestava mais ao registro musical do que à gravação de vozes dos membros de uma família ao modo de um álbum de fotografias (Chanan, 1995:3), porém um mercado fonográfico baseado na venda de fonogramas e aparelhos reprodutores, e na relação desta com apresentações públicas de artistas populares que poderiam ser “levados para casa” em um cilindro de cera, se mostrou imediatamente viável. A partir da introdução de um novo formato de fixação, o disco, desenvolvido por Emile Berliner em 1889, o mercado de vendas teve um crescimento considerável, devido ao fato de o disco de Berliner ser mais fácil de reproduzir e estocar em grandes quantidades, ser mais resistente às intempéries do transporte, e apresentar uma ligeira melhoria no que diz respeito à reprodução do conteúdo harmônico e dinâmico dos sons gravados (Chanan, 1995,p.27). Sendo uma solução melhor do ponto de vista industrial, esse foi o formato escolhido quando da eletrificação do processo de reprodução, a partir dos anos 1930, com o surgimento dos primeiros aparelhos capazes de transformar os sulcos do disco em sinais elétricos. Além das mudanças no suporte fonográfico, outro marco tecnológico do final desta era foi a transformação do rádio em um meio de comunicação voltado para as massas, um processo também atrelado à venda de aparelhos reprodutores, e à consolidação de um mercado em si mesmo. Se o fonógrafo propunha um primeiro deslocamento acusmático, temporal, o rádio permitia não só um, mas até dois simultaneamente, oferecendo a todos os ouvintes sintonizados apresentações “ao vivo e ao longe” de artistas populares e orquestras, e também a reprodução de seus fonogramas. No que diz respeito à fidelidade, a era Mecânica é marcada pela ausência de um

precedente tecnológico que servisse como referencial de comparação 7, tanto que uma das estratégias de divulgação das gravações e aparelhos na época consistia em colocar lado a lado um músico ou cantor e sua própria gravação, em um teatro ou auditório, e apresentar ao público duas execuções diferentes da mesma obra, uma realizada pelo artista, e outra pelo aparelho reprodutor. É importante observar que tais apresentações recontextualizavam os deslocamentos acusmáticos de tempo e espaço em um ambiente próprio para concertos e apresentações teatrais, ou seja, aproximavam esta nova tecnologia daquele que seria o único referencial possível de comparação, o desempenho presencial do artista (Iazzetta, 2009, p.91). De um modo geral, o conceito de fidelidade desta época está relacionado com a questão presencial, em que a música passa a ocupar de um modo mais acessível8 o espaço doméstico, através do fonógrafo, do gramofone e do rádio. Analisando o caso na segunda década do século XXI, suponho que os ouvintes desta era estariam tão fascinados com a inovação tecnológica em si, e com a possibilidade de captar, fixar e reproduzir sons, que consideravam desnecessária a discussão a respeito dos detalhes técnicos do processo e seus impactos no resultado sonoro, atribuindo a estes um caráter quase sobrenatural9.

4. Segundo tempo – a Era Eletromagnética e a fidelidade científica A eletrificação gradual dos processos de captação, fixação e reprodução modificou aos poucos a abordagem técnica e estética em cada uma destas etapas e suas relações com os meios de comunicação e o mercado. No que diz respeito à captação, os microfones com cápsulas de carbono que já eram largamente utilizados na telefonia não se adaptaram bem à radiodifusão, sendo substituídos por modelos mais sensíveis à vibração do ar, e que reproduziam melhor os transientes da voz e de instrumentos musicais, responsáveis pela inteligibidade. Durante os anos 1920

popularizou-se um

modelo comumente chamado de microfone “de Fita”, por empregar em sua cápsula uma fita de alumínio extremamente fina que faz variar um campo magnético ao seu redor a partir dos estímulos recebidos. Tendo uma resposta de frequência mais satisfatória do que microfones baseados em outros princípios de operação disponíveis na época 10, foi 7 Em uma conferência no ano de 1937, o compositor húngaro Bela Bartók (1987, p.226-227) comenta a respeito da transição entre a captação puramente mecânica e seus problemas inerentes, e a captação elétrica a partir do uso de microfones, que representam uma melhoria considerável, mas ainda insatisfatória. Bartók usa como referencial de comparação as apresentações ao vivo de orquestras em salas de concerto. (Trad. do Autor) 8 Ao julgar como “mais acessível” faço alusão ao fato de o processo de mediação que envolve a compra de um dos aparelhos mencionados em seguida ser em geral menos custoso e mais imediato em relação ao processo de aprendizado de um instrumento musical tradicional, e a compra do mesmo. 9 A este respeito é interessante o relato em Schafer (1992, p.172-173) que relaciona a lenda do conde Drácula com a suposta chegada de um fonógrafo à Romênia em fins do século XIX. 10 Disponível em: e ,

adotado amplamente nas rádios e estúdios de gravação 11 e introduziu na percepção do grande público os efeitos da captação de som em uma proximidade até então inédita, mais próxima da fala cotidiana e espontânea (Valente, 1999, p.144). A introdução, em todos os estágios de produção e consumo, de processos relacionados com a amplificação e o controle de sinais elétricos, viabilizada através do desenvolvimento da válvula e posteriormente do transistor, está atrelada à adoção dos novos modelos de microfone, de novos suportes físicos, e ao desenvolvimento de outros equipamentos específicos para este contexto, como misturadores de sinais, diversos tipos de processadores. Nesse estágio a remodelagem sonora nos meios físicos adquire novas proporções, através da manipulação dos discos e da fita magnética, e se torna possível por meios eletrônicos. Já em relação à fixação, houve uma dissociação na indústria entre o formato “interno”, a fita magnética utilizada progressivamente em estúdios de gravação, e o formato “externo”, o disco de microssulcos destinado à duplicação e venda ao público, prensado em vinil, um polímero desenvolvido para ocupar o lugar das matérias-primas anteriores, como a cera de carnaúba e a goma-laca (Chanan, 1995, p.93). Essa ruptura cria um distanciamento entre os “profissionais” responsáveis pela produção e reprodução de fonogramas e os “amadores” entusiastas que consomem essa produção, e uma parte considerável do mito da alta-fidelidade nesta era tem relação na busca destes últimos por encurtar essa distância. A busca por superioridade militar no plano internacional, especialmente durante os dois conflitos mundiais do século XX 12, teve uma influência decisiva no desenvolvimento das tecnologias mencionadas acima, apropriadas e utilizadas posteriormente em produtos de consumo cotidiano. Em relação ao mercado fonográfico e à radiofusão em larga escala, tanto no âmbito dos equipamentos voltados para o consumidor quanto na esfera dos meios de produção musical o que se observou a partir dos anos 1950 foram sucessivas ondas de uma febre tecnológica (Iazzetta, 2009, p.105), que associava ao surgimento de novos equipamentos a ideia de progresso científico e melhoria na qualidade de vida. O impacto desta “invasão da terra” pelos eletrodomésticos se revela na consolidação de um mercado fonográfico internacional de amplo alcance entre os anos 1960 e 1990, o que colaborou para a formação de uma espécie de “ouvido coletivo” mundial. É também nesse período em que a relação entre o ouvinte e o artista – acesso em 4 de agosto de 2011. 11 A imagem dos primeiros microfones de fita foi devidamente absorvida pelo inconsciente coletivo, e até hoje é relacionada com a era do rádio e os cantores da época. 12 A Primeira (1914-1918) e Segunda (1939-1945) Guerras Mundiais.

compositor e/ou

intérprete, passa a ser

marcada pela condição sine qua non da

presença do registro: o artista só existe, se existe no disco. Pode parecer absurdo que numa era tão povoada por possibilidades de remodelagem sonora exista alguma noção de fidelidade. Ademais, observa-se que todas as tecnologias – da captação ao suporte de fixação – deste período apresentam uma forte “coloração” sonora, ou seja, modificam consideravelmente o conteúdo harmônico e dinâmico devido à características inerentes aos seus sistemas. Combinadas, as tecnologias do período deram origem a uma sonoridade rica em detalhes e constituída de planos sonoros diferentes, uma construção voluntária que se relaciona menos com a experiência de ouvir música presencialmente do que com as características de reprodução dos aparelhos para os quais se orienta essa produção. No entanto, essas características transformam-se ao longo dos anos no referencial sonoro associado à música gravada, e esse referencial, associado ao conceito não menos vago de se criar “condições ideiais” de escuta, cristaliza uma noção de fidelidade associada ao consumo de equipamentos de última geração, e geração, por meio do uso desses equipamentos, da performance “definitiva” de obras musicais13.

5. Terceiro tempo – a Era Digital e a fidelidade múltipla A transição da era Eletromagnética para a era Digital se dá entre o final dos anos 1970 e o começo da década seguinte, com a apresentação ao público dos primeiros resultados das pesquisas a respeito da digitalização de sinais de áudio. As benesses atribuidas ao áudio digital prometiam então novos níveis de “pureza” sonora e maior durabilidade dos suportes14. O modo digital de produção é baseado inicialmente em modelos herdados da era anterior, consistindo na digitalização gradual de suas etapas 15, e na comercialização de suportes físicos de conteúdo, a partir do lançamento do Compact Disc em 1982 16. O formato alcançaria grande popularidade ao longo das décadas seguintes, porém foi através da popularização do uso dos computadores pessoais e da distribuição digital de conteúdo sonoro que se criam novos paradigmas de produção, acesso e reprodução, 13 Esse fenômeno tem como exemplo o caso do pianista canadense Glenn Gould e da banda de rock inglesa The Beatles, que em determinado momento de suas carreiras abandonaram por completo as apresentações públicas, passando a dedicar-se somente à produção em estúdio. 14 Os dois formatos padrão da indústria, na época, eram o disco de vinil, e a fita cassete, ambos suscetíveis ao desgaste físico devido à fricção durante sua reprodução. 15 Na primeira década de comercialização do Compact Disc era comum informar na capa do disco quais etapas de produção – entre gravação, mixagem e masterização – tinham sido realizadas em ambiente digital, através das siglas AAD, ADD e DDD, onde a letra A significa o uso de equipamentos analógicos, e a letra D significa o uso de equipamentos digitais. 16 Disponível em: . Acesso em 4 de Agosto de 2011.

caracterizando o que chamo aqui de era Digital na música. O que se observa, principalmente ao longo dos anos 2000, é uma expansão no universo até então relativamente restrito de produção de fonogramas, consequência direta do barateamento não só dos computadores 17 mas de diversos equipamentos relacionados com o processo. De forma semelhante, a popularização do uso da Internet permitiu que se desenvolvessem estratégias alternativas de distribuição de música, o que acabou impactando de forma significativa o próprio mercado fonográfico 18. Complementando esse processo, surge uma nova geração de aparelhos reprodutores direcionados para a fruição individual de música, e cuja palavra de ordem passa a ser “portabilidade”19. Poderia se supor que o conceito de fidelidade desta era representasse uma continuidade, ou expansão, do conceito observado na era anterior. No entanto, verifica-se uma tendência em que o ouvinte opta por trocar o ideal da alta-fidelidade pela conveniência da alta-acessibilidade (Iazzetta, 2009, p.128). Uma das demonstrações práticas desse fenômeno é o fato de suportes físicos de alta-fidelidade como o SuperAudioCD e o DVD-Audio, introduzidos no mercado com o intuito de oferecer ao público novos padrões de codificação digital de música e áudio, tiveram uma resposta em vendas abaixo do esperado20, ao passo que vendas digitais de mp3 21 – um formato ao qual normalmente se associa a ideia de baixa-fidelidade, e o acesso direto a conteúdo musical através de agregadores como o site YouTube parecem crescer em concordância com a lei de Moore22. 17 Esse fenômeno de barateamento é descrito segundo a Lei de Moore, que sustenta que o número de componentes que podem ser implementados em um circuito integrado a baixo custo dobra a cada dois anos. A “lei” se baseia em um artigo de Gordon E. Moore (1965), e descreve o aumento na produção de microprocessadores, na velocidade dos mesmos, da capacidade de armazenamento de discos rígidos, entre outros aspectos da indústria de computadores. 18 Um dos acontecimentos que simbolizam esse impacto é o processo legal movido pela banda norteamericana Metallica contra a comunidade virtual de compartilhamento de música Napster no ano 2000, alegando que a comunidade colaborava com a pirataria de propriedade intelectual. Na época a banda já era um dos artistas de maior vendagem no mercado fonográfico internacional. Disponível em: e . Acesso em 4 de agosto de 2011. 19 O Walkman aparelho pioneiro nesta tendência foi introduzido em 1979 pela empresa japonesa Sony, e reproduzia fitas cassete. Tendo mudado de configuração para acomodar a reprodução de CDs, e posteriormente a reprodução de áudio e vídeo a partir de disco rígido, ainda é produzido, incluindo modelos integrados a telefones celulares. Disponível em: e . Acesso em 4 de agosto de 2011. 20 Se tomarmos como exemplo o mercado fonográfico americano, o relatório de vendas da RIAA (Record Industry Association of America) de 2010 sequer faz menção a ambos os formatos, e mostra uma queda próxima a 30% na vendagem de CDs. Disponível em: . Acesso em 4 de agosto de 2011. 21 Desde o seu lançamento em abril de 2003 até fevereiro de 2010, a iTunes Store, loja virtual da Apple, fabricante de computadores, telefones celulares e tocadores de mp3, vendeu digitalmente 10 bilhões de singles virtuais. Disponível em: . Acesso em 4 de agosto de 2011. 22 Baseado em dados disponibilizados pelo próprio site, em 2005, ano de seu lançamento, o YouTube

É possível interpretar esses dados como indicativos de uma noção fragmentada de fidelidade, em que o julgamento a respeito da alta ou baixa fidelidade de um determinado suporte ou método de reprodução varia de acordo com o referencial adotado e com a finalidade pretendida. Tomando como exemplo a digitalização de um cilindro ou de um disco de 78 rpm, espera-se na mesma medida que os ruídos inerentes a um sistema mecânico de fonofixação estejam presentes, e que o processo não incorpore ao resultado outras características sonoras, ou seja, que a “alta-fidelidade” de uma era não interfira na “baixa-fidelidade” de outra. Um fenômeno semelhante é observado atualmente na indústria de softwares voltados para a produção musical na forma de simuladores virtuais das características sonoras dos gravadores de fita, amplificadores valvulados, discos de vinil e microfones antigos23, buscando recriar no ambiente digital a sonoridade peculiar de diversas épocas simultaneamente24.

6. Conclusões Analisando brevemente a relação entre produção fonográfica, mercado e desenvolvimento tecnológico, confirma-se a afirmação de Chion (1997, p.82) de que o conceito de “alta-fidelidade” não possui significado concreto além de seu emprego comercial. De um modo geral, está associado a um ideal inatingível, seja a transposição de um evento em particular para a conveniência do ambiente doméstico, conforme observado na era Mecânica, ou a busca constante, na era Eletromagnética, pela aproximação do consumidor às condições de escuta encontradas em estúdios de gravação. Outra noção que pode ser percebida recorrentemente é a de que um sistema de captação ou de reprodução pode ser mais ou menos “fiel” de acordo com as tecnologias empregadas, subestimando sua relação com as escolhas feitas pelos ouvintes que as utilizam – sejam estes artistas, produtores musicais, técnicos de gravação ou consumidores no final da cadeia de produção, e as relações destes com o mercado e o contexto social em que estão inseridos. Atravessando os vários nichos estilísticos do chegou a contabilizar 8 milhões de acesso por dia. Cinco anos depois este número subiu para 2 bilhões de acessos diários. Disponível em: . Acesso em 4 de agosto 2011. 23 Servem de exemplo os softwares MPX Master Tape, GTR3, iZotope Vinyl e The King's Microphones, que permitem a simulação destas quatro tecnologias, respectivamente. Disponível em: , , e . Acesso em 5 de agosto de 2011. 24 Curiosamente, diversos softwares também são desenvolvidos cujo objetivo é minimizar essas características sonoras.

mercado fonográfico, o conceito de alta-fidelidade serve de suporte para convencer seu público-alvo ser possível recriar, à sua maneira, as “condições ideais” de escuta, através de uma combinação intrincada, e certamente custosa, de equipamentos e suportes. As múltiplas interpretações observadas na era Digital colaboram para indicar que qualquer conceito de fidelidade é antes de tudo subjetivo e contextual, por ser indissociável de quaisquer referenciais adotados pelo ouvinte e das condições que ajudam a determinar os seus modos de escuta. Um dos exemplos onde se verifica este caráter subjetivo é a longevidade dos discos de vinil dentro da indústria fonográfica. Tendo sido um suporte herdado da era mecânica por questões menos ligadas à sua capacidade de reprodução sonora do que à compatibilidade reversa com os novos aparelhos reprodutores, o disco sulcado foi o principal formato de vendas da indústria até a introdução do Compact Disc. No entanto, a “coloração” do formato tornou-se um referencial sonoro presente a ponto de criar um nicho de mercado que o mantém em produção trinta anos após a introdução do formato que deveria tê-lo substituído25. Já o caráter contextual do conceito de alta-fidelidade se observa ao verificar que a escolha do meio e das ferramentas feitas por ouvintes, tanto nas etapas da produção de fonogramas quanto no momento de sua reprodução, está diretamente ligada à situação e ao contexto de escuta. Isso se verifica, por exemplo, quando um técnico em um estúdio de gravação precisa dar conta das diferenças nas características de reprodução sonora de diferentes meios – difusão pelo rádio e pela TV, discos de vinil, Compact Discs, arquivos digitais comprimidos como o mp3 – e a partir destas diferenças fazer ajustes no conteúdo harmônico e dinâmico do material com que está trabalhando 26. Outro exemplo é o de artistas que disponibilizam sua obra para venda em formatos diferentes, já prevendo que o seu público pode precisar de versões mais ou menos “fiéis” de acordo com a situação em que vão ouvir sua música 27. Diante dessa multiplicidade de meios, torna-se impossível estabelecer um referencial único para o conceito de alta-fidelidade e associá-lo a um formato, a uma técnica, ou a um equipamento específicos, em detrimento dos 25 O mesmo relatório da RIAA mencionado anteriormente mostra um crescimento de 25% nas vendas de discos de vinil de 2009 para 2010. Disponível em: < http://www.hypebot.com/hypebot/2011/04/it-isntpretty-riaa-2010-music-sales-data-chart.html>. Acesso em 4 de agosto de 2011 26 A esse respeito, cabe chamar atenção para o caso peculiar da NS-10, um modelo de caixa acústica da empresa japonesa Yamaha. Comercializada como uma opção acessível para sistemas caseiros de som hi-fi, a NS-10 foi um fracasso. Ao ser transportada para o ambiente dos estúdios de gravação, devido à sua portabilidade e por ser um referencial de um sistema caseiro de reprodução sonora, o modelo se tornou um padrão de monitoração da indústria fonográfica. Disponível em: . Acesso em 2 de agosto de 2011. 27 Em seus sites de venda, a banda de rock inglesa Radiohead disponibiliza seus discos para compra nas versões em vinil, CD, e arquivos digitais com e sem compressão de dados. Disponível em: e . Acesso em 5 de agosto de 2011.

demais. Na ausência de um referencial único de comparação, a alta-fidelidade não pode ser interpretada como um conceito válido para balizar a análise de um sistema qualquer, funcionando muito mais como um “selo de qualidade” a ser empregado de acordo com o interesse e a conveniência de seus empregadores.

Bibliografia BARTÓK, B. (1987): Escritos sobre música popular. México: Siglo Veintiuno. CHANAN, M. (1995): Repeated takes: A short history of recording and its effects on music. New York: Verso CHION, M. (1997): Música : médias e tecnologia. Lisboa: Instituto Jean Piaget. DAY, T. (2000): A century of recorded music: Listening to musical history. London: Yale University Press. DIAS, M. T.(2000): Os Donos da Voz: Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo. IAZZETTA, F. H. O. (2009). Música e Mediação Tecnológica. São Paulo: Perspectiva. MC LUHAN, M.(1988): Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix. SCHAEFFER, P. (1966): Traité des objets musicaux, Paris: du Seuil. SCHAFER, R. M. (1992): O ouvido pensante. São Paulo: Edunesp. VALENTE, H. (1999): Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio. São Paulo: Annablume.

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