FIGURAÇÕES DA (DES) MEMÓRIA URBANA NA ARTE PÚBLICA: São Paulo e o caso do Projeto Arte/Cidade em 1997

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FIGURAÇÕES DA (DES) MEMÓRIA URBANA NA ARTE PÚBLICA São Paulo e o caso do Projeto Arte/Cidade em 1997

Gabriel Girnos Elias de Souza Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

O binômio “arte pública e memória” remete, em primeiro lugar, aos conhecidos monumentos históricos: marcos e esculturas no espaço público dedicados à lembrança de algum fato determinado. O próprio termo monumento não tem apenas a conotação de algo “colossal”, mas também a conotação de um memento, um marco físico no qual se possa ancorar a memória de um determinado fato. A arte pública “tradicional” foi com frequência mobilizada para fixar uma determinada memória ou uma imagem oficializada e sancionada pelos poderes vigentes. Em suas manifestações mais contundentes, porém, a arte pública contemporânea tem por vezes lidado justamente com a “amnésia”, enfatizando a memória soterrada pela transformação constante das cidades ou ignorada pela estrutura excludente da sociedade. Seja em obras permanentes ou em intervenções temporárias, ao fazer referência a discursos e acontecimentos dos “perdedores”, a arte traz à tona no espaço urbano a memória “recalcada”, a memória que é ruptura em relação a uma narrativa coletiva estabelecida. E se, ao invés de marcar um fato, uma intervenção de arte pública falasse de uma época e de um processo? E se não se tratasse de uma obra, mas de uma grande exposição de obras que se espalhasse por um conjunto de espaços esquecidos e degradados da cidade? E se essa mesma exposição não procurasse reconstituir uma memória, mas antes comentar a “entropia” urbana, o processo generalizado de apagamento da memória nas grandes cidades? Este é o caso da mega-exposição A Cidade e suas Histórias, ocorrida na São Paulo de 1997: terceira edição do Projeto Arte/Cidade, o evento se configurou num longo trajeto de ruínas industriais do centro da cidade, trabalhadas e “comentadas” por dezenas de intervenções artísticas site-specific feitas por artistas convidados. Através de depoimentos, publicações ligadas ao evento e análises de críticos e jornalistas, este artigo pretende caracterizar a abordagem dessa exposição quanto à memória urbana. O enfoque aqui proposto, por sua vez, encara a totalidade do evento como uma espécie de grande intervenção pública1 no espaço de São Paulo e no debate

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Um parêntese é necessário para clarificar uma questão: tem-se consciência de que é problemático definir uma exposição como A Cidade e suas Histórias como “arte pública”. Como se verá mais à frente, as obras que constituíram o evento não ocuparam espaços literalmente públicos. Todavia, o evento teve acesso livre e ocupou espaços que, ao menos temporariamente, foram tratados como extensão do espaço público cidade e não como espaços privados. Assim, sem querer enveredar pela discussão sobre definições de arte pública, este trabalho compreende que o caso abordado possui questões em comum com o que poderia ser uma arte pública contemporânea “propriamente dita”.

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sobre a cidade e sua memória, de maneira que as obras individuais aqui citadas foram escolhidas e abordadas apenas como facetas da exposição. O Projeto Arte/Cidade e a São Paulo dos anos noventa A década de noventa no Brasil marcou a consagração do uso da cultura — e, em especial, do patrimônio histórico — como parte de estratégias de requalificação e revalorização dos centros antigos de grandes cidades, deteriorados por décadas de expansão de investimentos para outras áreas. São Paulo foi um exemplo de aplicação dessa estratégia de reinvestimento, com várias iniciativas públicas e privadas de propaganda e revalorização dom centro da cidade, e com a transformação de vários edifícios antigos em centros culturais, museus, teatros ou mesmo shopping centers. Essa tendência, por sua vez, está ligada a uma crescente capitalização internacional da cultura como elemento estratégico de revalorização imobiliária, incentivo ao turismo e criação de uma imagem reconhecível das cidades no exterior. Nisso, o “valor histórico” passou a estar ligado ao “potencial turístico” e, no fim, à distinção social2. É em meio a essa situação que se constituiu o Projeto Arte/Cidade, que teve em A Cidade e suas Histórias sua terceira edição. Entre 1994 e 2002, Arte/Cidade desenvolveu quatro grandes exposições em São Paulo, constituindo a maior iniciativa de arte urbana já realizada no Brasil3. No que se refere ao “tipo” de arte, esse projeto pertenceria ao campo artístico da intervenção urbana intermitente. Em um nível mais amplo, porém, o evento estaria no mundo das grandes exposições intermitentes em espaço urbano, uma categoria própria de fenômeno artístico que começou a se consolidar nos anos oitenta, mas ainda é relativamente pouco estudada no Brasil. Idealizado e coordenado desde 1993 pelo filósofo e curador Nelson Brissac Peixoto, Arte/Cidade caracterizou-se pela ocupação artística temporária de espaços urbanos degradados e/ou em processo de transição com obras “site-specific” feitas especialmente nesses locais. Nesse intento, os eventos mobilizaram a participação de artistas e profissionais variados (artistas plásticos, músicos, fotógrafos, videomakers, arquitetos, filósofos, cientistas sociais, historiadores, jornalistas, engenheiros) e incluíram atividades como workshops, ciclos de debates, exposições secundárias, documentários e publicações diversas. De modo geral, em todas as suas edições o projeto angariou amplo apoio institucional e recebeu grande atenção por parte da imprensa e de intelectuais. No tocante ao terceiro Arte/Cidade, assunto deste texto, há diferenças que de início devem ser ressaltadas em relação aos dois primeiros eventos: - primeiro: possuiu uma escala muito maior do que os anteriores, seja em área, custos, estrutura expositiva e número de participantes. O primeiro evento, Cidade sem janelas, ocupava um único edifício; e o segundo, A Cidade e seus

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Para uma discussão detalhada sobre cultura e patrimônio histórico no Centro de São Paulo, ver José (2007). 3 O projeto Arte/Cidade ainda existe. Para informações a respeito de seu andamento posterior, checar sua homepage em http://www.pucsp.br/artecidade/. Para um estudo sobre os quatro eventos ocorridos em São Paulo, ver Souza (2006).

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Fluxos, ocupava vários pontos em três edifícios e no espaço público, mas todos circunscritos a uma mesma área ainda passível de ser percorrida à pé; A Cidade e suas Histórias, como veremos à frente, se estendeu por quilômetros. - segundo: as duas primeiras edições de Arte/Cidade foram realizadas pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, enquanto a terceira foi realizada pelo Grupo de Intervenção Urbana: um tipo de organização completamente nova que foi, com razão, chamada “a primeira ONG (Organização Não-Governamental) da cultura” do Brasil (Moraes, 17/09/97). Tal fato está relacionado à mudança de panorama governamental ocorrida nos anos noventa no Brasil, que reduziu investimento em instituições culturais públicas e aumentou enormemente o investimento em iniciativas culturais privadas via incentivos fiscais. - terceiro: embora todos os eventos de Arte/Cidade relacionem-se diretamente aos problemas das áreas centrais degradadas de São Paulo pela própria natureza da proposta, A Cidade e suas Histórias foi o primeiro deles a adotar a dimensão histórica como um fio condutor. A exposição e suas áreas de intervenção Com a ideia básica de “uma intervenção em pontos a serem acessados pela linha férrea, revisitando locais hoje isolados da vida urbana” (Peixoto, 2002: 156), A Cidade e suas Histórias dedicou-se à “chaga urbana” representada pela estrada de ferro metropolitana. A exposição resultante foi um impressionante percurso ferroviário por “uma cidade morta nas entranhas da cidade atual” (Mammi, 20/11/97), numa trilha de cinco quilômetros entre os bairros Luz e Água Branca, através de áreas industriais abandonadas em pleno centro de São Paulo. (Imagem 1) Foram escolhidos três pontos de intervenção no itinerário: - a Estação da Luz: inegável símbolo histórico da modernidade paulistana

e, ao mesmo tempo, um equipamento urbano ainda intensamente usado. A estação serviria como um portal de entrada no mundo cotidiano de história ainda “viva” para o mundo esquecido das áreas de intervenção. - o Moinho Central: no bairro da Barra Funda, este era literalmente uma “terra de ninguém”: um imóvel devoluto completamente abandonado (antes propriedade da Santista Alimentos S.A.) e ilhado entre duas linhas ferroviárias (as Estradas Sorocabana e Santos-Jundiaí), com um imenso edifício de cinco andares e seis grandes silos de armazenagem. As edificações encontravam-se muito degradadas pela ocupação marginal: ocasionais usuários de drogas, traficantes, sucateiros e desabrigados que, a despeito da vigilância da Rede Ferroviária Federal, iam se abrigar lá. O interior do grande edifício seria “um espaço lúgubre, coberto de dejetos” (Peixoto, 2002: 25), com vestígios fantasmagóricos de uso humano — desenhos, mensagens, utensílios e rastros diversos. - o terreno das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo: no bairro da Água Branca, este que fora o maior complexo fabril brasileiro seria tanto ponto final como a outra entrada para a exposição. Era uma área estagnada e apartada por um grande muro, porém mais facilmente integrável à cidade que o Moinho:

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era propriedade da empresa Ricci Engenharia e não estava ilhada, mas contígua à movimentada Avenida Francisco Matarazzo. Do imenso complexo restariam apenas a casa das caldeiras, o galpão de embarque e três chaminés. As edificações, ao contrário do Moinho, exibiam ainda as marcas de seu uso original, sendo que sua decadência advinha não da depredação, mas do tempo e da demolição parcial promovida pela família Matarazzo, os donos anteriores. A exposição demorou três anos para ser realizada, tamanha a complexidade e as proporções alcançadas, que exigiram muitos levantamentos, múltiplas negociações com diferentes instâncias administrativas, múltiplas empresas, e as companhias ligadas à estrada de ferro (RFFSA, CPTM, FEPASA) para obtenção patrocínio, permissão e apoio técnico e logístico. Além disso, também exigiu insólitos e tensos contatos com os ocupantes ilegais do Moinho para tratar de sua retirada temporária. A estrutura expositiva montada para a visitação das ruínas foi gigantesca, incluindo: um amplo e delicado projeto de adequação arquitetônica, mais a adaptação e reforma de ramais ferroviários e de vagões de trens; um trem especial para o evento, o Kinotrem — que, “inspirado” em experiências da vanguarda russa, era ao mesmo tempo transporte, comunicação visual e parte de um circuito de mídia; e um sistema de grandes intervenções cromáticas a demarcar sua presença na cidade (as chamadas Intervenções em Escala Urbana, cobrindo de vermelho passarelas, torres de escada e viadutos no percurso da mostra). O número de participantes (trinta e três) foi o maior de todos os Arte/Cidade, incluindo nomes de peso como os artistas Cildo Meirelles, Carlos Vergara e Nelson Félix, e os arquitetos Ruy Ohtake e Paulo Mendes da Rocha. A dimensão histórica no discurso curatorial do evento A Cidade e suas Histórias foi, obviamente, uma realização multifacetada e complexa no plano teórico, no plano artístico e no urbanístico. Em Souza (2006:149) fez-se uma análise do evento e de sua organização a partir de três grandes aspectos: o “vivencial”, o territorial e o histórico. A este texto interessa apenas o último, que também foi de certo modo o fio condutor da exposição desde seu início. Como já foi colocado, a organização e realização do evento aconteceram num momento em que a história urbana era enfatizada em São Paulo, discutindo-se memória e recuperação de patrimônio. Nesse contexto, o próprio título do evento sugeria um tipo de diálogo e inserção nessas discussões, principalmente com uma proposta de trajeto que atravessava uma região debatida e contemplada por projetos de reforma de patrimônio. Toda a região noroeste do centro, onde estavam as áreas da exposição, estaria ligada à própria consolidação histórica de São Paulo como metrópole moderna. A linha de trem foi durante muito tempo ligada à riqueza e à identidade da capital paulista -caminho da produção cafeeira, da industrialização, da chegada dos imigrantese na década de noventa já condensava em torno de si não riqueza, mas abandono. “Foi ali que nasceu a São Paulo moderna: a primeira fábrica, os primeiros serviços públicos, as primeiras escolas técnicas, o primeiro museu de arte e os primeiros prédios de

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apartamentos. E foi ali que apareceu uma das primeiras zonas mortas da cidade, com prédios abandonados, ex-casarões aristocráticos transformados em cortiços e tráfico de crack”. (Carvalho, 29/10/95) Por outro lado, a dimensão sensível e material dos sítios selecionados seria inseparável dos significados e indícios humanos e históricos lá presentes. As indústrias Matarazzo eram de certa forma um símbolo histórico, com resquícios visíveis de seu passado, enquanto o Moinho, ainda que desprovido dessas conotações, estaria recoberto de marcas da vida marginal que o ocupara: uma outra classe de “memória”, mais recente, porém talvez ainda mais relegada ao esquecimento. Paralelamente à tematização dos vestígios presentes nos locais, havia a referência a uma dimensão histórica mais ampla em A Cidade e suas Histórias, a qual teria aparecido muito nos seminários, textos informativos, ensaios, na estrutura expositiva, e no enfoque da grande atenção que a imprensa deu ao projeto. Nos seminários promovidos por Arte/Cidade e nos cadernos especializados da imprensa (incluindo uma edição especialmente dedicada a Arte/Cidade do prestigiado MAIS!, caderno intelectual semanal do jornal mais vendido, a Folha de São Paulo), as discussões centraram-se principalmente na modernidade industrial, seu significado e a contraposição entre seu passado de símbolo de modernização e seu presente de decadência urbana. O discurso do coordenador do projeto, porém, enfocava essa história a partir de um sentido mais geral — a releitura da era mecânica, da velocidade e da máquina, da percepção e da narrativa modernas. Indústrias abandonadas e trens sucateados eram abordados como imagens de um “futuro pretérito” não realizado, adquiriam um significado de ruína do sonho moderno. Essa abordagem, em muito diferente da onda “pró-ativa” de revitalização de patrimônio, estava ligada às discussões “pós-modernas” e “pós-industriais” dos anos oitenta, mas tinha também entre suas influências o trabalho de artistas como Robert Smithson nos anos sessenta, com seu conceito de entropia e seu uso da paisagem como matéria-prima. As palavras do curador sobre o projeto também indicavam uma reflexão para o futuro: “pensar o trem e o futuro das megacidades por meio da arte e da tecnologia” (Carvalho, 29/10/95). Referiam-se à presença viva do passado industrial no imaginário atual, ao destino do trem na metrópole contemporânea, e em especial ao caráter autodestrutivo do desenvolvimento paulistano. “Seria ingênuo esperar que a arte, a arquitetura e o urbanismo tivessem a capacidade de recompor essa memória. A metrópole, especialmente São Paulo, trabalha sistematicamente pelo apagamento, pela destruição contínua e reconstrução incessante dos mesmos espaços. [...] O que as intervenções fazem é aflorar esse trabalho inconsciente de ocultar o seu passado, de negar o seu passado. São Paulo é uma cidade voltada para o esquecimento, para o auto-esquecimento. Esse processo perverso, ao ser evidenciado, permite que, nessas fissuras, nas

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entranhas, nos desvãos desses muros, por entre esses telhados caídos, a gente consiga recuperar indícios dessa narrativa e trabalhar os fragmentos dessa história perdida, de modo a obter um quadro, ainda que fragmentado, desse passado, e que aponte suas possibilidades”. (Brissac apud Galvão, 31/07/97) No discurso do Grupo de Intervenção Urbana também aflorou em certos pontos uma preocupação em diferenciar-se da retórica “revitalizadora” então em voga, negando conotações esteticistas ou historicistas da história paulistana e dos conteúdos históricos dos sítios. Segundo Brissac, Arte/Cidade não iria fazer um “trajeto nostálgico”, um “túnel do tempo” e nem uma “Disneylândia de sucata”, mas tratar-se-ia de “um embate com uma situação muito tensa” (Brissac apud Carvalho, 29/10/1995). As palavras de Giselle Beiguelman, membro do Grupo, sintetizam essa procura por uma diferenciação: “Uma das características mais interessantes do Arte/Cidade como um todo é a prática de dialogar com espaços de indiscutível peso simbólico para a leitura da história da cidade sem ceder à tentação de sucumbir à sua reificação. Uma reificação que só concorre efetivamente para esvaziar a historicidade dos lugares, como antigas fábricas, estações de trem, mercados, que são travestidos em shoppings ou centros culturais, com perfis absolutamente distantes das práticas sociais que fundaram sua construção. As restaurações desse tipo tendem a acreditar que a cultura ocorre em um lugar diferente da esfera pragmática da vida e por isso precisam colocar entre parênteses a historicidade dos lugares de que se apropriam. O projeto Arte/Cidade, desde sua primeira etapa [...] recusa essa hipótese. [...] Isso porque não faz o make up dos lugares em que se intervêm. Arte/Cidade não os arruma, não os enfeita, não os fantasia”. (Beiguelman, 1997: 93-94) Exposição e obras: memória e alegoria Faremos agora uma passagem por alguns elementos da exposição final de A Cidade e suas Histórias. Vários dos trabalhos de artistas e arquitetos convidados elaboraram predominantemente o aspecto de desagregação material, enquanto alguns olharam para as grandes dimensões territoriais compreendidas pela mostra. As intervenções que nos interessam destacar aqui, no entanto, são apenas aquelas que procuraram tratar da dimensão “histórica” do evento. Estas obras, de maneira geral, valeram-se de imagens, metáforas e referências e poderiam ser divididas em três tipos básicos de enfoque: aquelas que pretenderam trabalhar as memórias do passado industrial latentes nos sítios, aquelas que se dedicaram às reminiscências da ocupação marginal e aquelas que buscaram trabalhar conotações históricas e simbólicas da ferrovia e da tecnologia industrial.

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As obras de Patrícia Azevedo (Moinho), de Arnaldo Pappalardo, de Joel Pizzini e de Marcelo Dantas e Roberto Moreira (Matarazzo) operaram através de imagens para enfocar usos, elementos, vestígios e a história industrial sob a presença material do envelhecimento e decrepitude. Os trabalhos de Marcos Ribeiro e de Evandro Carlos Jardim, por sua vez, estavam ligados ao trem e faziam referências à ligação histórica entre arte e tecnologia. A despeito da pluralidade de enfoques e operações artísticas, no entanto, poder-se-ia dizer que houve uma dificuldade geral das intervenções em trabalhar os locais de maneira a criar uma tensão entre passado e presente. Entre as obras mais bem-sucedidas em trabalhar com a memória e os significados impressos nos locais, destacamos aqui a instalação “Pisantisurbanos”, de Hélio Melo (Imagen 2). Para essa obra, o artista recolheu perto de seis mil sapatos abandonados nas ruas, em variados graus de deterioração -e todos sem seus pares- com os quais cobriu paredes e o chão em um local do Moinho. Com esse “inventário” de elementos, dispostos profusamente em paredes e no chão, Melo “sensibilizou” o espaço ocupado, começando pelo próprio caminhar do visitante, que se vê andando entre sapatos podres. Os calçados aqui poderiam se referir a qualquer um dos ocupantes do moinho, dos marginais recentes aos operários antigos. São símbolos do passado, de caminhos já trilhados, e embora sejam desprovidos de vínculos com pessoas específicas, são paradoxalmente imbuídos de personalidade em sua variedade de modelo e cor. Organizando os sapatos de acordo com sua deterioração -os mais conservados enfileirados regularmente na parede, e os deteriorados acumulados desorganizadamente no chão- Melo parece falar da perda dessa identidade na face dupla de racionalização e descarte. A ambientação remete à entropia humana presente nas sucessivas modernizações, a mudança incessante que deixa atrás de si amontoados de espólios obsoletos -sejam mercadorias, edificações ou seres humanos- e conecta o passado industrial e o presente de ruína. Alguns artistas como Cildo Meireles e Willi Biondani, por outro lado, adotaram claramente como tema as impressões sombrias de miséria e alienação presentes no Moinho Central. Meirelles, em particular, focou-se na presença de usuários de drogas de uma maneira “pop” e irônica: colocou milhares de seringas fincadas em paredes de uma sala nos galpões Matarazzo e outras centenas num trecho do chão do moinho, em volta de um agigantado e um tanto cômico cachimbo de crack. (Imagem 3) Tais abordagens, todavia, faziam pouco mais que reafirmar a violência já sugerida no espaço do Moinho. Mas ao tentarem figurar a memória da marginalidade, as insuficiências de tais obras levantaram questões sérias sobre a própria exposição, pois usar a presença ainda “fresca” da miséria real como matéria-prima expositiva guardaria implicações preocupantes de espetacularização. “Tais tentativas diretas de elaborar a miséria são altamente problemáticas em qualquer circunstância, e ainda mais num lugar em que os ocupantes clandestinos parecem ter sido removidos para dar lugar à própria mostra”. (Andreoli e Santos, 2002: 290)

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Mostra-se uma dimensão paradoxal da iniciativa: artistas só podiam “mostrar” a marginalidade porque sua presença real fora extraída. As intervenções “pop” de Cildo Meireles seriam precárias se reduzidas a “metáforas da degradação humana e do lugar” (Folha de São Paulo, 25/10/97). Porém, tendo em vista o teor crítico da carreira desse artista, o humor negro e o lado icônico de suas instalações poderiam funcionar, no limite, como uma espécie de crítica sarcástica aos aspectos mais questionáveis da própria exposição. Seja qual for a intenção do artista, sua estranheza acaba por apontar para o fato de que A Cidade e suas Histórias, nesse ponto, acabou por “higienizar” os locais de visitação e por converter marginalidade em espetáculo pitoresco para uma audiência (majoritariamente de elite) assistir e se impressionar. A abordagem “histórica” de A Cidade e suas Histórias mostrou outra face problemática num componente de sua estrutura expositiva, o “Kinotrem” (Imagem 4). Como trem especial da exposição, seria talvez elemento individual mais importante, a “costura” do evento, de modo que sua caracterização era um ponto de grande relevância. Inspirando-se nos “Trens de cultura e Instrução” da vanguarda russa do início do século -uma experiência que fundia trem, cinema e disseminação de informações- Arte/Cidade construiu seu próprio “Kinotrem” incluindo um circuito comunicativo interno com informações sobre o evento e com projeção de vídeos gravados pelos próprios visitantes. Para sua pintura exterior, um projeto gráfico foi feito a partir de uma releitura das pinturas construtivistas russas em trens: uma “arte cinética” abstrata de autoria do designer Ricardo Ribenboim (membro do Grupo de Intervenção Urbana), que remetia ao suprematismo e visava ganhar “plasticidade” com o movimento dos vagões do trem. Nesse trabalho gráfico de Ribenboim residiria o maior problema: com uma simplificação da estética suprematista russa, este adotou um caráter publicitário, funcionando como um elemento de comunicação e identidade visual do evento. Do ponto de vista da “propaganda”, a escolha pela citação da vanguarda russa certamente ajudaria a caracterizar A Cidade e suas Histórias como iniciativa de cunho histórico e artístico. Essa referência visual, entretanto, seria muito mais “historicista” do que histórica, e seria um contra-senso em relação ao resto do evento: primeiro, por tratar de uma “memória” que não se refere à realidade e história urbana de São Paulo; e segundo, porque despe a ideia original de seu conteúdo político e a transforma em formalismo e citação, domesticando-a como um patrimônio e “logomarca”. Se Arte/Cidade desejava fugir ao “parque temático”, a caracterização visual do Kinotrem não favoreceu esse intuito. Para terminar, é interessante considerar que várias análises da exposição abordaram a dificuldade das intervenções em travar um diálogo com os sítios que estivesse à altura do impacto e das questões presentes neles4. Mais que estéticas, tais questões também eram urbanísticas, políticas e sociais. Para alguns críticos, a experiência de visitação teria sido por si mais forte e expressiva que os trabalhos em geral, ofuscados pela expressividade e monumentalidade das ruínas.

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C.f. Mammi, 20/11/97; Amaral, 22/11/1997; Pedrosa, 2002: 280; Andreoli e Santos, 2002: 290.

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“O problema do Arte/Cidade 3, enquanto exposição de arte, não é a falta de boas obras [...]: o problema é que, se as obras fossem outras, o significado da exposição seria mais ou menos o mesmo. [...] talvez a crise surja por termos chegado, dessa vez, ao cerne da questão: São Paulo não nasceu de um conjunto de moradias, mas de uma empreitada industrial, que já embutia em si toda a violência posterior. A descoberta da cena do crime, a exumação do cadáver é tão impactante que não deixa espaço para comentários. As obras ficam à margem”. (Mammi, 20/11/97) Considerações finais Ao colocar em evidência a linha de trem metropolitano -uma “área de serviço” da cidade, um rasgo isolado e esquecido para o qual só se voltam as costas- o Projeto Arte/Cidade teve o mérito de mexer com a "cegueira" característica de São Paulo, “cutucar a amnésia coletiva” (Mammi, 20/11/97). Pode-se dizer que, mais do que as obras em si, o olhar e a experiência proposta pela exposição como um todo trouxeram às áreas a condição dupla de “monumento” referida no início deste texto: a um só tempo um objeto impressionante e um marco físico para a memória. Essa “memória”, todavia, se diferenciava muito dos olhares “renovadores” dedicados ao centro urbano de São Paulo justamente por ter como ideal não a reinserção patrimonialista dos locais dentro de uma “narrativa turística” da história da cidade, mas a reflexão aberta sobre a decadência e a memória. Comparado às muitas iniciativas culturais de reforma de patrimônio que tinham então lugar em São Paulo -assim como à maioria dos eventos artísticos desde então- essa exposição mostrou-se mais experimental e especulativa. Não restaurava locais, mas chamava atenção para eles. Não se punha simplesmente a construir encenações da importância histórica e pública destes, mas procurava privilegiar reflexões sobre significados latentes e novos. A realização desse ideal, porém, teve limitações e o intuito declarado pelos coordenadores de “apontar possibilidades” para os locais ficou aquém da reflexão estética. Talvez as intervenções do evento não tenham podido acrescentar muito ao impacto dos próprios lugares em parte por não procurarem expor e trabalhar relações atuais subjacentes. É significativo, por exemplo, que a ideia de “apontar possibilidades” não tenha implicado -nem nas intervenções nem no discurso- em um enfoque dos processos urbanos então em andamento na situação na qual se interveio. O próprio estado de ruína da área Matarazzo, por exemplo, estaria ligado às vicissitudes de ter uma condição imobiliária proveitosa: afinal, foi para dar outros fins ao imóvel que a família Matarazzo teria demolido o parque industrial decadente em 1986, imediatamente após seu tombamento como patrimônio. Mesmo quando o discurso do Grupo de Intervenção Urbana falava da face destrutiva da modernização e o caráter perversamente “autofágico” do crescimento da metrópole, tais elementos tendiam a aparecer como implicações um tanto genéricas, quase naturalizadas, sem um questionamento maior de seus condicionantes políticos. Tal abordagem seria conseqüência, talvez, de se cair na armadilha de “pensar a cidade” ao invés de “tratar desta cidade” (Andreoli e Santos, 2002: 292).

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“Eu acho que, retrospectivamente falando, a gente operou no Arte/Cidade 3 de forma interessante do ponto de vista da memória, do ponto de vista da experiência, do ponto de vista da sugestão de um possível futuro outro para aqueles lugares, mas ainda extremamente marcados por uma visão estética das coisas. [...] a gente perdeu grandes oportunidades de fazer discussões mais a fundo a respeito dos projetos existentes para aquela área [...]. Poderia ter sido politicamente mais audaz [...]. Uma reconstituição da história daquele local, por exemplo, no sentido de que a especulação imobiliária veio antes da Ricci, veio quando a própria família Matarazzo destruiu aquilo lá”. (Souza, 2005) Anos depois, a situação das duas áreas mostraria sua fragilidade: a área Matarazzo tornou-se um local de uso completamente privatizado (como, aliás, nunca deixou de ser, a não ser pelo breve tempo de visitação de A Cidade e suas Histórias). O terreno foi ocupado por um conjunto corporativo de arranha-céus denominado Centro empresarial Água Branca; o edifício da Caldeira, por sua vez, foi transformado em um decorativo “espaço de eventos”, extremamente convencional e de acesso restrito: justamente um exemplo do tipo de recuperação “reificadora” ao qual Gisele Beiguelman aludira no texto aqui citado. O terreno e o edifício do Moinho, em contrapartida, foram densamente ocupados por desabrigados, convertendo-se numa grande favela de centenas de moradores. As direções diametralmente opostas tomadas pelos dois casos seriam, como o próprio coordenador de Arte/Cidade diria depois, “emblemáticas do que é o Brasil, do que é São Paulo” (Souza, 2005). Bibliografia Amaral, Aracy, “Arte/Cidade desafia sensibilidades criativas”, em: O Estado de São Paulo, São Paulo, 22/11/1997. Andreoli, Elisabetta e Santos, Laymert Garcia dos, “Arte pública, cidade privada”, em: Peixoto, Nelson Brissac, Intervenções Urbanas: Arte/Cidade, São Paulo, Editora SENAC São Paulo, 2002. Beiguelman, Giselle, “Cidades Pós-Urbanas”, em: Ludemann, M. (ed). Brasmitte: Intervenções Urbanas São Paulo – Berlim. São Paulo: Goethe Institut/SESC, 1997. Carvalho, Mario César, “O futuro do passado”, em: Folha de S. Paulo, São Paulo, 29/10/1995. Caderno Mais!. Coelho, Marcelo, “Arte/Cidade 3 busca utopia pós-industrial”, em: Folha de São Paulo, São Paulo, 12/11/1997. Fioravante, Celso, “Arte/Cidade revê ruínas sobre trilhos”, em: Folha de São Paulo, São Paulo, 15/10/1997. Galvão, Edilamar, “Projeto de intervenção evidencia o auto-esquecimento da cidade”, em: Folha de São Paulo, São Paulo, 31/10/1997.

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Grupo de Intervenção Urbana, Arte/Cidade: a Cidade e suas Histórias (catálogo de exposição), São Paulo, Editora Marca D’Água, 1997. José, Beatriz Kara, Políticas Culturais e Negócios Urbanos: a instrumentalização da cultura na revitalização do centro de São Paulo (1975-2000), São Paulo, Annablume, 2007. Mammi, Lorenzo, “Evento acha uma cidade morta nas entranhas da cidade atual”, em: Folha de São Paulo, São Paulo, 20/11/1997. Moraes, Angélica de, “Artistas estrangeiros vêm conhecer o Brás”, em: O Estado de São Paulo, São Paulo, 17/09/1997. Pedrosa, Adriano, “Arte/Cidade 3”, em: Peixoto, Nelson Brissac, Intervenções Urbanas: Arte/Cidade, São Paulo, Editora SENAC São Paulo, 2002. Peixoto, Nelson Brissac. Intervenções Urbanas: Arte/Cidade. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002. Peixoto, Nelson Brissac, “Cidade pré-histórica e pós-industrial”, em: Grupo de Intervenção Urbana. Arte/Cidade: a Cidade e suas Histórias (catálogo de exposição), São Paulo, Editora Marca D’Água, 1997. Souza, Gabriel Girnos Elias de, Percepções e Intervenções na Metrópole: a experiência do Projeto Arte/Cidade em São Paulo (1994/2002), Dissertação de Mestrado, São Carlos, Escola de Engenharia de São Carlos, 2006. Souza, Gabriel Girnos Elias de, Entrevista a Nelson Brissac, 16/05/2005. “Arte/Cidade 3 custou mais”, em: Folha de São Paulo, São Paulo, 25/10/1997. http://www.pucsp.br/artecidade/.

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IMAGENS

Imagem 1. Áreas de intervenção de A Cidade e Suas Histórias, antes de sua ocupação pelo evento. Da esquerda para direita: Estação da Luz, Moinho Central e Indústrias Matarazzo. Fonte: Grupo de Intervenção Urbana, 1997

Imagem2. Pisantisurbanos, intervenção de Hélio Melo. Fonte: Grupo de Intervenção Urbana, 1997

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Imagem 3. intervenção de Cildo Meireles no Moinho Central (sem título). Fonte: Folha de São Paulo, 15/10/97

Imagem 4. Kinotrem, com o edifício do Moinho ao fundo, durante a exposição de A Cidade e suas Histórias. Fonte: Grupo de Intervenção Urbana, 1997

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