Filippe Nunes e o contexto contrarreformista

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ANAIS

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Universidade Federal de Juiz de Fora Reitor:

Prof Dr Marcus Vinicius David Vice-reitora:

Profª Drª Girlene Alves da Silva Pró-reitoria de Pós-graduação Pró-reitora de Pós-graduação:

Profª Drª Mônica Ribeiro de Oliveira

Comissão Organizadora Profª Drª Renata Zago Ana Paula Dessupoio Chaves (coordenação) Cleber Soares da Silva (coordenação) Camila Ribeiro de Almeida Rezende Julia Dias Möller Luciana de Oliveira Inhan Thamara Venâncio de Almeida Thaiana Gomes Vieira

Instituto de Artes e Design Diretor:

Prof Dr Ricardo de Cristófaro Vice-diretor:

Prof Dr Luiz Eduardo Castelões Pereira da Silva Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens Coordenador:

Prof Dr Luís Alberto Rocha Melo Vice-Coordenadora:

Profª Drª Maria Cláudia Bonadio Secretárias:

Lara Lopes Velloso Flaviana Polisseni Soares

Anais do III Seminário de Pesquisas em Artes, Cultura e Linguagens. Volume 3, Número 3, Novembro de 2016, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens, Instituto de Artes e Design, Universidade Federal de Juiz de Fora. XX pg.; 21 x 29,7 cm;

ISSN 2359-6929 Publicação anual

Comitê Científico Professores:

Profª Drª Maria Claudia Bonadio Profª Drª Raquel Quinet de Andrade Pifano Profª Drª Alessandra Brum Prof Dr Ricardo Cristofaro Alunos:

Andrés Leonardo Caballero Piza Ana Paula Dessupoio Chaves Camila Ribeiro de Almeida Rezende Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto Cecília Samel Côrtes Daniel Brandi do Couto Edmárcia Alves de Andrade Felipe Andrade da Rocha Gabriela Soares Cabral Isadora Marília de Moreira Almeida Isis Sena Silva Julia Möller Laise Lutz Condé de Castro Luciana de Oliveira Inhan Paula Guimarães de Oliveira Tammy Senra Thamara Venâncio de Almeida Thaiana Gomes Vieira Thales Estefani Pereira Projeto Gráfico Cleber Soares da Silva Editoração eletrônica Luciana de Oliveira Inhan

1. Artes, Cultura e Linguagens 2. Eventos científicos periódicos 3. Seminário de Pesquisas em Artes, Cultura e Linguagens 4. Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens - Instituto de Artes e Design - Universidade Federal de Juiz de Fora Minas Gerais - Brasil. I. Título. II Anais.

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GT | ANTIGUIDADE E IMAGEM RELIGIOSA FILIPPE NUNES E O CONTEXTO CONTRARREFORMISTA Julia Dias Möller1 Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF

RESUMO: O primeiro tratado sobre pintura em Portugal data do início do século XVII. O presente artigo analisa sobre o contexto em o tratado fora publicado, as condições políticas e culturais do período, como também o posicionamento teórico sobre a produção pictórica proferida pelo autor. Palavras-chave: Arte da Pintura; Filippe Nunes; Tratadística; União Ibérica; Contrarreforma.

O primeiro tratado sobre arte da pintura publicado em Portugal data de 1615. Em relação à história da tratadística da arte, este fato acaba por denunciar uma condição tardia, que, por vezes, pode ser entendida como uma falta de formação mais humanística da pintura. No entanto, para uma conclusão justa, seria necessário levar em consideração outros fatores que circundam a sociedade portuguesa daquele período. Por que, no ambiente português, a publicação de um tratado sobre pintura demorara tanto para sair à luz? Quais são as características deste e em que circunstâncias ele fora publicado? Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva (1615) foi o primeiro tratado publicado sobre o tema no território português2. Seu autor, Filippe Nunes, nascido em Vila Real, Portugal, ingressou na ordem dos dominicanos, na cidade de Lisboa, já em idade madura, no ano de 1591. Nunes publicou o Arte da Pintura junto com outro tratado de sua autoria sobre a arte da poética. Depois de seu ingresso na ordem, o dominicano adotou o nome de Fr. Filippe das Chagas, entretanto estes foram assinados com seu nome de batismo, o que provoca algumas indagações sobre onde ele teria adquirido conhecimentos no âmbito da pintura. A vida de Nunes antes de seu ingresso na ordem é um completo mistério. Entretanto, sabe-se, através da pesquisa de Paulo Gomes (1996) que dentro da Ordem dos Pregadores Nunes foi nomeado Subdiácono, Diácono, Presbítero e Subprior além de ter vivido não apenas no mosteiro de S. Domingos de Lisboa, mas nos de S. Domingos de Coimbra e S. Gonçalo de Amarantes. O tratado de Filippe Nunes fora escrito em um momento de transformação para a cultura portuguesa. Segundo Coelho (2013), “No século XVI, a informação / formação propagava-se [em Portugal] pela imagem e o olhar e predominantemente de boca à orelha. [...] No plano da escrita, a informação assentava no mundo dos textos manuscritos, fortemente maioritários, [...]” (COELHO, 2013). Coelho explica que a produção de livros em Portugal era muito pequena até metade do século XVI, não ultrapassava a marca de cinco títulos por ano. Este quadro apresentara mudanças a partir do reinado de D. Manuel I, e até 1590 Portugal atingira uma produção média de 55 títulos por ano. A Igreja era o principal cliente para os impressos. É preciso lembrar que para a publicação de um livro havia muitos obstáculos a serem superados como o alto custo e uma série de exigentes censuras. Toda publicação era submetida à aprovação de 1 Bacharel em Educação Artística pela UFJF. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Artes Cultura e Linguagens da UFJF, bolsista FAPEMIG. E-mail: [email protected] 2 Portugal possui como legado outros tratados sobre Pintura, como os de Felix da Costa e Francisco de Holanda. Entretanto, eles circularam apenas de forma manuscrita, sendo impressos apenas séculos mais tarde. Vale ressaltar que o Arte da Pintura, Symmetria e Perspecitva além de ser o primeiro tratado impresso em Portugal, fora por muito tempo o único, tendo, inclusive recebido uma segunda edição em 1767.

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GT | ANTIGUIDADE E IMAGEM RELIGIOSA examinadores. Além disso, a Inquisição promovia constantes visitas aos livreiros e impressores em busca de livros não autorizados3. Segundo Bethencourt (2000), até o início do século XVII o Santo Ofício em Portugal já havia enraizado um sistema de autocontrole sobre os livreiros, sendo, estes últimos, um ponto de apoio às necessidades da Inquisição para controle dos livros que circulavam na região. O pesquisador explica que até sua extinção (no século XVIII), “a Inquisição portuguesa assegurou o exercício da censura prévia, partilhada com o Desembargo do Paço e as instâncias da Igreja” (BETHENCOURT, 2000, p.200). Outro exemplo sobre o cuidado com a publicação de impressos é manifestado nas Ordenações Filipinas4 . No documento consta que nenhum morador ou vassalo daqueles reinos poderia mandar imprimir um livro, dentro ou fora do reino, sem que este tenha sido visto e examinados pelos desembargadores do paço e pelos oficiais do Santo Ofício. Como punição as Ordenações indicavam que “qualquer impressor livreiro ou pessoa que sem a dita licença imprimir algum livro ou obra, perderá todos os volumes que se acharem impressos e pagará cinqüenta cruzados, a metade para os Cativos e a outra para o acusador” (ORDENAÇÔES FILIPINAS, 1999, P.313). A publicação de impressos não parece apresentar vantagens, visto que todo empenho teórico poderia não ser aprovado pelos mecanismos de censura da época e, por sua vez, a insistência em publicá-la clandestinamente poderia acarretar graves consequências. O quadro não é de um total descaso para com as publicações. Como já observado acima, com relação à livros temos um crescimento significativo, justamente neste período da metade do século XVI e início do século XVII. De acordo com Ana Paula Megiani (2004), os monarcas Felipe II e III da Espanha são considerados os mecenas da impressão. A monarquia filipina em Portugal tem seu início após a morte de D. Manuel I, em 1580, e se estenderá até 1640. Segundo Megiani (2004) o incentivo de impressos tinham duas funções importantes, a primeira era a de que, por meio dos impressos, o rei poderia fazer-se presente no vasto território que dominava. O segundo motivo, por sua vez, possibilitava a produção de textos que seguiam de acordo com os interesses da monarquia e da Igreja, uma estratégia eficiente para frear a “heresia protestante”. Um dos incentivos promovidos era a Concessão Régia, que dava ao editor ou livreiro a exclusividade de publicação de um determinado título por dez anos. Também foram concedidos alguns títulos de nobreza, como o caso do editor Pedro Craesbeek, nomeado cavaleiro em 16205. Este período, inserido entre o final do século XVI e início do XVII, é marcado por mudanças no quadro político como o estabelecimento da União Ibérica e também por mudanças no quadro religioso, tais como as revoltas protestantes e a necessidade de instauração do Concílio de Trento (1545 a 1563) pela Igreja Romana, sendo a última sessão deste concílio dedicada à assuntos como os usos e a veneração da imagem religiosa. De acordo com Hsia (2009) a ideia de glorificação do corpo que fora difundida no Renascimento era desaprovada pelos clérigos italianos, sob o espírito tridentino. Em De pictura sacra (1624) o Cadeal Frederico Borromeo escreve que “A nudez é necessariamente inadequada para a verdade de um ensinamento da igreja; também pode ofender a sensibilidade dos espectadores e enfraquecer sua devoção religiosa” (BORROMEO, 2010, p.21)6. Borromeo dedica uma sessão inteira para a condenação da nudez, ela não seria adequada à devoção. Daniel Arasse (2008) explica que a Renascença cria uma amplitude considerável no que diz respeito à representação do corpo humano. A presença da representação artística da nudez feminina e 3 Para saber mais detalhadamente sobre a censura e controle dos livros em Portugal ver: COELHO (2013) e BETHENCOURT (2000). 4 Foi usada a versão com atualizada do documento, ver LARA (1999). 5 Pedro Craesbeek foi o editor do tratado de Filippe Nunes. Sobre sua titulação como Cavaleiro ver: Megiani (2004) e BETHENCOURT (2000). 6 Tradução livre do trecho: “Nudity is of necessity unsuited for the truth of a church teaching; it can also offend the sensibilities of viewers and weaken their religious devotion”.

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GT | ANTIGUIDADE E IMAGEM RELIGIOSA masculina era contextualmente justificada, seja através da representação de deuses, heróis e ninfas da mitologia, ou de alegorias e até mesmo de histórias sacras. Segundo Arasse “É sem dúvida, no domínio da arte religiosa que a amplitude paradoxal dessa invasão da nudez é mais impressionante” (ARASSE, 2008, p.555), as histórias do Antigo Testamento estariam repletas de cenas que permitiam, ou justificavam, tal representação em ambiente. Cenas como a criação do homem, a crucificação de Cristo, Davi e Golias, Judite com a cabeça de Holonofernes; e, além disso, também histórias dos santos como Santa Maria Madalena penitente, Santa Águeda e São Sebastião. Arasse explica que este fenômeno encontra seu caráter paradoxal na medida em que as imagens não produziam a reação desejada: [...] longe de incitar à devoção como podia fazê-lo antes, o tratamento artístico “moderno” do corpo nu suscita no fiel ou no devoto, um efeito que desvia a imagem de sua função. Assim, segundo Giorgio Vasari, foi preciso retirar um São Sebastião de Fra Bartolomeo da igreja onde foi colocado, porque mulheres haviam condessado “que tinham pecado ao olhar para o santo por causa de sua beleza e da imitação lasciva da vida que lhe havia dado a virtù” do pintor, colocado na sala do capítulo, o quadro certamente também perturbou os monges, visto que não demorou muito para que fosse vendido para o rei da França (ARASSE, 2008, p. 555)

A nudez não foi o único parâmetro condenado ou discutido pelos teólogos tridentinos, mas é possível que a condenação deste tipo de representação possa ter tido impactos na formação artística do período. De acordo com Margarida Calado (2011), a formação do pintor nos séculos XVI e XVII em Portugal era feita, principalmente, através das oficinas. Segundo a pesquisadora “[...] sob o influxo da Contra-Reforma, não seria muito provável a cópia de modelos nus” (CALADO, 2011, p.117). Calado ainda afirma que, apesar disso, são conhecidos alguns desenhos em que a figura humana é predominante, o que provoca um paradigma entre as prescrições da igreja e o que era evidentemente posto em prática. Chama atenção a colocação que a pesquisadora faz em relação ao legado teórico de Portugal: “no entanto, ao nível teórico [o tratado de Filippe Nunes] acaba por revelar as insuficiências da prática do desenho entre nós [...]” (CALADO, 2011, p.118). Se por um lado, há registros de pinturas portuguesas em que há predominância do desenho da figura humana, o legado teórico demonstraria a falta deste exercício prático. Não é possível avaliar o impacto das prescrições tridentinas na vida e na prática artística da época. Assim como ocorreu a condenação de proibição de certos tipos de livros, um tipo similar de censura aplicou-se à pintura, como é o caso dos nus na Capela Sistina. Entretanto, assim como ocorreu com a publicação de impressos que fora estimulada sob certas circunstâncias, segundo Serrão, Apesar de essa nova situação ser cerceadora das liberdades criativas, é certo que também foi estimuladora de um novo espírito de solenidade e eficiência dos resultados artísticos acentuando-se uma significativa melhoria nas condições estatuárias dos pintores e demais artistas que trabalhavam para o mercado religioso (SERRÃO, 2014, p.104)

No tratado de Filippe Nunes não encontra-se nenhuma prescrição iconográfica, e, muito menos, condenações ou críticas em relação a representação da nudez. O tratado do português apresenta ao leitor de forma simplificada, algumas informações em relação ao virtuosismo e à função da imagem religiosa, tais como deleitar, persuadir e emocionar. Nunes traz algumas citações de Plínio, com a história do pintor Zeuxis, e também dos Santos Padres como São Gregório Nisseno que se emocionava diante de um painel que retratava a história de Abraão. Estes são alguns exemplos de como Nunes apresenta ao leitor o “louvor da pintura”. O dominicano completa o tratado com prescrições

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GT | ANTIGUIDADE E IMAGEM RELIGIOSA mais relacionadas à prática, dedicando uma seção a perspectiva, a symmetria, fundamentos mais “matemáticos” da pintura, e, por fim, seções sobre os modos de pintura, onde ele ensina a mistura de pigmentos, algo sobre estofamento e alguns mecanismos ópticos. Em outras palavras, pode-se considerar o Arte da Pintura como um pequeno manual para o pintor. É válido ressaltar que Nunes dedica seu tratado aos aprendizes, e, talvez este fato, justificaria uma falta de argumentações teóricas mais elaboradas. No entanto, de acordo com Raquel Pifano (2010) a falta de incentivo à invenção dos pintores por parte de Nunes, segue em concordância com o posicionamento tridentino. Poderíamos atribuir ao temor tridentinos da invenção do artista a ausência de uma reflexão mais profunda e mais clara não apenas sobre o termo composição, mas sobre a invenção? Lembremos das advertências do cardeal Palleotti aos pintores de que não alterassem nem inovassem as matérias das pinturas sagradas por faltar-lhes autoridade. Só os teólogos teriam tal autoridade. (PIFANO, 2010, p. 646)

De certa forma, pode-se observar que há dentro do tratado de Nunes, uma postura de ideias que possui mais afinidade com preceitos escolásticos. Afim de comprovar tal afirmação será necessária comparação com outros tratados. Antony Blunt em seu livro Teoria Artística na Itália (2001) aponta que o tratado De divina proportione (1509), do matemático Luca Pacioli (1447-1517), teria características ou comentários que não se “enquadrariam” na projeção artística do contexto em que estava inserido. Segundo o autor “Há passagens em De divina proportione que quase poderiam ter sido escritas no século XIII, e as autoridades favoritas de Pacioli não são os clássicos, mas Santo Agostinho e Duns Scotus” (BLUNT, 2001, p.65). Chama atenção não o fato de que o tratado de Pacioli conter características escolásticas, mas principalmente de que o autor estava inserido em um mesmo “círculo social” que envolvera artistas e humanistas que praticavam uma corrente de pensamento diferente da que se firmou na Idade Média. Segundo Blunt, Pacioli era amigo de Alberti e Leonardo, sendo este último o artista ilustrador de De divina proportione. Pacioli teria sido também discípulo de Piero della Francesca. Mas qual é a diferença entre o tratado de Pacioli e o de Alberti, por exemplo, que fora capaz de produzir tal comentário por Blunt? Antes de partir para esta explicação é preciso destacar mais um comentário do pesquisador. Blunt (2001) confere uma colocação interessante a respeito dos artistas do final do século XVI, Lomazzo, Zuccaro e Armenini, os denominando de “maneiristas tardios”. O pesquisador promove uma comparação entre eles e constata que existe, de certa forma, uma semelhança do pensamento desses três artistas que define este momento transitório entre os séculos XVI e XVII. Segundo Blunt, há uma abrupta mudança em relação à definição de concepção da ideia artística se comparada com o que chamamos de “Alto Renascimento”. Enquanto no período do apogeu renascentista “a natureza era fonte de que, no fim das contas, toda beleza derivava, por mais que fosse transformada pela imaginação do artista” (BLUNT, 2001, p.186), na concepção de Lomazzo e Zuccaro “a beleza era algo diretamente instilado na mente do homem pela mente de Deus, e existia lá independentemente de qualquer impressão dos sentidos” (BLUNT, 2001, p.186). Para Blunt a concepção de Lomazzo e Zuccaro comungava da ideia escolástica em que a arte funcionava a partir de princípios idênticos aos da natureza, e oposição à ideia de que a pintura copiava as obras individuais da natureza. Com isso, tanto arte quanto natureza eram controladas pelo intelecto, sendo uma o intelecto do homem e a outra do divino. Blunt atenta que na definição de Armenini sobre a pintura, a natureza não é sequer citada, todos os três artistas comungam da ideia presente na mente do artista. Com base nessas colocações de Blunt sobre Lomazzo, Zuccaro e Armenini, será interessante pontuar algumas considerações que o autor faz em relação ao tratado de Pacioli. Segundo Blunt

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GT | ANTIGUIDADE E IMAGEM RELIGIOSA “Originário de uma tradição de artistas científicos que utilizaram a matemática como uma arma para estudar a natureza, Pacioli absorveu o seu conhecimento, mas aplicou-o a propósitos inteiramente diversos” (BLUNT, 2001, p.65). Ao contrário do que se observaria em tratados típicos do quatrocento italiano, Pacioli dedicara seu tratado inteiramente as prescrições teóricas abstratas, sem fundamentá-las na natureza. Nota-se que essa atitude possui similaridades com os “maneiristas tardios”. Pode-se dizer que ela configura-se em uma concepção de como as ideias e teorias são absorvidas e conhecidas pelo homem. Por exemplo, o posicionamento dos tratadistas como Alberti e Leonardo da Vinci, eram de que o artista deveria buscar a observação e cópia da natureza. O conhecimento do corpo humano é para eles fundamental para a produção pictórica. A outra vertente de pensamento, por sua vez, não sugere tal observação, o conhecimento pictórico viria através de uma concepção divina, o dom do artista é desenvolvido através do estudo dos tratados e, no máximo, da observação e estudo das obras dos artistas do passado. A vertente de pensamento observada em Pacioli, e também em Zuccaro, Lomazzo e Armenini, pode ser entendida como sobrevivente desde o período escolástico. Segundo Eco (1989), no período Escolástico começa-se a formar lentamente uma consciência cultural sobre a dignidade da arte, essa consciência se dá, primeiramente, através da invenção poética. De acordo com Panofsky (2001), a concepção tomista acredita que “a inteligência humana jamais será bem-sucedida em produzir provas diretas para as questões da fé” (PANOFSKY, 2001, p.19), ela não pode provar sua existência, no entanto pode explicita-la (manifestare). Desta forma, a inteligência humana seria capaz de produzir provas diretas e completas para tudo o que possa ser demonstrado em uma relação de causa e efeito – como as ciências naturais, a ética e a metafísica. Ela também seria capaz de apresentar similitudines por meio de analogias como, por exemplo, “a comparação da criação divina com a obra de um artista terreno” (PANOFSKY, 2001, p.20). Desta forma, entende-se por meio destes autores que havia uma ideia de que a obra de arte era concebida através de um ato de graça, independente da ideia de natureza. Segundo Eco, “A Idade Média transmite ao Renascimento e ao maneirismo esta temática, e com exceção de sua expressão mais importante, a teoria aristotélica da arte, ela não consegue explicar o fenômeno da ideação de modo satisfatório, isto é, de modo a oferecer indicações à discussão posterior” (ECO, 1989, p.147). As Summas de Tomás de Aquino não tinham por objetivo explicar a criação artística, ou louvar a arte. Entretanto, essa analogia entre a criação divina e do artista servil muito adequadamente para aqueles que almejavam apresentar as virtudes deste ofício. O pintor Francisco Pacheco, em uma defesa da pintura sacra, recorre a esta alusão entre Deus e o artista, para ele “O altíssimo Deus é soberano artífice em fazer santos e quer e ordena que se lhes dê particular reverência e adoração. Os pintores católicos o imitam, fazendo imagens dos mesmos santos e de sua divina majestade” (PACHECO, 2004, p.86). Em Zuccaro encontramos também o conceito de que o desenho é formado na mente do pintor “Mas é verdade que por este nome de desenho interno não entendo somente o conceito interior formado na mente do pintor” (ZUCCARO, 2004, p.41). Zuccaro defendia que as ideias existiam em três diferentes estágios, começando pela mente de Deus, posteriormente na dos anjos e, por fim, na mente dos homens. Essa concepção está presente também no tratado de Lomazzo, mas possui mais afinidades com o neoplatônismo7. Para Blunt “Esse esquema e a exposição que Zuccaro faz dos trabalhos do intelecto estão perfeitamente de acordo com as doutrinas escolásticas, e, em muitos casos são explicados em passagens copiadas diretamente de Tomás de Aquino” (BLUNT, 2001, 187). Essa vertente de pensamento também é presente no tratado de Nunes. O dominicano não indica, por exemplo, em nenhum momento de seu tratado, que o artista faça o estudo da natureza, já que, para ele, a pintura seria uma arte tão rara que chega a ser quase divina. Nota-se que, ao dizer 7 Ver Blunt (2001), PANOFSKY (1994).

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GT | ANTIGUIDADE E IMAGEM RELIGIOSA que a pintura “toca quase o conhecimento divino, ter na mente tão vivas as espécies das cousas, que assi se posão pór em pratica, & Pintura que parece que lhe não falta mais que o spiritu” (NUNES, 1982, p.69), significa que, para Nunes o artista tem em sua mente as imagens e através dela põe em prática a pintura. A recomendação aí seria para que os pintores guardassem na mente os ensinamentos teóricos – “se o Pintor guardar esta ord em breve tempo alcançarà o que há nesta arte” (NUNES, 1982, p.90). Nota-se que essa posição é muito diferente do recomendado por Alberti – “poderão apreendê-los pela observação da natureza” (ALBERTI, 1992, p.115) e aproxima-se muito mais da ideia apresentada por Armenini. Este último deseja que seu tratado possa “abrir os olhos do intelecto”, trazer à mente, ou seja, não se mostra necessário para a pintura que o artista conheça o mundo natural, a beleza não pode ser encontrada aqui, ela está presente no âmbito da mente. Quanto mais reflito, jovens estudantes, sobre a beleza e a dignidade desta arte, e acho que como deleite e prazer traz à mente que aqueles que abrigam alguma luz, tanto me mais inflama o desejo de abrir-vos aos olhos do intelecto e ensino e mostrando, seres proveitoso (ARMENINI, 1999, p. 61)8

É possível concluir, por meio destes exemplos, que, mesmo que Filippe Nunes não tenha produzido em seu tratado maiores argumentações à respeito da arte ou alguma advertência em quanti à produção pictórica, seus pensamentos em acerca da pintura possuíam mais afinidades com as ideias escolásticas. Em relação ao tratado dos “maneiristas tardios”, Nunes não faz associação da proporção humana com grupos planetários que se encontra claramente em Lomazzo e de certa forma em Zuccaro9. A sessão sobre Symmetria do tratado de Nunes é apresentada de forma objetiva, mais próxima ao que se apresenta nos tratados matemáticos e arquitetônicos como os de Daniel Barbaro, e Vitrúvio, embora de forma extremamente reduzida. É possível que, assim como as concepções maneiristas tem forte influência em Zuccaro, Lomazzo e Armenini, ela estivesse presente em outras esferas sociais e de fronteiras. É válido lembrar que o maneirismo por sua vez emerge em um momento em que devido aos movimentos reformistas, há uma valorização e um sentimento de retorno ao passado medieval. Todas estas observações comungam para o entendimento de porquê em Portugal, um tratado como o de Filippe Nunes teria visto à luz, sendo que talvez ele não traduza especificamente a teoria da arte portuguesa. No entanto, como observado, é possível que ele estivesse mais de acordo com o que se poderia esperar de um tratado do início do século XVII.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, Leon Batista. Da Pintura. Trad. Antônio da Silva Mendonça. Campinas: Unicamp, 1992. ARMENINI, Giovanni Battista. De los verdaderos preceptos de la pintura. Introdução, tradução e notas Mª Carmen Bernárdez Sanchís. Madrid: Visor Libros, 1999. ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In.: CORBIN, A. COURTINE, Jean-Jacques e VIGARELLO, Georges (org). História do Corpo: da renascença às luzes. Trad. Lúcia M. E. Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. P.p. 535-620. 8 Tradução livre do trecho: “Cuanto más reflexiono, jóvenes estudiosos, sobre la belleza y dignidad de este arte, y considero cuanto deleite y placer aporta a las mentes que quienes albergan alguna luz, tanto mas me inflama el deseo de abriros los ojos del intelecto y, enseñando y mostrando, seros de provecho”. 9 “Mesmo Zuccaro, que em geral está livre desses traste particular, quando compara o desenho com o Sol como a fonte de toda a luz, não pode resistir a convocar Mercúrio, Júpiter e o resto para completar o retrato” (BLUNT, 2001, p.190)

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GT | ANTIGUIDADE E IMAGEM RELIGIOSA BETHENCOURT, Francisco. As Visitas. In.: Historia das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Século XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. P.p. 186-218. BLUNT, Anthony. Teoria artística na Itália 1450-1600. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. BORROMEO, Frederico, 1564 - 1631. [De pictura sacra. English & Latin] Sacred painting; Museum. Editado e traduzido por Kenneth S. Rothwell, Jr; introdução e notas de Pamela M. Jones. (The I Tatti Renaissence Library; 44). Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2010 CALADO, Margarida. Desenhar o corpo: uma metodologia de ensino constante na arte ocidental. In: C. Azevedo Tavares (Ed.). Representações do corpo na ciência e na arte. Lisboa: Fim de Século, 2011. P.p.109-124 COELHO, Antonio Borges. A imprensa. In.: Na esfera do mundo: história de Portugal. Volume IV. Alfragide: Caminho, 2013. Disponível em . Acesso em julho de 2016. DA VINCI, Leonardo. Tratado da Pintura (1490-1517) Trad. Magnólia Costa. In.: LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura: textos essenciais. Vol. 6: a figura humana. São Paulo: Ed. 34, 2004. P.p. 36-48 ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Trad. Mario Sabino Filho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1989 GOMES, Paulo Jorge Pedrosa Santos. Filipe Nunes, Arte Poética [1615]: Um Tratado maneirista de métrica. Estudo introdutório, estabelecimento do texto e notas.Dissertação (Mestrado em Letras. Coimbra: FLUC, 1996. HSIA, Ronnie Po-chia. La Controriforma: il mondo del rinnovamento cattolico (1540-1770). Trad. Elena Bonora e Carmen Menchini. Bologna: Società editrice il Mulino, 2009. MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004. NUNES, Philippe. Arte da pintura e symmetria, e perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura). LARA, Silvia Hunold (org). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. PACHECO, Francisco. A arte da pintura (1638). Trad. ngela Brandão. In.: LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura: textos essenciais. Vol 2: a teologia da imagem e o estatuto da pintura. São Paulo: Editora34, 2007. P.p. 83-88 PANOFSKY, Erwin. Arquitetura Gótica e Escolástica: sobre a analogia entre arte, filosofia e teologia na Idade Média. Tradução: Wolf Hönke. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PANOFSKY, Ewin. Idea: a evolução do conceito de belo. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1994. (coleção Tópicos). PIFANO, Raquel Q. Desenho e Composição em Filipe Nunes: subsídios para se definir artista colonial.

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GT | ANTIGUIDADE E IMAGEM RELIGIOSA In: XXX Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, 2011, Rio de Janeiro. Anais do XXX Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro: CBHA, 2010. v. 01. SERRÃO, Vitor. Impactos do Concílio de Trento na arte portuguesa entre o maneirismo e o barroco (1563-1750). In.: GOUVEIA, A. C. et. al. (coord). O Concílio de Trento em Portugal e nas suas conquistas: olhares novos. Lisboa : Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa, 2014. (Estudos de história religiosa ; 17). P.p. 103-132 ZUCCARO, Frederico. Idéia dos pintores, escultores e arquitetos (1607). Trad.Beatriz Blay e Ana Elvira Luciano Gebara. In.: LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura: textos essenciais. Vol. 3: A idéia e as partes da pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004. P.p. 40-54

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