Filosofia, a encruzilhada do conhecer: entre a criação e a técnica

July 3, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Martin Heidegger, Filosofía, Gilvan Fogel, Conhecer é Criar
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Filosofia, a encruzilhada do conhecer: entre a criação e a técnica Abraão Carvalho abraaocarvalho.com

“...a ciência nunca existiria se a filosofia não a tivesse precedido e antecipado.” Martin Heidegger

Em um primeiro momento afetados por uma certa cultura utilitária, poderíamos situar filosofia como algo desprovido de utilidade prática, na medida em que não se assemelha a nenhuma das ciências, e seu emprego, tal como nas ciências, não é de natureza instrumental. Ora, mas como poderíamos situar o que diferencia radicalmente a ciência da filosofia? O princípio orientador da ciência moderna 1 no mundo ocidental está situado na sua posição diante da questão do conhecimento, e por extensão, como este posicionar-se diante do conhecimento é aplicado na natureza e na

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Quando empregamos o termo ciência estamos a tomando no seu sentido

moderno, uma vez que “No seu começo, a ciência estava ligada à filosofia, sendo o filósofo o sábio que refletia sobre todos os setores da indagação humana. Neste sentido, os filósofos Tales e Pitágoras eram também geômetras, e Aristóteles escreveu sobre física e astronomia. (...) A partir do século XVII, a revolução metodológica iniciada por Galileu promove a autonomia da ciência e o seu desligamento da filosofia. Pouco a pouco, desse período até o século XX, aparecem as chamadas ciências particulares – física, astronomia, química, biologia, psicologia, sociologia etc -, delimitando um campo específico de pesquisa.” (O que é filosofia; Maria Arruda Aranha e Maria Pires Martins; p. 72 e 73.)

2 sociedade. Nesta direção, para toda e qualquer ciência é válida a estrutura sujeito (ser humano) e objeto, sendo o objeto o ponto desde o qual toda observação acerca da realidade se faz possível, vem a ser. Em outros termos, a realidade só aparece para a ciência desde que se tenha um objeto que é de interesse da investigação do sujeito. Isto é, quando nos perguntamos acerca do objeto de investigação da biologia, por exemplo, podemos responder de modo apressado que o seu objeto consiste na investigação sobre os seres vivos em suas manifestações animais, vegetais e humanas, etc. Este será sempre o ponto de partida para toda e qualquer investigação (ou observação) que é de interesse da biologia. A partir daí podemos compreender que a perspectiva de conhecimento da ciência está sempre desde um objeto específico de investigação, que constitui o seu ponto de observação, medição ou cálculo. Tomados subitamente, ou mesmo seduzidos pela ideia de que toda forma de conhecimento que encontramos na estrutura do currículo escolar possui o seu objeto de estudo específico, somos levados a pensar que a filosofia tem como interesse um campo particular de investigação da realidade. Mas enfim, qual é o objeto de investigação da filosofia? De certo não

encontraremos

como

na

ciência

que

predomina

no

mundo

contemporâneo ocidental, bem como habitualmente ouvimos na vida escolar, nenhum objeto particular de estudo próprio à filosofia, uma vez que a postura

da

atitude

filosófica

se

diferencia

radicalmente

da

ciência

justamente em virtude de sua posição diante do problema do conhecimento. Ora, mas qual é a posição da filosofia diante da questão do conhecimento? Ou antes mesmo, como podemos situar a distinção de posição diante da questão do conhecimento, da filosofia em relação à ciência que predomina em nosso raio histórico? A atitude filosófica se diferencia da ciência justamente por ser o seu modo de investigação não dirigido a um objeto particular de observação, medição ou cálculo, uma vez que é de interesse da filosofia a investigação da realidade em sua totalidade, universalidade.

3 Heráclito, filósofo que viveu na Grécia antiga, já indicava a natureza mesma da investigação filosófica ao afirmar que “Tudo é um”. Isto é, a realidade constitui-se como uma totalidade, e não como um conjunto de partes somadas, tal como nos seduz a pensar certo modo de ciência. Ora, se a filosofia tem como interesse investigar a realidade em sua totalidade, é a filosofia capaz de dar sentido e nome a tudo, uma vez que “Tudo é um”? Dito de outro modo, se “Tudo é um” segundo Heráclito, pode a filosofia dar nome ao “um”, ao todo, ao mundo, de maneira acabada e definitiva? De certo que não, pois a investigação do ser humano acerca das coisas e da realidade como um todo é por sua vez inesgotável. O conhecer a realidade, que é próprio da dinâmica da vida, consiste em uma atividade permanente, inacabada, e por isso mesmo inesgotável. Ao ser humano não cabe a decisão de conhecer ou não. Viver é conhecer. Este conhecer, sobretudo não se trata de um conjunto de regras acerca de como se deve proceder ao ato de conhecer, isto é, uma vez sendo a

relação

ser

humano–mundo,

o

acontecimento

existir-no-mundo,

o

horizonte da filosofia, esta por sua vez não trata de como o conhecer tem que ser realizado, ou antes

mesmo, que regras devemos dominar

anteriormente ou previamente ao ato de conhecer. A criação de regras e princípios que antecedem ao ato de conhecer é algo próprio da ciência moderna, isto é, para a ciência o conhecimento só é alcançado pelo ser humano se este antes estiver de posse de regras que o levem para tal fim, meta. Ora, mas de que regras que vêm antes do ato de conhecer, comum à ciência, estamos falando? Estamos nos referindo à maneira como a ciência compreende e se posiciona diante da questão do conhecimento, que situa entre ser humano e mundo, entre ser humano e conhecimento, uma (inter-) mediação. Ora, mas de que mediação entre ser humano e mundo, criada pela ciência, estamos nos referindo? Estamos nos referindo ao método científico. Método em grego significa caminho. Caminho é percurso a ser atravessado. Ora, mas que caminho, percurso, tem a ciência para levar o ser humano ao conhecimento, à verdade, ou

4 mesmo à possibilidade de verdade? O caminho entre ser humano e conhecimento para a ciência, é (inter-) mediado pela experimentação, medição, cálculo, quantificação. Deste modo, o cálculo, a quantificação, a experimentação, consistem no meio, no caminho, no percurso através do qual o ser humano é conduzido ao conhecimento daquilo que é. Cálculo por sua vez significa ordenamento, controle, asseguramento, planificação, uniformização, decodificação, isto é, cálculo (quantificação), consiste em um dis-por desde uma ordem aquilo que antes do cálculo estava dis-posto de maneira caótica, desordenada. É a passagem através de um método, caminho ou percurso, do sem sentido para o dis-por de sentido, do desconhecido para o conhecido, do desorganizado para o organizado, isto tendo como meio, regras que precedem, vêm antes do próprio ato de conhecer. Portanto, é através do método científico que o sujeito controla e domina o objeto, uma vez que só se abre para o ser humano a possibilidade de dominar, alterar e modificar o objeto desde que também venha a dominar o percurso, o caminho, as regras que levam o ser humano em direção ao conhecimento. Domínio sobre o método significa também possibilidade de domínio sobre o objeto. Isto é, domínio sobre o método de investigação da natureza ou do corpo humano, significa também possibilidade de domínio e alteração da natureza e do corpo humano. Nesta direção, dissemos que filosofia não se trata de um conjunto de regras que antecedem ao ato de conhecer, tal como é na ciência. Ora, como é então o conhecer desde o horizonte da filosofia? Ou antes mesmo, como tudo que há e é no mundo, o é desde um olhar filosófico? A filosofia se posiciona diante da questão do conhecimento sobretudo o compreendendo desde uma dis-posição possível. Na filosofia, ou melhor, no filosofar, tudo aquilo que é, o é desde uma dis-posição, e é a partir desta dis-posição que as coisas aparecem e mostram-se para o ser humano deste ou daquele modo. Dis-posição é o lugar desde o qual todas as coisas são

5 para o ser humano. Aquilo que aparece, no seu vir-a-ser, aparece como isto, como aquilo ou como aquilo outro. Gilvan Fogel em seu livro Conhecer é criar, nos dá uma indicação precisa acerca desta questão, nos abrindo um novo caminho de reflexão:

Tenho diante de mim uma laranja e, apesar de parecer supérfluo, pergunto: o que é uma laranja? Um botânico, um agrônomo, provavelmente técnico... de O globo rural (!!), responde-me algo mais ou menos assim: ‘é um fruto da espécie citrus sinensis, com a forma de uma grande baga esférica, dividida em vários... gomos e cuja a casca é de um amarelo dourado (cor de laranja!)’. Surpreende-me que, para o sitiante que a planta e a cultiva, assim como para o caminhoneiro que a transporta, ela, a laranja, é subsistência, sobrevivência – pão para seus filhos e família; ela é vida, é um extraordinário sentimento de elevação e de redenção para o enfermo, para o convalescente, que sorve seu sumo saboroso; dois guris a surrupiam do cesto e, na farra deles, ela é bola de futebol; abandonada na fruteira ou jogada sobre a mesa ela é, ela ‘vira’ ‘natureza morta’(...) ela é ainda tão-só a ‘cor laranja’ que embriaga

um

descuidado

contemplador

do

horizonte

ao

anoitecer; ela é também uma ‘porcaria’, uma ‘droga’, uma ‘sujeira’ para o varredor de rua, que a encontra esmagada, pisoteada e toda mosquitos pelo chão, depois da feira... Surpreende-me o fato de que a laranja, na verdade, não é tão tranquilamente laranja, isto é, não é tão uniforme, tão unidimensional ou tão univocamente laranja. (FOGEL, Conhecer é Criar, 2003, p. 19 e 20.)

Em vez de compreender o conhecimento unicamente como método, técnica, quantificação, cálculo, como regra que antecede ao ato de conhecer, o que encaminhamos aqui consiste em uma tentativa possível, não a única, de compreender de modo inacabado o problema do conhecimento como

6 condicionado e afetado que é, pela experiência, ou seja, pelos afetos ou mesmo tonalidades de humor que impulsionam as disposições dos modos diferenciados de existir, agir no mundo e nomear as coisas e a realidade. Por extensão, tudo aquilo que é para o homem o é desde um certo estado de humor, dis-posição, a saber, tonalidade afetiva, uma vez que tudo aquilo que aparece para o ser humano mostra-se no acontecer da experiência. Ora, se viver é inseparável do conhecer, na perspectiva filosófica conhecer é uma atividade permanente, pois a realidade é inesgotável quanto ao seu sentido. Nesta direção, como poderíamos pensar tendo como referência a ciência, em um lugar (ou posição) que está situado antes do conhecer? Dito de outro modo, existe para o ser humano em seu estar no mundo um lugar fora do conhecer, de onde podemos previamente (anteriormente) criar regras seguras para o ato de conhecer, tal como encontramos na pretensão da ciência? Em outros termos, se tudo aquilo que há e é para o ser humano, o é desde uma dis-posição, existe um lugar antes, ou mesmo fora dessa dis-posição? Ora, se todas as coisas que são para o ser humano, o são desde uma dis-posição, interesse ou perspectiva, o homem não conhece o mundo, as coisas, de outro modo senão já em relação com o mundo e as coisas, que se mostram, se fazem visíveis não como previamente estabelecidas, mas sim como modos de ser que aparecem no súbito acontecer da experiência. Nesta direção, na perspectiva filosófica não há este lugar ou posição situado antes ou mesmo fora do ato de conhecer. Portanto, o acontecer da experiência é como que o começo que instaura e inaugura toda realidade possível, isto é, que faz visível para o homem tudo que há e é. Interesse, dis-posição ou perspectiva é o que faz possível o vir-a-ser das coisas e do mundo para o homem. Não somente o vir-a-ser das coisas que mostra-se para o homem, mas também o homem vem a ser aquilo que é desde que é tomado e afetado de súbito pela abertura de possibilidades criadas pelo próprio acontecimento que é o existir no mundo.

7 Neste sentido, poderíamos ser levados a compreender que todos os seres humanos possuem interesses que são criados e projetados pelo próprio homem no mundo. (Isto seria tratar da questão do conhecimento com certa ingenuidade, e antes de tudo compreendê-la de maneira unilateral.) Antes mesmo, trata-se da inversão disso, a saber, é o interesse e a perspectiva que tem o homem, pois é necessário entender a “vida mesma como condicionada pelo perspectivístico”, como o afirma Nietzsche ao Prefácio de Humano, demasiado humano. Ou seja, aquilo que é, aparece para o homem sempre desde uma perspectiva, interesse, ou dis-posição que tem o homem. Não é o homem que tem o interesse, a dis-posição, a perspectiva, mas de modo inverso, o interesse ou a dis-posição que tem o homem. Acerca de um sentido mais preciso para dis-posição, é Heidegger em seu texto Que é isto - a filosofia?, que nos dá uma indicação:

...o nosso comportamento é cada vez dis-posto desta ou daquela maneira.(...) Se caracterizarmos a filosofia como a correspondência dis-posta, não é absolutamente intenção nossa entregar o pensamento às mudanças fortuitas e vacilações de estados de ânimo. Antes, trata-se unicamente de apontar para o fato de que toda precisão do dizer se funda numa disposição...

2

(...) Muitas vezes e quase por toda parte reina a ideia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representação e cálculo puramente lógicos é absolutamente livre de qualquer disposição. Mas também a frieza do cálculo, também a sobriedade… da planificação são sinais de um tipo de dis-posição. Não apenas isto; mesmo a razão que se mantém livre de toda influência das paixões é, enquanto razão, pre-dis-posta para a confiança na evidência lógico - matemática de seus princípios e regras. 3

Daí compreendermos que não há ser humano sem dis-posição, ou nas palavras de Gilvan Fogel em seu livro Conhecer é criar, “não há homem sem 2

Heidegger, Que é isto – a filosofia? - p. 21.

3

Idem, p. 22 e 23.

8 ‘lugar’, sem ‘situação’, sem algum ‘interesse’”. Deste modo, ao homem não é dada

a

possibilidade de

colocar-se

fora

ou

antes

desse

interesse,

perspectiva ou dis-posição, para daí apreender e conhecer o mundo e as coisas. Neste

sentido,

podemos

situar

duas

maneiras

possíveis

de

compreensão da questão do conhecer, condicionado, atravessado e afetado que é pela experiência, dis-posição ou interesse. A saber, uma consiste na perspectiva que predomina em nosso raio histórico, trata-se da ciência moderna, para a qual as coisas são desde que sejam quantificáveis, e que a verdade ou mesmo possibilidade de verdade acerca do mundo e das coisas se dá a partir desta dis-posição que nega outras possibilidades de conhecimento. Essa “É a postura da ‘razão técnica’ - era técnica... E o que quer dizer isto: suposição de categorias, as quais se atribui somente uma função cibernética, isto é, uma posição de controle, de ordenamento, de planificação, enfim, de ‘cálculo’?!”4 A outra maneira possível de compreensão da questão do conhecimento é na perspectiva de Gilvan Fogel a “interpretação-apropriação (criaçãoliberdade)”, que não trata de compreender todo o real como técnica. Isto é, tal

perspectiva

consiste

em

uma

necessidade

de

“compreensão

e

determinação do real, a partir de uma experiência possível, então, necessária - enfim, nesse âmbito, o conhecimento caminha junto com o ‘real’, quer dizer, com a experiência, à medida que esta..., (em) sendo a própria dinâmica da vida, é criação.”5

4 5

Gilvan Fogel, Conhecer é criar, p. 60. Idem, p. 61.

9 REFERÊNCIAS

FOGEL, Gilvan. Conhecer é criar: um ensaio a partir de F. Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003. HEIDEGGER, Martin. Que é isto – A Filosofia? (p. 13-24). Os pensadores; tradução de Ernildo Stein; Nova Cultural, São Paulo, 1991. Arruda Aranha, Maria Lúcia & Pires Martins, Maria Helena. Introdução à filosofia. In: Filosofando. Editora Moderna, São Paulo, 1993.

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