FILOSOFIA DA AUTONOMIA

July 22, 2017 | Autor: Victor Marques | Categoria: Philosophy, Ethics, Immanuel Kant
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FILOSOFIA DA AUTONOMIA:
PONTOS HISTÓRICOS, PROVOCAÇÕES E PERSPECTIVAS ATUAIS

Me. Victor Hugo de Oliveira Marques

A acepção filosófica da autonomia, em termos gerais, é algo bem
recente e tem seu auge na modernidade iluminista. Apesar de divergências
entre as literaturas, ainda sim é possível desenvolver um histórico da
evolução desse conceito. Etimologicamente, autonomia é a justaposição de
dois léxicos gregos: ἀυτο e νόμοϛ. Ἀυτο significa "de si mesmo", tal como
na sentença "Sócrates mesmo" ou "o próprio Sócrates", podendo ainda
significar o pronome pessoal "ele" ou "ela" (ἀυτός/ἀυτή), o demonstrativo
"dele" (ἀυτοῡ), ou ainda um adjetivo como no caso de ἀυτοαγαθός (o bem em
si) (BLANCHARD, 2014). O segundo termo, νόμοϛ, comumente traduzido por lei,
possui uma significação anterior. Originalmente, νόμοϛ designava um pasto
fechado a qual circulavam livremente, mas dentro desse limite, animais de
rebanho. Posteriormente, o termo foi adaptado para dois usos: para a
codificação de leis e para aquelas regras morais não-escritas que regiam a
vida na polis (BLANCHARD, 2014). Assim, de modo geral, ἀυτονόμοϛ é tudo
aquilo que tem por base "leis próprias". A questão que se apresenta – e que
de alguma forma abriu a gama de problemas pertinentes à história desse
conceito na perspectiva filosófica – é se autônomo é aquilo que
efetivamente produz suas leis sobre as quais está assentado (âmbito da ação
particular) ou se é a capacidade de assim agir (âmbito das condições
transcendentais) sem necessariamente ter que fazê-lo.
Entre os gregos antigos, o termo já justaposto – ἀυτονόμοϛ – aparece
em textos como dos historiadores Heródoto, Thulcides e Xenophon[1] para
indicar a busca do autogoverno das cidades gregas frente às tentativas de
dominação de outros povos. Isso indica que a acepção de autonomia por um
lado aparece diretamente ligada à autodeterminação política da polis e por
outro aponta para a total independência frente a outrem. Com efeito, a
ideia de autonomia não apenas quer dizer o uso ou a capacidade de assentar-
se sobre leis próprias, mas também a total exclusão de leis extrínsecas a
si própria. Nos termos de Kant, a autonomia originariamente emerge em
oposição à heteronomia. Esse dado é de suma importância para a reconstrução
filosófica do conceito de autonomia, sobretudo, porque suas acepções
filosóficas ao longo da história acabam ficando atreladas às várias
heteronomias que ela se opõe. Para ficar mais claro, as variações
históricas do conceito filosófico autonomia depende diretamente daquilo que
ele se opõe, de modo que há paralelamente a ele uma variação das acepções
das heteronomias (ZATTI, 2007).
Com a ascensão do conhecimento filosófico, Platão e Aristóteles
introduzem outro elemento importante para a compreensão da autonomia. A
exemplo de Sócrates, ambos, cada um a seu modo, afirmavam uma distância
irreconciliável entre a crença comum ou opinião (δόξα) e o saber verdadeiro
ou sabedoria (ἐπιστήμη). Essa ruptura se dava devido ao fato de que o real
só poderia ser descrito (λέγεις) de modo verdadeiro, i. é em seus
fundamentos (ἀρχῇ), a partir de um discurso regido pela razão.
Efetivamente, a razão se tornava a instância necessária e nuclear para a
construção tanto do conhecimento quanto para o delineamento ontológico do
ser do homem. De modo especial em Platão, o ser humano, concebido como uma
alma, tinha por obrigação governar suas paixões a partir de sua alma
racional: "os verdadeiros filósofos se acautelam contra os apetites do
corpo, resistem-lhes e não se deixam dominar por eles..." (Fedon, XXXII,
s.d., p.27). Esse "autogoverno" é entendido como uma ἀρετή, ou seja, como
uma virtude que, além do mais, justifica a separação dos filósofos para os
altos cargos de magistrados – como sustenta Platão no diálogo O Político –
frente ao cidadão comum e aos demais. Na esteira de Platão estão
Aristóteles e mais tarde a corrente estóica. No que concerne ao Estagirita,
ele também defendeu, em certo sentido, uma ideia de um autogoverno quando
em Ética a Nicômaco ele escreve: "A virtude é, então, uma disposição de
caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, consistente numa
mediana [...] É um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por
falta..." (EtNic, II, 6, 1107a, 2008, p.49). Na mesma medida, a ética
aristotélica propõe uma co-pertença entre a ideia de virtude e a ideia da
felicidade (εὐδαιμονία), sendo essa última ligada à ideia de Bem.
Embora sem utilizar especificadamente o termo autonomia, o pensamento
filosófico grego, em certo sentido, sustentou uma ideia de autogoverno no
âmbito da compreensão do homem, o que preparou, muitos séculos depois, o
arcabouço filosófico de compreensão da autonomia. Explicando: a recepção de
certa ideia de autocontrole advinda da vida na polis pelo conhecimento
filosófico grego, de algum modo, preparou um fundamento seguro que pudesse
delimitar as fronteiras entre a autonomia e a heteronomia. Com efeito, o
"poder suster-se em leis próprias" ou o "ato de assim fazê-lo" ganharia
como fundamento o horizonte antropológico, tal como pensava os gregos: o
autogoverno humano pela razão rechaçando assim qualquer interferência das
paixões. A partir de então, a autonomia deveria, à medida que sua entrada
na filosofia fosse se aprofundando, sair da esfera política e ser pensada
desde a pergunta pelo homem, sendo que o seu fundamento fundaria também o
"ser-autônomo". No caso dos gregos, ser autônomo é ser guiado pela razão,
de modo que se oponha necessariamente às paixões corpóreas.
Não obstante ao fundamento racional oferecido pelo conhecimento
filosófico grego, o predomínio das filosofias de matriz religiosa oriundas
do pensamento monoteísta oriental, em especial o Cristianismo, favoreceu a
problematização de mais dois elementos preparatórios para que o pensamento
filosófico pudesse ter condições de desenvolver o conceito de autonomia, a
saber: a vontade e a liberdade. A filosofia agostiniana pode ser tomada
como um "prenúncio à idéia do homem como ser de autonomia bem antes de as
especulações kantianas sistematizarem um conceito moral específico, acerca
dessa categoria" (REEGEN; CHAVES, 2007, p.44). Ao tratar do problema do
mal, na esteira do neoplatonismo, mas já com algumas rupturas, o Bispo de
Hipona assevera que a fidelidade à razão é um arbítrio da vontade. À medida
que a razão é a instância da alma em que reside a verdade pela iluminação
divina, seguir ou não essa razão depende única e exclusivamente da vontade
livre. Nesse sentido, Agostinho rechaça a posição maniqueísta a respeito da
existência do mal e responsabiliza o ser humano por suas ações. O
autocontrole humano – essa capacidade de suster-se em leis próprias ou a
ação de assim agir –, que nos termos de Agostinho se traduz pela escolha do
Sumo Bem e pela Beatitude, deve necessariamente passar por um ato volitivo
que, em sua essência, está calcado no livre-arbítrio. A introdução do
arbítrio da vontade feita por Agostinho trousse a discussão do autocontrole
– entendido como fidelidade à razão divina – para próximo da discussão
aristotélica no que diz respeito à busca individual pela felicidade. Para
ambos, o autocontrole humano teria como único propósito a felicidade que se
traduz em εὐδαιμονία, no caso de Aristóteles, e Beatitude, no caso de
Agostinho.
A passagem do Medievo para a Modernidade representou, de modo
definitivo, as primeiras explorações filosóficas a respeito da compreensão
de autonomia propriamente dita. Desde o Renascimento, o ser humano, cada
vez mais consciente de seu lugar no mundo – preconizado pela famosa obra de
Pico Della Mirandola: Oratio – reivindica para si mais do que um simples
autocontrole. Na verdade, eles estão atrás de uma liberdade radical, não
apenas de suas paixões corporais, mas frente à natureza, à ignorância e aos
ditames da religião. (VALADIER, 2013). Essa reivindicação, por sua vez,
instaura uma consciência humanística que alavanca o forjamento de uma
compreensão de autonomia em termos de dignidade humana. Por detrás dessa
nova preocupação – a dignidade humana – está toda a tradição racionalista,
que remonta a Agostinho e Platão, e perpassa Maquiavel, Lutero, o
Cartesianismo (no sentido amplo da acepção do termo) e alcança o
Iluminismo.
Os iluministas, a seu passo, calcados nos propósitos modernos da
ciência natural de inspiração empírica, desenvolvem propriamente uma
acepção filosófica de autonomia. Há todo um interesse filosófico em
compreender o que é realmente ser autônomo, ou seja, ser alguém que seja
capaz de estar assentado em leis próprias ou alguém que efetive a produção
dessas leis. Para tanto, todo o arcabouço filosófico desenvolvido pela
tradição racionalista a respeito da ideia antropológica de um autocontrole
centrado na fidelidade à razão, mediante o arbítrio da vontade, a fim de ir
ao encontro da felicidade, esse ideal é agora assumido pelos filósofos
iluministas de modo a produzir uma perspectiva filosófica a respeito da
autonomia. Contudo, ao contrário dos racionalistas, a autonomia entendida
pelos iluministas deveria estar fundada não mais em uma razão contemplativa
e sim em um modelo racional que se dobra a evidências empíricas e
matemáticas, a fim de libertar o homem da superstição e da ignorância. A
busca pela felicidade que já era presente na tradição agostiniana passa a
ter uma importância central para o homem moderno e esta, a seu passo,
estaria ligada apenas com os aspectos materiais (ZATTI, 2007), rompendo
assim com os aspectos metafísicos e religiosos, e com o compromisso de
reduzir o sofrimento humano.
Com efeito, é com Kant que o conceito filosófico de autonomia
realmente ganha força e centralidade. Kant assume toda a discussão a
respeito da autonomia feita até então – como o papel da razão, da vontade,
da liberdade e da felicidade – e consegue dar-lhe um contorno realmente
crítico, i. é filosófico, sobretudo quando, à luz das discussões sobre a
liberdade moral de Rousseau (DRYDEM, 2015), ele introduz a questão moral.
Desse modo, Kant desenvolve o que Drydem (2015) e outros teóricos chamam de
"autonomia moral". Por um lado, Kant procura recuperar o sentido mais
especulativo da autonomia, ou seja, leva em consideração um modelo racional
mais amplo do que simplesmente o modelo da racionalidade empírica
(apriorismo), de modo a compreendê-la menos reduzida o possível e mais
integral; por outro, ao configurar a autonomia desse modo, Kant retira de
sua discussão o sentido empírico do ser autônomo e a sua busca pela
felicidade (ZATTI, 2007). A partir da leitura de Figueiredo (2013) é
possível identificar três sentidos para o conceito de autonomia em Kant: um
sentido epistemológico, ou como esse comentador mesmo diz "mais geral", um
sentido moral, ou "mais canônico" e um sentido histórico-político.
Esse primeiro sentido, mais de caráter epistemológico, já aparece
implicitamente na primeira crítica kantiana: "a ideia de uma razão capaz de
criticar a si mesma traz consigo, de modo implícito, mas nem por isso menos
fundamental, a ideia de que esta razão possa receber de si mesma sua
legalidade" (FIGUEIREDO, 2013, p.10). Isso significa que a "autocrítica da
razão supõe que a razão já seja autônoma". (FIGUEIREDO, 2013, p.10), pois a
operação por meio da qual a razão institui e reconhece os limites do uso
legítimo de suas faculdades não procede de uma instância exterior à razão.
O segundo sentido aparece quando Kant faz uso do próprio termo
autonomia na segunda e terceira seções da Fundamentação da Metafísica dos
costumes e na "Analítica" da segunda crítica. De acordo com a leitura de
Figueiredo (2013, p.11) sobre Kant, o significado canônico do conceito de
autonomia pode ser compreendido como a "lei moral que a razão humana
outorga a si mesma". Ao contrário de deixar os princípios pelos quais
tomamos as decisões ser determinados por nossos líderes políticos, pastores
ou a sociedade, Kant convoca a vontade a determinar-se sendo guiada por
princípios próprios, relacionando assim a ideia de autogoverno à de
moralidade; em vez de ser obediente a uma lei imposta externa ou preceito
religioso, seja obediente às suas próprias leis impostas por você (DRYDEM,
2015). A tudo aquilo que é contrário a autonomia, Kant chamou de
heteronomia. Destarte, autonomia, consiste em qualificar a ação moral
mediante a extração em sua própria razão de um princípio para sua conduta.
Esse conceito na mesma medida em que rechaça qualquer pretensão
voluntarista – haja vista que a vontade deve querer aquilo que a razão
prática lhe outorga –, subordina-lhe a compreensão da moralidade como
resultado da autonomia (SCHNEEWIND, 2013, p.08).
Se ser autônomo para Kant é oferecer para si mesmo uma lei moral
retirada de si mesma como princípio para ação, portanto é necessário
admitir que há uma decisão subjacente à conduta heterônoma, o que seria o
mesmo que "não que sou conduzido pelas paixões, mas que me deixo conduzir
por elas". (FIGUEIREDO, 2013, p.11). Essa decisão livre da vontade entre a
autonomia e heteronomia também deve ser livre, o que torna próximo o
conceito de autonomia com o de liberdade. Essa aproximação entre autonomia
e liberdade mostra ainda que o agente moral kantiano não é um "indivíduo
massacrado por aquela lei moral que aplica a si mesmo", muitas vezes contra
suas inclinações sensíveis; ao contrário "ele dispõe da crença prática de
que poderá gozar da felicidade, caso se torne digno para isso" (FIGUEIREDO,
2013, p.11). Essa ressalva com respeito à felicidade evidencia a postura
kantiana sobre a busca pela felicidade, como declara Figueiredo (2013,
p.12): "Kant insistiu em nos precaver contra a subordinação da moral à
felicidade, contra a tendência, muito em voga, de que temos de atingir a
felicidade, custe o que custar". Assim, a acepção moral de Kant não deve
ser vista como uma moral do dever, comumente apregoada, senão como "uma
moral do sentido do dever" (FIGUEIREDO, 2013, p.12).
Toda e qualquer ação, quando avaliada moralmente, não pode prescindir
de máximas ou princípio que a regem. De acordo com Kant, essas máximas ou
princípios, uma vez que são outorgadas pela razão prática, devem, por um
lado, pretender à universalidade de modo que sejam aceitas e desejadas por
todo ser racional, e por outro, tomar os agentes morais inequivocamente
como fins em si mesmos e nunca como meio. Nessa perspectiva, a do "Reino
dos Fins", a qual todo ser humano é um fim em si mesmo e por isso mesmo é
dotado de dignidade, é que Kant rechaça qualquer ingerência das
inclinações, desejos, emoções e paixões, tomando-as como extrínsecas à
autonomia. A justificativa kantiana para esse rechaço está na própria
configuração metafísica do ser humano, a qual radicalmente separa aquilo
que é propriamente fenomenal do que é propriamente noumenal. Os aspectos
fenomenais humanos – ligados às nossas sensações e experiências – estão
sujeitos às leis da causalidade natural e, por essa razão, são
heteronômicas (DRYDEM, 2015). Portanto, "Kant jamais abre mão da prioridade
dada ao altruísmo e à restrição ao egoísmo" (FREIG, 2013, p.23).
Há, por fim, um terceiro sentido de autonomia no corpus kantiano.
Trata-se de uma acepção muito próxima do significado moral propriamente
dito, mas que é mais amplo que ele. Corresponde ao ideal prático-político
do esclarecimento. Kant define este último como "saída da menoridade" ou
"esclarecimento" (Aufkäerung) no opúsculo de 1784. (FIGUEIREDO, 2013). O
sujeito esclarecido, com efeito, deve decidir servir-se de seu
entendimento, que se propõe a pensar por si mesmo, a refletir por conta e
risco. Contudo, nem sempre isso depende apenas da decisão individual do
agente, mas das condições inerentes ao contexto no qual ele vive. Nesta
medida, Kant identifica o esclarecimento como um processo sociopolítico
específico que confere cidadania filosófica à ideia de atualidade
(FIGUEIREDO, 2013). Ser esclarecido, ou seja, autônomo, não é um ato
meramente subjetivo ou particular de um ou outro indivíduo, mas é um
processo de esclarecimento da sociedade que lhe é contemporânea. Não basta
que um indivíduo seja esclarecido, é necessário que o momento histórico
assim também o seja, pois "ser autônomo é tornar a própria época
contemporânea a si mesmo" (FIGUEIREDO, 2013, p.11).
A perspectiva filosófica do conceito de autonomia kantiana abriu, de
modo geral, duas modalidades de compreensão desse conceito. Por um lado,
Kant, desde a perspectiva transcendental, recolocou a discussão da
autonomia sobre um fundamento diferente daquele recebido da tradição, i. é,
a autonomia deixa seu fundamento antropológico de matriz racionalista – a
qual estava em jogo uma noção de autocontrole favorecida por uma fidelidade
à razão (tanto especulativa, pelo lado da tradição metafísica; quanto
empírica pela tradição iluminista inglesa) a ser efetivada pela vontade
livre – para um fundamento transcendental a partir da razão prática. Nessa
medida, a compreensão de autonomia, com Kant, ganha o caráter de condição
de possibilidade para toda e qualquer ação moral. Ser autônomo é ter as
condições de possibilidade necessárias para oferecer a si mesmo máximas que
conduzirão universalmente toda e qualquer ação. Independentemente se o
agente assim o faz – decide pelas regras morais dadas pela razão pratica –
o ser humano é um ser autônomo, pois ele é possuidor das condições
necessárias da autonomia, ou seja, ele é digno por natureza.
Por outro lado, o movimento Romântico posterior a Kant, reagindo
contra a ênfase na universalidade da razão apresentada pelo Esclarecimento
da qual fazia parte Kant, priorizou a particularidade e a individualidade.
Eles destacaram, em especial, o papel das paixões e emoções sobre a razão,
e a importância do desenvolvimento daquilo que é mais próprio. Mill,
herdeiro da tradição romântica, também elogiou e defendeu o desenvolvimento
e o cultivo da individualidade a partir do utilitarismo de Bentham,
escrevendo que
Uma pessoa cujos desejos e impulsos são próprios – são as
expressões de sua própria natureza, como ela tem sido
desenvolvida e modificada por sua própria cultura – está
pronta para ter um caráter. Aquele cujos desejos e
impulsos não são próprios, não tem caráter, não mais do
que uma máquina a vapor tem um caráter (MILL, 1956, p.73
apud DRYDEM, 2015, p.03).


Com efeito, a noção de autonomia disseminada durante o romantismo, ao
contrário de Kant, priorizou a efetividade particular e individual de
legislar sobre si mesmo. Dizendo de outro modo, a autonomia perseguida pela
era romântica, de modo geral, afirma que ser autônomo é efetivamente
extrair das conseqüências empíricas particulares e individuais da ação seus
princípios morais, tal como pensava o utilitarismo de Mill. Independemente
das condições universais da ação moral, o ser humano se torna autônomo
quando, por si mesmo, efetiva suas ações baseadas em suas experiências
pessoais. A autonomia, agora, é pensada não mais vinculada à razão prática
nem em suas condições universais, mas diretamente pensada como o ato de
extrair leis morais a partir da experiência pessoal. É nesse sentido,
portanto, que a noção filosófica de autonomia, ao final da modernidade, se
polariza entre suas condições universais (Kant), enquanto autonomia moral,
e os atos particulares (pensamento romântico), enquanto autonomia pessoal;
entre o ser-autônomo e o torna-se autônomo.
A reconciliação entre essas duas perspectivas pode ser postulada a
partir da emergência do pensamento fenomenológico. Na esteira de Husserl,
Heidegger propõe uma hermenêutica filosófica do real baseada em uma
ontologia a qual ele denomina: fundamental. Na esteira do pensamento
kantiano, em especial o Neokantismo de Marburg, Heidegger também admite que
o ser humano não pode ser meramente meios ou instrumentalidades, ao
contrário, pertence ao reino dos fins; em suas palavras, não é um ente
simplesmente dado, e sim um Dasein. Reconsiderando as perspectivas
filosóficas sobre o ser do homem desde a perspectiva do Dasein, o filósofo
da Floresta Negra o compreende a partir de um horizonte ontológico
totalmente novo, qual seja, como um ser-no-mundo, a fim de dirimir as
polaridades que a história o cumulou. Destarte a noção de autonomia, na
compreensão onto-fenomenologica, deixa de ser fundada tanto na razão
prática de Kant quanto na ação particular da filosofia romântica,
pragmática e utilitarista, pois essa passa a ter como fundamento o modo de
ser do homem. De acordo com Heidegger, a noção de autonomia é agora pensada
em termos de autenticidade ou "ser-mais-próprio" (Eigentlichkeit). A
autenticidade pensada por Heidegger não diz respeito a nenhuma condição a
priori de outorgar a sim mesmo, pela razão prática, leis morais nem
tampouco o ato de conferir regras para ação extraídas da experiência; mas
passa pelo reconhecimento angustiante do clamor da consciência de que o
modo de ser do homem não se identifica com nenhum outro ente. O Dasein é um
modo de ser diferenciado dos demais, pois só ele é capaz de compreender o
seu modo de ser cuja característica nuclear é ser um ser destituído de
qualquer natureza previamente constituída. Para Heidegger, nada pode
determinar o ser humano, ele é pura possibilidade. Essas possibilidades que
o compõem em seus modos de ser exigem-lhe uma constante saída de si para o
encontro de si mesmo.
Desde essa ótica, o ser humano é um ser transcendente, i. é, é um ser
que constantemente deve sair-de-si-mesmo a fim de querer encontrar-se. Isso
significa que tudo aquilo que o ser humano postula, deseja, faz para si
mesmo ou consigo mesmo não é ainda o encontro de si-mesmo e nem determina
que ele está sendo autônomo. Para Heidegger, ser autêntico é compreender-se
como um ser que é pura possibilidade e que essas possibilidades o
identificam, mas nenhuma delas, propriamente, determina o seu si mesmo.
Entretanto, dizer que o Dasein em sua autenticidade é pura possibilidade
não significa dizer que ele é ilimitado; pelo contrário as possibilidades
são condicionadas por um limite último a qual ninguém escapa: a morte.
*
Feita essa caminhada histórica sobre o conceito de autonomia, como
hoje podemos perceber ou reconhecer um ser-autônomo? Valendo-se da análise
de Fleig (2013), a atualidade (seja ela pós-moderna, contemporânea ou a
modernidade tardia) se caracteriza pela emergência de novos ideias que
propugnam uma sociedade de indivíduos que reúne meros sujeitos de direitos,
comandados por imperativos hedonistas, ou seja, de gozar a qualquer preço e
do que convier, sem depender de ninguém e de nada e sem limites. O avanço
das tecnologias forjou uma ideologia de um progresso absoluto, sem limites
nem fronteiras éticas. A chamada "questão da técnica" para Heidegger e a
indústria cultural para os Frankfurtinianos gradativamente assolam a
atualidade. Todo esse fenômeno é denominado por Fleig (2013) de "delírio da
autonomia". O delírio da autonomia, segundo Fleig (2013) não é simplesmente
a perda da autonomia para a heteronomia, é mais preocupante ainda, é a
dominação do egoísmo. O egoísmo, diferentemente da heteronomia que segue
regras preestabelecidas tanto por forças extrínsecas (como leis civis e
religiosas) como por forças intrínsecas (desejos e sensações), é a
transformação do eu em critério último para toda e qualquer ação. Tudo deve
girar em torno do eu. Isso não seria, de maneira nenhuma, uma volta a
Descartes ou Fichte que postulavam um eu racional. Na verdade, o egoísmo
atual refere-se a satisfação prazerosa do eu custe o que custar. Daí o
modismo da busca pela felicidade, das auto-ajudas etc.
O que pode a filosofia contribuir com essa situação atual? Sem querer
oferecer receita de bolo, algumas intuições daquilo que foi falado pode
contribuir. Das contribuições de Kant, a compreensão de que a dignidade
humana é um fator inalienável, pois o ser humano enquanto fim em si mesmo é
um aspecto a ser recuperado. Outro ponto importante advindo da filosofia
kantiana é a desconfiança que esse filósofo tem da busca desesperada por
felicidade, hoje tão em voga, bem como a vinculação necessária entre o ser-
autônomo e o ser-ético. Essa desvinculação tem muita responsabilidade sobre
o fenômeno do delírio da autonomia. Das contribuições da filosofia
romântica em geral, deve-se recuperar o fato de que, contrário a Kant, não
existe autonomia radicalmente desvinculada com a heteronima, pois as
experiências pessoais tanto individuais quanto coletivas podem oferecer
elementos importantes para a construção da autonomia. Assim também como não
existe uma heteronomia radical alienada de toda e qualquer
autodeterminação. De Heidegger, pode ser recuperado, além do próprio termo
proposto pelo filósofo: autenticidade, o fato de que o ser humano é uma
existência em constante dinâmica. Ser autêntico ou "mais-próprio" implica
em reconhecer um valor histórico e uma finitude, i. é, compreender que tudo
o que construímos de nós e para nós não esgota a possibilidade de nos
transcendermos.
Mas quais são os nossos desafios? Em primeiro lugar, se estamos
vivendo em uma sociedade em delírio, em termos de autonomia, a primeira
pergunta a ser feita é: [1] é possível reconhecer as fronteiras entre
autonomia e heteronomia a fim de recriar as condições de equilíbrio entre
ambas as perspectivas? [2] Será que nossos acadêmicos desejam ser
autônomos? [3] Como reagir se a resposta coincidir com suas ações, ou seja,
se eles realmente não desejarem ser autônomos? Segundo Kant, necessitamos
de uma instância de decisão livre até para sermos heterônomos. Nesse caso,
[3] se vivemos em uma sociedade cujo delírio da autonomia é sua marca, é
possível dizer que temos um modelo educacional que tem como resultado a
decisão pela não autonomia?





REFERÊNCIAS
BLANCHARD, K. The Evolutionary Origins of Human Autonomy. In: Natural Right
and Biology. Disponível em:
http://naturalrightandbiology.blogspot.com.br/2014/02/the-evolutionary-
origins-of-human.html Acesso: 23/01/2015.

ZATTI, V. Autonomia e Educação em Immanuel Kant e Paulo Freire. Porto
Alegre: Edipucrs, 2007. (Disponível em:
http://www.pucrs.br/edipucrs/online/autonomia/autonomia/autonomia.html
Acesso: 23/01/2015.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

PLATÃO. Fédon, s.d. Disponível online.

REEGEN, J. G. J.; CHAVES, N. S. Santo Agostinho e Kant: um encontro de
pensamentos na categoria da autonomia. Ágora Filosófica, ano 7, n. 1,
jan./jun, pp.43-61, 2007.

VALADIER, P. Heteronomia e autonomia são indivisíveis. Revista do IHU. São
Leopoldo, n.417, ano XIII, 2013.

DRYDEM, J. Autonomy. In: Internet Encyclopedia Philosophy. A Peer-Reviewed
Resource. Disponível em: http://www.iep.utm.edu/autonomy/ Acesso:
23/01/2015.

FIGUEIREDO, V. B. Autonomia como ideologia? Revista do IHU. São Leopoldo,
n.417, ano XIII, pp.10-14, 2013.

SCHNEEWIND, J. B. Kant e a moralidade como resultado de nossa autonomia.
Revista do IHU. São Leopoldo, n.417, ano XIII, pp.06-09, 2013.

FLEIG, M. O indivíduo autônomo de Kant: um ideal ainda esperado. Revista do
IHU. São Leopoldo, n.417, ano XIII, pp.22-25, 2013

-----------------------
[1] Cf. BLANCHARD, K. The Evolutionary Origins of Human Autonomy; ZATTI, V.
Autonomia e Educação em Immanuel Kant e Paulo Freire.
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