Filosofia da Biologia: problemas de encaixe - o que mantém as espécies distintas. In: Filosofias(s). Rio do Sul: UNIDAVI. pp. 45-61, 2010

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III FILOSOFIA DA BIOLOGIA PROBLEMAS DE ENCAIXE: O QUE MANTÉM AS ESPÉCIES DISTINTAS? Gustavo Leal-Toledo

Normalmente consideramos as espécies como claramente separadas uma das outras. Cada espécie correspondendo a uma qualidade ou tipo natural diferente. No entanto, o essencialismo biológico, que é esta visão de que a diferença entre as espécies é qualitativa, caiu em desuso na biologia quando evolucionismo trouxe consigo o chamado “Pensamento Populacional”. Dentro desta nova visão de mundo a diferença entre as espécies é uma diferença de quantidade de variação e de freqüência probabilística dos genes. Mas se espécies não são qualidades distintas, o que as mantém separadas? A Scala Naturae é aquela velha visão da natureza como uma escada ou uma pirâmide onde o homem ocupa o topo simbolizando que ele está, de certa maneira, fora da natureza. Nela cada espécie ocupa um degrau diferente, são qualidades diferentes. Dentro desta visão, a única diferença que importava era a diferença entre as espécies. Uma espécie em si mesma era considerada como formada de indivíduos praticamente idênticos ou com diferenças irrelevantes entre eles. A verdadeira diferença era a diferença entre uma espécie e outra. Esta era uma diferença qualitativa ou essencial, por isso tal visão foi chamada de essencialismo biológico. “Essências eram definitivas, e portanto eternas, imutáveis e ou-tudo-ou-nada. Uma coisa não podia ser mais ou menos prata, quase ouro ou semimamífero”13. A nova visão de mundo que surge no evolucionismo, e que acaba com a Scala Naturae, é melhor demonstrada pelo pensamento 13

Dennett, 1998, p.37

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populacional. Este é a capacidade de quantificar a evolução. Simplificadamente ele funciona da seguinte maneira: escolhe-se um traço fenotípico qualquer, por exemplo, o tamanho do bico de certo pássaro. Mede-se o tamanho do bico de vários indivíduos dentro de uma determinada população e, depois, repete-se várias vezes esta mesma medição prestando atenção para a diferença no tamanho dos bicos e para a sobrevivência dos indivíduos marcados. Se, por exemplo, em uma próxima medição forem encontrados mais indivíduos com bicos longos e for notado que um número proporcionalmente maior de indivíduos com bicos curtos marcados morreu, então podemos ver que há uma pressão seletiva para bicos longos. Quanto maior for o diferencial entre as duas medições, maior a intensidade da seleção. Assim podemos ver como a seleção natural está afetando o tamanho dos bicos e com que intensidade ela está afetando. É deste modo que obtemos o “coeficiente de seleção”. Para deixar tal procedimento mais intuitivo podemos dar o seguinte exemplo: uma vantagem reprodutiva de 1% em uma população de 10.000 indivíduos precisará de 1.980 gerações para que esta vantagem se dissemine pela população14. Se no caso estivermos falando de, por exemplo, camundongos, então isso se traduz em só 2.000 anos ou menos. Um tempo evolutivamente muito curto! Vemos que a visão de mundo que surge aqui é a da diferença quantitativa entre indivíduos de uma mesma população. Esta é uma visão completamente diferente da visão antiga que era a de uma diferença qualitativa entre espécies. Tal visão antiga era melhor representada pela Scala Naturae que tinha como base o essencialismo biológico. Em pouquíssimas palavras, o pensamento populacional é fim do essencialismo na biologia. O que existe não são essências e sim indivíduos. As essências que deveriam definir uma espécie são só uma abstração probabilística da freqüência genética. Deste modo temos que, segundo o pensamento populacional, não há uma essência que diferencie um leão de uma zebra, o que há são dois indivíduos diferentes com genes diferentes. O essencialismo 14

Cf. Carroll, 2006, p. 220.

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tenta dividir a natureza em tipos naturais de modo que você não pode fazer parte de dois tipos ou estar entre um tipo e outro. Ou você é um leão ou é uma zebra, ou está vivo ou está morto, ou tem consciência ou não tem. Mas isto está biologicamente errado, não há essências na natureza. É verdade que um leão não pode se reproduzir com uma zebra, mas isso é só uma questão factual que diz respeito aos mecanismos de isolamento. Não quer dizer que algo que é meio leão meio zebra seja uma espécie de contradição que não pode, em princípio, existir. Ser leão não é uma propriedade do tipo sim ou não, ou você é ou você não é, você pode sim ser semi-demi-hemi-pseudo-quase-proto15 leão. A diferença entre morto e vivo também é ilusória, entre elas há sempre um semi-demi-hemipseudo-proto-quase vivo, o mesmo se dá entre consciente e nãoconsciente e entre macho e fêmea. Até o exemplo clássico do essencialismo, que é que não se pode estar meio grávida, não está correto, entre uma espécie que se reproduz fora de seu próprio corpo, como muitos peixes, e uma espécie que tem uma gestação longa e dependente da mãe, como os mamíferos, há um número grande de situações intermediárias que nem são e nem deixam de ser uma gravidez16.A separação entre reprodução sexuada a assexuada também é nebulosa, muitos outros exemplos poderiam ser citados, pois o mesmo vale para praticamente toda classificação biológica. É Dawkins que nos diz: Se considerarmos todos os animais que já viveram em vez de apenas os animais modernos, palavras como ‘humano’ e ‘ave’ se tornam tão 15 16

Termo tirado de Dennett, 2005. Curiosamente todas as vezes que este problema foi apresentado para um público só foi questionado o caso da gravidez. A existência de intermediários entre vivo e não-vivo e entre consciente e não-consciente até o momento não foi considerada problemática por nenhum crítico. Cabe lembrar que há não muito tempo atrás a não separação entre vivo e não-vivo também seria considerada absurda e incoerente! No entanto, depois dos experimentos de Friedrich Wöhler (1828) e do surgimento da bioquímica esta crítica gradativamente veio perdendo força. Os críticos normalmente levantam a questão de que “dado um conceito de gravidez, ou o animal está grávido ou não está”. No entanto não propõem nenhum conceito de gravidez para provar seu argumento. Mas mesmo se propusessem, teríamos ainda o problema da arbitrariedade deste conceito. Simplesmente dizer, p.e., que “gravidez é a forma de gestação de tais e tais espécies” não resolve o problema só cria uma decisão infundada. Arbitrário e infundado quer dizer somente que tal conceito deixaria de fora espécies que tem uma forma de gestação mais parecida com o grupo que foi considerado como capaz de engravidar do que com o grupo excluído. Isto aconteceria em qualquer ponto onde alguém desejasse traçar o limite entre grávidos e não-grávidos.

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nebulosas e indistintas em suas fronteiras quanto termos como ‘alto’ e ‘gordo’. [...] Acontece que se ‘ave/não-ave’ é uma distinção mais clara do que ‘alto/baixo’, é tão-somente porque no caso ave/nãoave os intermediários incômodos estão todos mortos.17

Se isso nos parece muito estranho é porque ainda estamos presos a um modo essencialista de pensar sobre a natureza. “Nossos procedimentos de nomenclatura estão programados de acordo com uma era pré-evolucionária na qual as divisas eram tudo e não esperávamos encontrar intermediários”18. Nossa forma de classificar muitas vezes nos faz colocar arbitrariamente um indivíduo intermediário em uma espécie ou em outra. No entanto, como a evolução não se dá aos saltos, indivíduos intermediários devem ser mais do que esperados. Nas palavras de Ridley: “A idéia de que a natureza vem em grupos discretos, sem variação entre eles, é uma percepção ingênua. Se toda a gama de formas naturais, no tempo e no espaço, é estudada, todos os limites aparentes tornam-se fluidos”19. Tais indivíduos intermediários não devem ser considerados exceções aberrantes, muito pelo contrário, eles são naturalmente esperados pelo pensamento populacional que trabalha com um conceito de espécie muito mais fluido do que o conceito utilizado pelo senso comum. Como Dennett nos mostra, a catalogação de animais em espécies dentro do pensamento populacional é muito mais parecida com a arrumação de livros em uma livraria do que com elementos em uma tabela periódica. Embora muitos casos não sejam controversos, sempre haverá aquele romance que não é ficção, mas também não é nem biografia nem livro de história, ou aquele livro de filosofia que também ficaria confortável nas prateleiras de literatura etc20. A existência de intermediários entre as espécies faz parte da própria noção de evolução, pois uma espécie nova se forma através da soma de pequenas variações benéficas em uma espécie ancestral. Nas palavras de Darwin: 17

Dawkins, 2001, p. 383 Dawkins, 1998, p.123/124.Ver também: Dawkins, 2005, p. 46. Ridley, 2006, p.76 20 Dennett, 1998, p.39 18 19

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de acordo com a teoria da seleção natural, a existência anterior de um conjunto inumerável de formas intermediárias deve ter existido, ligando todas as espécies em cada grupo por gradações tão delicadas como as nossas variedades existentes21

A evolução é agora vista como a movimentação de indivíduos dentro de um pano de fundo que é a população. Não é mais uma questão de espécies, e sim de indivíduos de uma população. Não é mais também uma questão de qualidade, cada espécie sendo uma qualidade diferente, e sim de quantidade de variação. A visão de mundo que ela dá é a de indivíduos quantitativamente diferentes entre si. Isto é muito diferente da visão de mundo antiga que tínhamos sobre a natureza e que ainda persiste, não só no senso comum, mas também dentro do meio acadêmico. A visão antiga que tínhamos era de espécies qualitativamente diferentes entre si. Na visão antiga as diferenças encontradas dentro das espécies eram irrelevantes, na visão nova elas são de extrema importância, são elas é que nos permitem quantificar a evolução. Na visão antiga a diferença entre as espécies era a única diferença que importava, pois era a única diferença essencial. Na visão nova a diferença entre as espécies é também uma diferença quantitativa22, pois o que define as espécies são as freqüências gênicas de uma população. Nas palavras de Mayr: É essa variação entre os indivíduos peculiarmente diferentes que tem realidade, ao passo que o valor estatístico mediano calculado dessa variação é uma abstração23.

Um dos problemas do essencialismo é que ele está baseado na concepção errônea de que todos os indivíduos de uma mesma espécie são idênticos entre si, sendo as suas pequenas diferenças algo superficial. Ainda é fácil encontrar nos dias atuais pessoas que acreditam que todas as zebras ou todas as lulas são praticamente iguais. Mas isso não é verdade, elas são tão distintas entre si como 21

Darwin, 2004, p. 485 Cf. Carroll, 2006, p. 257. 23 Mayr, 2005, p.104. 22

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nós somos distintos um do outro. Cada uma é um indivíduo. O motivo de elas serem tão parecidas é duplo: há o fato delas sofrerem uma pressão seletiva maior, causando uma maior mortalidade nos seres que se diferenciam muito dos demais. Mas há também o fato de que julgamos baseados em nosso uso comum dos 5 sentidos. Um indivíduo visualmente muito semelhante ao outro será considerado por nós como idêntico, mesmo que o cheiro deles seja completamente diferente. Mas se tal espécie se distingue internamente pelo cheiro, então eles mesmos se julgarão completamente diferentes. Morcegos de uma mesma espécie, por exemplo, costumam ser, para nós, idênticos entre si, pois são visualmente muito semelhantes, mas, para eles, são completamente diferentes, pois se identificam pelo som e pelo cheiro.Tão diferentes que certas espécies de morcego vampiro (Desmodus rotundos) são capazes de montar colônias baseadas na capacidade de um indivíduo reconhecer o outro e retribuir favores. Para deixar a terminologia mais clara, chamamos de diferenças qualitativas aquele tipo de diferença “incomensurável”, são diferenças do tipo “tudo-ou-nada”, “sim-ou-não”. Como quando dizemos, por exemplo, que uma pessoa está morta ou está viva, está grávida ou não está24. Ou seja, quando não é possível algo entre dois estados, então estes estados são qualitativamente diferentes. Um conceito do tipo essencialista é o que define uma regra rígida do tipo: Água é H2O. Não há exceções a este conceito, não há meio termo. Se for H2O é água, se for água é H2O! Antes de Darwin, as espécies eram consideradas conceitos deste tipo, seja criado por Deus ou não, elas definiam como o mundo realmente era dividido. Já quando é possível algo entre dois estados, então eles são só quantitativamente diferentes. Cada estado tem uma quantidade diferente da mesma coisa. Isto quer dizer se você continuar seguindo um você chega naturalmente no outro.Talvez tudo que é pretendido dizer neste capítulo pudesse ser resumido simplesmente dizendo 24

Como já foi dito, estes dois casos que são normalmente usados para exemplificar as diferenças qualitativas estão errados.

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que não há dois tipos de diferença distintos: um dentro da espécie e outro entre uma espécie e outra. Só há um tipo de diferença e a diferença entre duas espécies distintas é só uma continuação das diferenças encontradas dentro de uma mesma espécie. Não estou aqui de maneira nenhuma querendo dizer que não existe diferença entre as espécies. Existe sim! A questão é “no que consiste esta diferença?” “o que diferencia uma espécie da outra?” “o quem mantém duas espécies distintas?”. Em um primeiro momento a diferença entre as espécies parece ser óbvia.Vemos que os seres podem ser separados em grupos de indivíduos semelhantes. Qualquer um vê isso. É a chamada especiação fenotípica25. No entanto, isso não é suficiente, pois há na natureza seres, principalmente insetos, que são muito semelhantes entre si, mas são de espécies distintas, como podemos perceber na época do acasalamento, quando vemos que cada sub-grupo dele só cruza entre si. São as chamadas espécies irmãs: espécies fisicamente quase idênticas, mas que são claramente distintas e não se reproduzem entre si. Há também o caso oposto, seres que são completamente diferentes e que dificilmente seriam classificados como da mesma espécie, se não fosse pelo fato de que se reproduzem entre si. Em certos pássaros, por exemplo, a fêmea é muito diferente do macho e, mesmo dentre os machos, existem aqueles com uma plumagem vistosa e brilhante para exibir no acasalamento e aqueles com uma plumagem de cores pálidas, quase camuflado, para conseguir acasalar furtivamente sem que o macho vistoso perceba. A simples observação destes pássaros, se não for feita na época do acasalamento, provavelmente vai distinguir 3 espécies diferentes. Já em certas espécies de peixes abissais a fêmea chega a ser quase 100 vezes maior que o macho. O mesmo se dá em algumas aranhas. Se víssemos a fêmea e o macho separados dificilmente eles seriam classificados na mesma espécie.Tentar classificar as espécies por sua aparência fenotípica é muitas vezes enganoso. Para resolver este problema, o conceito biológico de espécie mais utilizado define espécies como grupos capazes de reproduzir 25

Fenótipo é a aparência externa de um ser vivo. É a relação entre o genótipo e o ambiente. A especiação fenotípica classifica os animais por sua aparência.

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entre si. Mas até este conceito tem problemas, em primeiro lugar, ele não diz muita coisa sobre o número gigantesco de espécies com reprodução assexuada. Além disso, mesmo nas espécies sexuadas, muitas espécies diferentes se reproduzem entre si, como no caso de árvores que se reproduzem por dispersão de seus gametas no ar ou através de insetos não plenamente especializados. Tal reprodução entre espécies diferentes não está restrita às plantas, podemos encontra-las até nos mamíferos. Leões e tigres, por exemplo, podem se reproduzir.Também foram encontrados casos entre lobos e coiotes. Muitos outros animais podem fazer o mesmo e, em alguns casos, a cria é perfeitamente fértil. Normalmente isso não acontece na natureza e, quando acontece, a cria é logo morta. É claro que para a operacionalização do conceito biológico de espécie o fato de que podemos reproduzir certos animais híbridos em laboratórios não importa. O que importa é se eles de fato se reproduzem na natureza ou não. Leões e tigres nunca se reproduzem na natureza, podemos então considera-los espécies distintas. Mas o que está em jogo aqui não é só a questão operacional sobre como podemos classificar as espécies, deixamos isso para os taxonomistas e sistematas que tem feito um ótimo trabalho. O problema aqui é mais geral, a questão é o que é uma espécie e como as espécies se mantêm distintas. Por isso, o fato de que certas espécies podem se reproduzir em laboratório faz sim toda a diferença. O que, então, diferencia as espécies? Não são qualidades e sim quantidades. “Mas quantidades de que?”. Para deixar mais clara a relação quantitativa entre as espécies podemos considerar as espéciesanel. Um exemplo clássico é de dois tipos de gaivotas (Larus argentatus e Larus fuscus) que no Reino Unido claramente se diferenciam fenotipicamente e não se reproduzem entre si, são duas espécies distintas. No entanto, uma destas gaivotas se reproduz com outra que é parecida com ela, mas vive nos países nórdicos, já esta se reproduz com outra que vive no oeste da Rússia, que se reproduz com outra que vive na Sibéria, que se reproduz com outra que vive no Canadá, que se reproduz com outra que vive na Groelândia e que se reproduz com a segunda espécie de gaivota que vive no Reino 52

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Unido. Temos assim, duas espécies de gaivotas claramente distintas que estão ligadas por uma cadeia de gaivotas que literalmente dá a volta no mundo, sendo que uma sempre se reproduz com a sua vizinha, ou seja, podem ser consideradas da mesma espécie. Podemos também ver as relações que se dão entre os seres humanos e seu parente mais próximo, o chimpanzé. Imagine a seguinte situação fictícia criada por Richard Dawkins: uma mulher está em pé, na beira da praia, posicionada perpendicularmente ao oceano. Ela está de mão dada com a sua mãe, que está de mão dada com a mãe dela, avó da primeira, que está de mão dada com a mãe dela, bisavó da primeira, e assim por diante. Elas estão formando um fila de mão dada de modo que se distanciam do oceano geração por geração. Considere que cada geração, a filha, depois a mãe, a avó, a bisavó etc. ocupa 1 metro desta fila e considere que tais pessoas são imortais, deste modo a fila pode ser infinitamente longa, geração dando as mãos a sua geração anterior, 1 metro de cada vez. Pois bem, quando esta fila tiver 480 Km, ou seja, 480 mil gerações, teremos no final da fila o último ancestral comum entre o homem e o chimpanzé. Agora imagine que quando a fila chega neste ponto ela começa a voltar em direção ao oceano. Serão 480 Km de volta, ou seja 480 mil gerações até o presente. O que vai acontecer é que no final da fila, junto novamente ao oceano, teremos um chimpanzé comum, destes que vemos no zoológico, de mãos dadas com aquela primeira mulher que começou a fila. Formamos, assim, um anel com 960 Km de circunferência que ligam duas espécies claramente distintas, no entanto, se você percorresse esta fila com os olhos você nunca saberia dizer onde termina o ser humano e começa o chimpanzé. A diferença entre uma pessoa e a outra do seu lado é sempre a diferença natural entre mãe e filha. Não há imagem mais clara para o fato de que não há saltos na natureza do que essa. A diferença entre duas espécies claramente distintas não é mais do que o acúmulo de diferenças entre mães e filhas. Não percebemos isso porque tais seres intermediários não mais existem, eles morreram seja por causa da seleção natural seja Série Cadernos Unidavi - Filosofia(s)

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por causa da deriva genética26. O que isto nos mostra é que a separação entre elas se dá pela freqüência probabilística dos genes, ou seja, um gene determinado tem maior probabilidade de aparecer nesta do que naquela espécie. Já esta separação probabilística dos genes aparece por algo que é chamado de “mecanismos de isolamentos”, mas que poderia ser chamado, em um sentido bem amplo, de um “problema de encaixe”. O termo “encaixe” tem aqui como única função tornar a ideia do que é um mecanismo de isolamento mais intuitiva. Para deixar mais claro o que chamarei de problema de “encaixe” usarei o exemplo das raças de cachorro: um dogue alemão é da mesma espécie que um chihuahua, mas “eles podem reproduzir?”A verdadeira questão é: “o que você quer dizer com podem?” Um filhote de um dogue com um chihuahua é perfeitamente possível. No entanto a reprodução entre um dogue macho e uma chihuahua fêmea é anatomicamente impossível por causa do tamanho diferente dos aparelhos genitais e por causa do tamanho do feto.A fêmea chihuahua morreria seja na reprodução, seja na gestação, seja no parto. Já o contrário, macho chihuahua e fêmea dogue, seria perfeitamente possível, se o macho conseguir alcançar a fêmea. O que isso nos mostra é que o problema aqui não é uma questão de qualidades diferentes, é só uma questão quantitativa do tamanho do órgão genital, do tamanho do feto e, porque não, do tamanho das pernas. Tais tamanhos não são a única diferença que podem impedir uma reprodução. Podemos citar também outros problemas de “encaixe”: pode ser encaixe dos aparelhos sexuais, dos gametas, dos comportamentos reprodutivos, das estações de reprodução, das diferentes localidades geográficas, dos diferentes nichos, do desenvolvimento do embrião, de configurações anatômicas, das configurações cromossômicas, da falta de seres intermediários, da esterilidade dos híbridos, da baixíssima adaptabilidade dos híbridos etc. Assim, dois animais poderiam perfeitamente se reproduzir, mas 26

Deriva genética é o papel do acaso na evolução. Algumas vezes um gene se torna mais comum apenas por estar em um indivíduo “sortudo” que pode, por exemplo, ter sobrevivido a um acidente que dizimou boa parte da sua espécie.

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não se reproduzem porque tem diferentes comportamentos reprodutivos, diferentes “danças do acasalamento”, ou habitam diferentes nichos27, como é o caso dos leões e dos tigres. Os comportamentos reprodutivos e os nichos simplesmente não encaixam. Uma diferença encontrada no reino das plantas é a diferença na estação reprodutiva. Uma planta poderia ser reproduzir com outra se não fosse o fato de que elas desabrocham em épocas diferentes. As estações reprodutivas não encaixam. Certas mariposas não se reproduzem porque o chamado de acasalamento de cada espécie se dá em horários diferentes do dia. Certas espécies diferentes de plantas que são polinizadas pelos mesmos beija-flores evitam a hibridização fixando seu pólen cada uma em uma parte diferente do corpo do beija-flor. Há também o mais claro problema de encaixe que é o encaixe dos aparelhos sexuais, mas há um menos claro que é o encaixe dos gametas. Nem todos os gametas conseguem fecundar outros gametas, mas alguns poderiam fecundar em laboratório. Tais diferenças que chamei aqui de diferenças de “encaixe”, para deixar mais intuitivo, são o que garante a separação das espécies, o que quer dizer simplesmente que eles garantem que certos genes não vão passar de uma espécie para a outra. Elas formam um tipo de barreira para os genes. Por isso que a evolução pode ser compreendida como a mudança na freqüência das configurações dos genes de uma população. Certos genes são muito mais fáceis de encontrar em uma espécie do que em outra. Mas isso é uma questão de freqüência probabilística dos genes e nada mais: um búfalo e seu primo simplesmente têm uma maior probabilidade de ter genes parecidos do que um búfalo e um ser humano. O que garante esta probabilidade é exatamente as diferenças de “encaixe”. As diferenças de “encaixe” são ao mesmo tempo a causa e a conseqüência de diferenças na freqüência do aparecimento deste ou daquele gene nesta ou naquela espécie. São a causa porque, por falta de encaixe tais seres não se reproduzem. São a conseqüência porque, 27

Nicho é o lugar ecológico de cada espécie. Não deve ser confundido com lugar espacial. Duas espécies podem viver no mesmo espaço, mas habitar nichos diferentes se, por exemplo, se alimentarem de tipos diferentes de grama. Como estão em nichos diferentes não precisariam competir, mesmo habitando o mesmo espaço físico.

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já que tais seres não se reproduzem então novas mutações ficarão dentro daquele grupo, o que vai diferencia-los ainda mais dos outros grupos. São as diferenças de “encaixe” é que garantem que as espécies evoluem separadamente, sem elas haveria uma constante mistura entre as espécies. Há também um outro sentido que reflete a escolha do termo “encaixe”, pois certos tipos de seres não podem se reproduzir nem mesmo em laboratório. Mas há, ainda assim, uma forma de transportar as características fenotípicas de um para o outro.A engenharia genética poderia, em princípio, colocar uma característica tipicamente de uma espécie em outra. Isto já foi feito, por exemplo, em camundongos que brilham no escuro ou cabras que produzem leite com proteína humana. É perfeitamente possível pensar em um futuro onde órgãos humanos, como o coração, sejam desenvolvidos dentro de porcos geneticamente modificados para depois serem transplantados. Não são órgãos de porcos sendo transplantados para humanos, como já acontece, mas sim órgãos humanos se desenvolvendo dentro de porcos! Neste sentido também poderia haver problemas de encaixe, mas aqui encaixe quer dizer realmente encaixe. A nadadeira da baleia, por exemplo, não encaixa no lugar de uma asa de abelha, por isso não é possível nem mesmo a transferência por modificação genética. Mas mesmo aqui não é um problema de princípio, não é um problema de que a qualidade essencial “abelha” não suporta características da qualidade essencial “baleia”. É um problema de encaixe, agora no sentido mais simples e literal do termo: uma coisa não encaixa na outra. Assim como um coração humano não poderia ser desenvolvido em um camundongo simplesmente por causa da diferença de tamanho: o coração humano não encaixa no camundongo. Mas de resto não haveria grandes problemas! Tendo dito isso podemos voltar às espécies-anel, levando em consideração a origem monofilética da vida, ou seja, o fato de que todos descendemos de um único ancestral comum, podemos dizer que todas as espécies vivas estão ligadas por um gigantesco anel que foi rompido em muitos pontos seja por causa da seleção natural seja 56

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por causa da deriva genética. Mas se este anel não tivesse sido rompido, hipótese que é biologicamente improvável, qualquer gene poderia andar por todas as espécies. O não rompimento do anel é biologicamente improvável porque um sistema com um livre fluxo de genes atrapalharia enormemente a adaptabilidade. A questão é que cada gene está adaptado a um determinado ambiente e também está adaptado a trabalhar com determinados genes. Se o fluxo entre eles for livre então os genes poderão surgir em ambientes completamente estranhos. Poderíamos ter genes para suportar o calor aparecendo no pólo norte ou genes para digerir celulose aparecendo em carnívoros! Mas, embora improvável, este sistema é possível, como nos mostra o caso das espécies-anel, só não é atual porque é biologicamente muito inferior. No sistema atual o que impede o fluxo irrestrito de genes entre as espécies são justamente os problemas de “encaixe”. Mas se este problema não existisse, como no caso das espécies-anel, genes poderiam sim transitar livremente entre espécies.Tudo isso para dizer algo bem simples e que talvez já poderia ter sido dito no começo: genes não têm dono! Certos genes são mais prováveis de aparecer em certos animais, mas isso não quer dizer que eles são dele, no sentido de que só podem aparecer nele e em nenhum outro ser. Tal propriedade do gene seria a característica necessária para fazer uma distinção qualitativa entre as espécies. Esta sim seria uma característica do tipo tudo-ou-nada. Mas genes não têm donos. Eles não ficam passeando por aí de espécie em espécie porque espécies diferentes não se reproduzem, quando se reproduzem eles podem sim passar de uma para a outra. Espécies não se reproduzem por causa dos mais diversos problemas de “encaixe”. Quanto mais separadas as espécies, maior o problema de encaixe. Em sub-espécies, o problema de encaixe é normalmente o geográfico, este é o problema mais simples de ser superado. Os problemas de estação do ano e de comportamento reprodutivos vêm em seguida, separando ainda mais os seres. É comum que certas espécies de pássaro não se reproduzam apenas porque fazem danças do Série Cadernos Unidavi - Filosofia(s)

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acasalamento distintas. Mas todos estes, se tentassem, se reproduziriam. Depois vêm os problemas no formato do aparelho genital e na incompatibilidade dos gametas, estes se reproduzem só mesmo em laboratório criando híbridos. O fato de que certos híbridos são estéreis ou mal-adaptados em nada influencia os argumentos apresentados aqui, pois o ponto é que eles são perfeitamente possíveis e que isto mostra que a relação entre as espécies não é de duas qualidades incompatíveis. Alguns problemas no desenvolvimento do embrião podem ser resolvidos, futuramente, em laboratório, outros não. Quando dois gametas não conseguem nem formar um embrião, podemos ainda imaginar que uma futura engenharia genética possa transportar certas características entre seres. É neste ponto que surge o problema das configurações anatômicas, como o da abelha com nadadeira de baleia, que já foi mencionado. Mas mesmo neste último caso mais grave onde uma característica não pode ser passada de um ser para o outro, ainda assim é um problema de “encaixe” e não de duas essências incompatíveis. Genes não têm donos e podem, em princípio, ser transferidos, mesmo que na prática isso seja irrealizável. Levando o que foi dito às últimas conseqüências temos uma nova visão de mundo onde todas as espécies não são mais essencialmente distintas.A única coisa que as distingue é a probabilidade de um gene aparecer nesta ou naquela espécie. O que determina esta probabilidade é o que foi chamado aqui de “encaixe”. Indivíduos terão mais genes em comum com aqueles com quem eles “encaixam”. Se não fosse este problema, genes poderiam transitar livremente e uma mulher poderia até ter um filho com chifres de búfalo. Era só o gene para este chifre, se é que ele existe em separado, mas isso é só um exemplo, passar de geração em geração do búfalo até a mãe e o pai desta criança.A mãe e o pai poderiam ser seres humanos perfeitamente normais, pois o gene poderia ser recessivo. Do mesmo modo, uma mãe e um pai como olhos escuros podem ter uma filha de olhos claros se ambos tiverem olhos claros como genes recessivos. Porque não levar isso um pouco mais longe e imaginar que todos os genes de um búfalo poderiam passar de geração em geração até a mãe e o pai, 58

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que pareceriam como seres humanos normais, mas teriam como filho um lindo búfalo, também perfeitamente normal. O que impede isso de acontecer é o fato de que os genes dos búfalos encontram inúmeras barreiras para chegar até uma pessoa, pois búfalos e pessoas não procriam e, mesmo se procriassem, ainda teríamos incompatibilidade dos gametas e, principalmente, incompatibilidades no desenvolvimento do embrião, que provavelmente nem se formaria. Mas o impedimento aqui é natural e não ontológico. O problema não é que as essências ou as qualidades são diferentes, é um problema de “encaixe”. É claro que estes exagerados experimentos de pensamento estão fundados sobre algo que não é o caso: genes não transitam entre espécies que não se reproduzem! Mas eles foram desenvolvidos para mostrar que o fato de eles não transitarem não quer dizer que as espécies estão ontologicamente separadas. Não são essências diferentes. Genes não têm donos e espécies não são qualidades distintas, não são características do tipo sim-ou-não, tudo-ou-nada. Ao contrário do que estamos acostumados a imaginar, as barreiras que separam as espécies não são firmes e sólidas. Elas só se mantêm distintas na maioria dos casos por causa de uma soma de fatores contingentes. A relação entre elas é muito mais promíscua do que se poderia imaginar em um primeiro momento, e ainda poderia ser muito mais promíscua se não fossem os problemas de “encaixe”. REFERÊNCIAS CARROLL, S. B. Infinitas Formas de Grande Beleza: como a evolução forjou a grande quantidade de criaturas que habitam o nosso planeta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. DAWKINS, R. A Escalada do Monte Improvável: uma defesa da teoria da evolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ______. O Capelão do Diabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ______. O Relojoeiro Cego. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. DARWIN, C. A Origem do Homem e a Seleção Sexual. São Paulo: Ed. Hemus, 2002.

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