Filosofia da Hospitalidade

September 3, 2017 | Autor: João Manuel Duque | Categoria: Philosophy, Jacques Derrida, Hospitality, Turismo
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FRAGMENTOS PARA UMA FILOSOFIA DA HOSPITALIDADE JOÃO MANUEL DUQUE Pensar a hospitalidade como modo de ser e modo de relação significa, antes de tudo e fundamentalmente, pensar o mesmo e o outro ou, em linguagem mais abstrata, a mesmidade e a alteridade. Que a mesmidade – articulada na fundamental questão da identidade – só possa ser pensada no horizonte da alteridade – articulada na igualmente fundamental questão da diferença – é a mais básica conclusão desse pensamento. Pensamento fundante, sem dúvida, porque constituinte de um modo fundamental de compreender o real e o seu sentido – como chave hermenêutica – mas pensamento igualmente operante, porque origina modos próprios de agir, numa ação que define o humano, porque corresponde ao seu sentido assim compreendido. É no contexto desta hermenêutica pragmática que desejo colocar em comum as considerações que se seguem. Num movimento em certa medida progressivo, que vai aprofundando e agravando as consequências das conclusões, proponho um caminho que localize o tópico da hospitalidade, em primeiro lugar, no campo da alteridade, depois, no campo – menos nítido mas mais preciso – da incondicionalidade e, por último, no campo da pragmática inefável da gratuidade. Uma leve aplicação final ao campo do turismo é mera concretização contextual, potencialmente generalizável.

1. Alteridade A relação entre mesmidade e alteridade encontra-se no cerna da questão da identidade. De facto, a mais imediata abordagem dessa questão coloca-se em termos de mesmidade: o que determina a identidade de algo é aquilo que o determina como algo em si mesmo, ou seja, aquilo que permite considerá-lo como o mesmo, ainda que

em circunstâncias diversas 1 . O problema, contudo, é bem mais complexo. Em primeiro lugar porque a própria definição da identidade do mesmo não pode prescindir de certa relação ao outro diferente, em relação ao qual, precisamente, a mesmidade do mesmo se identifica como tal. Ou seja: até do ponto de vista lógico ou fenomenológico é impossível definir o mesmo sem estabelecer a sua diferença em relação ao outro. A alteridade será, então, anterior e incontornável constituição da mesmidade, mesmo já na sua pura percepção. Mas a questão pode desenvolver-se ainda mais. Porque a diferença do mesmo em relação ao outro, como condição de percepção da sua identidade, é ela mesma construída, do ponto de vista do processo fenomenológico – e até psicológico – da constituição do real e da pessoa, sempre na relação ao outro. Não se trata, pois, de mera percepção lógica da diferença, mas de construção real e até existencial dessa diferença, que origina o que se pode considerar identidade do mesmo, em permanente interação relacional com o outro. É na resposta ao outro – o outro humano, mas também o outro natural, ou ao outro cultural – que o mesmo adquire identidade, possibilitando a sua definição. Esta incontornável referência originária – e originante – do mesmo ao outro, estabelece, antes e depois de tudo, a identidade do mesmo como uma identidade marcada pela alteridade. O que não permite pensar a identidade primordialmente como mesmidade, senão como relação permanente – e infinita – ao outro. O mesmo – sem mesmidade final que o defina ab-solutamente – é sempre um ser/sendo a partir do outro e para o outro. Esta «definição» originária da identidade humana – uma antropologia definida pela indefinição última do si mesmo, e até mesmo uma ontologia do ser-a-partir-de e

1

Ver, a propósito, o vasto estudo de P. Ricoeur (1990).

do ser-para – permite uma primeira abordagem da noção mais funda da hospitalidade. O ser humano é, na sua identidade primordial, um “ser-hóspede” (correspondente à sua definição como Zu-Gast-sein) e um “ser-para-o-hóspede” (definindo-se como Sein-zu-Gast). Este modo de ser constitui assim, um “existencial” que acompanha fenomenologicamente todos os modos de se ser humano2. Partindo desta constituição do mesmo no registo de uma alteridade – do “simesmo como um outro”, no dizer de Ricoeur – e interpretando essa alteridade constituinte como hospitalidade – no duplo sentido de acolhimento do outro que vem (ser hospedeiro) e de permanente e infinda vinda ao ser (ser hóspede) – podemos compreender a relação inter-humana como relação em última instância de dois «estrangeiros» – se m explorar, para já, o problema que se levanta nesta qualificação. Entramos, aqui, na relação a uma dimensão pesada, na definição do mesmo e do outro: a dimensão do lugar, como território ou como cultura – mesmo como linguagem. Se a perspetiva imediata da compreensão da identidade assenta, mais uma vez, na referência a uma mesmidade de lugar – que define o sujeito como cidadão, fazendo assentar nisso a sua mesmidade e a mesmidade dos que partilham o mesmo lugar – a presença irrecusável da alteridade, também aqui, tem o primeiro efeito de desconstruir essa construção da mesmidade identitária. Rigorosamente, a relação do cidadão com o estrangeiro – devido ao estatuto fundamental do humano como hospitalidade, como vimos – é uma relação de dois estrageiros, anulando o próprio sentido da identificação pela diferença entre cidadão e estrangeiro. Porque ninguém é dono, proprietário, nem do «seu» lugar, nem de si mesmo – ninguém é senhor do mesmo. Se ninguém pode ser o mesmo sem ser sempre outro e se pensarmos este modo de ser em termos éticos, teremos que afirmar, fazendo eco às conhecidas 2

A propósito desta definição essencial, ver as emblemáticas afirmações do filósofo alemão H.-D. Bahr (2012, 13).

reflexões de Emmanuel Levinas: “a ética é agora uma relação dissimétrica entre duas singularidades absolutas – entre dois separados, santos ou estrangeiros. É, notemo-lo já, uma relação de estrangeiro a estrangeiro, de singular e de único a singular e a único ou secreto, e não de cidadão a cidadão”(Bernardo 2001, 360). Ou seja, não é propriamente o enquadramento do outro – ou do próprio como outro – no contexto ou no horizonte de um lugar, de uma cidade, de uma lei que determina a ética fundamental – na determinação de normas particulares e locais – mas a exposição do sujeito ao outro, enquanto constituinte primordial da sua subjetividade como ser de resposta a um imperativo absoluto, porque independente, único e irrefutável. A esta ética da alteridade absoluta faz corresponder Derrida a sua leitura da desconstrução, que aí encontra talvez ou seu território último – aliás, território que implica precisamente a ausência de território – na proximidade a uma ética para lá – ou para cá – de toda a ética possível, porque marcada já por uma impossibilidade anterior e condição de toda a possibilidade. “A desconstrução, esta atitude de vigília insone, esta sentinela de uma certa desordem, confunde-se com a meta- ou ultra-ética – uma ética da hospitalidade. Uma ética como hospitalidade. A ética da/como hospitalidade e/ou da responsabilidade, a própria justiça, que é precisamente esta abertura imediata e incondicional à iminência da vinda do outro absoluto (tout autre) -

também

designada

por

Derrida

messiânico

ou

messianicidade

sem

messianismo”(Bernardo 2001, 366)3. Este acontecimento anterior a todo o acontecer revela uma fonte da ética como interpelação ab-soluta e vertical, como imperativo imediato, anterior a todo o pensar, a toda a lei, a toda a norma. O lugar do rosto, que Levinas coloca no fundamento sem

3

Com referência a J. Derrida (2001, 27): “Le messianique, ou la messianicité sans messianisme. Ce serait l'ouverture à l'avenir ou à la venue de l'autre comme avènement de la justice, mais sans horizon d'attente et sans préfiguration prophétique».

fundamento da ética fazendo desta o momento inicial de todo o ser e, por isso, também de todo o pensar (da filosofia), é aqui assumido pelo hóspede, que junta à interpelação do rosto o movimento da vinda, do estar a vir permanentemente, de lugar nenhum e para lugar nenhum. “O visitante inesperado ou anónimo, aquele que chega a partir de si, da sua estranheza ou secretismo, sem se anunciar e sem ser convidado, isto é, aquele que, de rompante, chega sem horizonte porque o horizonte é sempre o meu próprio horizonte, é sempre o horizonte de um «eu», de um mesmo ou de um próprio, um tal visitante, que solicita e o acolhimento e o respeito imediatos e incondicionais, é sinónimo de alteridade absoluta – irredutível, incalculável ou infinita”(Bernardo 2001, 368). Este modo de ser, enquanto estar permanentemente exposto/perante o outro que vem, tem implicações, antes de tudo, sobre o modo de pensar e viver o outro; mas tem também implicações sobre o modo de ser e pensar-se a si mesmo. O outro como hóspede é infinitamente mais do que o outro como estrangeiro ou como estranho. De facto, “diferentemente do estrangeiro que o é portanto sempre a partir de um lugar delimitado – a partir de uma ipseidade ou de um eu próprio, de uma família, uma cidade, um Estado, um direito, uma nação, uma língua e, portanto, de uma cultura –, e que é também acolhido pelo direito de um determinado lugar, pelo direito que faz esse lugar, o recém-chegado «é» e é acolhido a partir de si próprio enquanto alteridade absoluta ou secreta. Infinita. Irredutível. Incalculável. Indecidível. E o acolhimento da sua estranheza, a abertura ao inesperado da sua vinda é, para Derrida, a ética da/como hospitalidade”(Bernardo 2001, 372). Na exposição ao outro como hóspede, transformam-se por completo os códigos do mesmo, porque assentavam em distinções de horizonte – ainda que fosse, que nunca o é apenas, o horizonte da própria subjetividade. Se o outro é aquele que

vem sempre como interpelação absoluta, o mesmo é a exposição pura ao outro, a resposta imediata – positiva ou negativa. Por isso, na hospitalidade, o mesmo é, ele próprio, colocado em questão, sendo conduzido ao elemento primordial do seu ser, como ser em questão. “O estrangeiro, é o ser-em-questão, a questão fundamental do ser-em-questão, o ser-questão ou ser-em-questão da questão. Mas também aquele que, colocando a primeira questão, me coloca em questão” (Derrida 1997, 3). Coloca em questão a identidade do mesmo, construída a partir de horizontes subjetivos ou culturais, para a conduzir a um modo de ser que é, primordialmente, o ser-colocadoem-questão. Ser questionado, colocando o mesmo em questão, é a identidade primordial do humano. O seu modo de realizar essa identidade é, precisamente, a resposta ao diferente. O mesmo é, assim, aquele que acolhe o hóspede, expondo-se à sua questão. Mesmidade é sempre exposição total à alteridade e a revelação máxima deste modo de ser dá-se na hospitalidade. “A hospitalidade absoluta exige que eu abra o meu próprio (chez-moi) e que dê não apenas ao estrangeiro (provido de um nome de família, de um estatuto social de estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido, anónimo, e que eu lhe dê lugar, que o deixe vir, que o deixe chegar, e ter lugar no lugar que lhe ofereço, sem lhe pedir nem reciprocidade (a entrada num pacto) nem mesmo o seu nome”(Derrida 1997, 29). A hospitalidade torna-se, assim, uma relação incondicionada, uma relação incondicional ao incondicional.

2. Incondicionalidade A revelação mais própria do caráter incondicional da hospitalidade, tal como vem sendo apresentada até aqui, dá-se sobretudo quando comparámos o hóspede com o estrangeiro e com o parasita. O estrangeiro é, de facto, outro, estranho. Mas a sua alteridade e estranheza são medidas pela sua relação ao um lugar, uma cultura, uma nação, até a um estado – um horizonte que condiciona a própria relação. Essa

condição é determinada por esquemas, por leis, por reduções do outro à mesmidade dessas identificações. “A diferença entre o acolhimento do estrangeiro e o acolhimento do outro absoluto é a diferença entre a hospitalidade jurídico-políticomoral e a hospitalidade incondicional a que alude Derrida. Enquanto que a hospitalidade cosmopolita é regulada pelo cálculo que se impõe à tradução da língua estrangeira, a hospitalidade incondicional é sempre uma relação aneconómica e dissimétrica com a alteridade absoluta: é a impossibilidade da tradução do idioma singular do outro. Assim sendo, a hospitalidade incondicional é impossível”(Zagalo 2006, 318). Essa «impossibilidade» radica, precisamente, no seu caráter incondicional. Sobre ela falaremos mais adiante. Para já convém reter o facto de que a hospitalidade, em sentido estrito, é anterior e posterior – porque é exterior e diferente – ao condicionamento do outro pela estrutura político-jurídico-cultural que o pretende determinar como outro. A alteridade passaria assim a ser definida a partir da mesmidade, pela diferença/identidade de estruturas constituintes de identidades diferentes. Mas a (meta)ética da hospitalidade – o apelo que nela ressoa – é anterior às definições da identidade a partir de horizontes. Ela situa-se “antes e para além das normas e das leis – das leis da hospitalidade, do dever e do direito de hospitalidade inerentes ao espaço da polis. Antes portanto, e diferentemente, da sua assimilação numa determinada comunidade” (Bernardo 2001, 370). Muito à semelhança da categoria do «rosto» proposta por Levinas para incarnar o caráter incondicional da interpelação ética originária, Derrida fala da obrigação da hospitalidade como uma resposta perante outro, mesmo antes das suas definições identitárias, que já o enquadrariam em categorias discriminatórias: “na hospitalidade sem condição, o hóspede que recebe deveria, em princípio, receber antes mesmo de saber o que quer que seja do hóspede que ele acolhe. O acolhimento

puro consiste não apenas em não saber ou em fazer como se não soubéssemos mas ,

em evitar toda a questão a respeito da identidade do outro, o seu desejo, as suas regras, a sua língua, as suas capacidades de trabalho, de inserção, de adaptação...»(Derrida 1999, 98). O acolhimento é, aqui, enquanto resposta ética primordial, uma ação imediata e incondicional, antes do pensamento que deduz e calcula, antes da análise das condições de identidade, muito antes sobretudo de qualquer intencionalidade subjetiva ou contextual (político-cultural). A ética da hospitalidade surge então como uma dimensão para além do político, porque lhe é anterior e mais fundamental. A pessoa, enquanto tal e apenas pelo facto de ser pessoa humana, na sua unicidade irrecondutível a qualquer redução generalizante ou determinante, é anterior à polis; cada ser humano, na sua particularidade, é anterior e mais fundamental do que o cidadão. Uma primeira e importante consequência desta precedência refere-se à relativização do enquadramento nacional e estatal da identidade, com a correspondente determinação de direitos e deveres. O estado-nação, atual referência para a identificação jurídico-político-cultural – e também individual – do cidadão, é assim suplantado por uma dimensão primeira, que o coloca mesmo em questão. Essa dimensão terá encontrado, segundo Derrida, uma realização muito própria na tradição das denominadas «cidades-refúgio». “Uma tradição na qual a polis não era, de uma certa maneira, o horizonte último das cidades que, quanto à hospitalidade, podiam elevar-se acima do Estado, constituindo-se assim como uma espécie de santuários ou de asilos. Independentemente das nações e do Estado, independentemente da legislação estatal, tais cidades podiam acolher quem desejassem. E o filósofo lembra que o texto fundador de uma tal jurisprudência, aquela que outorga às cidades um singular direito à imunidade e à hospitalidade é sobretudo Números, 35, 9-32, onde

Deus ordena a Moisés a instituição de seis «cidades de refúgio» ou «de asilo» para acolher todos aqueles que eram perseguidos por uma justiça cega e vingativa, ou por crimes de que eram os autores involuntários”(Bernardo 2002, 431). Ou seja, a Bíblia hebraica – na qual se enraíza uma antropologia ética assente no valor absoluto da pessoa do outro, frente a qualquer enquadramento imanente, seja ele de que ordem for – é que terá introduzido, na história da humanidade, a perspetiva fundamental da ética da hospitalidade. Mesmo que muitas outras culturas e outros textos tenham articulado práticas de hospitalidade. Essas estavam, contudo, condicionadas pelas leis da respetiva polis, não se reportando à dimensão da «meta-ética» e da antropologia que determina o horizonte dos escritos bíblicos (para não falarmos aqui da sua dimensão tipicamente teológica). De facto, neste horizonte, a «lei» ética supera – e por vezes contradiz – a lei positiva elaborada no contexto da polis, colocando em questão, desse modo, a sua validade última ou absoluta. “A lei rompe, ao mesmo tempo, com as leis, ou seja, com o pacto da hospitalidade como direito ou obrigação, assim como tenta superar a vertente institucionalizada da hospitalidade. Esta forma da hospitalidade incondicional deve ser entendida, portanto, como a «lei na sua singularidade universal», que tenta superar (ou subverter?), de modo hiperbólico, as codificadas leis do hóspede. Ela não tem que condenar a hospitalidade condicionada, mas é-lhe tão heterogénea o como o é a justiça em relação ao direito, e contudo do mesmo modo inseparavelmente ligada” (Fountoulakis e Previsic 2011,16). Esta paradoxal ligação à lei, mesmo à lei sobre o acolhimento do estranho – normalmente do estrangeiro já determinado enquanto tal pela própria lei – transforma a ética da hospitalidade e a sua incondicionalidade numa utopia sociopolítica. Como todas as utopias, está habitada por uma impossibilidade radical, que não deixa contudo de ter enorme efeito sobre as possibilidades reais. O hóspede representa um caso de “impossibilidade lógica e

simultaneamente de manifesta presença. O hóspede é a figura paradoxal do terceiro: em realidade não deveria existir, mas existe. Desta situação aporética resultam simultaneamente a sua incomodidade e a sua indisponibilidade” Fountoulakis e Previsic 2011, 13). Se o hóspede se distingue, deste modo, claramente do estrangeiro – como estranho marginalizado – também se distingue do parasita – como estranho interesseiro – precisamente por um novo processo de excesso ou incondicionalidade. Se a incondicionalidade em relação ao estrangeiro se mede pela transgressão do espaço da polis e da respetiva lei, a incondicionalidade em relação ao parasita irá medir-se pela transgressão do interesse, na superação da permuta económica4. E se o excesso em relação ao primeiro nos conduz a uma espécie de impossibilidade utópica, o mesmo se pode dizer deste segundo excesso. Neste contexto tocamos a questão da possibilidade do dom, no âmbito das permutas humanas.

3. Gratuidade O dom – e a correspondente doação – define-se pela gratuidade absoluta. Por isso mesmo, não pode apresentar qualquer tipo de contaminação pela permuta económica, a qual, por mais gratuita que pareça, depende sempre de um dador, um receptor e algo dado, comprometendo-os com obrigações e com interesses. Rigorosamente, a doação pura – e por isso mesmo a pura gratuidade – deveria ser independente de uma dador, de um receptor e mesmo daquilo que é dado, para ser independente dessa contaminação económica. Ou seja, para ser dom, o dom nada poderia ser. A doação, como condição de tudo, rigorosamente não teria lugar entre os entes, pois deixaria de ser doação. Segundo Jean-Luc Marion, a sua presença será

4

Mesmo que, também aqui, os papéis possam inverter-se, pois o interesseiro tanto pode ser o hóspede como o hospedeiro.

sempre apenas a presença do invisível – equivalente a «não-ente» – na doação do visível. Só o processo icónico permitiria, pois, perceber a revelação da doação naquilo que acontece já como perversão do seu carácter absoluto ou incondicional (Marion 2003). Para Derrida, o que torna o dom verdadeira doação é precisamente a sua impossibilidade, como referência do possível condicionado – por isso mesmo nunca gratuito – que acontece na relação inter-humana sempre marcada pela permuta económica5. O problema da radicalidade desta posição – que resume, para o nosso tema, o resultado

de

uma

interpretação

radical

e

separada

da

alteridade

e

da

incondicionalidade – é que se limita a pensar a gratuidade do dom como um elemento absolutamente transcendente, quando muito transcendental, uma forma de ideia reguladora, sem possibilidade de articulação real no mundo dos entes – uma espécie de radicalização da diferença ontológica heideggeriana, com total ruptura entre ser e ente – que se torna, como tal, impraticável. Passa a ser, assim e em última instância, ineficaz para a configuração das ligações inter-humanas, não permitindo portanto qualquer articulação pessoal, política ou cultural. Mas isso abandona, por outro lado, essas articulações reais da existência humana à pura arbitrariedade, o que acaba por neutralizar o efeito ético – e mesmo moral – de qualquer referência meta-ética deste género. Torna-se então necessário desenvolver uma real ética do dom que origine reais ligações inter-humanas com base no princípio da gratuidade, como articulação da correta e incondicional referência à alteridade irredutível. Só em mediações humanas e históricas do dom será possível a real referência à sua própria gratuidade incondicional6.

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Para melhor compreensão destas duas marcantes posições, ver Duque (2008). Para uma leitura crítica de Marion e de Derrida, nesta precisa perspectiva, ver: Zanardo (2013, 81ss); Milbank (1995). Para a necessária relação entre incondicionalidade e sua articulação histórica, ver Duque (2010). 6

Só assim será real também uma ética da hospitalidade. De facto, a hospitalidade movimenta-se no interior da mesma problemática que o dom. E também ela pode ser considerada apenas como algo pertencente ao reino da utopia, portanto marcada de fundamental impossibilidade. Mas serão a sua incondicionalidade e o gesto de transgressão que a habita sinónimos de impossibilidade radical? À partida, a hospitalidade real parece enquadrável no âmbito imanente da permuta entre sujeitos autónomos, por contraposição à sua fundamental incondicionalidade. “A proximidade em relação à permuta e à economia encontra-se especialmente nas leis da hospitalidade: quando as (condicionadas) leis da hospitalidade são concebidas como leis da generosidade, a figura do hóspede manifesta que precisamente essa suposta generosidade impede a hospitalidade (incondicional) – precisamente porque procuram «normalizar», calcular, enquadrar aquilo que se distingue propriamente pela sua incalculabilidade” (Fountoulakis e Previsic 2011, 14). Ora,

esta

posição

manifesta-se,

em

última

instância,

não

apenas

exageradamente radical como sobretudo ineficaz para a real pragmática da hospitalidade. Mesmo que a radicalidade da sua perspetiva não deixe de ser interpelante para evitar reduções perversas do humano, precisa de ser articulada em mediações inter-humanas concretas, que estabeleçam reais ligações, capazes de corresponder às exigências da sua fundamental incondicionalidade. A aplicação da gratuidade incondicional à categoria – e à realidade – da hospitalidade, conduz-nos a um possível campo de aplicação, demasiado concreto e demasiado banal talvez, mas que por isso mesmo pode ser assumido como um bom teste para a aplicabilidade de um caminho qua parecia conduzir-nos à pura impossibilidade: falo do turismo. À partida, encontramo-nos perante uma completa

anulação da hospitalidade incondicional pela hospitalidade económica, por isso sempre marcada pelo interesse e de modo nenhum gratuita. Na perspetiva dos autores referidos até aqui, “a hospitalidade como comércio de permuta económica, tal como é tematizada por numerosos estudos, a permuta como inquestionável aspeto essencial das ações convencionais dos encontros hospitaleiros, até à completa economização e industrialização da hospitalidade no turismo, é paradoxalmente sempre e ao mesmo tempo excedida hiperbolicamente pela dádiva” (Fountoulakis e Previsic 2011, 24). Mas será esta alternativa necessária, também neste caso concreto? É-o, sem dúvida, se o turismo se reduzir a uma permuta económica para benefício – diferente – de ambas as partes. Mas não poderemos encontrar aí caminhos mais profundos, mais básicos e originários, que vão muito além dessa permuta de interesses? Porque não poderá o turismo ser ocasião para uma abertura real à alteridade do diferente, à realidade do outro, independentemente do seu contexto, provocando uma permanente circulação de papéis entre hóspede e hospedeiro? Não estará aí uma grande oportunidade para a ruptura de uma mesmidade segura, na progressiva e aprofundada consciência da completa condição de hóspede, por parte de quem acolhe? Não pode assim crescer a convicção da condição hospitaleira de todo o humano – mesmo de quem aparentemente não viaja – num espaço e num tempo em que, parecendo estar em casa, nunca ninguém está verdadeiramente em casa? Ser hóspede do que vem é uma condição que pode ser potenciada pela prática de acolher o hóspede que vem, precisamente e simplesmente como hóspede; independentemente de que, em realidade, haja permuta económica e que essa seja necessária e legítima, num sistema – condicional, por isso relativo e passageiro – que assenta nessa permuta como único meio de sobrevivência dos sujeitos.

No contexto muito específico da relação possível entre hospitalidade e turismo, poderá ocupar lugar privilegiado a relação aos denominados «bens culturais», de que se destacam os que são construídos na linguagem, mormente em poesia (em representação da arte, em geral, e da sua «inutilidade»). Em vez de consumo turístico dos «bens culturais», poderíamos falar em exposição a algo que vem ao nosso encontro – nativos ou estrangeiros, tanto faz – e que nos torna acolhedores de um hóspede – uma alteridade – que não dominamos. Ao mesmo tempo, torna-nos, a todos – pois todos somos realmente turistas, seja onde for e como for – hóspedes da linguagem que nos precede e nos interpela, na sua dádiva absoluta. Na linguagem – articulada nas diferentes línguas e literaturas – todos somos igualmente hóspedes e hospedeiros, sujeitos e receptores de uma dádiva que nos torna verdadeiramente humanos, na insegurança típica do hóspede que nunca está, mas permanentemente vem7. “Precisamente no caso do hóspede que dá testemunho de si mesmo, torna-se claro que uma segurança última não é possível; em seu lugar deve surgir a fé, a confiança, que contudo não pode se selada como pacto, mas apenas dada como dom hospitaleiro” (Fountoulakis e Previsic 2011, 21).

Bibliografia AaVv (1999). Manifeste pour l’hospitalité. Paris: Ed. Paroles d'aube. Bahr, Hans-Dieter (1994). Die Sprache des Gastes. Eine Metaethik. Leipzig: Reclam Verlag. Bahr, Hans-Dieter (2012). Die Anwesenheit des Gastes. Entwurf einer Xenosophie. Nordhausen: Verlag Traugott Bautz.

7

Sobre esta relação entre hospitalidade e linguagem (especialmente literatura), ver o interessante contributo de Hans-Dieter Bahr. Sobre a alteridade da arte, nunca transformável em produto ou em propriedade, nem pessoal nem coletivamente, ver Duque (1997).

Bernardo, Fernanda (2001). A ética da hospitalidade ou o porvir do cosmopolitismo por vir I. Revista Filosófica de Coimbra, 20, 333-426. Bernardo, Fernanda (2002). A ética da hospitalidade ou o porvir do cosmopolitismo por vir II. Revista Filosófica de Coimbra, 22, 421-446. Derrida, Jacques (1997). Cosmopolites de tous les pays, encore un effort!. Paris: Galilée. Derrida, Jacques (1997). De l’hospitalité. Paris: Calmann-Lévy. Derrida, Jacques (2001). Foi et savoir. Paris: Seuil. Duque, João Manuel (1997). Die Kunst als Ort immanenter Transzendenz. Zu einer fundamentaltheologischer Rezeption der Kunstphilosophie Hans-Georg Gadamers. Frankfurt: Knecht. Duque, João Manuel (2008). Deus impossível. Sobre Teologia e Filosofia na Pós-modernidade. In M. L. L. O. Xavier (Coord.). A questão de Deus na História da Filosofia (pp. 1295-1303). Lisboa: Zéfiro. Duque, João Manuel (2010). A transparência do conceito. Estudos para uma metafísica teológica. Lisboa: Didaskalia. Fountoulakis, Evin e Previsic, Boris (org.) (2011). Der Gast als Fremder. Narrative Alterität in der Literatur. Bielefeld: Transcript Verlag. Marion, Jean-Luc (2003). La raison du don. Philosophie 78, 3-32. Milbank, John (1995). Can a Gift be Given?. Modern Theology 2:1, 119-161. Ricoeur, Paul (1990). Soi-même comme un autre. Paris: Seuil. Zagalo, Gonçalo (2006). Hospitalidade e soberania – uma leitura de Jacques Derrida. Revista Filosófica de Coimbra 30, 307-323. Zanardo, Susy (2013). Nelle trame del dono. Forme di vita e legami sociali. Bologna: EDB.

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