Filosofia da Linguagem no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein

May 23, 2017 | Autor: Frank Lira | Categoria: Wittgenstein, FILOSOFIA DA LINGUAGEM
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Filosofia da Linguagem no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein Frank Wyllys Cabral Lira1

Ludwig Wittgenstein diz o seguinte: “Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo” (5.6)2. Direto, poderoso, denso. O que o filósofo estaria precisamente dizendo através desse conhecidíssimo aforismo presente no Tractatus Logico-Philosophicus? Pretendo aqui esclarecer o sentido e significado de tais, apresentando também sua filosofia da linguagem. O Tractatus Logico-Philosophicus é um livro que emprega um estilo literário para fazer filosofia: é composto de aforismos – a figura 1 dá um exemplo visual de sua estrutura -, sendo através deles que são apresentadas sentenças declarativas que se destinam a ser auto evidentes. O livro contém sete aforismos principais, havendo uma organização hierárquica devido ao uso de outros aforismos menores para detalhar e desenvolver os aforismos principais ou acima deles. Os sete aforismos principais são os seguintes: 1. “O mundo é tudo o que ocorre”; 2. “O que ocorre, o fato, é o substituir dos estados de coisas”; 3. “Pensamento é a figuração lógica dos fatos”; 4. “O pensamento é a proposição significativa”; 5. “A proposição é uma função de verdade das proposições elementares”;

1 Licenciando em Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

2 Este artigo irá citar os aforismos do Tractatus optando por referi-los a sua numeração. Assim, recomendo que, na

leitura desse artigo, esteja acompanhado de uma cópia do Tractatus para verificar as citações aos aforismos

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6. “A forma geral da proposição é [ 𝑝̅ , 𝜉 ̅ , 𝑁( 𝜉 ̅ ) ]. Esta é a forma geral da proposição”; 7. “O que não se pode falar, deve-se calar”.

Figura 1. Trecho do Tractatus Logico-Philosophicus.

Wittgenstein inicia o Tractatus apresentando sua ontologia de mundo através dos seguintes termos: fato, estados de coisas e objeto. O mundo é tudo o que ocorre (1), tudo que é o caso. O mundo é composto e determinado por fatos. Se “o mundo se resolve em fatos” (1.2) devido a totalidade dos fatos determinar aquilo que ocorre ou não (1.12), ou seja, o mundo, fato é algo que ocorre, algo que é o caso, uma asserção3 sobre algo que ocorre no mundo, uma declaração ou afirmação sobre o mundo4. Além disso, o fato é constituído de estados de coisas (2.01).

Estados de coisas é uma ligação de objetos do mundo, uma conexão ou entrelaçamento desses, assim como a realidade inteira é o mundo (2.063) em

É uma proposição afirmativa ou negativa de sentido completo e intenção declarativa, que pode ser verdadeira ou falsa. 4 “É o caso (fato) que a Ponte Rio Negro é a maior ponte fluvial e estaiada do Brasil” ou “É o caso (fato) que a Ponte Rio Negro é a segunda maior ponte fluvial do mundo” seriam exemplos de fato. 3

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razão da realidade ser os estados de coisas subsistentes (fato positivo) ou nãosubsistentes (fato negativo) (2.06). Conforme Araújo: “[...], estado de coisa é apenas algo que possivelmente ocorre, ao passo que o fato é o que realmente ocorre. Ainda sobre o referido aforismo é possível perceber que Wittgenstein se refere à realidade como a existência de estado de coisas possíveis, mas também como inexistências de estados de coisas possíveis. Assim, a possibilidade refere-se à existência e à inexistência de estado de coisas reais” (ARAÚJO, 2014).

O objeto é simples (2.02), algo que não pode mais ser decomposto em partes (2.02), constitui a substância do mundo (2.021) – algo que subsiste independente do que ocorre (2.024) -, que contém a possibilidade de todas as situações (2.014) e que dá forma ao mundo (2.026). De acordo com Tavares: “A ontologia do Tractatus resulta da análise lógica da linguagem. Segundo a introdução do Tractatus, Wittgenstein afirma que o objetivo principal de seu livro é traçar um limite para a expressão do pensamento, ou seja, determinar quando se está diante de uma expressão do pensamento que tenha sentido” (TAVARES, 2013, p. 13).

Mais na frente, Tavares diz que “Os objetos têm que existir para que a linguagem tenha sentido. Porém, o que é necessário saber de um objeto é que este é o referente de um nome na proposição” (TAVARES, 2013, p. 16). O que essas duas citações do Tavares significam? Antes de tudo, é preciso entender que Wittgenstein defende a seguinte ideia: a linguagem espelha o mundo. É devido a linguagem ser espelho do mundo que podemos compreender a realidade através da linguagem: linguagem e realidade tem a mesma forma lógica. Os seguintes termos devem ser a seguir desenvolvidos para melhor entender essa relação entre mundo e linguagem: proposição, figuração e pensamento. A proposição é um modelo que representa um fato que ocorre no mundo, uma asserção que se faz sobre o mundo. “A totalidade das proposições é a linguagem” (4.001) em razão da linguagem ser o conjunto de proposições que descrevem algum estado de coisas (4.023). Todavia, a proposição só é possível em razão da figuração. O modelo ou a representação dos fatos na realidade (2.12) seria a figuração: ela é um fato (2.141). Por isso que o pensamento “é a figuração lógica dos fatos” (3): o pensar é uma proposição do mundo, uma declaração lógica de algo

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sobre os fatos do mundo. Se um estado de coisas é pensável, posso realizar uma figuração sobre. A figuração que permite inferir a ideia de pensamento como imagem, retrato de algo que está na realidade. Ela também, por ser parte da linguagem ao expressar-se através de proposições, tem a mesma forma lógica que a realidade. Por conseguinte, os elementos da figuração correspondem aos objetos (2.13), “Os elementos da figuração substituem nela os objetos” (2.131). Numa proposição, o objeto em relação com outros objetos no estado de coisas é requisito necessário para a linguagem, pois sem ele as proposições da linguagem não teriam sentido (2.0211): o objeto é o referente de um nome na proposição. Se a proposição “é figuração da realidade. [...] modelo da realidade tal como a pensamos” (4.01), então ela tem sentido – e, para ser a correta expressão do pensamento, necessita ser determinado. O sentido determinado da proposição só ocorrerá quando a quantidade de elementos da sua figuração for exatamente a mesma do fato, devendo os elementos da proposição se referir diretamente aos elementos do mundo: “Somente assim, a proposição terá a mesma forma lógica da realidade e poderá afigurá-la logicamente, poderá ser um modelo da realidade” (TAVARES, 2013, p. 20). Uma proposição qualquer, por ter sentido – caso seja uma figuração da realidade -, pode ser comparada com a realidade (4.05) devido ser uma hipótese sobre ela. A figuração permite saber se uma proposição é verdadeira ou falsa: pois ela pode ser o caso ou não. Por isso Wittgenstein diz que “A proposição é uma função de verdade das proposições elementares. (A proposição elementar5 é uma função de verdade de si mesma) ” (5) e que “As proposições elementares são argumentos de verdade da proposição” (5.01).: as proposições são bipolares, podendo ser verdadeiras ou falsas. Porém, por mais que a “A totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência da natureza (ou a totalidade das ciências naturais) ” (4.11), a linguagem não pode dizer tudo: apenas aquilo que está no mundo. A análise lógica feita nos

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São articulações dos nomes – e este último é o signo proposicional dos objetos de um estado de coisas.

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dois parágrafos acima nos permite inferir que a linguagem tem seus limites. Wittgenstein defende que “A filosofia não é ciência da natureza” (4.111) e por isso deve ter por finalidade o esclarecimento lógico dos pensamentos (4.112). Conforme Tavares: “A filosofia é uma atividade que se dedica ao esclarecimento do pensamento. O papel da filosofia é esclarecer os pensamentos que são expressos através das proposições da linguagem. Portanto, a filosofia é uma atividade que se dedica ao esclarecimento de pensamentos, e não à teorização sobre a natureza última do mundo” (TAVARES, 2013, p. 31).

Wittgenstein vai além e diz o seguinte: “Sentimos que, mesmo que todas as

possíveis questões científicas fossem respondidas, nossos problemas vitais não teriam sido tocados. Sem dúvida, não cabe mais pergunta alguma, e está é precisamente a resposta” (6.52). Moreira esclarece bem esse aforismo: “Ora, para que a ciência exista é preciso da linguagem e, uma vez que ela é limitada, assim também o conhecimento científico é limitado, principalmente naquilo que diz respeito aos problemas vitais do homem” (MOREIRA, 2017). É por isso que “O que não se pode falar, deve-se calar” (7): a filosofia, na sua tarefa de esclarecer o pensamento, deve estabelecer os limites do que é dizível. O que é dizível é aquilo que é lógico devido os limites da lógica serem os limites do mundo e os limites do mundo serem os limites da lógica – “A lógica preenche o mundo, os limites do mundo são também seus limites. [...]. Não podemos pensar o que não podemos pensar, por isso também não podemos dizer o que não podemos pensar” (5.61). Ou seja, a lógica não pode extrapolar os limites do mundo e, por conseguinte, os limites da linguagem – pois a linguagem espelha o mundo. A lógica da forma lógica de uma figuração do mundo é que permite ser elaborado uma proposição. A possível correspondência entre os elementos da proposição – nomes - com os elementos do fato – objetos - é o que o permite tanto ter sentido quando ser verdadeiro ou falso. O pensamento é uma proposição com sentido. “Não podemos pensar nada ilógico, porquanto, do contrário, deveríamos pensar ilogicamente” (3.03). Segundo Lima, “Falar sobre o mundo já é, de saída, configurá-lo

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logicamente” (LIMA, 2015, p. 302). Consequentemente, “Isso significa que não há como pensar o mundo fora dos limites da lógica” (LIMA, 2015, p. 301). Se a linguagem tem seus limites e, ao atingir seu limite, também atingimos os limites do mundo – “Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo” (5.6) -, existe algo para além dela? Vieira nos diz o seguinte: “Tendo a linguagem alcançado seus limites, Wittgenstein afirma que terá alcançado o campo místico cujo aquele é o inefável, inexprimível, que pode ser mostrado, mas não pode ser dito” (ALVES; VIEIRA, 2013, p. 62). Vale ainda citar mais uma vez Vieira: “Para Wittgenstein, se não temos como responder uma questão que esteja além dos limites da linguagem, essa pergunta não pode ser feita. Poderíamos pensar nos mistérios após a morte, mas qualquer tentativa de resposta seria inútil, pois não há como provar através de proposições algo que provém do campo místico, desta maneira, qualquer tentativa de expressar a existência, a morte ou qualquer outra questão mística seria absurda. [...] Quando o ser humano vive a experiência mística, acaba descobrindo que essa experiência é algo sublime, que não poderá ser compartilhado. O indivíduo que alcança o místico entra em estado de silêncio, pois contempla algo maior que o estado de coisas, uma vez que está fora dele. Este sentimento de contemplação é algo inexprimível e se mostra como uma atitude que a razão não consegue explicar” (ALVES; VIEIRA, 2013, p. 63).

O que seria esse místico dito pelo Wittgenstein? O místico é o indizível – “Existe com certeza o indizível. Isto se mostra, é o que é místico” (6.522) -, aquilo que está para além dos limites da linguagem – que abarca o dizível. A linguagem me permite dizer e mostrar os estados de coisas, mas quando ultrapasso seus limites, não consigo mais dizer, apenas mostrar - por isso o místico pode apenas mostrado, mas não dito. Conforme Tavares – com relação ao contraste entre dizer e mostrar -: “Mostrar é diferente de dizer. Dizer significa ter a possibilidade de ser verdadeiro ou falso, na descrição do mundo. Por isso, a proposição que diz como estão as coisas pode ser verdadeira ou falsa. O contrário de dizer é mostrar, que não implica a possibilidade de ser verdadeiro ou falso. Por isso, a proposição que diz, simplesmente, exibe (mostra) como seus elementos, os nomes, estão correlacionados com os elementos do mundo, os objetos. Ao mostrar esta correlação, a proposição exibe como ela afigura a realidade, como nos coloca diante da realidade. Quando a proposição diz que as coisas estão assim, ela tem a pretensão de dizer algo, que é verdadeiro ou falso, sobre o mundo” (TAVARES, 2013, p. 75).

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O silêncio a que se chega ao deparar-se com o místico é uma necessidade lógica: este é “um reconhecimento de que sobre realidades que não estão no escopo das ciências naturais, como por exemplo, a ética e a estética, nada pode ser dito” (TAVARES, 2013, p. 82). Se a ética, por exemplo, estivesse no mundo, não somente ela não teria valor como ela seria relativa. Wittgenstein defende o valor absoluto da ética. “A ética é individual e se dá no campo místico, pois as questões éticas não se fazem presentes nos fatos, mas para além deles. Na ética não existem proposições” (ALVES; VIEIRA, 2013, p. 66). No fim, “a ética tem como objetivo esclarecer o sentido da vida, e é ela que deve orientar a maneira correta de viver” (ALVES; VIEIRA, 2013, p. 67). “Deus não se manifesta no mundo” (6.432) diz Wittgenstein no respectivo aforismo. Deus está em um patamar em que a razão ou a lógica não pode alcançar, não sendo possível a sua captura pela linguagem. Assim, como a Ética, Deus é inefável, indizível – assim como o sentido da vida e as questões da nossa existência. Deus está no místico, portanto. Tentar explicar aquilo que está no místico através da linguagem, assim sendo, é um absurdo. Resta a nós apenas a posição de respeitoso silêncio perante essas situações – afinal, como bem diz o aforismo 7, “O que não se pode falar, deve-se calar”.

Referências ALVES,

Marcelo

Meira.

VIEIRA,

Vinicius

Malta.

WITTGENSTEIN

E

A

TRANSCENDÊNCIA DA LINGUAGEM: O CAMPO MÍSTICO NO TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS. Filosofando, Itapetinga, v. 1, n. 1, p. 58-72, 2013. Disponível

em:

. Acesso em: 21 de fev. 2017.

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ARAUJO, Valdeni Lopes de. Relação entre fato e proposição em Wittgenstein. Disponível em: .

Acesso

em: 22 de fev. 2017. LIMA, Francisco Jozivan Guedes de. WITTGENSTEIN E A DELIMITAÇÃO LÓGICOLINGUÍSTICA DO MUNDO NO TRACTATUS. Contemplação, Marília, n. 12, p. 299310,

2015.

Disponível

em:

. Acesso em: 21 de fev. 2017. MOREIRA, Daniel Fernandes de. “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”: uma leitura sobre a mística no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein.

Disponível

em:

. Acesso em: 20 de fev. 2017. TAVARES, FRANCISCO RENATO. Metafísica e Misticismo no Tractatus de

Wittgenstein. 2013. 62 f. Dissertação (mestrado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, Campinas - SP, 2013 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Companhia Editor Nacional/ Editora da Universidade de São Paulo, 1968.

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