Filosofia e Educação no Brasil: perspectivas históricas e problemas actuais (Revista Síntese - Universidade Pedagógica, de Moçambique)

June 14, 2017 | Autor: Wilson Paiva | Categoria: Filosofia da Educação, Filosofía, Ensino da filosofia, escola
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Descrição do Produto

Antropologia, Filosofia, Geografia, História e Sociologia

Ano V, Número 10 2012

Síntese, Ano V - Número 10

Ficha Técnica Director Severino Ngoenha Comité Editorial Severino Ngoenha - Jorge Jairoce Stélia Muianga - Eduardo Buanaissa Bento Rupia Conselho Editorial Severino Ngoenha - Stela Duarte - José Castiano Martinho Pedro - Adelino Ivala - Bento Rupia Ezio Bono - Jorge Jairoce Stélia Muianga - Eduardo Buanaissa Financiadora: Universidade Pedagógica Título: SÍNTESE; (Publicação Trimestral) 10ª Edição Capa e Arranjo Gráfico: Sérgio F. Zimba Impressão: DINAME Tiragem: 500 Propriedade: Faculdade de Ciências Sociais Registo: DISP. REGº/GABINFO-DEC/2012 Endereço: Av de Moçambique—Km 1, Campus de Lhanguene, C.P. N.º 3276 Telefax: +258 21 306711, Maputo Email: [email protected]

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ÍNDICE Editorial ...........................................................................................................................5 Filosofia e Educação no Brasil: Perspectiva Histórica e Problemas Actuais (Wilson Alves de Paiva)........................................6 Sofrimento, Doença e Práticas Terapêuticas na Igreja Zione em Maputo, Moçambique (Giulia cavallo).............................................................................................................. 19 A Concepção da Ética no Ensino da Filosofia no Nível Médio em Moçambique (António Cipriano Parafino Gonçalves).........................................................................21 O Estado e a Escola na Construção da Identidade Política Moçambicana (Guilherme Basílio)....................................................................................................................34 A Reflexão Axiológica entre a Educação Industrial e a Educação Intelectual como Potencialização para o Desenvol vimento nos Países Periféricos (Bernardino Cordeiro Feliciano).........................................................................................43 A Análise Crítica do Plano Curricular do Ensino Secundário Geral: um Olhar sobre a Filosofia (António Xavier Tomo)....................................................................................56 O Valor Ético do Trabalho para Riqueza e Desenvolvimento (Mário Alberto Viegas)...69 Educação e Ensino de Filosofia em Angola: Desafios, Oportunidades e Perspectivas (Angelino Jones)......................................................80 Fundamentação Filosófica da Técnica : Elementos de Crítica da Tomada Paradigmática das TIC para o Desenvolvimento (Rufino Filipe Adriano)...........................88 Filosofia Africana nos Países Lusófonos: o Caso de Moçambique (Problemas, Desafios e Perspectiv as) (Gerson Geraldo Machevo)...................................................................94 Estados Africanos e o Processo de Democratização: Desafios e Perspectiv as no Século XXI (Carlos Mussa).......................................................112 Filosofia Intercultural e a Promoção de Reflexões Críticas a partir do Contexto Moçambicano (Por Stélia Rosa Muianga).....................................................................122 A Actualidade do Pensamento de Kw ame Nhkrumah e Frantz Fanon: Desafios por uma Contínua Emancipação de África (Anselmo Chizenga e Keluna Marciana Sitoe)..........131 Mercado e Ética (Thomas Kesselring)............................................................................151 Fronteiras da Filosofia para a Construção da Democracia em Moçambique (Severino E. Ngoenha e Eduardo F. Buanaissa).....................................................................173

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Normas para a publicação na Revista Síntese 1. Os artigos propostos não devem ter sido publicados anteriormente. 2. A proposta de cada artigo deve ser acompanhada de texto completo, título do artigo, nome do autor, resumo (máximo de 100 palavras). 3. Todos os artigos devem ser entregues em versão electrónica e impressos em papel A4. 4. Os artigos propostos serão submetidos à apreciação do Comité Editorial, cujo parecer fundamentará a decisão de publicação que compete à Direcção 5. O texto principal é apresentado em Word; Times New Roman; tamanho da letra 12; espaço entre linhas 1,5; justificado de ambos os lados, excepto na abertura de parágrafos do lado esquerdo. 6. As citações e demais aspectos devem ainda seguir as Normas de Produção e Publicação de Trabalhos Científicos na UP.

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EDITORIAL Ao se pensar na filosofia – num contexto em que o mundo atravessa a mundialização e tudo o que daí advêm – fomos chamados no ano de 2010 a re-pensar sobre o papel da filosofia na sua dimensão social ao nível da CPLP. Atendendo ao facto de que a esfera social da nossa era perpassa os limites do global, vimo-nos interpelados à redimensionar o nosso olhar filosófico a uma abordagem intercultural, onde países como Angola, Brasil, Portugal, Moçambique, entre outros – irmãos – têm a “obrigação” de fixarem os seus discursos teóricos e filosóficos, sobre a nossa realidade social. O que se tornou interessante na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Pedagógica de Moçambique, foi ter-se tido a iniciativa de olhar a filosofia como um instrumento, que não só constrói os alicerces das “empresas utópicas” para fazer valer as verdades do amanha, mas sobretudo, o interesse de pensar-se num debate filosófico que no mesmo instante que vai construindo a história do futuro, se preocupa também em fazer respostas imediatas aos problemas presentes do nosso caminhar existencial. Aliás, não foi por acaso que o Lema do Congresso de Filosofia de 2010 foi: Filosofia e Metamorfoses Sociais na CPLP. A Revista Síntese número 10 preservará a estrutura e o formato do número anterior, que foi marcado por algumas alterações aquando da constituição de um renovado grupo de trabalho, desde a direcção da Revista, a constituição dos comité e conselho editoriais, entre outros aspectos. Porém, contamos com a colaboração do Professor Bento Rupia, em função de ter regressado do Brasil, no contexto do doutoramento que estava a realizar naquele país. Aliás, com a sua presença, a revista passou a fazer parte do Centro de Pesquisa da Faculdade de Ciências Sociais (CEPCIS) que ele é digno dirigente. Pelo facto deste número fazer parte de uma edição especial da Revista Síntese, no contexto da publicação dos artigos apresentados no Congresso Internacional de Filosofia organizado pelo Departamento de Filosofia em 2010, não trazemos desta vez as recensões cuja inovação foi pensada a partir do número anterior. Esperamos que os presentes textos possam constituir-se em mais um instrumento do nosso repertório teórico-filosófico para um exercício melhorado do nosso pensarsocial glocal de um Moçambique demarcado pelas fronteiras da CPLP e do mundo.

Severino E. Ngoenha e Eduardo F. Buanaissa Novembro de 2012

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FILOSOFIA E EDUCAÇÃO NO BRASIL: PERSPECTIVA HISTÓRICA E PROBLEMAS ACTUAIS Wilson Alves de Paiva1

O texto tem como objetivo principal reflectir sobre as diversas formas nas quais a filosofia foi introduzida e desenvolvida no Brasil, suas implicações históricosociais e a relação com o processo educacional. Para isso, parte da perspectiva escolástico-jesuítica que funcionou como “pano de fundo” tanto do pensamento teológico, filosófico e pedagógico por vários séculos, inculcando uma “mentalidade jesuítica” no povo brasileiro. Outras tendências filosóficas europeias foram introduzidas no final do século XVIII e XIX, sobretudo o positivismo Comteano. A partir do século XX, diversas tendências passaram a dividir o mesmo espaço do cenário político, filosófico e educacional no Brasil, forjando uma mentalidade eclética, quando não sectária.

Termos-chave: Filosofia e educação; Filosofia no Brasil; Tendências filosóficas. INTRODUÇÃO Não há uma filosofia brasileira, pelo menos nos moldes do que poderíamos chamar de uma filosofia francesa, uma inglesa, uma alemã ou uma americana. Mas não podemos deixar de afirmar que exista filosofia no Brasil. Mais do que isso, o que existe, na verdade, são perspectivas e tendências filosóficas que têm influenciado significativamente a formação do povo brasileiro e a constituição do país como um todo. Da religião à política e da literatura à educação, vários são os campos de manifestação dessas tendências, bem como da produção de intelectuais que poderíamos chamar de filósofos, mesmo não tendo a originalidade de Hegel e Kant, ou mesmo de um John Locke, um Sartre ou um Rorty, nem, tampouco, a formação específica em filosofia.

1 Mestre em Filosofia (UFG) e Doutor em Filosofia da Educação (USP). Professor da Faculdade União de Goyazes e pesquisador

do Grupo de Estudos da Democracia, da UFG.

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Assim sendo, a filosofia no Brasil pode ser dividia em quatro fases principais, que denomino, para os propósitos deste texto, de Escolástica, Liberal, Crítica e Académica. A primeira, fortemente marcada pelo caráter religioso, tem início com a chegada dos missionários jesuítas2 à terra brasilis no século XVI, estendendo-se até o século XVIII; a segunda, pretensamente científica, desenvolve-se no bojo das transformações sociais que culminaram com a queda do Império e a proclamação da República, em 1889; a terceira tendência agrupa as múltiplas correntes de pensamento emanadas das transformações sociais europeias e americanas do final do século XIX e início do XX. E, por fim, a quarta, diz respeito à produção académica que vem sendo produzida pelas universidades brasileiras, mormente nos programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutoramento), que agrega uma vasta produção exegética sobre a obra de grandes pensadores. Para uma reflexão mais abrangente sobre o tema proposto, acho importante caracterizar cada fase, fornecendo alguns dados históricos, ressaltando a estreita ligação que cada um tem com as questões pedagógicas e educacionais como um todo. A Fase Escolástica A colonização brasileira, como todas as conquistas lusitanas na África, fortaleceu a política expansionista e exploradora de Portugal, provocando choques culturais intensos e, consequentemente, a imposição da visão de mundo que ela defendia. Ao longo do processo histórico é inegável que a convivência de povos distintos e a miscigenação tenham possibilitado trocas efetivas no campo das práticas culturais. Porém, a tentativa da formação de uma “sociedade de portugueses do Brasil” (Cf. PALACÍN, 1981) constituiu-se basicamente pela transplantação dos costumes, das crenças e das instituições. A Companhia de Jesus foi enviada justamente com o propósito de evitar a degradação desse legado e evangelizar os índios. Apesar das dificuldades iniciais quanto aos parcos recursos, à resistência à catequização3 e àquilo que chamavam de licenciosidade 2 Embora

tenham vindo outras ordens (Carmelitas, beneditinos, franciscanos etc.), os jesuítas foram os mais significativos na catequização dos índios, na produção material e na organização de um sistema educacional que atingiu toda a colônia. A Companhia de Jesus foi fundada por Ignácio de Loyola, em Paris, em 1534. Em 1549 chegou ao Brasil, junto com o primeiro Governador Geral Tomé de Sousa, um grupo de seis religiosos, dos quais destaco padre Manoel da Nóbrega (chefe) e José de Anchieta (PAIVA, 2003). 3 Vários escritos de Nóbrega e Anchieta falam da dificuldade do empreendimento. No início, poucos índios se converteram e, mesmo assim, interessados nos presentes. Em 1560 Anchieta escreve que alguns meninos ensinados nas escolas retornaram depois aos velhos costumes. Diz ele (Idem) : “Como chegaram aos anos da puberdade e começaram a poder consigo, vieram a tanta corrupção que tanto sobrepujam seus pais em mal quanto antes em bondade, com tanto maior desvergonha e desenfreio dão-se às bebedeiras e luxúrias quanto com maior modéstia e obediência entregavam-se aos costumes cristãos” (Apud PALACÍN, 1981).

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moral dos colonos, os religiosos conseguiram estabelecer missões, reger aldeamentos, fundar colégios e proporcionar o estudo das primeiras letras, sob o crivo da ortodoxia católica. Mesmo assim, a estrutura social que se desenvolvia não tinha a cultura e a intelectualidade como uma de suas metas mais importantes. E, se não havia nenhuma atividade intelectual significativa, como poderia haver produção filosófica? Como diz Antônio Paim (1988, p. 3), um dos maiores estudiosos brasileiros dessa temática, “nesse quadro, a meditação filosófica tinha que ser mera repetição do que se fazia na Metrópole”. Sem deixar de dizer que ainda assim restrita aos seminários e aos clérigos da Casa Grande4. Nesse período, o que ocorria em Portugal era a adequação do humanismo renascentista aos princípios da escolástica. O que se convencionou chamar de “Segunda Escolástica5”, pode ser visto não apenas como a continuidade da filosofia aristotélico-tomista, mas também como a mais ardorosa tentativa dos jesuítas de preservar o “espírito medieval” em face das transformações da modernidade. Após o término do Concílio de Trento (1560) e a elaboração final da Ratio Studiorum6 (1599), os inacianos intensificaram no Colégio das Artes, na Universidade de Coimbra e em todos os colégios que fundaram nas colônias, uma pedagogia missionária cujas práticas fortaleciam as estruturas hierárquicas e preparavam o educando para a obediência e não para a reflexão e o pensamento crítico. Como formação básica, estudavam o trivium e o quadrivium, ou as chamadas “sete artes liberais” (Gramática, Retórica e Dialética; Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). Aos que seguiriam a carreira de sacerdote, eram necessários mais alguns anos de estudo do grego, latim, hebraico, humanidades, filosofia e teologia. A terceira regra da Ratio determinava que a Suma Teológica, de Tomás de Aquino e a obra filosófica de Aristóteles, além dos comentários previamente selecionados destas obras e dos livros escolhidos para cultivo das Humanidades, deveriam constituir a leitura dos alunos (Paim, 1997). O saber era, por assim dizer, enciclopédico, porém desprovido do caráter especificamente filosófico, enquanto problematização, reflexão, discussão e produção própria.

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utilizado pelo sociólogo Gilberto Freyre, em sua magistral obra Casa Grande e Senzala. Significa a sede, isto é, a casa principal dos engenhos de cana, onde habitava o senhor de engenho e sua família. Era uma unidade política que agregava poder, riqueza, glamour e um pouco das letras quando alguém da família se ordenava padre. 5 Período da filosofia portuguesa iniciada com Pedro da Fonseca (1528/1597) e vai até meados do século XVIII, foi sugerida a Joaquim de Carvalho pela obra de Carlo Giacon (La Seconda Scolastica, Milão, 1946). Tem o mérito de chamar a atenção para a necessidade de distingui-la da grandiosa sistematização empreendida por Tomás de Aquino, no século XIII, sem lhe atribuir a condição de simples prolongamento da chamada escolástica decadente dos séculos XIV e XV (PAIM, 2007). 6 Plano de Estudos: Conjunto de 467 normas que regulamentavam o ensino nos colégios jesuítas em todas as suas atividades. O processo didático era composto de: preleção, erudição, memorização, repetição, composição e emulação seguida de prêmios.

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Entre os pensadores jesuítas, vale destacar José de Anchieta (1534-1597) e Manoel da Nóbrega (1517-1570). Os escritos desses religiosos foram as primeiras obras literárias brasileiras e procuraram registrar, entre outras coisas, a impressão que o novo mundo lhes causava. Em seus escritos epistolares, Nóbrega criticou a devassidão dos clérigos locais e a inconsistência de seu discurso com a prática. Padre Antônio Vieira (16081697), já no século seguinte, destacou-se por refletir sobre os direitos dos povos indígenas, questionando a exploração e a escravização. Seus Sermões foram mais que uma exigente e bela hermenêutica bíblica, pois atacava o pecado da omissão, da injustiça e da desigualdade. A expulsão da Ordem, em 1759, por iniciativa de Pombal7, trouxe mais problemas que soluções. Embora o objetivo fosse a modernização do Estado e a adequação do pensamento aos moldes do Iluminismo francês, as mudanças não conseguiram substituir o sólido sistema educacional que a Companhia de Jesus havia construído. Como os professores leigos tinham sido formados em sua maioria pelos “filhos de Loyola”, a formação das mentalidades continuou quase tão jesuíta quanto antes. Se por um lado a tentativa de modernização arrancou o monopólio intelectual da Igreja e semeou a ideia de um sistema laico, organizado pelo Estado, por outro, o novo sistema filosófico não conseguiu despojar de todo a velha escolástica. Como diz Cartolano (1985, p. 25): “O ensino orientou-se ainda para os mesmos objetivos religiosos e livrescos dos jesuítas; realizou-se através dos mesmos métodos pedagógicos, com apelo à autoridade e à disciplina estreitas, tendendo a impedir a criação individual e a originalidade. Quanto ao ensino de filosofia [não na mão dos franciscanos]8, continuou também no mesmo estilo livresco e escolástico” Mistura de racionalismo cartesiano com naturalismo rousseauniano e empirismo lockeano, o novo sistema tenta superar a metafísica e fundar um conhecimento científico, sem, contudo, discutir devidamente algumas questões problemáticas. Por exemplo, a preeminência do cogito como autoevidência do sujeito pensante, tal como René Descartes (1596-1650) dispõe em seu Discurso do método; as proposições do Contratualismo e da soberania popular de Rousseau (1712-1778); ou os pressupostos da liberdade religiosa, a liberdade de pensamento e os direito fundamentais, advogados por John Locke (1632-1704) em vários escritos. Daí, a denominação comum de empirismo mitigado, tal qual se convencionou chamar, pois acabou correspondendo 7

Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), Primeiro Ministro de Portugal de 1750-1777, nomeado pelo Rei José I (1750-1777), comandou a política e a economia de Portugal por quase três décadas. Reorganizou o Estado, incentivou a indústria e o comércio e combateu tanto os nobres quanto o clero, defendendo um estado absolutista iluminista. 8 Autorizados por Pombal a instituir uma cátedra de Filosofia no Rio de Janeiro, em 1759.

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somente ao método científico da construção do conhecimento pelas percepções, assim como à problemática do Estado patrimonial, não dando respostas satisfatórias ao problema da consciência e da liberdade. A Fase Liberal As reformas pombalinas, em outro aspecto, permitiram o ingresso no magistério de personalidades políticas cujo trânsito na Europa serviu de canalização dos ideais revolucionários, vindos principalmente da França, e fortaleceu os movimentos separatistas e os sentimentos republicanos. Além dessas personalidades, vale destacar a figura do poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), o qual teve uma produção filosófica (Cartas chilenas, Tratado de Direito Natural), e a do destacado Matias Aires (1705-1763), cujo trabalho principal são As reflexões sobre a vaidade dos homens. Apesar da influência da escolástica, em ambos os autores, é possível visualizar as inquietações do iluminismo. Entre os inconfidentes9 era comum a leitura das histórias da Grécia e Roma, o Contrato Social de Rousseau e obras de Voltaire, do abade de Reynal, Genovesi10 e outros. O grande nome da reforma do Marquês de Pombal foi Luiz Antonio Verney (17131792), considerado o maior representante do iluminismo em Portugal. Como teólogo, seu pensamento não era totalmente oposto à filosofia dos jesuítas, a não ser nos métodos pedagógicos. Daí sua primeira publicação levar o título de "O verdadeiro método de Estudar". A vinda da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, em 1808, significou um avanço considerável em muitos aspectos. A presença de D. João VI com toda a família real, além de um séquito de milhares de pessoas, exigiu uma adequação rápida da vida social da colónia para atender as necessidades imediatas de quem estava habitado à vida europeia. Houve a ampliação do ensino superior e a instalação de novas instituições que correspondiam às aspirações reais quanto à ciência e à produção do conhecimento. A abertura dos portos; a instalação da Biblioteca Nacional, da Imprensa Régia, das escolas superiores de formação científica; e a inauguração da Academia Militar e hospitais militares, entre outros fatos, propiciaram a produção de um conhecimento mais científico, denominado de filosofia natural, cujo saber estava diretamente relacionado com a física, a biologia, a matemática, a medicina e as engenharias. 9 Trata-se

aqui da Inconfidência Mineira: movimento separatista abortado por Portugal em 1789, na província de Minas Gerais. Genovesi (1713-1769) iluminista italiano, defendia que a capacidade de filosofar não precisava de outras luzes a não ser a da razão natural. 10 Antonio

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O que se intensificava nesse momento era uma tendência cientificista, iniciada nas reformas pombalinas, que passou a orientar o sistema de ensino superior, privilegiando a ciência aplicada. Fato que facilitou a entrada dos ideais positivistas ao ponto de se inaugurar no Rio de Janeiro a Igreja Positivista do Brasil. O contraponto dessas ideias residida na produção neo-platónica e românticoespiritualista de alguns literatos, sob influência do pensamento de Cousin11, como Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882), que escreveu Fatos do espírito humano, e Silvestre Pinheiro Ferreira (1769/1846), considerado o maior nome de uma corrente classificada, não sem alguma polémica, de Escola Eclética – a primeira vertente filosófica estruturada no Brasil (PAIM, 1999), pois eram separados da religião e do cientificismo. Já o positivismo ganhou muitos adeptos e encontrou no Brasil um solo bastante fértil para a germinação das ideias de Augusto Comte (1798-1857). O marco inaugural pode ser a obra As três filosofias, de Luís Pereira Barreto (1840-1923) que, como outros, era adepto da ideia das etapas do conhecimento científico (teológico, metafísico e positivo). O que ocorre é que durante o Segundo Império (1840-1889) uma classe de eruditos assumia posições políticas, militares e académicas, tomando espaço dos velhos defensores do tradicionalismo católico e do absolutismo esclarecido de Pombal. E assim foram constituindo o que podemos chamar de republicanismo brasileiro, sob forte influência tanto da liberal-democracia, advinda do empirismo de John Locke, como, e mais precisamente, do estatismo de Comte. Políticos como Júlio de Castilhos (1860-1903) e militares como Benjamim Constant (1836-1891) defendiam um estado forte e tecnocrático que fosse capaz de impor uma educação moralizadora e científica. O apogeu desse movimento foi a proclamação da república,em 15 de novembro de 1889, sob o lema da “ordem e progresso” – frase presente na bandeira brasileira até hoje. No campo educacional a tecnocracia positivista elaborou um projeto que procurava atender o desenvolvimento do modo capitalista de produção e sua divisão social do trabalho. Era necessária uma crescente especialização de mão-de-obra e uma classe dirigente preparada técnico-cientificamente. O problema é que o movimento, chamado de “entusiasmo pela educação”, não passou do entusiasmo e, por conseguinte, da construção de algumas escolas nas capitais. O “entusiasmo” tinha um caráter quantitativo, cuja ideologia era a da formação das massas, segundo o método lancasteriano. 11

Victor Cousin (1792-1867), filósofo francês. Defendia a apropriação das melhores teses dos distintos sistemas, depuração e separação através da análise dialética a fim de atingir uma doutrina melhor.

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Ainda sob a influência do liberalismo, um movimento intelectual crítico passou a ganhar corpo na Faculdade de Direito do Recife12, que valorizava os elementos brasileiros, desde a mestiçagem até à formação de um homem e de um pensamento nacional. Chamado de “Escola do Recife”, “Geração de 1871”, “Positivismo culturalista” ou somente “Culturalismo”, o movimento integrou figuras de diversas áreas, como os estadistas, como Joaquim Nabuco (1849-1910), Rui Barbosa (18491923); escritores como Tobias Barreto (1839-1889), Euclides da Cunha (1866-1909), que escreveu Os sertões, e Gilberto Freyre (1900-1987), autor de Casa grande e Senzala; e filósofos como Sílvio Romero (1851-1914), Miguel Reale (1910-2006) e Antônio Paim (1927). O culturalismo foi a mais fecunda corrente do pensamento filosófico brasileiro e talvez a que mais se aproximava do caráter brasileiro, no que diz respeito à filosofia como multiplicidade de perspectivas, a mestiçagem e o livre trânsito dos intelectuais pelos campos do conhecimento. Vale lembrar que vários desses nomes citados eram advogados, escritores, poetas, políticos, diplomatas, jornalistas, filósofos e professores ao mesmo tempo. A tentativa dessa tendência era a de superar o determinismo positivista da “física social”, e até mesmo o ecletismo, em sua dimensão espiritualista, para a análise ontológico-cultural da sociedade. Herdeira do pensamento de Kant (1724-1804), tentava colocar a teoria do conhecimento sobre os auspícios da filosofia, e a metafísica como base fundamental para o pensamento. Inserindo-se aqui a questão dos valores morais e a política como parte de um processo histórico e moral. O século XX foi marcado pela influência de outras duas importantes correntes filosóficas: o marxismo e o pragmatismo. De um lado, a influência norte-americana trouxe o pensamento de John Dewey (1859-1952) que, casado com o instrumentalismo psicológico de Piaget (1896-1980) e outras tendências pedagógicas – tais como a naturalista de Rousseau, a ativa de Adolphe Ferrière (1879-1960), a não-diretividade de Alexander Neill (1883-1973) e Carl Roger (1902-1987), entre outras -, deu a tónica à educação, sob o nome de Escola Nova que, a partir da década de 1920, tenta implantar uma nova pedagogia baseada na ação (“learning by doing”) e na experiência concreta da vida. Para Anízio Teixeira (1900-1971), o maior seguidor de Dewey no Brasil, “Do encontro entre o “intelecto” e a “oficina” é que partiu todo o sistema de conhecimento científico moderno, que nada mais é que o conhecimento racional tornado fértil e fecundo, pela sua ligação com a realidade concreta do mundo e da 12

Criada por D. Pedro I, em 1827.

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existência. Toda uma nova filosofia do conhecimento se estabeleceu em oposição à fórmula grega do dualismo entre o racional e o empírico” (TEIXEIRA, 1957, p. 15). Por outro lado, até a década de 1920 a economia era predominantemente agrárioexportadora. Sem uma classe operária significativa ou uma classe média urbana fora da influência do poder oligárquico, o pensamento crítico só foi possível graças a movimentação operária dos imigrantes europeus, sobretudo italianos, que trouxeram as ideias anarquistas e os ideais do socialismo utópico e do materialismo dialético – aspectos de outra fase para a educação e a filosofia, a qual denomino de fase crítica. A Fase Crítica Na verdade, toda filosofia é de natureza crítica e mesmo na leitura dogmática da Patrística ou da Escolástica há uma dimensão analítica, reflexiva e interpretativa. O termo “crítico” é empregado em minha análise no sentido de meio termo entre o dogmatismo e o ceticismo. Não se trata de um sistema, como no criticismo kantiano, mas de um recurso, ou método de análise de diversos campos intelectuais: teológico, político, filosófico e pedagógico. Restringindo-me ao campo educacional, nasceu nesse contexto, contra toda a espécie de “tradicionalismo”, um pensamento pedagógico progressista13, formado no seio dos movimentos populares, cuja preocupação é dar respostas concretas ao problema das desigualdades, do desemprego, da pobreza e da exploração económica. Tendo como fundo o pensamento teórico de Francisco Ferrer (1849-1909), os princípios da educação pública socialista, enunciados por Marx (1818-1883), Engels (1820-1895), Lenine (1870-1924) e Gramsci (1891-1937), sem desmerecer as contribuições liberaldemocráticas da Escola Nova, o movimento progressista buscou ressaltar as finalidades sócio-políticas da educação. De forma quase unânime, todas as vertentes progressistas – mutatis mutandis - se posicionam contra a escola capitalista em sua dimensão instrumental de formação do capital humano e da reprodução da ideologia burguesa, tal como denunciaram o filósofo Louis Althusser (1918-1990) e o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002). No seio dessa movimentação é que nascem as tendências progressistas Libertária, Críticosocial dos conteúdos e Libertadora. A primeira nos remete à mobilização anarquista, e tem como referencial o pensamento do professor Maurício Tragtenberg (1929-1998), o qual defendia a auto-gestão da escola e a educação para a solidariedade. A segunda 13 Termo

retirado da obra de George Snyders (1974), Pedagogia progressista.

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defende a difusão dos conteúdos como uma tarefa primordial à formação dos alunos, a valorização da escola e do professor como um agente de condução do saber. Tem como principal teórico, o filósofo Dermeval Saviani (1943), o qual defende que educação e política são inseparáveis, porém distintas entre si; e, claro, a dimensão política da educação se realiza enquanto prática especificamente pedagógica (Gadotti, 2002). A terceira, conhecida no mundo inteiro, refere-se basicamente ás ideias pedagógicos do educador e pensador Paulo Freire (1921-1997). Síntese do marxismo, do existencialismo cristão, da fenomenologia e da dialética hegeliana, Freire desenvolveu uma perspectiva libertadora para a prática social. Uma prática político-pedagógica que liberta o oprimido de seu opressor, pelo letramento e a conscientização. Como uma ação cultural para a liberdade (Freire, 1987), a ação humana (preponderantemente pedagógica) deve ser um processo de humanização que liberta o homem de sua condição “bancária14” e o prepara para a autonomia. Como diz o autor (1982, p. 120): “Neste sentido é que toda investigação temática de caráter conscientizador se faz pedagógica e toda autêntica educação se faz investigação do pensar”. A filosofia de Paulo Freire nasce do fermento dos movimentos eclesiais de base e nos movimentos de cultura popular. Consagrou-se pelo método de alfabetização e por sua atuação em todo o mundo, inclusive em alguns países africanos. Cartas a Guiné-Bissau é uma coletânea de reflexões trocadas com o filósofo e educador africano Mário Cabral. A Fase Acadêmica e os problemas atuais Excetuando os cursos de filosofia, ministrados pelas ordens religiosas, as cátedras de filosofia de poucas instituições de ensino superior do período imperial e início da República, podemos dizer que a fase propriamente académica da filosofia só inicia no século XX, com a instalação das primeiras universidades15. A missão francesa que veio para Universidade de São Paulo trouxe o “modelo historiográfico” de Guérout (1891-1976) que deu a tónica aos estudos em filosofia. O filósofo francês defende que “diversamente do que ocorre nas ciências, a história da filosofia é, de fato, o principal instrumento de iniciação à filosofia e, para a filosofia, permanente inspiração” (GUÉROULT, 2000, p.162). Abordagem que ganhou tradição nos cursos de graduação e nos estudos de filosofia no Ensino Médio ou Fundamental da Escola Básica. Mais utilizado nas licenciaturas, essa perspectiva arquitetónica da filosofia

14 Como

num banco onde se deposita os valores assim é a educação, bem como a prática política, que vê no homem o sujeito passivo, mero receptor do conhecimento pronto e das ordens emanadas da tecno-burocracia. (Cf. Freire, 1982). 15 A primeira foi a Universidade Federal do Rio de Janeiro (1920), seguida pouco depois pela Universidade de São Paulo (1934) e mais tarde pela Universidade de Brasília já na década de 1960.

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aprofunda o conhecimento histórico, mas empobrece o curso no que ele tem de mais importante: o ato de refletir sobre os problemas existentes. Nos cursos de pósgraduação, quando o mestrando ou doutorando se dedica ao estudo vertical de um autor, pelo menos o exercício exegético é feito de forma mais aprofundada. Essa abordagem, digamos estruturalista, tem sido eficiente na formação de historiadores da filosofia. Porém, como questiona Palácios (2004), como proceder se houver interessados em outras perspectivas nos cursos de graduação? O mesmo terá o devido apoio por parte de seus professores ou serão reprimidos? Por que não desenvolver espaços de discussão não cronológicos, temáticos e provocativos? As faculdades de filosofia das principais universidades do país têm produzido um número considerável de especialistas, “leitores” de renome até internacional. Marilena Chauí, Benedito Nunes, Bento Prado Jr., Renato Janine Ribeiro, Luís Alberto de Boni, Milton Meira do Nascimento, entre outros, têm sido os nomes mais significativos na produção de obras interpretativas. O que, evidentemente, leva à formação de historiadores da filosofia, exegetas e licenciados. Nisso, o problema que se coloca é o da frustração de muitos que não se destacam fora de seu contexto regional ou nacional. O que restringe suas instituições à mera defesa de filósofos estrangeiros, impedindo uma verdadeira discussão de ideias. (Severino, 1999; Ribeiro, 2002). Para a licenciatura o problema que se coloca é o mesmo: ensinar o quê? Qual a perspectiva de sua prática docente? Uma vez que a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9.394/96) dispõe que o final do ensino médio o aluno deve “dominar os conhecimentos de filosofia e de sociologia necessários ao exercício da cidadania”, percebe-se aí uma indicação para um trabalho cuja exegese seja problematizadora e reflexiva. Já nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), a filosofia figura como um “tema transversal”, isto é, trabalho por todas as disciplinas nos aspectos da ética, dos valore e da convivência social. Algo que dificilmente será coloca em prática, uma vez que a educação brasileira não se livrou totalmente das amarras jesuítas, positivistas e bancária. Predomina, na maioria das vezes, a transmissão do conhecimento, a imposição autoritária dos valores e a preparação para o vestibular. Num quadro como esse, a filosofia acaba não sendo nem histórica, nem exegética nem problematizadora, mas a negação da própria filosofia – salvas as exceções.

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O que nos leva a afirmar que a filosofia e a educação continuam de mãos dadas, porém, dessa vez, para o fracasso do próprio filosofar. Considerando o dogmatismo de vários séculos, o autoritarismo militar e a síndrome do colonizado que ainda não encontrou de vez a cura, falta ainda uma produção problematizadora, isto é, que trabalhe na perspectiva da reflexão fundamentalmente filosófica: a proposição de problemas reais para a vida concreta ou para o conhecimento. CONCLUSÃO As questões aqui colocadas, um tanto quanto longas no aspecto histórico, objetiva deixar clara a perspectiva da evolução do problema brasileiro ao longo dos séculos. A citação de tantos nomes e datas foi proposital para que o leitor estrangeiro tenha condições de se situar melhor no contexto historiográfico. Na expectativa de ter atingido os objetivos propostos, deixo para o leitor a tarefa de relacionar o desenvolvimento da filosofia e da educação com as metamorfoses sociais. Mais do que nunca, vivenciamos um século de muitas transformações. E, por conseguinte, precisamos repensar o papel da educação e o da filosofia no redimensionamento dessas metamorfoses. Pensá-las no âmbito da humanização é o dever ético imprescindível à qualquer reflexão que se pretende filosófica e pedagógica.

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SOFRIMENTO, DOENÇA E PRÁTICAS TERAPÊUTICAS NA IGREJA ZIONE EM MAPUTO, MOÇAMBIQUE Giulia Cavallo16

O presente texto pretende apresentar a análise que se pode fazer em relação ao “fenómeno” das igrejas zione na periferia da capital de Moçambique, Maputo. Isso significa dizer, que com este texto, pretende-se apresentar um projecto para uma posterior pesquisa sobre o assunto.

Termos-chave: Sofrimento, doença, práticas terapêuticas e Igreja Zione.

INTRODUÇÃO A igreja zione, classificada como AIC, African Independent Church, constitui hoje em dia um fenómeno transnacional relevante na região austral do continente africano. Enquanto nos países vizinhos, como África do Sul e Zimbabwe, os trabalhos sobre as igrejas zione são numerosos e bem conhecidos, em Moçambique os artigos que abordam essa mesma igreja são escassos, não tendo ainda sido produzida nenhuma monografia aprofundada sobre o tema. Contudo, tal fenómeno religioso apresenta-se hoje como um dos mais fortes e presentes na região sul do país, “ultrapassando as Igrejas” Católica e Protestante. As igrejas zione caracterizam-se principalmente por serem igrejas de tipo curativo. São portanto os problemas de saúde e aflição em geral, associados com a possessão de espíritos maus, que constituem a principal motivação para recorrer a este tipo de igrejas. Tal como a religião “tradicional”, o zionismo, de facto, relaciona as causas de infortúnio e de doença com os espíritos malignos e a feitiçaria. Nesta perspectiva o Espírito Santo, através da mediação do profeta zione, representa uma força superior, o espírito mais poderoso em relação a todos os outros espíritos presentes na cosmologia local e, a sua acção contra a feitiçaria parece se tornar mais eficaz. A investigação concentra-se na compreensão do papel exercido pelas igrejas zione na cidade de Maputo, analisando em particular as suas práticas terapêuticas, a sua composição em termos de membros, e a sua relação com o contexto sócio cultural mais amplo. Os objectivos fundamentais são a compreensão e a análise dos conceitos locais de doença e de aflição, das suas causas, e a identificação da cosmologia e da psicologia sobre a qual se baseiam as práticas terapêuticas, tendo em conta assim, os conceitos e os limites da pessoa e do corpo, fazendo referência ao quadro teórico da antropologia médica. 16 Doutoranda

em Antropologia pela Universidade do Porto e Investigadora da UEM

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Nos estudos clássicos de religião em África, a aflição e o infortúnio não eram objecto de uma preocupação analítica, mas a causa para poder penetrar no interior de uma cultura ou de uma sociedade, as quais, contrariamente, representavam o real objecto de estudo. A aflição era um evento em volta do qual concepções fundamentais eram postas em jogo, recriadas e reforçadas. Além disso, feitiçaria e possessão pelos espíritos – relacionadas com formas de doença e terapias – eram definidas culturalmente em contraste com as formas mais “naturalísticas” de conceber a doença por parte da biomedicina europeia. Ao mesmo tempo, tais formas culturais eram descritas como fortemente coerentes e sistemáticas, com uma lógica interna própria e uma rede de símbolos interligados. Na perspectiva da antropologia médica, que começou a desenvolver-se a partir dos anos 1970, a cultura e a sociedade tornam-se os backgrounds para entender e avaliar a percepção e o tratamento da doença. Os diferentes sistemas culturais são os contextos de produção de formas alternativas de lidar com a doença. Na interpretação dos sistemas de cura, percebidos assim como abertos, pluridireccionais, e nem sempre coerentes ou referentes a um corpus de doutrinas explícitas, a antropologia médica acolhe uma perspectiva de tipo histórico. O infortúnio está relacionado com as dinâmicas sociais e com as formas de autoridade e de poder, e a sua interpretação é uma forma mais abrangente de entender a realidade e o mundo. A doença e o sofrimento podem ser também uma chave para as transformações cosmológicas e a sua análise permite estudar e reparar as mudanças nas cosmologias locais. A antropologia médica tem enfim o mérito de dar atenção à experiência individual do sofrimento e ênfase à possibilidade de manipular valores, práticas e técnicas por parte de indivíduos. Depois de quase sete meses de trabalho intensivo com algumas igrejas localizadas no Bairro T3 (Matola) e na cidade de Maputo, pretendo apresentar uma primeira análise dos dados que andei recolhendo através da participação constante aos cultos, às sessões de tratamentos e das entrevistas a pastores, bispos, membros e pacientes. Quero poder levar um debate e uma reflexão sobe sofrimento e o sentido mais amplo de “mademonio”, “espíritos da tradição” analisando a função que a cosmologia local assume na interpretação duma história familiar e local mais ampla, vividas, na maioria dos casos observados, como um peso, um passado ilegítimo e “pagão” que deixa entre os vivos uma herança cheia de aflições. Quero abordar assim o conceito de pessoa e individuo, e a negociação de significados entre pastores-profetas e pacientes

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A CONCEPÇÃO DA ÉTICA NO ENSINO DA FILOSOFIA NO NÍVEL MÉDIO EM MOÇAMBIQUE António Cipriano Parafino Gonçalves17 O trabalho, parte da tese de doutorado concluído, examina a concepção da Ética subjacente ao programa de ensino de Filosofia para o nível médio em Moçambique. Assim, a partir do lugar pedagógico a ela atribuída – resolver o que os proponentes da Filosofia para o nível médio designam de “déficit moral” que se vive no país é situado o contexto em que a proposta de introdução da Filosofia foi encaminhada em Moçambique: a reorganização política e econômica do Estado, que implicou a reorganização da cultura (Gramsci 2004), explicitando-se o lugar pedagógico da Ética. Além dos documentos oficiais e da revisão bibliográfica, o trabalho também contou com entrevistas aos principais actores envolvidos na reintrodução do ensino da Filosofia em Moçambique. Os resultados da pesquisa indicam que de uma Ética filosófica em nível de discurso, nos programas de ensino é defendida uma ética prescritiva, mais aproximando-se da educação moral.

Palavras-chave: Moçambique, Ensino de Filosofia, Ética. INTRODUÇÃO Após permanecer por um longo período expurgada dos problemas educacionais “considerados relevantes”, como assinala Do Valle (2001), a Ética tornou-se num dos temas privilegiados das iniciativas oficias sobre a educação 18 O principal factor subjacente às iniciativas oficiais em favor da Ética na educação escolar é a crise espiritual – crise ética – com que se defronta a civilização ocidental e outras civilizações influenciadas pelo modo de vida ocidental. A referida crise, de acordo com Georgen (2005) deve-se à desestabilização dos critérios tradicionais que orientavam o agir e o viver humano e pela ameaça representada pelo uso da tecnologia como poder de destruição do homem e da natureza. Lima Vaz (1997) sustenta que a crise ética é consequência do terceiro ciclo da modernidade ocidental: 17 Doutorado

em Filosofia e Vice Reitor na Universidade São Tomás de Moçambique - [email protected] oficiais produzidos por organismos internacionais, como a UNESCO (1972), têm recomendado aos governos dos Estados membros para incluírem, nos programas de ensino dos seus sistemas educacionais, temas que versem sobre a Ética e/ ou valores no processo educativo escolar. 18 Documentos

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uma época histórica caracterizada pela tentativa do Homem assumir, na sua absoluta liberdade, a fundamentação das normas e dos valores, costumes, ou seja, o ethos. Dessa tentativa, argumenta ainda Lima Vaz, resultaram o niilismo e o relativismo ético, principais marcas da crise ética contemporânea que demandam a inclusão da Ética na educação escolar. Em Moçambique, oficialmente, a Ética foi incluída na educação escolar em 1998, como um dos eixos temáticos do programa de ensino de Filosofia. Esta foi banida da educação escolar quando da independência do país (1975), como desdobramento da revolução político-social sustentada pelos dirigentes do país, no âmbito do projeto de edificação do socialismo. No lugar da Filosofia, foram introduzidos a educação política e o “marxismo-leninismo”. Vinte e três anos após ter sido “expulsa”, pela porta frontal, o ensino da Filosofia era trazido de volta ao Sistema Nacional de Educação de Moçambique. Mas pela “janela19”, tendo a Ética como um dos eixos temáticos do programa de ensino. A inclusão da Ética nesse referido programa era para resolver o que os documentos e o discurso oficiais (UP, 1997 e 1998) designam de “déficit moral” que se manifestava nos alunos do ensino médio (UP, 1998B)20. Uma das evidências desse déficit eram as perplexidades que se viviam no país, decorrentes da mudança de orientação de valores (MINED, 2000). O “déficit moral” manifestado pelos alunos do ensino médio, ainda de acordo com o discurso oficial (UP, 1998) teria resultado da ausência da Filosofia na educação escolar moçambicana. Através da Ética no ensino da Filosofia iria, portanto, superar-se esse referido “déficit moral” A partir dessas explicações sobre as razões da inclusão da Ética no programa de ensino de Filosofia para o nível médio, colocamos algumas questões de partida: de que modo se manifestavam essas perplexidades, configurando um déficit moral? De que modo a Ética poderia resolver e/ou responder às tais perplexidades conforme elas se manifestavam, superando o déficit moral? Que concepção de Ética foi adotada no ensino de Filosofia que melhor contribuiria para superar o “déficit moral”? Em que se fundamenta essa concepção? A que tradição de pensamento pertence essa concepção de Ética: a africana ou a ocidental? 19 Conforme

ainda faremos menção, a introdução da Filosofia foi restrita a apenas um segmento de alunos do ensino médio. Ademais, as análises de Chambisse (2006) sugerem que a Filosofia, no ensino colonial, se fazia presente apenas no nível superior. Na educação moçambicana pós-independência, a Filosofia não constava em nenhum dos níveis de ensino. Quando foi reintroduzida a partir do ensino médio, as instituições de nível superior também passaram a incluir a Filosofia nos respectivos currículos, nos quais os programas de ensino variavam de Instituição para Instituição. 20 Para a elaboração do trabalho, conforme será exposto na apresentação do roteiro metodológico, foram consultados documentos elaborados pelo Ministério da Educação (MINED) sobre o processo de reintrodução da Filosofia, quanto os elaborados pelo Departamento de Filosofia da Universidade Pedagógica (UP), a instituição que teve a responsabilidade de efetivar o projeto de reintrodução da Filosofia a pedido do Ministério da Educação.

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Para respondermos a essas perguntas, procedemos a uma análise documental sobre o processo de reintrodução da Filosofia, examinando o lugar pedagógico atribuído a Ética no ensino da Filosofia; fizemos uma discussão bibliográfica sobre Ética e Moral, mostrando em que deve consistir a contribuição da Ética na educação escolar. Por fim, com base no exame das orientações metodológicas do programa de ensino de Filosofia, explicitamos a concepção de Ética presente nesse referido programa. O lugar pedagógico da Ética no ensino da Filosofia A Filosofia fora expulsa, pela porta de frente, da educação escolar moçambicana, tendo regressado pela porta traseira, através do ensino médio21, num processo que envolveu três atores: o Ministério da Educação, a Universidade Pedagógica, através do Departamento de Filosofia, e o professor Severino Elias Ngoenha 22 . Conforme é explicado no memorandum de encontro entre o ex-Reitor da Universidade Pedagógica23, o Professor Severino Ngoenha e os professores do Departamento de Filosofia (1997A), a Ética deveria contribuir na resolução do déficit moral, ajudando o “cidadão” a participar do debate social moçambicano em torno do problema da valência moral. A resolução do “déficit” moral, de acordo com o programa experimental do ensino de Filosofia, consistiria em levar os alunos à respeitarem os valores morais e as regras de convivência social. No programa final de ensino de Filosofia, é afirmado, entretanto, que a Ética contribuiria na resolução do “déficit moral” oferecendo referências teóricas aos alunos, cuidando que os mesmos não deixassem de respeitar as fronteiras que as liberdades dos outros e os imperativos morais e normativoslegais estabelecem (MINED, 2000, p.1). Nas reformulações por que o programa de ensino de Filosofia passou, de um modo sintético, a Ética, no ensino de Filosofia, deveria fazer com que os alunos compreendam que a pessoa é um sujeito moral, que os mesmos alunos também se reconheçam como tais. Além de se assim se compreenderem, é tarefa da Ética, em vista da superação do déficit moral, levar os alunos a verem a paz como um problema moral, agindo, por conseguinte, para a preservação da Paz. 21

As análises de Chambisse sugerem que a Filosofia, no ensino colonial, se fazia presente apenas no nível superior. Na educação moçambicana pós-independência, a Filosofia não constava em nenhum dos níveis de ensino. Quando foi reintroduzida a partir do ensino médio, as instituições de nível superior também passaram a incluir a Filosofia nos respectivos currículos, nos quais os programas de ensino variavam de Instituição para Instituição. 22 A ideia de se reintroduzir a Filosofia para os cerca de 6 343 alunos que freqüentavam, em todo o País, as 12 escolas do nível médio de ensino, foi apresentada, oficialmente, pelo ex-Ministério da Educação de Moçambique (MINED). 23 Prof. Dr. Carlos Machili que, tendo substituído o Prof. Dr. Paul Gerdes, cessou as funções em 2007.

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A partir dos objetivos do eixo temático que, por sua vez, expressam o lugar pedagógico da Ética no ensino da Filosofia em Moçambique, pergunta-se: que valores expressaram a tradução desses objetivos? De que valores morais e normas de convivência social se tratavam e que a Ética no ensino de Filosofia deveria levar os os alunos respeitaremnos? É tarefa da Ética? No programa final de ensino de Filosofia é afirmado que, no domínio ético, também se pretende oferecer referências teóricas aos alunos para a sua existência no plano cívico e moral, em face da mudança na orientação de valores: a que tradição e sistema de pensamento pertencem essas referências teóricas? À tradição moçambicana, à africana, ou à ocidental? Ao sistema de pensamento “metafísico” ou ao “pósmetafísico?” Em relação aos valores, Samuel (entrevistado a 18.09.07 em Maputo) sustenta que cabia ao professor, em cada contexto de sua prática docente, verificar quais os problemas morais que fazem parte desse contexto e, uma vez encontrados, trazê-los para a discussão em sala de aula. O programa de ensino de Filosofia, sob ponto de vista da Ética, contêm, segundo Samuel, “aspectos mais gerais, as problemáticas teóricas mais gerais, cuja abordagem mais prática, mais concreta, está é na sala de aulas” [Samuel, entrevista a 18 de Setembro de 2007 em Maputo]. Por isso, acrescentou Samuel, “na nossa óptica, nós não queríamos levar para o programa exemplos concretos, porque corríamos o risco de levarmos os professores apenas a direcionarem as suas aulas para aqueles exemplos concretos” [Samuel, entrevista a 18.09.2007 em Maputo]. Mesmo incorrendo ao risco de serem infelizes na escolha dos exemplos do “déficit moral”, os mesmos intelectuais apresentaram o que, no entendimento deles, constituíam os principais problemas morais que indicavam haver déficit moral no país. Para Ronaldo, por exemplo, em Moçambique havia a “sensação geral de que a geração jovem tinha perdido aquilo que são os valores morais básicos de convivência social” [Ronaldo, entrevista a 09 de setembro de 2007, em Maputo]. A “guerra” da qual Moçambique passou é tomada como um dos principais fatores para a emergência do déficit moral, cuja expressão era aquela sensação acima referida. Essa guerra, denominada de Civil por Ronaldo, levou à deterioração do tecido social no país que, por sua vez, serviu de indicador de perda dos valores morais básicos de convivência social. A deterioração do tecido social era evidente, segundo esse intelectual, no final da mesma guerra, através de dois fatos: “a inversão da pirâmide

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da estrutura do poder: sabes que uma guerra dá mais poderes aos militares e vivência de um ambiente não de compreensão”. [Ronaldo, Idem] No país, segundo Ronaldo, em função da guerra, vivia-se um ambiente de não diálogo e mútua intolerância e de desrespeito entre os moçambicanos. Os temas escolhidos para o eixo da Ética, conforme Ronaldo, visavam demonstrar o caráter desumano da guerra e, dessa forma, promover o respeito para com a dignidade humana. Razão pela qual, afirma o intelectual, “aquele capítulo é chamado de pessoa como sujeito moral, começa com a discussão dos direitos humanos e termina com a paz como problema moral”[Ronaldo,entrevista a 09.09.2007 em Maputo]. A dignidade humana como problema que justificava a necessidade da Ética no ensino de Filosofia também foi mencionada por Samuel. Embora não a relacionando diretamente à guerra, para aquele intelectual, a dignidade humana passa pelo mútuo respeito que se manifesta, conforme ele, na observância da cortesia ao cumprimentar ao outro. Exemplificando esse aspeto da dignidade humana, Samuel referiu que “quando você cumprimenta e quando você responde o cumprimento de alguém, isso é uma maneira de respeitar a pessoa, é uma maneira de respeitar a dignidade da pessoa” [Samuel, entrevista a 18.09.07 em Maputo]. O respeito para com o outro, constituído em dignidade, ainda conforme Samuel, também se expressa pelos modos como um indivíduo se apresenta diante do outro. Para ele, uma das manifestações do desrespeito para com o outro, nas grandes cidades, estava nas formas de vestir ostentadas pelos estudantes de ambos os sexos. As formas de vestir constituíam um problema moral, porque “o respeito passa pelo modo como eu me apresento diante dos outros”, para depois questionar: “se eu me apresento com uma calça debaixo das nádegas24, eu me respeito a mim mesmo, eu respeito aos outros”? [Samuel, Idem,]. Assim, conforme os entrevistados, a Ética, no ensino de Filosofia, deveria fazer “com que a sociedade efetivamente fosse moralizada25” [Samuel, entrevista a 18.09.2007, em Maputo]. Explicitando o sentido da moralização social a ser efetuada através da Ética, Samuel afirmou que uma sociedade moralizada é aquela: “em que as pessoas sabem quais são os valores, as pessoas sabem quais são as normas e respeitam essas normas a partir da compreensão da sua justificabilidade, 24

As calças debaixo das nádegas para o sexo feminino em Moçambique é conhecidas por “Shuna Baby”. Provenientes do Brasil, essas calças são denominadas de calças de cintura baixa. 25 O conceito de moralizar, conforme o intelectual em referência, deve ser entendido no sentido de as pessoas “saberem quais são os valores, as pessoas saberem quais são as normas e que as pessoas respeitem essas normas a partir da compreensão da sua justificabilidade, da compreensão da sua fundamentabilidade” [idem, idem].

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da compreensão da sua fundamentabilidade [Samuel, entrevista a 18.09.07 em Maputo].” Porém, a compreensão da justificabilidade e da fundamentabilidade das normas e dos valores morais não garante o respeito das mesmas, embora seja um ponto de partida importante para que cada um(a) oriente o seu agir. Portanto, a compreensão não garante a moralidade. Até onde, a Ética no ensino da Filosofia têm levado os alunos a compreenderem a justificabilidade e a fundamentabilidade dos valores? Moralizar a sociedade: era esse, de acordo com Samuel, o objetivo último da inclusão da Ética no ensino de Filosofia em Moçambique. Na esteira das nossas interrogações, ainda questionamos: passaram dez anos desde que a Ética se fez presente no ensino da Filosofia do nível médio em Moçambique. Que melhorias se podem verificar no país com relação ao propósito da solução do problema do “déficit” moral? Estará a sociedade moçambicana mais moralizada desde a introdução da Ética no ensino da Filosofia? Os problemas constatados e que justificaram a inclusão da Ética no ensino da Filosofia já foram superados26? Que concepção da Ética se faz presente no ensino de Filosofia? A concepção da Ética Apesar da crise ética contemporânea ser global, sabe-se que cada contexto específico vive problemas éticos específicos que orientam os formuladores das políticas educacionais na escolha de concepções de Ética que possam melhor afrontar a crise. A escolha das concepções de Ética, por sua vez, é influenciada pelas correntes de pensamento seguidas pelos formuladores da referidas políticas, que se situam entre aquelas que defendem a sinonímia entre a Ética e a Moral (Lima Vaz ,1999) e (La Taille, 2006) e as que postulam uma radical diferenciação entre ambas (Cortina e Martinez, 2005), (Vázquez, 2005). Assim, dependendo da corrente teórico-ideológica que norteia os formuladores das políticas educacionais, em cada contexto, tem-se um determinado propósito em relação à inclusão da ética na educação escolar e uma concepção de Ética: entre educação moral e reflexão filosófica sobre o ethos. A concepção de Ética presente nos documentos oficiais foi inferida do exame das orientações metodológicas expostas no programa de ensino de Filosofia e das falas 26 Nos

documentos oficiais não é feita nenhuma alusão aos problemas específicos que a Ética vinha resolver e/ou responder no ensino da Filosofia. Esses problemas foram explicitados pelos intelectuais durante as entrevistas e serão expostos nos capítulos sexto e sétimo. Resumidamente, para esses intelectuais, os principais problemas eram: a corrupção nas escolas, a falta de espírito de trabalho e as formas de vestir ostentadas pela juventude.

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dos intelectuais entrevistados. O exame das referidas orientações leva-nos a afirmar que existe uma contradição entre as posições defendidas pelos intelectuais que participaram do processo de reintrodução da Filosofia e a concepção de Ética que se faz presente no programa de ensino de Filosofia Os intelectuais entrevistados justificam que a proposição das orientações metodológicas foi baseada no método socrático – o da indagação27. Samuel, por exemplo, sustentou que se pretendia evitar, na abordagem do eixo Ética, que a sala de aula se tornasse numa catequese. Por isso, conforme ele, houve a necessidade de ateizar os candidatatos a professores de Filosofia que provieram do Seminário. Ronaldo, por sua vez, afirmou que não era a pretensão da Filosofia no ensino médio resolver os problemas. Quando perguntado durante a entrevista se “não haveria o perigo do ensino da Ética transformarse numa educação moral strictu senso?”, Ronaldo respondeu afirmando que o perigo “haveria se nós não tivéssemos formado professores” [Ronaldo, entrevista a 09.09 2007 em Maputo] Nos dois programas de ensino de Filosofia é afirmado que a matéria do ensino vinha resolver os problemas representados pelos três déficits. No campo da Ética tratavase, portanto, de resolver o problema do “déficit moral”. Examinando os temas sobre os quais se procedem à indagação, principalmente na subseção da Ética individual e a orientação metodológica para a abordagem desse tema, eles se aproximam ao exame de consciência: não era exatamente a afirmação da “catequese” que pretendia se evitar? Numa linguagem laica, os conteúdos e as orientações metodológicas para a abordagem da Ética individual indicam haver uma proximidade com uma seção de terapia psicológica, ao se buscar explorar o mundo interior do aluno, pedindo-lhe para que se lembre dos momentos de boa ou má consciência; dos sentimentos de culpa e também para analisar se possui algum sentimentos que lhes custa expressar. Ainda sob ponto de vista dos conteúdos, pode-se observar que não existe nenhuma reflexão sobre o ethos dos povos bantu de Moçambique: são referidos valores de caráter universal sem se proceder a uma fundamentação da concepção desses valores no universo cultural bantu de Moçambique de modo a se compreenderem as diferenças e as semelhanças de concepções sobre os mesmos valores com outras tradições

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Sócrates, o verdadeiro valor do homem reside no bem da alma, isto é, no cuidado do homem interior. Esse cuidado exige, antes de mais nada, o conhecimento de si mesmo, que emana da célebre injunção: “conhece-te a ti mesmo”. Todo o ensinamento socrático admite ser condensado nestas duas proposições: “conhece-te a ti mesmo” e “cuida de ti mesmo”. E o “si mesmo” significa a própria alma, o homem interior — não o próprio corpo.

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culturais. Não é para se afirmar o relativismo, mas sim, para se encontrar uma plataforma de diálogo com outras formas de vida. Assim, embora não incluída como tema transversal e sim como campo da Filosofia, de uma concepção Filosófica, defendida no discurso dos intelectuais, o programa apresenta uma versão um pouco mais elaborada da educação cívica e moral. Uma versão pouco elaborada porque, provavelmente, “fica mal” falar de educação moral para jovens do ensino médio, com uma concepção de mundo crítica e coerente. É uma educação moral recheada de psicologismo, provavelmente, para atender ao pedido do Ministério da Educação feito pelo ex- Diretor Nacional de Ensino Geral, quando dos encontros de concertação: ele sugeriu que os programas de Filosofia incluíssem alguns elementos de psicologia. Através do ensino da Filosofia, o Ministério da Educação pretendia preencher um vácuo no currículo do ensino, gerado após a retirada da educação política e do marxismo-leninismo, ante o vazio de sentido com que os alunos se defrontavam no país, mergulhados no passado de uma ilusão socialista e arrastados pelos ventos da modernidade capitalista selvagem: as duas modernidades inverteram as coordenadas mentais e simbólicas metafísico-tradicionais. Não eram somente os alunos: boa parte dos moçambicanos também vivia submersa nos valores da nova modernidade capitalista selvagem, sem regras, num autêntico “salve-se quem puder”. Diante do esfacelamento social, os dirigentes sentiam a necessidade de imposição de normas para uma “sociedade que perdeu a noção de vergonha”, que vive “a falta de noção de respeito mútuo, devido ao capitalismo selvagem que invadiu Moçambique quase comparável ao tempo da Revolução Industrial do século XVIII, na Inglaterra” (GRAÇA MACHEL, Jornal Notícias de 13 de Março de 2003)28. Considerações finais Não constitui nosso propósito, neste texto, esgotar o problema em torno da Ética no ensino de Filosofia em Moçambique, senão proceder ao levantamento de questões que podem orientar futuras pesquisas sobre o tema. Nesta pequena excursão, de uma forma resumida tentamos apresentar o resultado do nosso trabalho hermenêutico sobre o lugar pedagógico reservado à Ética no ensino de Filosofia, e a concepção da Ética defendida desse lugar pedagógico com base nas orientações metodológicas. O 28 Fonte:

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http://maputo.co.mz/article/articleprint/375/-1/54

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eixo sobre a Ética foi proposto com o objectivo, primeiro, de levar os estudantes a repeitarem os valores morais e, num segundo momento, foi defendido que a Ética deveria oferecer referências teóricas de modo a que o aluno pudesse conduzir a sua ação. Tanto os objetivos defendidos na primeira quanto na segundo versão, ambos sugerem que havia uma necessidade de se preencher um vazio “moral” no estudante, expresso pelo não respeito aos valores morais e pelo déficit moral, respectivamente. Esse vazio, conforme o programa de ensino de Filosofia teria sido causado pela ausência de Filosofia no ensino médio. Tanto os argumentos apresentados no programa de reintrodução do ensino de Filosofia que veem na ausência dessa matéria de ensino no nível médio, quanto o argumento que responsabiliza a guerra civil como causas do “déficit” moral em Moçambique, ambos são frágeis, não alcançam o fulcro da questão, não ajudam o estudante a compreender os principais fatores subjacentes à crise ética em Moçambique. No lugar de “déficit” moral, termo cujo sentido é questionável29 sustentamos que em Moçambique vive-se uma crise ética que não resultou da ausência de ensino da Filosofia na educação escolar. Com efeito, em substituição do ensino da Filosofia aquando da independência do país e visando à formação do Homem Novo o Ministério da Educação introduziu a educação política. As raízes da crise ética devem ser buscadas nos dois projetos de modernidade que foram implementados no país, na segunda tentativa de ocidentalizar o país, depois do projeto colonial. O primeiro projeto, denominamo-lo de “inacabada30”modernidade socialista revolucionária fundada nos princípios do “marxismo-leninismo”, após a independência de Moçambique. Para a implementação dessa modernidade, a educação escolar teve uma grande contribuição. Esta difundiu as ideias modernizadoras socialistas e revolucionárias conforme elas eram entendidas e elaboradas pelos dirigentes do país. Também coube à educação escolar, através da difusão das referidas ideias, proceder 29 Tomando

como referência o contexto histórico, em que se difundia um novo “way of life”, trazendo novos valores e novas regras de convivência social, com base nos argumentos presentes nos programas de ensino de Filosofia, expressão “déficit” moral pode ser interpretada em dois sentidos. Primeiro, estaria “deficitário” moralmente aquele que não respeitasse a “nova moral” e as regras de convivência social que ela implicava. Segundo, a nova moral, cujos valores, eram o individualismo, o espírito de competitividade, predomínio da dólar-cracia e a violência nas relações sociais (NGOENHA, 2004), talvez se constituísse como uma afronta aos possíveis defensores da “moral” tradicional. Assim, a não observância dessa moralidade “tradicional” também poderia estar sendo interpretada como “déficit” moral, razão pela qual era necessária a moralização social através da Ética no ensino da Filosofia. É nesse sentido que, provavelmente, Ronaldo se referia ao “déficit moral”, no sentido da sensação da perda das regras básicas da convivência social por parte da juventude. É nesse último sentido que a expressão “déficit” moral, possivelmente, estivesse sendo usada como sinônimo da afirmada “crise de valores” que se vive no mundo contemporâneo. 30 Usamos o termo “inacabada modernidade”, pois, conforme será discutido, o projeto de modernidade socialista foi abandonado pelos principais defensores, sem aviso prévio aos “destinatários” do mesmo, isto é, as maiorias sociais.

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à formação do Homem Novo socialista e revolucionário de acordo com a idealização desse homem feita pelos dirigentes moçambicanos. O segundo projeto de modernidade, designamo-lo de “capitalista” ou de “nova modernidade” ainda em andamento, fundado nos princípios do neoliberalismo e apresentando valores que são aderidos pelos jovens, fato que, provavelmente, leva a que os jovens sejam considerados como possuidores do “déficit moral”. O primeiro projeto fragilizou as instâncias tradicionais que orientam o agir humano, quais sejam, a religião e a sabedoria da vida. Destituiu, por conseguinte, os fundamentos e as referências éticas tradicionais. Em substituição das referências éticas tradicionais, os dirigentes moçambicanos propuseram o socialismo, a revolução, o “marxismoleninismo” e o partido político como novas referências éticas para as maiorias sociais. O projeto de modernidade socialista e revolucionária, com os valores que ele apresentava e as referências éticas que ele propunha, foi abandonado por um outro do tipo capitalista, fundamentado no neoliberalismo. Este apresentou novas referências éticas e novos valores de sociabilidade. Boa parte da juventude moçambicana, destituída dos valores e das referencias “tradicionais” por força de uma revolução modernizadora, e abandonada à sua sorte com a reversão repentina do país ao capitalismo, parece que mergulhou num mar de incertezas. Nesse mar de incertezas, cada um busca o seu porto seguro, num mundo também marcado pelo fim das “metanarrativas”. Uma vez fragilizado o ethos “tradicional” abraça-se, com relativa facilidade, tudo o que é proposto como novo, nessa era de vazio e de sedução. Os proponentes da Filosofia no ensino médio moçambicano afirmam que os jovens possuíam “déficit moral” talvez por constatarem a facilidade com que o pretendido Homem Novo abraça os novos valores propostos pela modernidade capitalista, em meio às incertezas sobre as razões e os fins do viver. As modernidades moçambicanas e suas consequências não podem, portanto, passar ao largo da discussão sobre a Ética no ensino da Filosofia. Uma proposta de inserção da Ética na educação escolar, através do ensino da Filosofia, pode contribuir para afrontar a crise ética contemporânea desde que centre a sua atenção na historicidade do problema, buscando fazer com que os alunos compreendam o modo pelo qual os problemas foram gerados: é difícil construir um modo de vida novo e original sem compreender o processo através do qual os problemas reais foram gerados e amadurecidos( SCHLESNER, 2001).

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Deve-se, por conseguinte, olhar para as modernidades moçambicanas examinando os modos em que elas foram implementadas, tendo presente o que Lopes (2004) designa de rupturas que elas provocaram, caso queira se afrontar as “perplexidades”, o “desconforto”, a “perturbação”, em geral, a crise ética pela qual Moçambique passa. A referida crise tem de ser vista como uma crise de referências éticas, decorrente da fragilização do ethos tradicional pelo socialismo, quanto da fragilização e tentativas de completa destruição do ethos socialista pelo capitalismo31. Assim, a tentativa de se proceder a uma educação moral dos alunos através da Ética no ensino da Filosofia faz com que a Ética, de uma proposta que visava à reflexão filosófica sobre o ethos, oferecendo referências teóricas para o agir dos alunos, se torne uma prescrição sobre o que se deve fazer, sem discutir o ethos, a sua razoabilidade e sem oferecer referências para a compreensão da natureza da crise ética por que o país passa.

31 Estas reflexões estão expostas na tese de Doutoramento e também na comunicação recentemente apresentada na Universidade

Estadual do Rio de Janeiro, por ocasião do V Colóquio Internacional de Filosofia da Educação. Rio de Janeiro, UERJ, de 7 a 10 de Setembro de 2010.

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O ESTADO E A ESCOLA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE POLÍTICA MOÇAMBICANA Guilherme Basílio32 O presente texto é resulto da tese intitulada “O Estado e a Escola na Construção da Identidade Política Moçambicana” na qual se discute o papel do Estado e da Escola no processo da formação da identidade política moçambicana. O trabalho traz contribuições para o domínio de políticas públicas em Educação e defende a tese de que o Estado e a Escola foram e são instituições fundamentais na construção política da moçambicanidade; foram e continuam sendo instituições decisivas na consolidação das relações internas entre os diferentes grupos e etnias que compõem a população moçambicana, em suma, cimentam o sentimento nacional. Termos-chave: Escola, Estado, Identidade e Moçambicanidade INTRODUÇÃO O Estado e a escola exercem um papel crucial na construção da moçambicanidade baseada na igualdade dos direitos entre os cidadãos. Essas instituições “cimentaram e cimentam” a unidade política que reconhece a pluralidade de diversas tradições políticas e culturais que formam o país. Na organização do Estado moçambicano, a escola desempenhou um papel relevante na formação para a cidadania, para o trabalho e para a convivência sócio-política, tanto para as expressões culturais, quanto para a participação solidária, na construção da vida individual. Em vista à construção da moçambicanidade, o Estado organizou a escola e um currículo nacional, no qual foram incorporados os princípios da Unidade e do Homem Novo. Nesse processo, a escola foi a alavanca da unidade política nacional e o currículo criou as possibilidades da solidariedade, articulando a diversidade política e cultural da população moçambicana.

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Licenciado em ensino de Filosofia pela Universidade Pedagógica, Mestre em Educação: Currículo (linha de pesquisa: Currículo) e Doutor em Educação: Currículo (linha de pesquisa: Políticas Públicas em Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Docente de Hermenêutica, Metodologia de Investigação Cientifica e do Currículo Local, Antropologia Filosófica, Filosofia de Educação e Políticas Públicas em Educação.

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Para a realização do trabalho, foram cruzados autores que discutem sobre o Estado, a educação e a identidade moçambicana. No que respeita à educação, são referenciais teóricos Mazula (1995, 2005), Castiano, Ngoenha e Berthoud (2005), Gómez (1999, 2001), Mateus (1999), Ngoenha (1992, 2000), Sacristán (2000), a lei 4/83 de 23 de Março de 1983, alei 6/92 de 6 de Maio de 1992 e o documento do III Congresso da FRELIMO (1977) que resume o I Congresso da FRELIMO (1962) e II Congresso da FRELIMO (1968), No concernente ao Estado e à identidade, a pesquisa se fundamentou nas abordagens de Rocha (2006), Bragança e Wallerstein (1978), Matusse (2004), Fry (2001), Bellucci (2007), Gramsci (1968, 2006, 2007), Memmi (2007), Guibernau (1997), Geary (2005), Dieckhoff (2001), Huntington (1997), Hall (2006), Hobsbawm (1990, 2000), Castells (2006), Bobbio (1997) e Comparato (2008). Além da análise da literatura, a pesquisa se apoiou na entrevista concedida por Armindo Ngunga, Brazão Mazula, Miguel G. Buendia e José Luís Cabaço que contribuíram para a organização do Estado, da escola e da moçambicanidade. A tese foi dividida em três capítulos. O primeiro capítulo debruçou-se sobre o Estado; os processos históricos da construção do Estado moçambicano; o papel da Frelimo na organização do Estado e do sistema nacional de educação; a transição do Estado socialista ao Estado capitalista. O segundo capítulo discutiu a formação do sistema nacional de educação; as reformas educacionais; o Estado e a escola: instituições político-educacionais, currículo, cultura e democracia, os intelectuais e a organização da escola moçambicana. No terceiro discute sobre a moçambicanidade; a identidade territorial; os grupos étnicos e as línguas na construção de identidades; a família e as missões na construção da identidade política moçambicana. Contudo, neste texto, serão apresentados alguns itens dois últimos capítulos (da tese), com enfoque para as políticas da terceira reforma educacional, o Estado e a escola como instituições político-educacionais e o papel dos intelectuais moçambicanos na organização da escola e; a moçambicanidade e a identidade territorial. Terceira Reforma Educacional (2003 - 2007) A terceira reforma educacional foi impulsionada pelas transformações económicas, culturais e sócio-políticas do mundo, em geral, e da África, em particular. A tendência de homogeneização curricular iniciada na Europa através do projeto de Bolonha e o processo de integração regional dos países da África Austral são alguns dos exemplos que influenciaram as mudanças curriculares. No contexto mundial, a União Europeia Novembro de 2012

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criou a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE). Em 1980, OCDE afirmava que a educação era tão importante para o desenvolvimento que não podia ser dispensada apenas para os educadores. Daí, OCDE começou a organizar a educação e os países membros dessa organização lançaram, em 1997, um Programa de Avaliação Internacional para os Estudantes (PISA) que tinha por finalidade definir e monitorizar os conhecimentos e competências adquiridos no fim da escolaridade obrigatória. Em 1999 o Projecto de Bolonha redefiniu as bases curriculares que norteariam o ensino superior europeu até 2010. A luz do projecto, foi sugerido um currículo baseado em competências. A OCDE e o Projecto de Bolonha defenderam a educação baseada em competências verticais e horizontais e definiram oito competências-chave para a educação: a) comunicação em língua materna; b) comunicação em língua estrangeira; c) matemática e ciências; d) tecnologia (competência digital); e) aprender a aprender; f) humanismo (competências cívicas e sociais); g) espírito de iniciativa e empreendedorismo e, h) sensibilidade e expressão popular (música, arte, convivência cultural). No contexto africano, em 1997, a Conferência para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), lançou um Projeto de Integração Regional, no qual, contra a mundialização político-económica, os países da África Austral juntaram-se para fortalecer as suas relações sócio-económicas e políticas. Na área da educação, o projeto propôs a concepção de um currículo baseado em desenvolvimento sustentável priorizando-se as políticas educacionais, currículos voltados à formação integrada, às competências e às destrezas para o desenvolvimento dos países da região. Sob orientação regional, Moçambique assinou um protocolo através do qual se comprometeu em ajustar as políticas educacionais para permitir a troca de experiências de ensinoaprendizagem e de formação de professores na região. No contexto nacional, o governo responde as preocupações da sociedade civil segundo as quais os alunos do sétimo ano de escolaridade não reuniam competências básicas de leitura, de comunicação e de cálculo exigidas pelo mercado local, regional e internacional. Assim, equacionadas quatro questões fundamentais que justificam a reforma curricular, a saber: “a expansão das oportunidades educativas, a melhoria da qualidade da educação, administração descentralizada das escolas e adaptação do sistema educativo às novas políticas (condições)” (BASÍLIO, 2006, p. 67). O Programa Quinquenal do Governo 2005-2009 (PQG) definiu como prioridades, acções e metas da educação “a expansão das oportunidades de acesso a uma educação de qualidade e o envolvimento de parceiros da sociedade civil incluindo as instituições 36

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religiosas e o setor privado” (INDE, 2007, p. 8); Agenda 2025 assegura que a educação deve se fundamentar em quatro pilares; saber ser, saber conhecer, saber fazer e saber viver junto com os outros; o Plano de Ação para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA) destaca a educação como factor de desenvolvimento humano e, o Plano Estratégico da Educação (PEE) prioriza o acesso da rapariga à educação escolar, a construção e a reabilitação das infira-estruturas educacionais e a ligação da educação com o mercado do trabalho. O Estado e a Escola: Instituições Político-Educadoras O Estado e a escola são instituições políticas e educacionais. O Estado é um organismo que dedica à educação para o consentimento, a coesão nacional. Ai, cria valores e normas de convivência social. A escola é instituição educacional que socializa os valores e normas de convivência sócio-política institucionalizadas pelo Estado, visando à formação de cidadãos. As duas instituições realizam actividades políticoeducacionais. Enquanto o Estado cria valores e normas objectivando o consenso, a unidade política, a escola socializa-os educando para a cidadania activa. A função do Estado e da escola é levar as pessoas a adquirirem um determinado nível cultural e moral. O Estado e a escola educam ética, moral e culturalmente afim de formar cidadãos. Essas instituições realizam as tarefas político-educacionais formando cidadãos. Na verdade, uma das atividades ético-políticas do Estado é educar para a cultura, consciência moral e cidadania. Gramsci (2007, p. 284) afirma que “todo o Estado é ético na medida em que uma das suas funções mais importantes é levar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas”. A atividade de educar para a cultura e para a cidadania é uma atividade ético-política do Estado e da escola. A tarefa educativa e formativa do Estado consiste em criar novos e mais elevados modos de civilização e em adequar a civilização e a moralidade das massas populares às necessidades da contínua progressão económica dos cidadãos. Aí, o Estado cria e mantém um tipo de civilização e de cidadãos; um tipo de convivência e de relações individuais. Para Gramsci (2007, p. 28) o “Estado deve ser concebido como ‘educador’ na medida em que tende precisamente a criar um novo tipo ou nível de civilização para os cidadãos”. O valor pedagógico do Estado está no fato de que a instrução sistemática tem por finalidade abranger todos os aspectos da formação humana levando as pessoas a aceitar a disciplina e a criar sentimento de cidadania. Nas actividades políticas e Novembro de 2012

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educativas do Estado, a escola, família, igreja, meios de comunicação tornam-se instituições de educação positiva e as prisões e os tribunais tornam-se instituições de reeducação e ré-socialização. Os Intelectuais e a Organização da Escola em Moçambique Quem fala dos intelectuais desempenha, pelo fato mesmo de assim agir, uma função que habitualmente cabe aos intelectuais, torna-se, ao menos naquela ocasião, um intelectual. Quando os intelectuais falam dos intelectuais estão falando, na realidade, de si próprios (...). (BOBBIO, 1997, P. 8). (...) seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais (...). Formam-se assim, historicamente, a categoria especializada para o exercício da função intelectual (...). (GRAMSCI, 2006, p. 18). Gramsci e Bobbio são referenciais teóricos para refletir o papel dos intelectuais moçambicanos na organização das instituições estatais, da cultura e da moçambicanidade. Gramsci e Bobbio falaram de intelectuais como homens orgânicos da política, da cultura e da sociedade civil. A categoria dos intelectuais não se restringe apenas aos académicos, mas abrange a todos aqueles que têm capacidade de organizar e mobilizar as massas populares. Na sociedade moçambicana, são intelectuais orgânicos todos aqueles que estiveram e estão ligados ao processo da organização do Estado, do sistema nacional de educação e da construção e consolidação da moçambicanidade. Assim, consideram-se intelectuais orgânicos todos os que lutam pela ré-significação das culturas nacionais, pela manutenção da democracia, da paz, da unidade nacional e pelo respeito e estabilidade social. Uma das tarefas que assiste aos intelectuais moçambicanos é educar para a moçambicanidade, organizar uma escola que integre diversos grupos culturais no currículo e que se dedique à consolidação de uma Nação democrática. A Identidade Moçambicana ou Moçambicanidade A identidade, seja no âmbito local e nacional ou internacional, é uma questão referente à construção sócio-política e cultural que resulta das interações dos sujeitos individuais e coletivos no interior de um projeto comum-nacional. A identidade moçambicana é resultante de um projeto organizado por um grupo sócio-político identificável que nasceu 38

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a partir do processo de descolonização. Uma vez que antes da independência não existia a nação moçambicana, também não existia identidade moçambicana. Segundo Adelino Zacarias Ivala (2002, p. 79), a nação e a identidade moçambicanas eram “entidades por construir a partir do processo da luta pela libertação do jugo colonial”. A moçambicanidade como realidade sócio-política nasceu, primeiro, como um projecto de resistência ao colonialismo e uma negação a todas as formas de ser impostas pelo aparato colonial, segundo, como uma relação coesa de forças sociais de diferentes grupos étnicos internos a partir da qual os signos diferenciadores dos eus culturais e individuais são submersos no discurso da nação. A identidade moçambicana foi concebida numa perspectiva voltada à construção do Homem Novo, do novo poder e de nova nação. Inicialmente a moçambicanidade consbstanciava-se no projeto do Homem Novo como auto-afirmação dos próprios moçambicanos diante do aparato colonial. Como destaca Severino Elias Ngoenha (1998), a moçambicanidade como projeto político “nasce como negação dos moçambicanos em continuarem a ser uma província portuguesa” (NGOENHA, 1998, p. 20) ou, como afirma a Lei 4/83, do SNE, “a luta armada de libertação nacional representa a expressão mais alta da negação e ruptura com o colonialismo”. O projecto da moçambicanidade é fundamentado na supremacia da vontade coletiva edificada nos afrontamentos político-históricos voltados para a liberdade. Os construtores da moçambicanidade recorreram à unidade política. A unidade nacional era necessária, à qual todas as demais influências deviam se curvar. A identidade moçambicana é legitimada pelo discurso da unidade política, igualdade jurídica e equidade económica. Estes três elementos unem as pessoas no espaço sócio-político e geográfico onde se constroem, preservam e transmitem as identidades nacionais. A identidade nacional recorre às identidades culturais para a sua reconstituição. Assim, a moçambicanidade também é fruto de agregação de vários grupos culturais que existem em Moçambique. No primeiro momento, a construção da moçambicanidade consistiu na negação dos direitos culturais particulares em vista à criação de uma cultura nacional. O projecto da moçambicanidade consistiu na unidade das identidades culturais dos grupos diversos e na construção de uma cultura nacional. No segundo momento, consistiu na negação da identidade fictícia portuguesa imposta aos moçambicanos. Ngoenha (1998) advoga que a moçambicanidade nascida no espaço geo-político controlado pela autoridade portuguesa foi um projeto que Novembro de 2012

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“propunha-se unir todas as microcomunidades políticas e integrá-la numa única dinâmica política” (NGOENHA, 1998, p. 20). A identidade nacional passou em três formas fundamentais, que são: identidade legitimadora, identidade de resistência e identidade de projeto. A moçambicanidade nasceu como resistência e transformou-se em identidade de projeto e legitimadora. A moçambicanidade é, na sua essência, projecto anticolonial. Assim, é identidade de resistência que foi se transformando em identidade de projeto e, mais tarde, em identidade legitimadora. A identidade legitimadora deu origem à sociedade civil, ou seja, ao conjunto de organizações civis e aos atores sociais bem estruturados que produzem outras identidades. A Identidade Territorial e a Soberania Nacional Nações sem território e sem passado são uma contradição em termos. O que faz uma nação é o seu passado, o que significa uma nação em oposição a outras é o passado e o território, e os historiadores são pessoas que o produzem essas categorias. (HOBSBAWM, 2000, p. 271) A identidade territorial e a soberania nacional são temas de destaque na história da humanidade. Recordar que uma das causas das guerras no mundo é a busca e o controle de regiões. A Europa do século VII preocupava-se mais pelas unidades territoriais e organizações geo-políticas do que pela organização dos grupos sócioculturais. Havia disputas pelo poder territorial. Na Turquia, na Alemanha, na Britânica, na Saxónia, na Frísia, na Provença e na Borgonha os duques reivindicavam sobre o controle da territorialidade. A unidade territorial estava ligada com a unidade política. Já no século VIII, o império Franco “expandiu-se em direção ao leste, ao norte e ao sul incorporando a maior parte dos Países Baixos e as regiões ocidentais e centrais da Germânia até o reino de Lombardo e a Catalunha” (GEARY, 2005, p. 178). As razões fundamentais dessas expansões eram a busca da unidade territorial e autonomia dos reinos. Todas as guerras expansionistas promovidas pelos europeus tinham por objectivo ampliar os impérios, ou seja, conquistar o território de outrem. Essas guerras puseram vários grupos humanos em conflito. A expansão europeia justificada pela extensão imperial provocou conflitos territoriais ao dividir pessoas do mesmo espaço geopolítico. As populações africanas, asiáticas e latino-americanas viram-se divididas e desapropriadas dos seus territórios. Tal como as pequenas nações europeias reivindicaram pela territorialidade e pela organização geopolítica, as nações africanas 40

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e asiáticas lutaram pelo reconhecimento e legitimidade jurídica de suas identidades territoriais desfeitas no passado. As nações africanas lutaram pela legitimidade e unidade territorial. Elas consideram o território como espaço político, cultural, geográfico e económico de construção de identidade e do exercício de soberania. A identidade territorial é algo inalienável. A sua construção envolve as relações de poder e a projeção dessas relações no espaço e no tempo. Nas relações de poder, a identidade territorial define-se não só de forma geográfica, mas política, cultural e económica. Marcelo Lopes Souza (2009, p.59) destaca que “o território (...) é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir das relações de poder”. A territorialidade é o espaço de construção das identidades e de legitimação das relações políticas e sócio-culturais. O Estado afirma-se político-geograficamente como um país definindo suas fronteiras físicas, ideológicas, culturais e políticas. Desse modo, o território é o espaço sobre qual “o aparelho do Estado exerce a sua soberania e constrói suas relações” (SOUZA, 2009, p. 62) e a partir do qual se estabelece um pacto de união entre as populações e o solo. O território constitui-se da união política das populações com o solo, uma união que se consolida na interação social. O território é expressão espacial de relação do povo com o solo, espaço discursivo de poder, de identidades e de exercício da soberania. O território é o fundamento das identidades regionais e nacionais.

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A REFLEXÃO AXIOLÓGICA ENTRE A EDUCAÇÃO INDUSTRIAL E A EDUCAÇÃO INTELECTUAL COMO POTENCIALIZAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO NOS PAÍSES PERIFÉRICOS Bernardino Cordeiro Feliciano33 O presente artigo pretende ser uma reflexão sobre os modelos educacionais vigentes nos países em vias de desenvolvimento, partindo de uma reflexão entre o modelo industrial de Booker Washington e o modelo intelectual de W.E.B. DuBois. Conceptualizando que os modelos tendem a centralizar-se mais em elementos dissociativos, pretende-se esclarecer as vias de desenvolvimento partindo de aporias axiológicas ligadas aos mesmos modelos educacionais. Termos-chave: Booker Washington, W.E.B. DuBois, Educação, humanidade, axiologia, desenvolvimento INTRODUÇÃO Por muitos anos persiste um debate escondido no seio dos educadores e dos pensadores educacionais. E o mesmo debate por vezes reflecte-se como uma mera simulação abensonhada (semelhante às sombras da caverna platônica), deixando-se por vezes ocultar por debates entre a matéria e a forma da educação: o currículo, os elementos presentes, a estrutura. Mas continuamente esquecemos da posição segundo a qual a Educação está acima de tudo virada para o aspecto axiológico da existência humana, que no fundo a questão final não é “o que ensinar” nem “por que ensinar” mas sim “que tipo de homem” pretendemos alcançar com os modelos educacionais adoptados. Qual é o sentido de um currículo centralizado ou descentralizado, ou ainda integrado quando não sabemos a finalidade ou o fim teleo-axiológico da educação. Se pudermos notar, o pensamento educacional de Platão visava claramente poder fazer do homem ateniense um homem “politicamente e socialmente correcto” longe das influências da corrupção tendo em vista o desenvolvimento das virtudes. Essa ambição fê-lo concluir que certas disciplinas seriam necessárias para que o desenvolvimento do pensamento e da vivência humana pudesse plenamente realizar-

33 Mestrado

em Educação/Ensino de Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique; Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.

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se na base das virtude e acima de tudo a partir do Bem. Contudo, se alastramos a questão que tipo de “homem” (anthropos) pretendemos formar através da educação (paideia) concluísse que a meta final não seria necessariamente o tipo de homem que pretendemos (formar) mas claramente “que tipo de sociedade pretendemos (edificar)”. Se for uma sociedade baseada na força, na coragem, na pujança e na ferocidade, claramente podemos definir que as virtudes que classificam a sociedade projetam-se eficazmente no tipo de cidadão que habita nessa cidade (polis). Na maioria das vezes considera-se apenas que uma linha de pensamento ou conjunto de virtudes é considerada como sendo viável para responder ao tipo de sociedade que se pretende alcançar com os projectos educacionais. O problema ligado ao desenvolvimento social (ou que tipo de sociedade é pretendida) está actualmente presente no seio do debate educacional africano, pode-se constatar no caso de Moçambique onde há uma massiva campanha à favor de uma educação profissionalizante em detrimento de uma educação puramente científica ou acadêmica por considera-se que o País necessita de um desenvolvimento técnico e que o ensino puramente teórico não produziu frutos suficientes para um desenvolvimento saudável. Por outro lado, vemos que as actuais ondas mundiais levam-nos a requer uma reflexão aprofundada sobre as mudanças existentes a partir e fora do contexto. Não podemos afastar o facto de que há várias problemáticas presentes em relação a essa posição: Será que uma educação profissionalizante é o caminho para o desenvolvimento? Que modelos poderão fortalecer o melhoramento educacional a nível nacional? Quais são as bases de afirmação dessas posições? Qual é o fundo teórico por detrás de tais modelos? Que perigos podem ser encontrados em relação à estes modelos? Neste sentido, podemos considerar a primeira asserção segundo a qual “o homem só pode tornar-se homem pela educação. Ele é apenas o que a Educação faz dele” , conforme afirma Kant. A Axiologia será então a sobre o que convém (os valores), sobre o que é bom e valoroso numa sociedade abrangendo duas dimensões presentes: a individual e a social. Se a Axiologia enfatizar o indivíduo, ela vai investigar os critérios e valores que levam o indivíduo a escolher uma conduta em detrimento de outra. Se, por outro lado, enfatizar a sua dimensão social, vai refletir os costumes de um determinado grupo. O costume é o resultado da repetição de condutas individuais que se padronizaram. Uma vez estabelecido, ele tende a condicionar o comportamento individual. Está claro que não é simples desenhar um quadro (framework) claro sobre todas as teorias educacionais e como é que elas se relacionam com o projecto de sociedade que pretendem. Contudo, neste ensaio consideraremos pequenos aspectos ligados ao processo de construção axiológica em volta da meta pretendida no ponto de vista 44

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educacional; Porque a Filosofia deve refletir criticamente e assim (des)naturalizar nossas práticas e convicções, buscando avaliar de maneira racional como surgiram e em que se apoiam. Para a Filosofia não há nada indiscutível. Suspeitar, indagar, questionar ou criticar não é desconsiderar. Pelo contrário é ponderar, pesar de novo. Ao reavaliar ideias, podemos alterar nossa posição inicial ou fortalecê-la. Para aprofundar a reflexão basear-me-ei na questão educacional que envolveu os pensadores afro-americanos Booker T. Washington e W.E.B. DuBois. Procuraremos perceber o cerne da questão a fim de poder-se perceber o fundamento das escolhas e modelos educacionais válidos para os propósitos que o sistema pretenda. A Educação Industrial de Booker T. Washington Os negros americanos eram na sua maioria escravos de plantações ou trabalhadores de senhores brancos detentores de propriedades. As condições a que a maior parte deles estavam sujeitos, podia ser descritas como desumanas, precárias e desfavoráveis para o seu desenvolvimento psico-físico. E na maior parte das vezes os apelidos que os negros recebiam eram os nomes de escravo (slave names) nos quais adquiriam o nome do seu senhor (Jackson, Jesse, Washington, Lafayette, etc.) sem nenhuma ligação com o seu passado. O despertar da consciência negra iniciou com o desenvolvimento dos movimentos anti-abolicionistas nos EUA no século XIX, principalmente depois da guerra civil. Os negros outrora escravos conquistavam a liberdade dos seus senhores ou fugiam das suas antigas plantações com o intuito de irem para o Norte dos EUA e poderem desenvolver a sua livre-cidadania Os negros sempre desejaram a sua liberdade, mas o espaço escapava-se-lhes. Por isso, quando lhes fosse atribuído algum serviço, como preço a pagar pela liberdade, sempre o fizeram. Exemplo disso é a guerra da independência em que os negros mostraram maior capacidade bélica em relação aos soldados brancos. E a abolição sempre atrasou devido ao facto de os autores da constituição ignorarem conscientemente a manutenção da escravatura, num país cujos dirigentes afirmaram categórica e arrogantemente terem constituído uma chama da democracia no mundo. Muito embora o movimento antiesclavagista fosse forte, não foi possível a liquidação total da escravatura durante a guerra da independência devido aos diferentes factores: relação de forças entre os partidários e adversários da escravatura e os benefícios económicos da escravatura no sul. Porém, numerosas personalidades militares tinham consciência da necessidade da abolição da escravatura. Booker Taliaferro Washington (1856–1915) nasceu escravo, filho de um pai branco Novembro de 2012

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e de uma mãe negra, numa área a sudoeste de Virgínia. Depois da libertação, trabalhou em West Virgínia numa variedade de trabalhos manuais antes de ter decidido ir à Hampton Roads a procura de educação. Estudou no Hampton Normal and Agricultural Institute (actual universidade de Hampton) e estudou no Wayland Seminary. Em 1881, foi nomeado o primeiro líder do Tuskegee Institute em Alabama. Em 1895 Washington recebeu um reconhecimento nacional, depois do seu discurso em Atlanta, atraiu a atenção de políticos e do público como um porta-voz popular para os cidadãos afro-americanos. Washington desenvolveu uma rede nacional com ministros (pastores) negros, educadores e homens de negócio que compunham o núcleo dos seus apoiantes. O conceito que Washington desenvolveu na sua obra “Up from Slavery” mas a que viria a melhorar posteriormente era a sua visão de educação industrial dos negros. A ideia de Educação Industrial surgiu após o decreto de emancipação por parte de alguns filântropos brancos para permitir que a força de trabalho se perpetuasse e que de certa forma a aprendizagem fosse a partir do mais conhecido para o desconhecido (Dedução). O sistema educacional existente após a emancipação permitiu que muitos negros pudessem ter acesso à alfabetização e consequentemente ao conhecimento da literatura bíblica, dos jornais nacionais e, de certa forma, opinar sobre a situação do país a fim de contribuir para o seu melhoramento. Baseando-se nos ideais apregoados por Frederick Douglass, os negros puderam aceder ao voto e escolher o destino da nação a nível político, mas como classe económica o negro continuava sendo um nãohomem, que necessitava de emprego ou criar emprego para se afirmar economicamente e marcar a diferença na nação, provando a verdadeira liberdade. A guerra civil, trouxe consigo a ruína financeira dos estados do sul e não havia meios para a construção ou manutenção de escolas. De certa forma, os negros, apesar da sua fraca educação, estavam em melhor posição que os seus antigos senhores, porque aqueles, apesar de destituídos economicamente, possuíam a força física e treinamento para o trabalho árduo, e, basicamente, era isso que os EUA precisavam na sua fase de reconstrução. Daí que a construção de um currículo para o negro baseado nas suas habilidades adquiridas ao longo da escravatura. Então, a demanda por essa educação foi enorme por parte dos negros, devido a valorização do trabalho em vez da mera aquisição de conhecimentos científicos vigentes nas escolas públicas frequentadas pela maioria branca. Assim, fazia-se com que o negro pudesse aperceber-se da utilidade daquilo que ele aprendia na escola para o seu dia-a-dia. 46

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Para Washington (in BOXILL, 2003, pp.9-13), a grande tarefa dessas escolas consistia em: (i) ensinar as massas negras que todas as formas de trabalho são honrosas e que toda a forma de ócio é degradante; (ii) provar às massas brancas do sul que a educação do negro valia a pena, quando tal educação fosse real e não fictícia34; (iii) garantir a auto-suficiência (self-suficiency) e auto-ajuda (self-help) dos negros para as gerações vindouras; A educação do negro seria, assim, não somente para proveito do próprio negro, mas para o proveito de toda a região sul dos EUA. Os resultados ambicionados pelos negros e pelo sistema educacional americano teria que ter em conta o carácter progressista e pragmático de tal educação no desenvolvimento da nação e no desenvolvimento da auto-estima do próprio negro em relação ao racismo existente na altura na região sul dos estados unidos. Washington defende ainda que é importante por meio dessa educação diferenciar o trabalhar e o ser trabalhado35 (BOXILL, 2003, p.9). A perspectiva de Washington consiste em que ser trabalhado significa ser degradado, enquanto trabalhar equivale a ser civilizado, pois, por mais de duzentos e cinquenta anos o negro esteve sendo preparado, através do desenvolvimento industrial no Sul, que consistia na tecelagem, carpintaria, sapataria, mecânica, agricultura, ferragem, etc. Deste modo, cada plantação era uma escola industrial, pois os negros estavam habilitados a suprir as necessidades básicas dos seus senhores e permitir o desenvolvimento dos seus negócios sem que tivessem algum lucro. O contacto com os negócios dos homens brancos do sul fez com que os negros tivessem, no final da guerra, a posse de habilidades necessárias para dirigir e fazer progredir esses mesmos negócios que deram ao sul o seu poder, proeminência e riquezas. A mera ginástica mental ou intelectual permite apenas o desenvolvimento mental e não tem nenhuma ligação com o campo real de acção do mundo. O trabalho dignifica o homem, porque na medida em que trabalha ele transforma a natureza e transformase a si mesmo, interagindo com todas as esferas sociais. É nessa perspectiva prática (pragmática) que Washington entende o trabalho, que de certa forma se opõe à visão dos socialistas, no qual o trabalho alienava e objectivava o homem enquanto baseava34 Embora Washington

seja considerado o idealizador da educação industrial para o negro, porque ele deu substância e sentido à ideia através do seu trabalho no Tuskegee Institute, o primeiro americano a defender tal ideia foi Frederick Douglass. Apesar, de Washington merecer os créditos por ter dado sentido a ideia de liberdade económica e dignidade dos negros recém-libertos 35 Aqui Washington pretende contradizer a educação científica defendida pelos brancos, que retiraria o verdadeiro valor do conhecimento que o negro adquiriu ao longo do tempo.

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se na exploração. Washington, percebia que era demasiado importante fortalecer os laços de trabalho entre os homens para produzir mudanças sociais significativas e não o contrário. Está claro que para ele é mais importante reconsiderar que isso não significa voltar às plantações como escravos, mas simplesmente implica a produção de algo que seja seu, pessoal e que beneficie a toda a sociedade. A provisão de um fundamento industrial permitiria desenvolver valores como esforço próprio, amor ao trabalho, economia, posse de propriedades, etc, que levariam, no futuro, ao desenvolvimento de uma educação prática e profissional que resultaria na criação de postos de responsabilidade pública (idem, p.18). Por isso, para Washington a sustentabilidade da própria liberdade consistia na reprodução da educação industrial em todos os centros educacionais no sul, por mais que estes incluíssem apenas disciplinas industriais. Para que a riqueza do Estado e, consequentemente, dos negros pudesse ser assegurada num futuro onde a abertura das igualdades pudesse ser determinada pelos factores económicos. E é nessa direcção que a raça poderia realizar-se. A E d u c a ç ã o H u m a n i t á r i a / U n i v e r s i t á r i a / Te ó r i c a e m D u B o i s Diferentemente de Washington, William Edward Burghardt DuBois nasceu a 23 de Fevereiro de 1868 na cidade de Great Barrington na região rural de Western Massachusetts; É descendente de raízes inglesas que remontam aos tempos antes da Revolução e ao mesmo tempo incluíam antepassados franceses, holandeses e uma ascendência afro-americana, DuBois foi reconhecido pelo seu talento intelectual extraordinário desde a sua tenra idade. O pensamento vigente na época, sob a influência de Douglass36 e posteriormente sob a forte influência de Booker T. Washington e a máquina de Tuskegee, era que os negros deviam optar por uma educação industrial. DuBois no terceiro capítulo do livro As almas da gente negra dedica uma reflexão inteira sobre a influência que o pensamento de Washington e seus seguidores tiveram sobre a vida dos negros e a sua visão na sociedade. Para DuBois, a ascensão e aceitabilidade dos projectos de Booker Washington e sua proliferação foi possível graças as circunstâncias existentes e as condições existentes 36 Embora Washington

seja considerado o idealizador da educação industrial para o negro, porque ele deu substância e sentido à ideia através do seu trabalho no Tuskegee Institute, o primeiro americano a defender tal ideia foi Frederick Douglass. Apesar, de Washington merecer os créditos por ter dado sentido a ideia de liberdade económica e dignidade dos negros recém-libertos.

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para os negros naquela altura. DuBois considerou a afirmação de Washington em Atlanta, “Em toda as coisas puramente sociais, podemos ser tão separados quanto os cinco dedos e, no entanto, podemos ser um, como a mão, em todas as coisas essenciais para o progresso mútuo”, permitiu o surgimento daquilo que se denominou como sendo a “Acomodação de Atlanta” (Atlanta Comprimise), que foi interpretada de duas formas principais pelo Sul (DUBOIS, 1999, p.96): (i) Os radicais receberamna como uma rendição completa da exigência civil e política; (ii) Os conservadores, receberam-na como uma base de trabalho generosamente concebida em prol do entendimento mútuo. Dessa forma houve um total acordo por parte do Sul em concordar com a posição apresentada por Washington. E estaria claro que a posição que ele havia apresentado como solução duradoura aos problemas dos negros poderia tanto beneficiar aos brancos como também aos negros e a nação em geral. Mas aos olhos de DuBois, essa condição à que muitos decidiram submeter-se, não era nada mais e nada menos que uma condição de rendição e submissão aos interesses dos brancos, uma espécie de ré-escravização ou neo-esclavagismo. Esta posição era considerada por DuBois como inaceitável por parte de alguém que possuí-se um espírito esclarecido como o de Washington (DUBOIS, 1999, p.107). Para DuBois, era importante reconhecer que a época não permitia a vigência de um evangelho baseado no trabalho e dinheiro, mas era necessária uma atitude crítica em relação à discriminação a que o negro livre tinha sido vitimado. A auto-estima, na posição de DuBois, vale mais que casas e dinheiro, por isso, a submissão é inaceitável, porque ela requer que o negro abra a mão de três coisas principais: (i) O poder político- Qualquer tentativa de integração e manifestação política por parte dos negros devia ser evitada; (ii) A inexistência nos direitos civisO negro não devia focalizar-se nos direitos civis, mas na submissão aos brancos; (iii) A educação universitária para a juventude negra- A educação dos negros devia basear-se simplesmente em institutos, ligados integralmente à educação industrial para que os negros desenvolvessem as suas habilidades laborais. Na perspectiva Duboisiana era necessária atitude de submissão: educação industrial, a acumulação de riqueza e a conciliação com o sul. Essa posição de Washington alimentou no desenvolvimento de três coisas: (i) a supressão dos direitos eleitorais dos negros; (ii) a criação legal de um estatuto distinto de inferioridade civil para o negro; (iii) a retirada de financiamentos a instituições dedicadas ao ensino superior do negro. Mas ainda a questão forte permanece: Será possível e provável, que nove Novembro de 2012

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milhões de homens possam efetivar um progresso real em termos económicos, estando privados de direitos políticos, reduzidos à uma casta servil, tendo apenas uma oportunidade extremamente insignificante de desenvolver os seus homens excepcionais? (DUBOIS, 1999, p.108). É óbvio que a única e possível resposta que a História poderá conceder a tamanha questão é não, por isso é importante reivindicar três coisas: (i) o direito ao voto; (ii) a igualdade cívica; (iii) a educação dos jovens negros segundo as suas capacidades. Dessa forma, é importante notar que a educação superior é importante porque permite considerar uma posição para além da escravatura e da submissão, um lugar para além da plantação e da conquista de dinheiro e os negros mais ricos poderão ajudar aos negros mais pobres. A educação superior, para DuBois, permite o desenvolvimento dos espíritos mais brilhantes dentre o povo, de forma que erros do passado possam ser evitados pela auto-estima que possivelmente estará presente na comunidade negra. E só dessa forma a liberdade estará completa, porque não se pode apregoar uma educação que perpetue a escravidão e a servidão, mas deve-se combater através de uma educação que permita a liberdade e a a igualdade de direitos entre os cidadãos. Esta posição de DuBois, é bastante forte porque se levanta contra a maré de certezas que havia se tornado a educação industrial no seu tempo. Reconsidera que a construção do homem depende do tipo de educação a que esse mesmo homem está sujeito e consequentemente ao tipo de sociedade que esse mesmo homem deverá servir. Não se pode conviver numa sociedade onde alguns tenham acesso à educação superior enquanto outros aprendam a lavrar ou seja a domesticar os seus hábitos de escravos para poderem servir aos senhores da sua nação, sem prestarem um papel significante na história da sua nação (MINNICK, S. D, p.146). A dialética de oposição entre o industrial e o superior, claramente faz persistir a dicotomia entre o senhor e o escravo, entre o superior e o inferior, entre o ser e o não-ser. Esse sistema de oposições e conflitos representam a forma segundo a qual a educação segregacional seria levada a cabo para perpetuar o sistema de dependência e de submissão dos negros em relação aos brancos do seu tempo, apesar de haverem passado mais de quarenta anos após a proclamação da libertação/emancipação, contrariamente aquilo que a constituição dos EUA defende: “Consideramos evidentes por si mesmas as seguintes verdades: todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os 50

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quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade” (Declaração da Independência dos EUA-1776, apud DUBOIS, 1999, p.115). Mas infelizmente, para alguns negros e alguns brancos, os homens não eram totalmente iguais e, consequentemente, não tinham acesso aos mesmos direitos, nem à liberdade e nem à felicidade, apenas à submissão. Esse alvorecer de inquietações de DuBois fez com que muitos negros voltassem a repensar sobre o conteúdo da sua liberdade ou se eles eram realmente livres ou se estavam simplesmente a servir de objectos de uma liberdade instrumental que favorecesse a alguns enquanto os outros estariam constantemente a servir, conforme a visão do Estado de Platão. O questionamento levantado confere que, muitos negros não entendiam o que significava liberdade fora da escravatura e acima de tudo não compreendiam a direcção para qual queriam levar o seu futuro e entregar as suas futuras gerações. Para DuBois, está claro que a escola industrial tem a sua razão de ser de acordo com os objectivos estabelecidos, desde que esses respeitem os direitos civis e não tenham que colocar em causa a própria estabilidade e liberdade entre as raças. Pois, a educação não deve, de forma alguma, perpetuar ou enfatizar a escravatura, a segregação e a inferiorização, senão qualquer esforço de desenvolvimento do espírito humano será vão, pois ao invés de libertar irá aprisionar, ao invés de enriquecer irá empobrecer e ao invés de edificar irá destruir O Calcanhar de Aquiles ou o epidídimo da Questão (O problema do Desenvolvimento) As posições levantadas por ambos autores levaram-nos a considerar aspectos que podem ou não ser considerados relevantes visto que ambos conceitos não negam a inclusão de uma nem de outra posição educacional. Contudo a importância de ambos modelos revela a necessidade que existe de uma reflexão aprofundada em relação ao que se pretende (com a questão de Educação). O pensamento washingtoniano revela o espírito competitivo característico do capitalismo, pelo qual a criação e acumulação de riquezas irá determinar o sucesso de um povo e até de uma nação. Vemos que tal posição não possui desvantagens apenas compromete o facto de ter-se que escolher apenas um modelo válido para a explicação do modelo educacional perfeito que satisfaça as necessidades básicas. O modelo axiológico de Washington tende a acentuar-se no amor ao trabalho e a produção de riqueza para auto-satisfação. Contudo, essa visão deixa de lado as Novembro de 2012

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oportunidades de uma justiça clara. Como podemos tentar notar com os exemplos que tivemos de alguns países comunistas onde o trabalho e a produção respondiam mais que as liberdades individuais e a própria justiça. Essa brecha reflecte a dificuldade de uma acentuação centrada no trabalho, no homo oeconomicus e consequentemente a dissociação do seu bem-estar com o seu saber-ser. Essas constatações levam-nos a considerar que a posição washingtoniana é liberal tecnicista-transformadora, que visa fazer do aluno um melhor agente do que um mero receptor, que observa o mundo a fim de transformá-lo. A posição washingtoniana por espelhar-se somente na prática e na transformação da natureza, tende a reduzir o homem a esse ser meramente espectador dos acontecimentos e passível de manipulação, sem que englobe aspectos como a justiça e a liberdade, e igualdade. As minorias sociais não têm uma voz activa pois são meramente elementos/forças de produção. Não necessitando de uma intervenção social severa. Ao contrário de Washington, DuBois observa que há uma necessidade de reforçar o ensino das humanidades, do pensamento, dos direitos e da verdadeira liberdade. O homem deverá ser mais interveniente no âmbito político e não meramente no âmbito técnico, podendo contribuir de uma forma significante para a mudança do status quo que lhe confinasse o direito e a liberdade de poder ser ele mesmo. Esses são elementos que consideramos serem característicos de uma pedagogia progressista libertária. Porque se reduzir o homem a uma pura expressão de força e da técnica retiramos quase todo o seu valor humano. A visão de DuBois, reforça a ideia de uma pedagogia centrada no valor da liberdade, da dignidade, da responsabilidade e da justiça. No fundo, visa um enquadramento político do homem ao contrário de Washington que visava apenas uma posição económica do homem. O homem é válido enquanto um sujeito histórico e não apenas como força de trabalho e a sua grande missão é permanecer valoroso e partilhar tal conhecimento com as gerações futuras. As duas escolas de certa forma respondem ao que é que deve de facto levar-nos ao desenvolvimento. Todavia, deixarmos de lado a apreciação crítica das mesmas seria o mesmo que dar tiros ao ar. Para o actual cenário no qual o mundo encontra e também se encontram as sociedades em vias de desenvolvimento, a alternativa não poderá ser somente a de se abandonar o ensino às qualidades do seu sistema, mas olhar-se mais à fundo para percebermos as formas como é que a finalidade do ensino poderá ser realizada. Porque, enquanto esquecer-se o referencial axiológico no sistema educacional a formação do homem 52

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poderá entrar em risco. Porque na verdade o valor último não é o desenvolvimento mas outrossim a promoção da liberdade humana e expressão da sua potencialidade. Enquanto centralizarmos o desenvolvimento como um fim ou um valor-em-si teremos a dificuldade de produzir um estatuto axiológico claro para as sociedades em vias de desenvolvimento. Porque o desenvolvimento deve ser visto como um meio ou canal para a plena realização do homem. Os programas educacionais não podem ser plenamente satisfeitos enquanto as liberdades forem constrangidas por ambições tecnicista. Há que ter em conta o aspecto holístico do ser humano e não meramente o aspecto do ser humano como um meio apesar de em alguns momentos o homem poder confundir-se com o meio e não como fim (COLE, 2009:13). Entretanto, os aspectos relacionados com a violência de uma posição sobre a outra consiste na fraca análise crítica em relação às duas posições. O homem-como-valor (como defendeu Heidegger) por vezes torna-se esquecido no seio da problemática apesar de estar claro que as competências pedagógicas (saber, saber-se, saber-fazer, saber-estar [ser com os outros]) são antropocêntricas. Isto é, a educação é um produto humano e destinado ao homem, fora do homem não há educação. O cenário moçambicano poderá ser usado como exemplo, se tomarmos como ponto de partida que o valor central é a luta contra a pobreza/redução da pobreza e promoção da produção de riqueza. Podemos notar que a educação é vista como um instrumento para atacar a fraqueza humana de produção de riqueza e força transformadora da sociedade (GDM,2004:6). Mas a crise do cenário focaliza-se no facto de supervalorizar-se actualmente um único modelo que é o da educação profissionalizante em detrimento da educação académica. Este facto tende a sobrevalorizar o conhecimento académico e reduzi-lo a mera sombra, por que o mais importante consiste no “saberfazer” esquecendo-se então do “saber-ser e saber-estar”. O sujeito que usa ferramentas sintéticas tende a ser mais valorizado que aquele que usa ferramentas analíticas, por considerar-se que deve-se ter em conta apenas aspectos práticos. As pessoas consideram que o moçambicano deverá saber “trabalhar, criar emprego, ser empreendedor” mas negligenciam o aspecto axiológico de como é que o moçambicano “deve pensar,deve agir, deve viver, deve crer”. A dualidade de modelos contribui para a desvalorização de um modelo em relação ao outro. Contudo, devemos sempre considerar que o homem não é meramente um ser físico, mas um ser social, político, espiritual, económico, etc. Por isso, as posições de Washington tendem a ter mais azo numa situação similar a do contexto moçambicano devido a tendência de promover-se a educação profissionalizante (industrial). E as Novembro de 2012

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posições duboisianas tendem a perder sentido por considerar-se que a liberdade já existe. Ora, a análise pretendida não é de promover favoritismos, mas promover uma forma de analisar os modelos educacionais. Por isso, consideramos muito importante referirmo-nos ao aspecto restaurativo do aspecto académico ao elemento industrial, se não voltaríamos a repetir o erro de não citarmos os constituintes consolidativos destes dois tipos de educação. Consideramos então ser importante a solidificação de ambos os modelos para o desenvolvimento enquanto centralizado no homem e não meramente na produção de riquezas, por que para tal, há que ter em conta aspectos técnicos e aspectos humanísticos. Por que a liberdade deverá sempre ser preservada e edificada sem que seja estrangulada por interesses técnicos. A sociedade desenvolvida não poderá meramente significar o aumento de empregos ou melhoramento de condições, mas deverá acima de tudo ser a manifestação da liberdade, da justiça e acesso aos direitos. Através do qual a própria educação é o veículo capaz e eficaz para a promoção do bem-estar e de um nível de vida aceitável. O ensino universitário permite o acesso aquela capacidade crítica em relação aos modelos vigentes como também possibilita a inovação e a interacção. E temos que considerar também que o ensino profissional sendo um modelo direccionado possibilita esse entrelaçamento entre as necessidades urgentes e um aperfeiçoamento das práticas. Estes dois canais/modelos/sentidos permitem o agachamento conceptual necessário para um desenvolvimento sadio sem necessariamente reduzir-se ou desvalorizar o que um modelo tem de valoroso em relação ao outro. Os legados de DuBois e Washington permitem que a reflexão não cesse, mas continue forte para alcance de objectivos mais nobres. Por isso, não poderemos deixar de vangloriar o ensino através dos seus modelos. Por que no final de tudo, o aspecto humano não poderá ser esquecido.

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A ANÁLISE CRÍTICA DO PLANO CURRICULAR DO ENSINO SECUNDÁRIO GERAL: UM OLHAR SOBRE A FILOSOFIA. António Xavier Tomo37

O presente texto analisa as bases e os pilares sobre os quais o Plano Curricular propõe a edificação dos programas educacionais do Ensino Secundário Geral. Com o texto chega-se a conclusão de que os pilares arrolados pelo Plano em análise são demasiado frágeis. Eles não podem sustentar nenhum programa do Ensino Secundário Geral. Não se pretendendo deste modo desvalorizar todo o empreendimento até aqui desenvolvido em prol dele, porém pretende-se mostrar a fragilidade das políticas educacionais no que diz respeito a sua condição de ser (ou não) pensadas pelos moçambicanos; isto é, pelas pessoas que desenharam o plano em análise e pelo facto deste plano não reflectir a realidade dos moçambicanos. Termos-chave: Análise Crítica, Plano Curricular e Ensino Geral INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como tema: A Análise Crítica do Plano Curricular do Ensino Secundário Geral: Um Olhar sobre a Filosofia. Pretendo com o tema analisar as bases e os pilares com os quais o Plano Curricular propõe a edificação dos programas curriculares do Ensino Secundário Geral. Pretendo também reflectir sobre a possibilidade de produzir o cidadão ou a sociedade que o Plano preconiza com aquilo que ele chama de perfil do graduado. São ainda minhas preocupações perceber até que ponto o programa contribui para uma nova abordagem dos temas educacionais e se a sua construção toma em consideração a realidade do país. A constatação final é de que os pilares arrolados pelo Plano em análise são demasiado frágeis. Eles não podem sustentar nenhum programa do Ensino Secundário Geral. Não quero com isto deitar abaixo todo esforço empreendido pelas pessoas que o fizeram, quero porém mostrar a minha indignação pelo facto das políticas educacionais não serem pensadas pelos moçambicanos; isto é, pelas pessoas que desenharam o plano em análise e pelo facto deste plano não reflectir a realidade dos moçambicanos.

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em Educação/Ensino de Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique

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Os Pilares Do Plano Curricular Do Ensino Secundário Geral. Os programas do ensino secundário geral foram construídos tendo em conta os contextos Político-económicos; Sócio-culturais e Educativos; e as perspectivas do Ensino Secundário Geral. No tocante ao contexto político e económico deve-se ter em conta: “(Programa Quinquenal do governo, 2005-2009:50) aponta para a redução da pobreza de 69,4% em 1996-1997, para 54% em 2002-2003. De acordo com o Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPAII- 2005-2009), e com o Programa Quinquenal do Governo foi estabelecida a redução da incidência da pobreza para 45%, em 2009. Neste contexto, o sector da Educação ocupa um lugar prioritário pois a formação do cidadão contribui para o desenvolvimento humano” (PCESG, 2007,3) Embora o texto termine reconhecendo a importância que o sector da educação tem em formar homens capazes de desenvolver o país e consequentemente o continente e o mundo, os programas de Ensino Secundário Geral são construídos a partir de um pilar degradado. Ora vejamos, todos os documentos de que o Plano faz menção, estão ultrapassados em termos de categoria tempo. Por exemplo, o programa de filosofia foi concebido no ano 2007, cuja validação ocorreu nos dias 24 e 25 de Outubro do mesmo ano. E o mesmo (o programa de filosofia) é previsto a sua implementação para o ano de 2009. portanto, todos os documentos referenciados vão até 2009. O que quer dizer que no ano em que o programa de filosofia entra em vigor, o referido pilar está em desuso. Ainda neste primeiro pilar lê-se: “No âmbito do desenvolvimento económico os desafios do governo estão orientados para a erradicação da pobreza absoluta, redução das desigualdades sociais, de género e das assimetrias das regiões do país...”(PCESG, 2007,3). O mundo mostra outra realidade. O que acontece é que os discursos políticos não correspondem a ânsia do povo. Hoje, em quase todo o mundo, os ricos continuam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Esta tendência reflecte-se também na educação. Os filhos da classe alta quase sempre se “dão-bem” na sua formação académica e os currículos em algumas vezes tendem a beneficiá-los. Portanto, a luta pela erradicação da pobreza absoluta, das desigualdades sociais deve ser direccionada ao egoísmo humano. É no egoísmo onde reside o problema fundamental. A citação traz simplesmente as consequências e não se pode lutar contra consequências. As crianças aprendem desde cedo a desenvolver o espírito de acumulação de riquezas e bens, de ter melhores notas na sala de aulas e terminam Novembro de 2012

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o ensino superior com a lição bem aprendida. Ser bom cidadão significa: ter muito dinheiro, ter muita riqueza, ter muitos bens, etc. Apesar dos discursos sobre o desenvolvimento e sobre o combate as assimetrias “Desde a Segunda Guerra Mundial, e provavelmente desde o início do século XIX, a desigualdade na repartição dos bens materiais antes aumentou do que diminui, e isso tanto em nível global, como também, sob muitos aspectos, em nível regional. Essa afirmação precisa de ser relativizada num duplo sentido: de um lado, a população mundial, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, quase triplicou e, desde o início do século XIX, cresceu quase oito vezes” (Kesselring, 2007, 16) O segundo pilar é o Sócio-cultural e Educativo que afirma: “Moçambique é um País multilingue e multicultural habitado por diferentes grupos etno-linguísticos com maior predominância para os de origem bantu” (PCESG, 2007,3) Este pilar espelha a realidade do País. E quer chamar a atenção dos fazedores dos programas a tomem consciência desta realidade quando estiverem a desenhar os referidos programas. Portanto, a chamada de atenção é lógica mas o problema prendese com a aplicação deste pilar. O Ministério de Educação e Cultura já começou a introduzir as línguas nacionais nos currículos do Ensino Básico. O propalado ensino bilingue. Só que se cria a priori, neste processo, a discriminação. Isto quer dizer que as línguas que foram introduzidas neste processo são as mais privilegiadas em relação a outras. O que na minha opinião não corresponde à verdade. A outra constatação prende-se com a produção de gramáticas, livros e dicionários ou melhor com a produção de manuais que permitam a leccionação das referidas línguas. E pelo facto do currículo do Ensino Secundário Geral prever a leccionação destas disciplinas sem antes reunir as mínimas condições como as já referidas e a formação dos professores para este ensino com um currículo que abranja estas disciplinas. Portanto, é uma falha terrível. O que quer dizer que deliberadamente as outras línguas que até então não estão a ser leccionadas ou não serão leccionadas podem desaparecer no panorama nacional e mundial. Pode-se entender também que na verdade a Educação é um instrumento que perpetua os valores ou a cultura dominante. Pois, acredito que há interesse oculto ou claro na escolha das línguas que hoje são ensinadas nas nossas escolas, mas o currículo erguido na base deste pilar cria conflitos. Os construtores do Plano Curricular ao tentarem pensar na linguagem ou no ensino bilingue ou ainda ao realçarem a linguagem como elemento fundamental da cultura, remetem-nos a teorias críticas. “A pedagogia crítica (...) propõe o estudo sério da linguagem que traduz toda essa cultura dominante” (Costas, 2003, 15) 58

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No que diz respeito à cultura, eu penso que a educação deve fazer algo mais. Não é suficiente a interacção cultural, o respeito pelas diferenças culturais. O currículo não deve ser a imitação dos sonhos dos outros. É necessário, julgo eu, inventarmos os nossos sonhos. Sermos fautores da nossa história (como diz Severino Ngoenha). É pertinente trazer para o currículo as disciplinas que fortalecem o espírito de respeito e de interculturalidade. Por exemplo, introduzir nos currículos disciplinas como interculturalidade ou multiculturalidade, com a finalidade de elevar a consciência dos alunos em torno da diversidade cultural. Pois a questão não é só do macúa ou sena ou ainda de tsonga. A interculturalidade é uma questão que hoje ultrapassa fronteiras. Primeiro através de meios de comunicação social que mesmo não querendo consumimos a cultura de outros grupos sociais e em segundo lugar a questão da abertura de fronteiras que traz consigo a circulação de bens e pessoas. Para dizer que o currículo deve reflectir estas realidades todas. “Com a internacionalização da economia, com as constantes migrações e com a globalização das comunicações, o número de referências culturais à disposição do aluno é cada vez maior. A educação multicultural e intercultural procuram familiarizar as crianças com as realizações culturais, interculturais, morais, artísticas, religiosas etc. de outras culturas não dominantes” (Costas, 2003, 16) Este segundo pilar termina com uma reflexão em torno da Educação. Apresenta-nos duas situações: a primeira é projecção e impasse e a segunda é uma utopia talvez daquelas utopias irrealizáveis. Na primeira situação diz-se que “Em 1983 introduziu-se, em Moçambique, o sistema Nacional de Educação (SNE) através da Lei 4/83, de 23 de Março, revista pela lei 6/92, de 6 de Maio. Tratou-se de uma alteração total da estrutura educacional até então vigente. Porém, a guerra, as calamidades naturais, que devastaram o país e a consequente crise económica condicionaram os resultados que se esperavam” (PCESG, 2007,4) Esta citação traduz um sentimento de optimismo. Ela parece-me querer dizer que a situação educacional no país foi péssima e foi diagnosticada como tal, procurou-se logo em seguida tomar medidas para superar este quadro. Todavia, “o azar bateu à porta”. Veio a guerra, as calamidades naturais e afundaram todo um sonho dos moçambicanos. Na minha modesta opinião, o problema fundamental não reside nestes dois factores. Encontrá-lo-emos sim nas instituições que “pensam por nós”. Refiro-me ao Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), todas as organizações internacionais que planificam as políticas do desenvolvimento dos países sobretudo em via do desenvolvimento, que é o nosso caso; O problema é que não somos nós a sonhar, mas sim os outros que Novembro de 2012

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sonham por nós. Deixamos de ser, se um dia já o fomos, fautores da nossa história dos nossos destinos. As mesmas instituições nos mandam deitar abaixo o edifício bem construído, logo após a independência construíram um edifício com pilares fracos e hoje nos obrigam a construir edifícios mais fracos ainda e mandam-nos escrever o seguinte: “Quanto à melhoria da qualidade de educação, o Plano Estratégico da Educação II (2005-2009), considera como prioritária a transformação curricular do ESG que se centre nas habilidades para a vida, entrada no mercado de trabalho, do que apenas para o Ensino superior. O actual currículo do ESG caracteriza-se por ser enciclopédico e orientado para a continuação dos estudos no ensino superior, não responde assim às necessidades do mercado de trabalho e da sociedade moçambicana no geral e do mundo globalizado” (PCESG, 2007,4) Não me recordo quando é que o Ministério de Educação e Cultura convocou, nos últimos dez anos um seminário Nacional com os professores onde tivesse lugar uma discussão que produzisse estas constatações. Portanto, são constatações políticas e as políticas não são pensadas por nós. Este seria o pilar forte com o qual o sistema educacional moçambicano se deveria erguer. O currículo deve reflectir os problemas da sociedade sem interferência de um problema quinquenal que é passageiro. O último pilar é sobre Perspectivas do ESG. De entre os vários pontos merecem destaque: A Agenda 2025 que preconiza “desenvolvimento do capital humano, está orientada para uma formação integral do homem moçambicano assente em quatro pilares: saber ser, saber conhecer, saber fazer, saber viver juntos e com os outros” (PCESG, 2007, 7) Ao analisar as disciplinas curriculares, tenho a impressão deste currículo formar um homem não integral, um homem fragmentado, ao invés do homem integral que se pretende. Visto que não existe nenhum plano de estudo que satisfaça os quatro saberes em simultâneo, (saber ser, saber conhecer, saber fazer e saber viver juntos). (cfr. PCESG, 2007, 65ss). O que quer dizer que há um desfasamento entre o escrito e aquilo que se pretende produzir em termos curriculares. Encontramo-nos numa situação de letargia mental. E por isso mesmo somos tomados como objectos. O primeiro destinatário do currículo é o professor, o segundo é o aluno e o terceiro é a sociedade. Que sentido há se os principais intervenientes não são consultados e são tomados simplesmente como objectos? Será o problema da pobreza? E por conseguinte somos alienados? “Dado o predomínio da ordem política e económica com ideologias associadas, fica 60

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claro para que direcção irão se encaminhar os teóricos do currículo. A tarefa deles será proporcionar uma série de objectivos que o sistema patrocine, comprove e realize” (Sacristán, 2000, 48) A Universidade pedagógica parece-me ter tomado consciência da necessidade de mudar o cenário. Os professores formados fora do país na área do currículo, as contribuições dos docentes da Universidade na Revista Síntese da Faculdade Ciências Sociais, vão reforçando a ideia de que não existe melhor currículo do que aquele que é construído tendo em conta os actores directos. Hoje a Universidade convida os estudantes, os professores da Universidade Pedagógica, bem como os de outras Instituições do ensino a participarem na produção de melhor currículo e programas. Realizou também um seminário nacional dos professores entre os dias 15 a 16 do mês de Maio de 2008 com a finalidade de discutir e apreciar as directrizes dos currículos do ensino Secundário Geral e da Universidade Pedagógica. Podemos afirmar que estamos num bom caminho. Mas temos de sonhar mais. Temos de sonhar em referendo nacional onde as pessoas de diferentes estratos sociais têm a possibilidade de opinar e de participar na produção duma sociedade ideal. Sobre os pilares roídos é necessário erigir outros. Estes chamam-se: Epistemológico, Axiológico, Histórico e Metafísico. A epistemologia deve preocupar-se com a clarificação da linguagem e dos conceitos. Este pilar ajuda ao professor a dominar e a transmitir o conhecimento, a buscar a fonte do conhecimento e a conhecer os tipos de conhecimento que ele deve transmitir. Ajuda de igual modo ao aluno a dominar as formas da aquisição dos conhecimentos. A axiologia reivindica os valores para a educação. Permite aos educadores conhecerem melhor a criança. Mas para cumprir com a sua função precisa de ser complementada com antropologia e sociologia. Portanto, precisamos dos fundamentos antropológicos e sociológicos para definirmos os valores que a escola deve transmitir. A história deve trazer para o currículo a herança cultural e histórica da humanidade e sobretudo do país e do local onde a escola está inserida. A metafísica ajudar-nos-á a compreender a finalidade da educação. Com ela compreendemos o homem e o mundo no qual vivemos, a essência do processo de ensino e aprendizagem e a essência do homem. Os Resultados Do Plano Curricular Do Ensino Secundário Geral. Os resultados do Plano Curricular do Ensino Secundário Geral, que o documento designa por perfil do graduado merecem também ser analisados. Dos vários perfis arrolados pelo documento merecem destaque: “a) Ter amor-próprio, amor pela vida, pela verdade, respeitar e amar o próximo” (PCESG, 2007: 23). Novembro de 2012

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Sou reticente na concretização deste perfil. Seria fácil concretizá-lo se a educação fosse efectuada à margem da sociedade, visto que a sociedade moçambicana perdeu todos estes valores. É só recordar os vários casos de linchamento que ocorrem em quase todo o país; as execuções sumárias praticadas pela polícia moçambicana; o atentado ao pudor público envolvendo músicos moçambicanos; a violação sexual dos pacientes praticada por algum pessoal da saúde; as cobranças ilícitas feitas por alguns professores no nosso sistema de ensino; os problemas da corrupção que o governo moçambicano procura ultrapassá-los sem sucesso. Perante este quadro é necessário convidar todas as instituições a participar neste desafio, refiro-me a Família, a Igreja, a Educação, os poderes tradicionais e políticos. “São as noções de raça, etnia e nação que dão forma a essas preocupações em que a educação na família, na escola e na igreja assume um lugar central como instância de produção dos sujeitos culturais” (Costas, 2003, 70) “h) utilizar as Tics de forma interactiva” Como usar as Tics de forma interactiva numa situação em que poucas escolas têm acesso as Tecnologias de informação e comunicação. As escolas que têm não beneficiam duma forma imediata aos alunos. Primeiro, elas estão em número insignificante; segundo, não há técnicos nas escolas para a manutenção das máquinas; em terceiro lugar não beneficiam os alunos na sua totalidade e por último não há, até então, nas nossas Escolas professores formados para trabalhar nesta área. Esta dificuldade de aprendizagem remete-nos à aliena i) que diz “Aplicar os conhecimentos e suas tecnologias para melhorar a sua qualidade de vida” (PCESG, 2007, 23). As questões a colocar são: que conhecimento e que tecnologia num programa erigido sobre pilares degradados? Há um desfasamento claro entre a realidade e o que se almeja atingir. Quando se fala das tecnologias como meio para melhorar a qualidade de vida, tecnologias essas que ainda não são realidade nas nossas escolas, quer dizer que a vida vai melhorar sim, mas no papel. A outra aposta do PCESG na alínea k) diz que o graduado deve “Ser capaz de criar o seu próprio sustento e o da sua família e gerir os seus rendimentos, contribuindo assim para o combate à pobreza absoluta” (PCESG, 2007, 23). Socorrendo-me do velho Aristóteles, na afirmação segundo a qual a pessoa só pode ser justa praticando a justiça, honesta praticando a honestidade. Posso dizer que a realidade moçambicana na alínea k está desenquadrada. O que acontece realmente é que não há condições para concretizar esta alínea. Temos nas nossas escolas um número muito elevado dos alunos que torna difícil até mesmo 62

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impossível o seu treinamento para uma destas actividades quer ao nível teórico ou prático. A Escola Secundárias de Lhanguene, por exemplo, conta em média com 60 a 65 alunos por turma e perfaz no total 2572 só para o curso diurno. Segundo os dados de 2007. Para responder a esta alínea optou pelo cultivo da terra. A experiência não é encorajadora. Ao invés dos alunos aprenderem a trabalhar aprendem a praticar indisciplina. Não são todos que participam visto que não há espaço e não é possível fazer um controlo efectivo. Alguns mesmo chegam a sabotar a produção roubando os produtos da machamba. E em fim a escola recorre aos funcionários para participarem na produção e controlo dos produtos agrícolas e acabam sendo eles mesmos os protagonistas da produção escolar. A Escola tem também um centro de informática que não beneficia os alunos duma forma gratuita. O centro de informática com poucos computadores que têm acabou virando um centro de negócio onde os alunos que pertencem a uma camada social privilegiada são os que têm acesso a pequena formação. E como consequência apenas 10% dos alunos é que tem acesso a Informática. A Contribuição Do Plano Curricular Do Ensino Secundário Geral. Procuro com esta abordagem resgatar e criticar a educação inclusiva, ensinoaprendizagem centrado no aluno, ensino-aprendizagem orientado para o desenvolvimento de competências para a vida, ensino secundário geral integrado e finalmente ensino-aprendizagem em espiral. O Plano Curricular do Ensino Secundário Geral traz novas abordagens. Ele pretende ser uma revolução ou mesmo inovação relativamente ao anterior. O discurso sobre a educação inclusiva é encorajador, principalmente ao encararmos a educação como um direito natural do homem. Por isso é necessário dar possibilidades e oportunidades a todos. O Plano procura sublinhar três situações, nomeadamente: a promoção da equidade de género, criar condições de aprendizagem para os portadores de deficiência e por fim desenvolver estratégias para os alunos com maiores dificuldades de aprendizagem (cfr. PCESG, 2007, 14-15) Na questão da promoção do género eu penso que é altura de pararmos e pensarmos sobre ela. Estamos a correr o risco de termos muitas raparigas na escola que rapazes, e daí andarmos toda a vida a promovermos o género. Se assim continuarmos iremos nos dar conta embora tarde de que “é chegada a hora de promovermos o rapaz”. Os dados estatísticos de 2007 mostram que a população moçambicana é composta por Novembro de 2012

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sua maioria de população feminina e consequentemente ao andar do tempo as nossas escolas serão povoadas de raparigas. Não só como também, o número da raparigas aumentou bastante nos últimos anos nas nossas escolas. O exemplo disso é mesmo da Escola Secundária de Lhanguene, em que “O Relatório do ano 2007 mostra o seguinte quadro. A escola matriculou no Curso Diurno 2.753 alunos, dos quais 1.366 são raparigas e 1.387 são rapazes. Deste número 1.272 raparigas e 1.300 rapazes chegaram ao final do ano” (Relatório, 2007, 2). O problema hoje dos deficientes nas nossas escolas não se prende com a falta de solidariedade, amor pelo próximo, ensino de linguagem etc. O maior Cancro prendese em primeiro lugar com as infira-estruturas como por exemplo: as estradas, os edifícios escolares e arrumação das nossas salas que oferecem pouca mobilidade aos deficientes. Em segundo lugar é a falta de pessoal qualificado para comunicar-se com eles. Não há professores qualificados para trabalhar com os portadores de deficiências nas escolas secundárias. Os alunos com deficiência que estudam no ensino Secundário Geral não são acompanhados quer no processo de aprendizagem quer na avaliação. Não há comunicação entre os professores e eles, muitas vezes os professores são obrigados a atribuir notas (arbitrárias). Quanto aos alunos com dificuldades de aprendizagem a solução passa necessariamente pela redução de número de alunos por turma. Uma vez reduzido é possível desenvolver estratégias para identificar as dificuldades e seu tratamento. Nas situações em que encontramos turmas com 65 a 70 alunos torna-se impossível concretizar aquilo que o Plano Preconiza. A segunda contribuição do Plano Curricular do Ensino Secundário Geral, que acho a intenção boa, é o ensino-aprendizagem centrado no aluno. “Nesta concepção de ensino, o professor funciona como um facilitador a quem cabe criar oportunidades educativas diversificadas que permitam ao aluno desenvolver as suas potencialidades” (PCESG, 2007, 17). Ainda na mesma página há sugestões para tal ensino a saber: trabalhos aos pares e em grupos, debates, chuvas de ideias, jogos de papéis e os idealizadores deste Plano terminam com uma grande decepção ao afirmar: “no contexto moçambicano, as estratégias de ensino numa abordagem de ensino centrado no aluno, deverão considerar também o fenómeno das turmas numerosas” ibidem.

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Quais são as formas de considerar este fenómeno? E como considerar? Para sermos honestos connosco mesmos, vamos dizer que não é possível fazer um ensino centrado no aluno. Este ensino pressupõe em primeiro lugar turmas com poucos alunos e em segundo lugar professores preparados com metodologias específicas para tal ensino, e por fim condições de trabalho para a produção de textos, sebentas, bibliotecas apetrechadas e livros, etc. Estas condições ainda não foram criadas e duvido que sejam criadas daqui a dez ou vinte anos. Este Plano sugere o ensino tecnicista. O ensino e aprendizagem orientado para o desenvolvimento de competência para a vida: “... a teoria técnica é a que tem mais tradição nos estudos curriculares, é aquela cuja influência se faz sentir ainda nos dias de hoje (...) e caracteriza-se por um discurso científico, por organização burocrática e por uma acção tecnicista”(Pacheco, 1996, 31) A tecnicidade do programa não reside apenas no discurso e na estrutura, mas também nos conteúdos onde o programa agrupa as disciplinas profissionalizantes. (cfr. PCESG, 2007, 73). O ensino centrado nos problemas é promissor. Ajuda os alunos a prepararemse para um futuro digno e humano. O documento em estudo sublinha com veemência esta questão ao afirmar: “... A abordagem de ensino deverá estar orientada para a solução dos problemas da comunidade, através da ligação em situações concretas da vida, na família e na comunidade”( PCESG, 2007, 16) A citação quer consciencializar a todas as pessoas que dedicam as suas vidas à educação. Que tenham em mente de que a educação é um direito natural para todo o homem. A citação deixa claro este aspecto ao afirmar que a escola deve preocuparse com a sociedade, a escola deve fazer esforço de responder as inquietações da comunidade em que ela se encontra. Ao invés dos currículos, os professores e alunos estarem fechados dentro duma sala, eles devem abrir-se ao mundo. Dewey procurou aplicar este tipo de aprendizagem em Chicago. Onde envolveu os estudantes em projectos de aprendizagem. Para mim a questão é: estamos preparados para este tipo de ensino? Não seria melhor primeiro procurarmos trazer as mínimas condições para depois “sonharmos mais alto”? É bom lembramo-nos que é melhor que se ensine pouco mas tendo a certeza de que o pouco ensinado, é aprendido pelos nossos alunos.

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“Lembrai-vos sempre de que o espírito da minha instituição não consiste em ensinar muitas coisas à criança, mas em nunca deixar penetrar, no seu cérebro, ideias que não sejam justas e claras” (Rousseau, 1990, 182. A outra contribuição seria na questão do ensino secundário geral integrado. Fazendo uma análise minuciosa, o programa assinala uma contradição. Ora vejamos: “Os programas de ensino, os materiais escolares, sobretudo o livro do aluno e o manual do professor são instrumentos que facilitam o trabalho do professor, ajudando e mostrando as possibilidades de abordagem integrada das diferentes unidades temáticas” (PCESG, 2007, 17). O discurso centra-se na integração das unidades temáticas das aulas, tendo em conta os materiais escolares. A integração não diz respeito aos saberes. E na mesma página lê-se: “... a integração permite, por um lado, que a partir de um mesmo projecto o aluno possa exercitar vários aspectos específicos das disciplinas e questões transversais. Por outro, os professores das diferentes disciplinas poderão, em conjunto, fazer um acompanhamento do progresso do aluno e ter uma imagem do desempenho do aluno, através do mesmo instrumento” (ibidem). Também nesta citação a integração não se refere aos saberes mas sim a possibilidade que os alunos têm de discutir um projecto em várias disciplinas. Por exemplo, pedir aos alunos a discutirem um tema ou a escrever um tema sobre o SIDA. Ao trabalharem sobre o tema terão que enquadrar conhecimentos de outras disciplinas, (Geografia, História, Português, Biologia), a transversalidade. Isto permite aos professores analisarem em conjunto a evolução dos seus alunos. Para além destas duas abordagens da questão integração existe a outra que diz o seguinte: “No âmbito da Agenda 2025, a visão estratégica no que concerne ao desenvolvimento do capital humano, está orientada para uma formação integral do homem moçambicano assente em quatro pilares: saber ser, saber conhecer, saber fazer, saber viver juntos e com os outros (Agenda 2025:1290)” (PCESG, 2007, 7). Em ambas as situações a ambiguidade ainda permanece. O propósito da Agenda 2025 não foi respondido. A questão integração está veiculada em torno dos quatro saberes: saber ser, saber conhecer, saber fazer, saber viver juntos e com os outros. Portanto as anteriores citações encaram a integração em âmbitos diferentes. Em que perspectiva deve ser considerada a integração? Na perspectiva temática ou na perspectiva transversal ou ainda na formação integral do homem moçambicano? 66

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O aspecto do ensino-aprendizagem em espiral é uma boa inovação, por conseguinte não tenho uma apreciação negativa. Reconheço existir algum esforço em torno desta abordagem. O Distanciamento entre o Vivido e o Pensado. O Plano Curricular do Ensino Secundário Geral não reflecte objectivamente a situação social e económica do país. O programa foi pensado e construído a partir de paradigmas exógenos. O programa aparece como uma alavanca capaz de virar o mundo. Como um instrumento a partir do qual pode mudar a sociedade moçambicana. Isto é de louvar. Mas as suas propostas ultrapassam as condições concretas do país. Por isso é impossível realizá-lo. Assim sendo, porque elaborar um programa desta natureza? Antes de apostarmos no programa curricular do Ensino Secundário Geral seria melhor que o primeiro desafio fosse para as Escolas, os Institutos, as Universidades de formação de professores em apostar nas metodologias, nos conteúdos, nos valores para os futuros professores. Este pormenor não foi observado. Em segundo lugar deveria pensar-se em condições favoráveis de aprendizagens. Pensar em turmas reduzidas, escolas equipadas com material didáctico, a sua localização, um ambiente acolhedor, em fim que haja condições para aprendizagem. E finalmente pensarmos nos valores que pretendemos transmitir para os nossos alunos. O tipo de sociedade e de cidadãos que nós como moçambicanos queremos. Quero com isto dizer que o Plano curricular deve espelhar a realidade do país. Temos de sonhar partindo da nossa própria realidade. O Plano curricular em análise, está aquém das reais potencialidades do país. Considerações Finais. O trabalho é fruto das aulas de Mestrado em Educação inserido na cadeira de Teorias do Currículo (que foram tidas na Universidade Pedagógica, no primeiro grupo de mestrandos). Procurei responder afirmativamente as nossas aulas sobretudo a posição de Sacristán ao afirmar que “o currículo reflecte o conflito entre interesses dentro de uma sociedade e os valores dominantes que regem os processos educativos” (17). O trabalho procura mostrar este conflito. Procura de igual modo vincar a complexidade e a delicadeza que se deve tomar ao tratar o assunto do currículo. a reflexão é simplesmente uma contribuição para questões que preocupam a qualquer indivíduo sensato.

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BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES (2006). Ética A Nicómaco, 2ª Edição, Quetzal Editores, Lisboa. COSTA, Marisa Vorraber et all (2003). O Currículo nos Limiares do Contemporâneo, 3ª ed. Rio de Janeiro, DPEA. Escola Secundária De Lhanguene (2007). Relatório, Principais Actividades Desenvolvidas Pelo Sector Pedagógico Durante o Ano Lectivo de 2007. KESSELRING, Thomas (2007). Ética, Política E Desenvolvimento Humano: A Justiça Na Era da Globalização. Trad. Benno Dischinger. Caxaias do Sul. RS: Educs. Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação (INDE) (2007). Plano Curricular do Ensino Secundário Geral (PCESG) – Documento Orientador, Objectivos, Política, Estrutura, Plano de Estudos e Estratégias de Implementação; Imprensa Universitária, UEM; Maputo. PACHECO, J. A. (1996). Currículo: Teoria e Práxis, Porto Editora. ROUSSEAU, Jean-Jacques (1990). Emílio, Vol. 1, Publicações Europa-América, Portugal. SACRISTÁN, Y. Gimeno (2000). O Currículo Uma Reflexão Sobre a Prática, 3ª Ed. Porto Alegre, Artmed.

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O VALOR ÉTICO DO TRABALHO PARA RIQUEZA E DESENVOLVIMENTO Mário Alberto Viegas38 O texto que se segue analisa a questão do trabalho e seu valor ético. O objectivo principal é o de contribuir para o esfaziamento do sentido ético-axiológico do conceito e prática do trabalho em Moçambique. Palavras-Chave: Trabalho, Ética, Riqueza e Desenvolvimento Social INTRODUÇÃO Com este artigo, pretendemos abordar o sentido do trabalho como valor ético para a produção da riqueza e para o desenvolvimento social. O problema que colocamos é: de que causas internas e externas resultou o desmoronamento do sentido do trabalho como dignificante do homem em Moçambique? Pretendemos, mas sem nos confinarmos a factores conjunturais, encontrar uma explicação para a tendência que caracteriza os nossos dias e que consiste na procura de uma vida boa, isto é, riqueza e bem estar, sem esforço, ou seja, sacrifício. A nossa abordagem tem em vista trazer reflexões sobre os momentos que contribuiram para o esvaziamento do sentido ético-axiológico do conceito e da prática do trabalho em Moçambique. Não trazemos, pois, lições de como se trabalha ou se deve trabalhar para se ser rico e desenvolvido, mas tão somente fundamentos de que só com o trabalho afanoso, mas apaixonado e devotado, se pode conseguir riqueza e desenvolvimento. A presente reflexão é meramente filosófica, isto é, não vai na linha de uma análise economicista. Por isso, não tem a pretensão de distinguir nem entre trabalho vivo da produção de mercadorias (sejam elas de natureza material ou imaterial) e trabalho morto representado pela maquinaria tecno-científica nem entre trabalho concreto e trabalho abstracto, ou seja, entre trabalho manual e trabalho intelectual. Consequentemente, também não tem a pretensão de rebater e/ou problematizar quaisquer teorias desenvolvimentistas, ou seja, do desenvolvimento económico dos países. 38 Mestre

em Educação/ Ensino de Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique, Docente de Ética Geral, Ética das Instituições e Deontologia Profissional. Actualmente é Director do Curso de Filosofia de Desenvolvimento Institucional na UP. - [email protected]

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Da necessidade de reabilitar o sentido de trabalho Virou moda, de todos os lados, o apelo insistente à necessidade cada vez maior de se reafirmar o trabalho como a condição sine qua non do nosso próprio desenvolvimento. Nos últimos tempos, tornou-se frequente houvir-se falar, tanto por parte dos discursos políticos como por parte dos discursos académicos e religiosos, bem como de comentários de empresários e cidadãos das mais variadas sensibilidades, da necessidade do desenvolvimento de uma cultura de trabalho em Moçambique. A esta ideia se associa a da premência do cultivo do espírito empreendedorista nos moçambicanos, particularmente nos jovens. Programas escolares e universitários, bem como manuais de ensino a todos os níveis já incluem temáticas sobre o empreendedorismo. Só para mencionar um exemplo, na segunda colectânea das comunicações dos seminários realizados na Presidência da República de Moçambique sobre “assuntos relacionados com a Governação do País”, consta uma comunicação do antropólogo moçambicano e docente na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Cristiano Matsinhe, com o título “Cultura de trabalho” e os desafios da (re)produção de riqueza em Moçambique. Nesta comunicação, Cristiano problematiza o conceito de trabalho, buscando a sua definição, faz uma excursão pela história, procurando os contextos que determinaram o entendimento e a definição de trabalho, e desemboca na análise dos processos que tiveram em vista delinear a cultura de trabalho em Moçambique. Severino Ngoenha, em O pós-colonialismo na África lusófona – o Moçambique contemporâneo, já defendia que “[o] saber fazer deve levar-nos a uma metanoia cultural, que consiste em substituir a percepção denigrante do trabalho como herdamos do colonialismo por uma concepção weberiana do trabalho como Beruf (vocação). Não como vocação religiosa, mas libertária.” (Bussotti/Ngoenha, 2006, p. 20). As nossas questões de partida são duas: i) de que “percepção denigrante do trabalho” se trata? ii) Qual é a “concepção weberiana do trabalho” de que se lhe possa despir a roupagem religiosa? Responder a estas perguntas é o que nos colocamos como desafio no presente artigo, começando por apresentar a nossa opinião sobre o que poderá ter levado a ideia do trabalho à sua actual perda de sentidi ético-axiológico e terminando com algumas considerações sobre o que se pode entender por “trabalho como vocação”, tomando em conta A ética protestante e o espírito do capitalismo de Max Weber. 70

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Dos momentos da perda do significado do trabalho em Moçambique Segundo Gronemeyer (1991, p. 7-56), em Der faule Neger – vom weißen Kreuzzug gegen den schwarzen Müßiggang [O negro preguiçoso – da cruzada branca contra a ociosidade negra], os europeus deturparam a realidade africana através dos “óculos” (europeus) com que olharam para a África39. Quanto ao trabalho, de acordo com Gronemeyer, os europeus qualificaram os africanos de preguiçosos, destituidos de disciplina de trabalho, desprovidos de capacidade de planificação, incivilizados e, por isso mesmo, sujeitos à civilização europeia através do trabalho. Gronemeyer desenvolve estes qualificativos em três teses fundamentais: Segundo a tese racista, os africanos eram tomados por preguiçosos e só podiam ser levados com violência a aderir ao trabalho. A civilização e a sociedade de trabalho em África só poderia existir lá onde se mantivesse por longo período a dominação branca. De acordo com a tese cultural, o sistema africano de parentesco se opunha à carreira e ao rendimento, pois os indivíduos não se atrevem a desligar-se dos laços que os prendem à sua grande família, com a qual condividem os seus haveres. Assim sendo, em África só seria possível uma sociedade de trabalho se as famílias africanas se tornassem nucleares. Conforme a tese económica, estímulos deviam ser conseguidos para a produção e consolidação de uma disponibilidade ao trabalho pelos africanos. Para esse fim podiam ser usados os métodos repressivo ou liberal. Este último método consistiria no estímulo salarial para a presteza dos africanos para o trabalho. Ainda conforme Gronemeyer, estas teses resumem as teorias e as práticas centrais da política colonial em África para a criação de uma sociedade de trabalho. Tais teorias e práticas orientavam-se para três direcções: (i) a destruição dos vínculos de parentesco, ou seja, os trabalhadores deveriam ser ambulantes e, por isso mesmo, acomodados em compounds ou acampamentos indígenas [sanzalas], bem longe das suas famílias; (ii) a expropriação de terras, isto é, a força de trabalho deveria ser acomodada em reservas com a finalidade de arruinar a emaranhada rede social dos africanos que até aí regulava o trabalho e a sua divisão; (iii) o combate aos espíritos,

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P. Castiano (2010) inclui este processo que o europeu empreendeu para compreender o outro (africano) no “referencial de objectivação”.

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ou melhor, deviam ser banidas as concepções e práticas religiosas africanas por serem demoníacas e idólatras. Esta tentativa de introdução da chamada sociedade de trabalho em África pressupós o escangalhamento do entendimento africano da vida e do trabalho, cujo efeito foi, sobretudo, que milhões de moçambicanos passaram a ser designados por desempregados40 e a mendicidade dos ditos incapazes de trabalhar se institucionalizou. A dita racionalidade económica foi organizada para justificar a sociedade de trabalho, qualquer que fosse o resultado social que daí adviesse, por exemplo, o abandono dos valores tradicionais. Este foi o primeiro momento em que o trabalho perdeu o seu sentido moral em Moçambique, segundo o qual o trabalho dignifica o homem. Nas sociedades tradicionais africanas não se diz que alguém não tem trabalho, mas sim que alguém não trabalha, ou seja, que é preguiçoso, pois há sempre trabalho: machamba, gado, indústria caseira, etc. Com a presença europeia, o trabalho passou a significar ser empregado, isto é, trabalhar para alguém, mesmo que não fosse em troca de um ordenado. O auge disto é que mesmo quem trabalhasse por conta própria não considerava a sua actividade como sendo trabalho; ele próprio não se considerava trabalhador. Trabalhar era, pois, ter um patrão; ser trabalhador era, essencialmente, ser remunerado. Por mais paradoxal que seja, o segundo momento da perda do sentido ético do trabalho em Moçambique, advém da onda entusiástica do movimento libertador do País. A pretensão de restabelecer a cultura do trabalho no País através da prática do trabalho colectivo e, mais tarde, da “Operação Produção”, viu-se contrariada pelas práticas emotivas que se seguiram e, por isso mesmo, destituidas de planificação e execução coordenada. Por um lado, as campanhas de trabalho voluntário, muitas vezes isentas de programa concreto de continuidade, contribuiram para essa destruição do sentido axiológico do trabalho em Moçambique. Associava-se a isto a identificação do trabalho com castigo, prática que frequente nas escolas, onde os ditos “indisciplinados” eram levados a lavar as casas de banho ou a limpar com vassoura ou enxada o pátio ou Nas sociedades tradicionais africanas não se diz que alguém não tem trabalho, mas que alguém não trabalha, ou seja, que é preguiçoso, pois há sempre trabalho: machamba, gado, indústria caseira, etc. Com a presença do conceito de trabalho europeu imposto pelo empreendimento da industrialização, o trabalho passou a significar ser empregado, isto é, trabalhar para alguém, mesmo que não fosse em troca de um ordenado. O cúmulo é que mesmo quem trabalhasse por conta própria não considerava a sua actividade como sendo trabalho; ele próprio não se considerava trabalhador. Trabalhar era, pois, ter patrão; ser trabalhador era, essencialmente, ser remunerado. 40

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todo o espaço da escola, sem qualquer orientação sobre o sentido ético e disciplinador dessas actividades, o que produzia nos alunos a aversão pelo trabalho. Por outro lado, a “Operação Produção”, pretendendo “limpar” a sociedade dos que pululavam sem ocupação meritória, acabou criando condições para a vagabundagem e o recrudescimento do crime. Referindo-se a este tempo, Ngoenha escreve que “apesar das intenções excelentes, esse estado (o Estado da primeira República) era habitado por contradições intrínsecas que acabaram anulando a grandeza dos objectivos precedentemente anunciados” (Bussotti/Ngoenha, 2006, p. 194). O terceiro momento da perda do valor ético do trabalho veio com a liberalização da economia e da vida. O período das prateleiras vazias e os “bolsos cheios” foi substituido pelo das montras repletas de artigos diversos contra os “bolsos vazios”. A economia do mercado não foi, em geral, acompanhada por uma cultura de empreededorismo pessoal ou associativista nos moldes do modelo liberal capitalista. Exacerbou-se o vandalismo e o crime. De acordo com o ilustrativo de Ngoenha, é “como se, de repente e sem aviso prévio, nos encontrássemos diante de uma passagem de nível sem guarda” (Ibidem). Os despedimentos de trabalhadores das empresas e dos serviços privados e privatizados para responder a um mínimo da exigência dos critérios de rentabilidade da produção capitalista, veio acelerar a “fuga” do trabalho já “escasso”. Os números de desempregados elevam-se estruturalmente, não na base e na relação directa com uma progressiva automatização da produção, mas na base de um ajuste necessário aos padrões produtivos capitalistas. O desempregado vé a sua biografia laboral abruptamente interrompida com o encerramento das portas da empresa à sua trás. Que alternativas para o sustento da família? As consequências são (im)previsíveis. Do trabalho como vocação Em A ética protestante e o espírito do capitalismo Max Weber faz uma incursão pela história ocidental para mostrar como a concepção do trabalho als Beruf [como vocação] foi construida no capitalismo a partir da ética protestante. Ao tentar determinar o objecto que pretende analisar e explicar historicamente com a expressão “espírito do capitalismo”, Weber não o faz de imediato “na forma de duma definição conceptual”, mas, para começar, na de “uma representação provisória” que busca nas máximas de Benjamim Franklin41. Weber afirma que 41 Estadista,

físico e publicista americano. Foi um dos fundadores da independência dos EUA. Em 1777 foi a França negociar a aliança de Luís XVI com a república americana.

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“Todas as asserções morais de Franklin têm um cunho utilitário: a honestidade é útil, dado que trás crédito; o mesmo se passa com a pontualidade, a aplicação ao trabalho e a frugalidade, e por isso são virtudes. (...) Trata-se ... do ‘summum bonum’ desta ética: o ganho de dinheiro, e de cada vez mais dinheiro, com a mais estrita abstenção de todos os prazeres simples (... ) O ganho de dinheiro é – na medida em que se processar dentro de formas legais – na ordem económica moderna, o resultado e a expressão da capacidade profissional, e esta capacidade é, como actualmente se pode constatar sem dificuldade, o alfa e o ómega da moral de Franklin (...)” (2005, pp. 35-37). Na língua alemã, Beruf significa tanto profissão como vocação; o verbo berufen quer dizer chamar, convocar. É no cruzamento destes dois termos – profissão e vocação – que pretendemos analisar o conceito Beruf como vocação ao trabalho, em geral, e à actividade profissional, em particular. Não é nossa intenção reavaliar a conceptualização weberiana de Beruf, mas encontrar as bases que determinaram o tipo de vida económica no Ocidente e que podem, destituidas do seu conteúdo religioso, dar sentido e propulsar o desenvolvimento económico de Moçambique. Na obra acima referenciada, Max Weber afirma que o espírito do capitalismo engendrou a forma concreta de pensamento e de vida racional a partir da qual a ideia de “vocação profissional” e de devoção ao trabalho profissional [Berufsarbeit] surgiu, tendo sido, e continuando a ser, um dos elementos característicos da cultura capitalista. Segundo ele, torna-se evidente que a palavra Beruf tem uma conotação religiosa, significando uma tarefa imposta por Deus. De acordo com ele, o sentido e a ideia da palavra são novos e produtos da Reforma, embora os “esboços” da valorização do trabalho quotidiano remontem da Idade Média e mesmo da Antiguidade. A novidade está na consideração do “cumprimento do dever no quadro da actividade temporal como a acção moral mais elevada” (p. 56). Embora não se possa “considerar que Lutero tenha alguma coisa a ver com o ‘espírito do capitalismo’”, a ideia, porém, desenvolve-se nele no decorrer da primeira década da sua actividade reformadora. Para Lutero, “as tarefas profissionais surgem como expressão exterior do amor do próximo” (Ibidem). Mas que parte cabe aos factores religiosos para a determinação do desenvolvimento da cultura europeia moderna, ou seja, quais são, dentre os conteúdos característicos da cultura europeia, os que devem ser atribuídos ao contributo da “Reforma como causa histórica”?

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Weber vai buscar a possibilidade de perceptibilidade dos pontos das “‘afinidades electivas’ entre diversas modalidades de fé religiosa e a ética profissional” na ética profissional (Berufsethik) do protestantismo ascético, sobretudo nos “textos teológicos mais importantes da prática sacerdotal”, concentrando-se num dos representantes do puritanismo inglês, o presbiteriano Richard Baxter, que se libertou gradualmente do calvinismo ortodoxo. A opção de Weber pelo puritanismo inglês “(p)ara compreender as ligações das concepções religiosas básicas do protestantismo ascético com as máximas económicas da vida quotidiana” deve-se ao facto de o puritanismo inglês “oferecer a fundamentação mais consequente do ideal da profissão”. Weber diz que o Christian Directory de Baxter “é o compêndio da teologia moral puritana mais completo”, onde se vê “a importância dada aos elementos ebioníticos da mensagem do Novo Testamento” (Idem, pp. 123-124). Apesar do ascetismo aparecer dirigido contra toda a ambição de adquirir bens terrenos, “(o) que é realmente condenável do ponto de vista moral é apoiar-se na propriedade, gozar a riqueza, o ócio e o prazer carnal dela resultantes, sobretudo o desvio da aspiração a uma vida ‘santa’. (...) Não o ócio e o prazer mas apenas a acção serve, segundo a vontade indubitavelmente revelada por Deus, para aumentar a sua glória. Perder tempo é assim o primeiro e, do ponto de vista dos princípios, o maior de todos os pecados. (...) Perder o tempo em sociedade, em ‘conversas podres’, no luxo, ou por dormir mais que o necessário à saúde – 6, no máximo 8 horas – é absolutamente condenável dum ponto de vista ético. (...) O tempo é infinitamente valioso, visto que cada hora perdida é tempo que se rouba ao trabalho, ao serviço da glória de Deus. (...) Pela obra principal de Baxter perpassa a exaltação repetida, por vezes quase apaixonada, do trabalho corporal ou espiritual duro e constante. (...) Contra as tentações sexuais o remédio é o mesmo que para as dúvidas e angústias religiosas: a par de dieta sóbria, regime vegetariano e banhos frios, o preceito: ‘Aplica-te arduamente à tua profissão’. Além disso, o trabalho é sobretudo o próprio fim da vida, tal como foi prescrita por Deus. A frase de apóstolo Paulo ‘Quem não trabalha, não come’, é válida para todos. Não ter vontade de trabalhar é sintoma da ausência do estado de graça. (...) Também o proprietário não deve comer se não trabalhar” (Idem, pp. 124-125). Chegados a este ponto, é de precisar em que pontos a concepção puritana de profissão e a conduta astética influenciaram directamente o estilo de vida capitalista. Weber esclarece: Novembro de 2012

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“Há um aspecto mais importante, a valorização religiosa do trabalho profissional incessante, continuado e sistemático (...) foi a alavanca mais poderosa da concepção de vida que designamos por ‘espírito do capitalismo’. E, se a par desta libertação do desejo de lucro pusermos a limitação do consumo, o resultado está à vista: a formação de capital através da coacção ascética à poupança. A inibição da aquisição de bens de consumo favorecia a sua aplicação produtiva enquanto capital de investimento. (...) (...) Coube ao ascetismo puritano colaborar na duríssima legislação inglesa sobre a mendicidade42 (...) E isso foi possível porque as seitas protestantes e as comunidades estritamente puritanas não conheciam de facto a mendicidade no seu seio. (...) A limitação a um trabalho especializado e a consequente abdicação da faustiana universalidade humana constitui, no mundo de hoje, uma condição sine qua non da actividade válida. (...) O ascetismo, ao ser transplantado das celas conventuais para a vida profissional, começou a dominar a ética secular e deu o seu contributo para a formação do poderoso cosmos da ordem económica moderna (...)”. (Idem, pp. 133-140). Até aqui, pretendemos com obra A ética protestante e o espírito do capitalismo de Max Weber encontrar uma explicação sobre o espítito capitalista e a ética protestante ascética para, da apreensão da sua relação causal, compreendermos a concepção weberiana de profissão e podermos delinear a nossa resposta à ideia de Ngoenha sobre a necessidade de substituirmos a percepção denigrante do trabalho que herdamos do colonialismo por uma concepção weberiana do trabalho como Beruf (vocação), ainda que esta vocação (Beruf) não tenha que ser religiosa, mas sim libertária. Resumindo, podemos afirmar, com algum acréscimo ao que extraímos da obra de Webwer, que a Reforma deu um impulso importante à divinização do trabalho. Com a Reforma, o trabalho tornou-se um mandamento de Deus para todos – independentemente do status. O que se seguiu foi a censura da inactividade da nobreza e a proibição da tolerância à mendicidade – apenas idosos e doentes podiam mendigar; todos os outros deviam trabalhar ou, caso contrário, deviam ser expulsos da paróquia. Por exemplo, a partir do Século XVI instituiu-se a perseguição dos mendigos; foram erguidas casas de correcção em cuja entrada se ostentava de bom grado a frase: Labore nutrior, labore plector. Em poucas palavras: trabalhar para a vontade de Deus e do próximo fazia do cristão a máscara de Deus, isto é, cumpridor da vontade divina, 42 De acordo co Weber, “A ética medieval não se limitou a tolerar a mendicidade, tendo mesmo glorificado as ordens mendicantes.

Os mendigos seculares, considerados por vezes como um ‘estado’ [Standart], também eram tolerados, pois dar esmola permitia aos proprietários fazer boas acções. Também a ética social anglicana dos Stuarts estava muito próxima desta atitude” (Idem, p. 137).

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segundo a Reforma. É esta cobertura ética que vai contribuir, juntamente com outros factores, para a moldagem do espírito do Capitalismo. Como se pode depreender, na Europa o protestantismo impôs aos seus fiéis regras de conduta muito severas, devido à interpretação literal da lei de Moisés e à estrita observância da doutrina de São Paulo. O êxito material dos países nórdicos da Europa deveu-se largamente à ética protestante que pregou o trabalho árduo e uma maneira honesta de agir. O que interessa a Moçambique, provavelmente, não é a componente violenta que caracterizou o processo de delineamento da cultura do trabalho na Europa, mas sim os princípios éticos que o acompanharam, sem que necessariamente tenham de se revestir da roupagem e do conteúdo religiosos. Para esse fim, a educação desempenha um grande papel, particularmente a escolar e a universitaria. Aos nossos intelectuais cabe contribuir com ideias para que os políticos possam definir estratégias com as quais o “desenvolvimento” não deva criar desemprego e desempregados, mas fornecer não só novas possibilidades de trabalho, como também novas possibilidades de avaliação do mesmo. Os homens precisam de estimar o seu valor social e o das outras pessoas não exclusivamente pela função categorial do seu rendimento monetário, mas, e sobretudo, por outros indicadores, como sejam o valor ético dos objectivos humanamente relevantes de cada tipo de actividade e o desempenho humano pessoal para uma qualidade social de vida eticamente admissível. A criação da riqueza em Moçambique, com que se consegue o desenvolvimento através do qual todos partilham o bem estar material, social e espiritual, pressupõe o assuimir-se do trabalho árduo e abnegado, o que implica o assumir-se do valor da pontualidade, da aplicação responsável ao trabalho e da honestidade em prol do bem comum, e não do maior ganho de dinheiro. Se perder tempo é para o ascétismo “o primeiro e, do ponto de vista dos princípios, o maior de todos os pecados”, para nós é, do ponto de vista da ética do trabalho, o pior hábito interiorizado, a maior desvirtude. Consideramos ainda válidas algumas máximas de Franklin segundo as quais tempo é dinheiro; crédito é dinheiro; dinheiro tem uma natureza reprodutora e fecunda; um homem de boas contas é senhor da bolsa alheia; a par do trabalho árduo e da frugalidade, nada contribui tanto para que um jovem vença na vida como a pontualidade e a rectidão em todos os seus negócios; um homem não pode negligenciar que as mais pequenas acções têm influência sobre o seu crédito; quem pensa nas suas dívidas, permite que se revele um homem tão escrupuloso quanto honesto, o que aumentará o seu crédito; tem o cuidado de não considerares como tua propriedade tudo o que possuis e de não viveres segundo este princípio – para o evitar mantém uma Novembro de 2012

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contabilidade exacta das tuas despesas e rendimentos... (Weber, 2005, pp. 35-36). Contudo, para que estas máximas sejam apropriadas de forma reflexiva e crítica é indispensável extirpar, e este é o papel fundamental da educação a todos os níveis, a mentalidade de subserviência e o espírito de desamparo e de resignação, males espirituais com os quais não se pode cultivar a ideia de que trabalho existe sempre e em todo o lado, e que todos podemos e devemos trabalhar honestamente e com empreendedorismo para as nossas vidas particulares, familiares, comunitárias e para a sociedade em geral, em prol do desenvolvimento de Moçambique. O maior desafio que se coloca, hoje, à África em geral e a Moçambique em particular é o da mudança de mentalidade. Os problemas da fome, da doença, do analfabetismo, da pobreza, da miséria, do atraso económico e muitos outros de que as sociedades africanas enfermam encontram na mentalidade do seu cidadão um terreno fértil de incubação. A mentalidade de subserviência e o espírito de desamparo e de resignação impedem todos os desenvolvimentos do homem e da sociedade. A mentalidade de subserviência e o espírito de desamparo e de resignação é o reflexo da pobreza de espírito que, por sua vez, é a fonte de todas as pobrezas e fraquezas humanas e institucionais. Juntos, esta mentalidade e este espírito criam o sentimento de vitimização. De acordo com Pascal Bruckner (Morin/Prigonine, 1998: 58), “[a] vitimização é a tendência a se proclamar mártir dos outros, da sociedade, do Estado”. Parece que nas nossas sociedades o lugar de vítima se tornou cómodo, pois os próprios criminosos se fazem de vítimas e, o mais grave ainda, é que os próprios dirigentes e as pessoas melhor posicionadas utilizam a mesma linguagem vitimária face ao crime, face às pressões económicas, políticas e sociais, despindo-se da ideia de responsabilidade. Com o sentimento de vitimização instala-se e enraiza-se a debilidade de imaginação e a ausência de criatividade, o que leva ao constante apelo à “ajuda” do Governo, à exibição da musculatura brutal do crime e à corrupção generalizada na sociedade, como formas “fáceis” e, por isso mesmo, desumanas de satisfazer a dureza da vida.

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BIBLIOGRAFIA BUSSOTTI, L. e NGOENHA, S. (a cura). O pós colonialismo na África lusófona – o Moçambique contemporâneo, L’Harmattan Italia srl, Genova 2006. CASTIANO, José P. Referenciais da filosofia Africana – em busca da intersubjectivação. 1ª ed. Maputo, Sociedade Editorial Ndjira, 2010. GRONEMEYER, Reimer. Der faule Neger – vom weißen Kreuzzug gegen den schwarzen Müßiggang. Reinbek bei Hamburg, Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH, 1991. MORIN/PRIGONINE (otg.). A sociedade em busca de valores. Lisboa, Instituto Piaget, 1998. WEBER, Max. Ética protestante e o espírito do capitalismo. 6ª ed. Lisboa, Editorial Presença, 2005.

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EDUCAÇÃO E ENSINO DE FILOSOFIA EM ANGOLA: DESAFIOS, OPORTUNIDADES E PERSPECTIVAS Angelino Jones43 Com o presente artigo, pretendemos fazer uma análise histórica da educação e ensino de filosofia em angola. Apontando para a necessidade de redifinição da missão da filosofia e da necessidade da educação e ensino de filosofia neste país.

Palavras-Chave: Ensino de Filosofia, Angola INTRODUÇÃO Devo, antes de mais, louvar a iniciativa deste Congresso e a agradecer o convite e a oportunidade ímpar de ser um dos participantes e oradores . A minha intervenção é uma tentativa, no sentido de obedecer ao espírito e intenção do tema que me foi proposto, de algum modo sugestivo, pois, dá-me a possibilidade de partilhar algo da nossa Pátria angolana e também ouvir outras experiências, sobretudo ao nível da Lusoafricanidade, dentro do grande projecto de a África não ter receios de ser ela própria, sem exclusões, ou seja, de se redefinir neste mundo de desigualdades, desafios e desequilíbrios éticos, socioeconómicos e políticos. A Filosofia, sendo uma actividade humana, pode sofrer derrotas. Nisto é importante que aquele que se assume como filósofo tomar consciência não só da sua aparente insignificância, mas também e sobretudo perceber a indispensabilidade da sua missão como um dos que participa da tarefa de ir rebuscando, sempre e cada vez mais, a razão fundamental da existência de tudo e de todos. Por isso, hoje como hoje, a filosofia é para homens e mulheres cheios de esperança e de dinamismo para ocasionar um mundo cheio de aventuras cuja realização não está longe de ser efectiva, dependendo também da insistência, persistência e coragem daqueles que não cessam de propor um mundo mais humano e feliz. Entre eles estão os filósofos.

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na Universidade Agostinho Neto, Angola

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Redefinição da Missão da Filosofia No entender de Dewey a Filosofia tem uma missão crítica em relação aos valores na existência humana e no cosmos abrangente. A Filosofia é “crítica das crenças, das Instituições, dos costumes, das políticas, no que se refere ao seu alcance sobre os bens”. ( DEWEY. Experience and Nature. P. 407) A filosofia, hoje como hoje, não podemos entende-la, apenas como revelação ou até mesmo posse do saber; além disso, é ainda busca e actividade da aquisição de bens espirituais e materiais para a felicidade e sentido de vida da humanidade, em todo o universo, como em cada continente e nas respectivas sociedades e Países. Sendo assim, a Filosofia tem a missão e a tarefa , na sua busca e organização do saber crítico e criativo, de mudar e transformar o mundo no sentido de torná-lo em casa de humanização e dignificação de todos os seres. Fazendo uso das visões de Wittgenstein e de Marx, a Filosofia está além de ser apenas uma doutrina e não tem apenas a missão ou tarefa de interpretar o mundo; é uma actividade e também tem a missão de transformar o homem e o seu “oikos”, a sua casa, o seu habitat. O filósofo é como que o guardião da racionalidade crítica, por isso, pelo seu crivo racional deve pensar todas as dimensões antropológicas e cósmicas para salvaguardar o universo e garantir a esperança na existência de todos os seres cujo primeiro e maior porta - voz é o ser humano. Por conseguinte, não encontram espaço nesta visão as culturas do fim que também sustentavam e ainda sustentam a eminente morte da Filosofia ou fim da sua missão neste mundo, nas Sociedades Lusófonas ou outras. Pois, a Filosofia está intimamente ligada à pessoa humana na sua busca do sentido da vida e da sua existência e de tudo. Neste mundo feito de pluralidades de discursos humanos, ou seja, no mundo multiétnico é e continua a ser urgente propor a Filosofia com um estatuto epistemológico sempre actual e actuante. A Filosofia tem uma palavra indispensável neste mundo de altas tecnologias, de democracias emergentes e tradicionais com desafios culturais, políticos, sociais, bioéticos e ecológicos. A Filosofia se identifica com o saber que não se distancia do homem de ontem, de hoje e de sempre em busca da sua realização ou felicidade.

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Urgência e Necessidade da Educação e Ensino da Filosofia Partimos do pressuposto e da verdade incontornável da história de Angola, um País que está a emergir depois de um conflito bélico interno que deixou mágoas e fissuras profundas na consciências dos seus filhos e filhas e não só, mais também em amigos e seus admiradores. A educação e o ensino podem ser um dos meios indispensáveis para o combate de contravalores e propostas existênciais desumanizantes no sentido de implementar modos de vida a estilo do pluralismo existencial onde a dignidade e a dimensão do outro ou outra diferente de mim é uma exigência incontornável e uma implicação para a coexistência e a convivência pacífica mas dinâmica e criativa. Neste âmbito e clima sociais a Filosofia tem, efectivamente, uma missão insubstituível: formar mentes críticas, criativas e criadoras para um desenvolvimento humano e cósmico integral e integrante. A educação que consiste na formação do indivíduo no sentido de alcançar um amadurecimento pessoal até à sua forma completa para a actualização das suas potencialidades e capacidades não pode prescindir da missão própria da Filosofia. A educação como processo de humanizaçaõ é permanente e implica aprender a ser, aprender a fazer, aprender a estar, enfim, aprender a coexistir. Tal empreendimento envolve o indivíduo e as instituições. Nesta empresa de tornar o homem e a mulher cada vez mais perfeitos segundo a estatura ideal, a Filosofia não pode ocupar o espaço ou o lugar do apêndice, deve, pois, ser uma das exigências inadiáveis. Embora, em muitos dos nossos Países da lusofonia, existam crianças e adultos que não estejam a usufruir deste direito fundamental, tendo em conta a ligação hoje intima entre educação e democracia e considerando que o cogito democrático é : participo logo existo, não seria humano privar alguns membros das nossas sociedades da oportunidade de aprender a julgar, analisar, criticar e criar que a Filosofia oferece a quem a assume como tarefa indispensável. A Filosofia deve ser uma disciplina omnipresente em todos os cursos, mormente a partir do pré – universitário até á Universidade. Se a Educação e o Ensino devem respeitar os homens e mulheres na sua dignidade universal e na sua especificidade individual, é necessário condicionar estes actores sociais com instrumentos adequados para a sua participação frutuosa no dever de gerir a coexistência e gerar novos modos de vida e aperfeiçoar os já existentes.

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A Filosofia é um subsídio essencial na remoção de obstáculos que impedem o desenvolvimento e promoção das potencialidades próprias de cada pessoa. (cfr. ABBAGNANO, 2007: 358) O Ensino da Filosofia, assim, torna-se de capital importância e de obrigatoriedade recomendável para garantir uma cidadania participativa e responsável numa sociedade democrática dentro do conjunto das novas exigências de coexistência neste mundo multiétnico, daí o promover também um tipo de educação que tenha em conta a realidade dos nossos Países e Continentes. As Instituições de Ensino em Angola

e a Presença da Filosofia

Neste instante desejamos apresentar muito rapidamente o panorama ou uma espécie de mapa filosófico em Angola desde o período pós – colonial até hoje nos nossos dias. A seguir à Independência Depois da Independência conquistada em 1975, surgiu a reforma educacional à luz da ideologia marxista – leninista nos níveis do Ensino de Base, do Ensino Secundário e Médio. Surgiram novos Manuais de Todas as Disciplinas, suprimiu-se a disciplina de Religião e Moral e foi introduzida a disciplina de Ciências Sociais e a de História segundo a nova visão política. Foi criada a Universidade Agostinho Neto (UAN) e nela O Instituto Superior das Ciências de Educação – ISCED, no Lubango e Luanda. Neste Instituto que nasceu com a intenção de formar professores de diversas disciplinas ligadas às ciências biofísicas ( Exactas), humanas e de educação, havia, entretanto, o Departamento de Ciências Sociais onde a Filosofia como um dos cursos ocupava uma Repartição. A Filosofia, nesta altura era toda de pendor ideológico materialista e marxista, com um cariz ateísta acentuado. Concomitantemente, estavam os Seminários Maiores no Huambo ( centro do País) - Seminário Maior de Cristo Rei e em Luanda, a capital do País, com os Cursos Superiores de Filosofia e Teologia ; mais tarde , no Uige, Benguela, Lubango e Cabinda, apenas com o curso Superior de Filosofia. Nestas Instituições Eclesiásticas a Filosofia era dada , com um pendor de investigação exigente e abrangente, na linha da tradição aristotélico – tomista. Os Seminários eram como que a reserva da Religião e lugares da promoção da proposta contra o ateísmo. Novembro de 2012

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Fim do Sistema de Partido Único Em 1992 sucedem as primeiras eleições com o surgimento do sistema democrático e do multipartidarismo. Numa primeira fase dão-se os primeiros passos de querer ver o País com múltiplas sensibilidades não só no âmbito político mas também no social, religioso e económico. Foi a Época do aparecimento de partidos políticos, ONGs, Igrejas e seitas religiosas, como cogumelos. Abrem-se as portas para o surgimento de Instituições de ensino privadas em todos os níveis. Começam a surgir Colégios Privados e Universidades também privadas. A Filosofia ganha espaço com alguns sinais de reforma no Ensino e na educação do País. A moralização e a recuperação de valores perdidos durante a guerra é preocupação do governo e de toda a sociedade civil ( Igrejas, ONGs…). A Filosofia é integrada como uma das disciplinas chaves nos Institutos Médios e Profissionais, como o Instituto Normal de Educação ( INE) para a formação de Professores; o Instituto de Ciências Religiosas de Angola ( ICRA) para a formação de Professores de Educação Moral e Cívica e o PUNIV – Pré Universitário. Os Seminários Maiores com o Curso de Filosofia continuam o seu ritmo anterior ; e no ISCED o Curso de Filosofia vai tendo algumas reformas, sobretudo em termos de curriculum e perspectiva. A Filosofia deixa de se confundir com o Marxismo – Leninismo. Esta é, pois, a fase de Instituições Privadas do Ensino Médio e Superior, pelo País. Inclusão da Disciplina de Educação Moral e Cívica, revitalização da disciplina de Filosofia no Ensino Médio e revisão e actualização do curso de Filosofia no ISCED e sua autonomia em relação à Ideologia Marxista - Leninista. Se bem que, a Filosofia fica a ser vista sobretudo ao serviço da restauração moral da sociedade emergente da guerra, fica encurralada nos procedimentos e técnicas pedagógicas e didácticas: ensina-se filosofia para dar aula de filosofia e não para saber filosofar. Nesta altura no Curso de Filosofia dado nas Instituições Católicas suprime-se a cadeira de Marxismo e incluem-se outras como Filosofia Política, Didáctica e Pedagogia Geral. Também se dá início às políticas de equivalência aos estudos feitos nestas Instituições de Formação Eeclesiástica.

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Fim da Guerra em 2002 até Hoje O fim da guerra e do conflito civil em Angola deu-se com o protocolo do Lwena, em 2002. O país dá um pulo para novos desafios e novas maneiras de vida em sociedade; a liberdade de expressão e, consequentemente, de pensamento, embora com alguma timidez e receios, são um facto e exigência do momento. A educação e o ensino vão tendo um rosto democrático em que a concorrência e o liberalismo condicionado pela burocracia são uma tónica visível e marcante. A sede do lucro somada à necessidade da formação e educação das novas gerações, nos novos modelos de coexistência, para a sua realização no País mais aberto, ocasionam a multiplicação e multiplicidade de Colégios, a expansão e criação de Universidades Públicas e Privadas pelo território angolano todo; Criam-se as Universidades Públicas: 11 de Novembro em Cabinda, a das Lundas no Leste, a Eduardo dos Santos no Huambo, a Katyavala, em Benguela e a Mandume no Lubango; além da Agostinho Neto que existe há mais de trinta anos. As Universidades Privadas antes localizadas apenas em Luanda vão se expandindo pelo norte, centro e sul do país montando espécies de sucursais académicas. No ambiente eclesiástico surgiram: a Universidade Católica ( UCAN), em Luanda, a Universidade Metodista ( Luanda), o Instituto Superior de Teologia da União das Igrejas Evangélicas de Angola, no Lubango, Instituto Superior João Paulo II e o Instituto Superior dos Missionários Salesianos, todos em Luanda. No nível médio, as Escolas do Ensino Médio transformaram-se em Escolas Profissionais, Escolas do Ensino Secundário do II Ciclo ou Pré – Universitário – PUNIV. O Instituto de Ciências Religiosas de Angola, ( Católico), estendeu-se por quase todas as Arquidioceses e Dioceses e foram criados Colégios Evangélicos em algumas capitais de província, por exemplo no Lubango, antiga cidade de Sá da Bandeira, a capital da província da Huila, no sul de Angola., aconteceu, certamente, o mesmo no centro e norte do País. Oportunidades, Desafios e Perspectivas Fazendo um tipo de observatório social das Instituições do Ensino Profissional, Ensino secundário e pré – universitário e as do Ensino Superior ( Universidades e Institutos Superiores) e tendo a Filosofia sua educação e Ensino como a variável central, podemos apresentar, rapidamente, o seguinte resultado: Novembro de 2012

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1 - A disciplina de Filosofia é omnipresente nas actuais Instituições do Ensino Médio; 2 - Pela influência e carga da tónica política e social do projecto da restauração moral da sociedade angolana, a cadeira ou disciplina de filosofia é dada e administrada numa perspectiva ética, ou seja, o seu programa e programas insistem em Autores e filósofos que sobressaíram na visão e dimensão ética do homem e da vida em sociedade. 3 - Em nenhuma Universidade Pública ou Privada figura a Faculdade de Filosofia ou ao menos um Departamento de Filosofia. 4 - Naquelas em que aparece o Curso de Filosofia, ela ocupa uma Repartição dependente do Departamento de Ciências Sociais; 5 - O Curso de Filosofia é dado ao serviço dos procedimentos e técnicas pedagógicas e didácticas; ou seja, ensina-se Filosofia para formar professores de Filosofia, de Educação Moral e Cívica e até de Língua Portuguesa. 6 - As Instituições Eclesiásticas, mormente as católicas, sofreram e vão sofrendo reformas para garantir o seu reconhecimento diante e pelo Governo; 7 - Entretanto, estas mesmas Instituições vão perdendo a sua identidade e especificidade, por exemplo, caso se implemente, o projecto do Sexénio, a Formação Superior para o Sacerdócio em seis anos, ( 5 mais 1) o Curso de Filosofia vai ficar diluído no de Teologia. É mais um empobrecimento científico e institucional. A grande oportunidade para a Filosofia em Angola é que se reconhece a sua missão; se bem que no sentido muito restrito e, quiçá, unilateral. Insiste –se e se sobrevaloriza o filósofo como docente. Isto é importante. Entretanto aqui radica um grande desafio e surgem perspectivas a indicar , apontar, sublinhar e salientar: 1 - Estando a Filosofia nas amarras pedagógicas e encurralada nas técnicas didácticas ganha-se pouco na sua dimensão crítica e criativa; ou seja o professor de Filosofia formado nos Institutos Superiores de Educação, dito com franqueza, não é aquele cidadão que se habitua a pensar e a investir-se nesta arte de bem pensar e fazer pensar e assumir isto como sua missão e serviço na e a favor da sociedade na sua pluralidade. 2 - É necessário formar filósofos e não apenas docentes de Filosofia ou de Educação Moral e Cívica, portanto, apenas funcionários, e não tanto cultores do pensamento. 86

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3 - O empobrecimento institucional pode reflectir o consequente empobrecimento do pensamento filosófico e a cultura de criar mentes libertas de preconceitos e obstáculos em prol do desenvolvimento integral e integrante. 4 - Desafiante é a missão de formar quadros (em Instituições próprias - Faculdades…) com uma mente cimentada no labor da busca do saber humano abrangente, crítico e criativo que pode constituir uma alternativa fecunda para um País mais solidário, aberto e desenvolvido , capaz e com possibilidades de se definir no mundo e em África nos níveis político, económico, tecnológico e científico.

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FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA DA TÉCNICA : ELEMENTOS DE CRÍTICA DA TOMADA PARADIGMÁTICA DAS TIC PARA O DESENVOLVIMENTO Rufino Filipe Adriano44

O Objectivo desta nossa abordagem é o de compreender o desenvolvimento das capacidades técnicas do ser humano. Para tal partiremos da perspectiva filogenética do conhecimento e que explica a evolução das capacidades cognitivas e ressaltaremos a importância do desenvolvimento paralelo do aspecto técnico.

Palavras-Chave: capacidades cognitivas e capacidades técnicas INTRODUÇÃO A Filosofia é, desde o início, uma postura sui generis diante da realidade, uma maneira específica de compreender o real : e a atitude filosófica é aquela de insatisfação diante dos dados presentes, fazendo com que a procura constante para desvendar o que nos rodeia seja a característica mais notável da própria Filosofia. Ora, este inconformismo intelectual, que anima todo o perscurso da evolução do pensamento, incialmente ancorado na procura de meios para que o homem podesse fazer face ao seu meio, para que ele podesse enfrentar o meio enquanto ser vivo, caracteriza desde sempre a natureza humana. Com efeito, diversos estudos, com destaque para a perspectiva filogenética do conhecimento, têm sido avançados para explicar que a evolução da nossa constituição morfológica e funcional é concumitante ao desenvolvimento das nossas capacidades cognitivas (memória, linguagem e pensamento) de tal forma que, só assim, é possível compreender o desenvolvimento das nossas capacidades técnicas. Compreendida nesta perspectiva, a técnica é, até certo ponto, um elemento integrante da somaticidade do próprio homem, no sentido que o fazer entra numa cumplicidade existencial com o acto de conhecer e, mais extensivamente, com o próprio ser do homem. 44 Doutor

em Filosofia (França); docente de Filosofia do Direito e Filosofia da Linguagem no Departamento de Filosofia na Universidade Pedagógica de Moçambique

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Enquadramento histórico desta « cumplicidade » No seu livro, ‘’cultures et techniques’’, o filósofo comoriano Abdalah Nouroudine sublinha que se existe uma ideia que cria uninimidade na questao das técnicas, tal tem a ver com a afirmação da sua anteiroridade cronologica em relação à ciência. Mas, como consequência, « uma vez que não é da ciência que a técnica recebe as regras que ela mesma segue, e dado que estas regras não lhe caem do céu, devemos admitir uma origem autónoma da técnica, portanto, a existência dum pensamento técnico, pensamento prático, essencialmente diferente do pensamento teórico da ciência » (Nouroudine, 2001:167). Contudo, a atenção para com o pensamento técnico não é uma constante nos debates epistemológicos, sobretudo nos da tradição anglosaxónica que vêm a Epistemologia como uma simples réplica da Teoria do Conhecimento. Ousamos, por isso, afirmar que, historicamente, é a tradição francófona que se preocupará mais com uma espécie de pragmática científica, pelo menos a avaliar pelas obras como La Science et l’hypothèse de H. Poincaré que defende, entre outros aspectos, que a ‘‘demonstração’’ de Leibniz, na prática, é uma verificação, onde nos limitamos a aproximar uma definição à outra, de forma puramente convencional, constatando sua identidade, sem, contudo, aprendermos nada de novo. Igualmente, em La formation de l’esprit scientifique, G.Bachelard defende, entre outros aspectos, que a ciência, sendo um misto indissociável de teorias e observações, passámos duma fase, em que a maior parte dos fenômenos (dados científicos) longe de serem naturalmente dados ao observador, são artificialmente construídos em laboratórios. Para tanto, a obra Philosophie des Sciences, Philosophie des Techniques de Gilbert Hortois, membro do ‘’Collège de France’’ vem restabelecer uma espécie de justiça conceptual à noção de ‘’tecnocience’’, uma noção propícia para designar a ciência contemporânea. Mas Hortois lega-nos uma inquietação desafiante nesta problemática : « por um lado, o essencial da filosofia da técnica é desenvolvido diante da indiferença ou ignorância dos filósofos das ciências ; por outro, a ausência de comunicação entre os filósofos das ciências e os das técnicas é um tema raramente analisado pelos filósofos » (Hortois, 2004 : 13). Não é nossa intenção, nem nos compete avançarmos aqui as possíveis consequências dessas dissociações ; mas, recorrendo ao tema deste artigo, devemos sublinhar que toda a problemática ligada, por um lado, à compreensão da técnica no seu estado perfeccionado (tecnologia) e, por outro, à aplicação da mesma, para os diversos sectores da vida social, exige uma clarificação especificamente filosófica. E esta Novembro de 2012

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constatação é, de alguma forma dialéctica, no sentido que a Filosofia não pode se excluir duma tal missão que nos introduz aos problemas verdadeiramente humanos, implicando necessariamente, como referimos anteriormente, o acto de fazer e o de conhecer. Exigência para com « as técnicas» Dos debates conceptuais entre « a técnica » e « as técnicas », « o universal » e « o particular », « o global » e « o local », esconde-se um compromisso filosófico que não se limita apenas a reivindicar um posicionamento, mas obriga a um engajamento, se é verdade que a Filosofia pode. No seu livro intitulado Le Paradigme Ergologique ou un métier du Philosophe, Y. Schwartz trata estas ambivalências sugerindo que, o Filósofo deve ser vigilante para descobrir as lógicas escondidas na singularidade dos povos, nesta universalidade humana. E a técnica pode ser uma das ‘‘entradas’’ para tal confrontação. A técnica está ligada ao que Schwartz chama actividade industriosa do homem. E, como tal, ela é extensiva a todos os homens. Na noção de actividade industriosa, portanto, deve ser universalizada a ideia da impossibilidade da antecipação da actividade humana, sendo, por isso, sempre, um acontecimento do « aqui e agora » (esse « hic et nunc » que somente encontra sentido numa consideração historicista). Neste sentido, segundo Schwartz, tal processo que ele donomina ‘’démarche ergoligique’’ implica necessariamente a Filosofia que, historicamente, depois de F.Nietzsche, deixou de ser uma reflexão sobre o homem para passar a ser uma reflexão sobre os homens, isto é, historicamente localizados e em circustâncias evidentemente heterogêneas. Com efeito, os escritos de Schwartz orientam-se na perspectiva duma fundamentação filosófica da actividade humana e os aspectos da « técnica », « trabalho » são recorrentes ; numa clara demonstração de que o filófoso também deve se comprometer com os problemas do seu meio. Aliás, a lição nos vem de Sócrates que, nas suas frequentes visitas aos artesãos (com o intuíto de saber se eles eram mais sábios que ele) acabou por se espantar pelo número de saberes que ele mesmo (Sócrates) ignorava, tendo lhes conferido, então, o título de sábios. Paralelamente, sob um prisma evidentemente ‘‘novo’’, o filósofo de hoje é, igualmente, convidado a fazer um semelhante exercício.

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Não se trata aqui de levantar apenas o velho antagonismo entre a epistemé e a tecné, mas, igualmente, de lhes questionar os limites, à semelhança do criticismo kantiano que se dá a missão de problematizar a ciência (Wagner, 2002: 349ss) e assim supera o antagonismo entre o empirismo e o racionalismo e, apelidando de transcendental toda a sua filosofia culmina conferindo lugar aos conhecimentos da Matemática, da Física (respectivamente, Estética e Analítica transcendentais) e da Metafísica (Dialéctica transcendental). Dos modelos das técnicas versus modelos de desenvolvimento A análise que estamos a fazer, presentemente, apoia-se na nossa tese de doutoramento em Filosofia intitulada ‘’cultures et technologies de l’information et de la communication (quelle approche au paradigme du développement) – réfléxion à partir du cas mozambicain’’, a ser defendida até 15 de Fevereiro de 2011. Se tivéssemos que detalhar todos os elementos de crítica da tomada paradigmática das TIC para o desenvolvimento, seríamos obrigados a ler toda a tese. Mas, partindo do princípio que a questão essencial na presente intervenção é a fundamentação filosófica do pensamento técnico, julgamos ter demonstrado que os elementos de crítica da tomada paradigmática das TIC para o desenvolvimento na complexidade mesma das técnicas, na sua consideração universal é singular. As « técnicas » como maneiras de fazer, são singualres. Mas como elevar essas sigularidades à uma dimensão universal ? Com que legitimidades certas ‘’tecnicas singulares’’ se impoem no universal ? Estamos conscientes dos cortes que estamos a fazer na problemática, mas não podemos proceder doutra forma, por enquanto. Contudo, a questão que cria um verdadeiro inconforto intelectual acaba, aqui, tendo raízes na História, o problema dos modelos de « técnicas » e de « desenvolvimento » não pode ser analisado longe desse referencial. Enquanto filósofos, e se acreditamos que a Filosofia pode, devemos nos questionar e logo responder (e, no limite, apontar pistas de resposta) sobre como fazemos uma « seleccão axiológica… para a elevação da nossa diferença » (Ngoenha, 1992 : 21) que nos falta. Na tese que referimos acima, clarificamos que a adopção de modelos de « desenvolvimento » (limitados na maioria na questão económica), que não o ligam necessariamente como um processo de transformação, favorece a que se descartem Novembro de 2012

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as experiências singulares, únicas e muitas vezes escondidas, que as pessoas experimentam para fazer face às exigências dos seus meios. Por foça da consideração paradigmática das TIC para o desenvolvimento, nem a « informação », nem a « tecnologia », nem a « comunicação », nem mesmo o próprio conceito de « desenvolvimento » têm merecido devida hermenêutica nas suas aplicações extensivas nas culturas. Mais uma vez, o desafio coloca-se aqui de forma mais marcante para o filósofo que quer ancorar seu pensamento no seu próprio real, ou seja, nas suas próprias circunstâncias, para parafrasear O.Casset. CONCLUSÃO Todos os argumentos, para elevar o pensamento técnino, apoiam-se, no nosso ponto de vista, na necessidade duma nova postura filosófica não reducionista e na visão da Filosofia como ‘‘métier’’ (ofício) que, como tal, não se limita a expeculações, mas exige sobretudo engajamento. O compromisso para com as singularidas, nesta óptica, é um meio pelo qual é possível emancipar as minorias e, por consequência, procurar formar para a legitimação do seu pensamento no universal. Nesta óptica, as « técnicas » ou « tecnologias », quaisquer que sejam, não são universais em si, ou em virtude de sua proveniência geográfica ; mas elas são universalisáveis em virtude de serem um instrumento partilhável em os homens. Evidentemente, tudo isto depende dos compromissos para com as pessoas, e das pessoas, nos quais o Filósofo não é único interveniente ; mas mesmo assim deve demonstrar as directrizes pelo simples facto de ser ele, o mais privilegiado em ter o humano como ofício.

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BIBLIOGRAFIA ADRIANO, Rufino. ; « A Ergologia como suporte de pesquisa », in COGITO, ISSN : 2218-8320, CI-USTM/2001. BACHELARD, Gaston. ; La philosophie du non, éd. Presses Universitaires de France, Paris, 1940. NOUROUDINE, A. ; Techniques et cultures – Comment s'approprie-t-on des technologies transférées ?, OCTARÈS Éditions (2è), Toulouse, France, 2001. NGOENHA, Severino Elias. ; Por uma dimensão Moçambicana da Consciência histórica, Ed. Salesianas, Porto, 1992. HOTTOIS, Gilbert. ; Philosophie des Sciences, Philosophie des Techniques, Ed. Odile Jacob, Paris, 2004. SCHWARTZ, Yves. ; « Alain Wisner et lºAnthropotechnologie : universalite humaine et singularite des peuples », DEA, 2004. SCHWARTZ, Yves.; Travail et Philosophie, Convocations mutuelles, Octares Editions, Toulouse, 19992. SCHWARTZ, Yves. ; Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe, Octares Editions, 2000. SÉRIS, Jean-Pierre.; Machine et communication, éd. Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1987. WAGNER, P., 2002, Les Philosophes et la Science, Ed. Gallimard, Paris. VATIN, François., Le travail – Economie et physique, éd. Presses Universitaires de France, Paris, 1993.

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FILOSOFIA AFRICANA NOS PAÍSES LUSÓFONOS: O CASO DE MOÇAMBIQUE (PROBLEMAS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS)45 Gerson Geraldo Machevo46

Com o presente texto pretendemos analisar de uma forma analítica-descritiva os elementos que envolvem a reflexão da filosofia africana em Moçambique. A questão é quais os desafioa da filosofia africana em Moçambique. Palavras – Chave: Filosofia Africana, Moçambique INTRODUÇÃO A Filosofia Africana tem sido o campo de debate na Academia Africana nas últimas seis décadas ([se contarmos a partir de 1953])principalmente a questão da sua [in]existência?!) e actualmente o ímpeto das produções literárias tem sido espantosa. Inicialmente tivemos uma produção muito elevada de obras de filosofia nos países francófonos através das respostas que os pensadores africanos deram a obra La Philosophie Bantoue do padre belga Placide Tempels e posteriormente nos países anglófonos seguiu-se uma reacção a obra African Philosophy and religion do Pastor queniano John S. Mbiti que acabaram juntamente com outras obras47 se tornando em clássicos de filosofia africana. E de seguida surgiram correntes e escolas que pretendiam re-interpretar ou criticar as obras que procederam ao grande movimento do surgimento e questionamento de filosofia africana. Este período de questionamento das obras envolveu antropólogos, políticos, geógrafos, filósofos e artistas que pretendiam perceber o âmago da ontologia africana apresentada pelos autores considerados clássicos. Essas tendências de crítica através do antagonismo entre as filosofias ocidental e 45 Estas reflexões estão expostas na tese de Doutoramento e também na comunicação recentemente apresentada na Universidade

Estadual do Rio de Janeiro, por ocasião do V Colóquio Internacional de Filosofia da Educação. Rio de Janeiro, UERJ, de 7 a 10 de Setembro de 2010. 46 Licenciado em Filosofia e mestrando em Educação/Ensino de Filosofia na Univcersidade Pedagógica de Moçambique, e gestor do blogspot , considerado um pólo de reflexão sobre a filosofia em Moçambique. 47 Outras obras consideradas clássicas incluem as obras de: 1_ Kagame, A. 1956. La Philosophie Bantu-Rwandaise de I'Etre. Brussels: Academie Royale des Sciences Coloniales.; 2_ Griaule, M. 1948. Dieu d'Eau. Entretiens avec Ogotommeli. Paris: Chine.3_ Diop, C. A. 1954. Nations Négres et Culture. Paris: Presence Africaine; Fouda, B. J. 1967. La Philosophie Africaine de l'Existence. Ph.D. dissertation. Lille: Faculte des Lettres; 4_ Bimwenyi, 0. 1980. Discours Théologique Africain. Paris: Presence Africaine; 5_ Lufuluabo, F. M. 1964a. Orientation préchrétienne de la Conception Bantoue de I'Etre. Leopoldville (Kinshasa), e Hountondji African Philosophy: Myth and Reality.

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africana caracterizam nos anos 80 a maior parte das obras dos estudiosos da área. Sempre num movimento de ciclo vicioso de questionamento da própria filosofia africana. As vertentes defendidas pelos pensadores como Dieng, Diop, Wiredu, Oruka, Ikpe, Diagne, Sumner. Gyekye, Wahba, Serequeberhan marcaram de certa forma uma oportunidade de relocação do debate no sentido de poder abandonar a perspectiva de auto-questionamento e direccionar-se ao enquadramento da filosofia africana no universo da filosofia mundial partindo de questionamento da própria metafísica, Antropologia, ética e epistemologias Africanas (sejam Akan, Dogon, Zulu, Changane, Luba, Yoruba, Shona, etc.). Estas mudanças levaram as categorizações da Filosofia Africana de acordo com as sua fronteiras coloniais sendo então claramente diferenciadas em Francófonas e Anglófonas. Estas diferenciações não absteram-se de abandonar problemáticas ligadas ao questionamento das tradições, modelos políticos, sistemas de valores, produção de conhecimento e sua validação e reinterpretação dos “clássicos”. E as pesquisas sobre o pensamento africano (African Thought/Pensée Africaine), Sistemas de Pensamento Africano (Framework of African Thought/Systéme du Pensée Africaine) etc.; têm sido enquadradas nas faculdades de antropologia, Estudos Africanos e até de Filosofia. O que de certa forma motiva o espírito de pesquisa que se pretende em relação á máteria em estudo e permitiu que muitos filósofos africanos pudessem partilhar os seus conhecimentos em grandes universidades européias e americanas48. A massiva publicação de artigos em Filosofia Africana em inglês e em francês por autores ocidentais49 representa quão aceitável a disciplina se tem tornado no seio académico apesar dos prós-e-contras e alguma resistência em mantê-la no departamento de literaturas ou de estudos africanos ou de antropologia. Notamos claramente que este desafio de enquadramento da disciplina corresponde ao próprio combate pelo sentido que a própria disciplina tem no seio de outras e da necessidade social que a própria disciplina possui. Apesar do próprio legado inquiridor da disciplina ser considerado importante para assumir a própria validade da mesma nas universidades (WIREDU, 2004:11). A UNESCO criou um departamento específico

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Temos o caso de V.Y. Mudimbe que partilha seus estudos na Universidade de Princeton e na Universidade de Louvain na Bélgica, Hountoundji na Sorbonne e na Harvard, Olufemi Taiwo na Seattle University; Kwasi Wiredu na universidade de South Florida. Etc. 49 Gerd-Rüdiger Hoffmann, Nicolas de Warren, Willy Hochkeppels, Bruce Janz, Anke Graneß, Christian Neugebauer, Pieter Boele van Hensbroek, Lucius T. Outlaw Jr., Molefi Keti Asante, Barry Hallen, etc. (englobam um universo de pensadores nãoafricanos que combatem pela disciplina de filosofia Africana nas universidades ocidentais).

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de filosofia, democracia e segurança humana dirigido pela Dra. Moufida Goucha sob o apoio de Pierre Sané a fim de poder preservar a disciplina e evitar o seu extermínio na academia, promovendo movimentos saudáveis como os café du philosophe e Philosophy with Children, walking with philosophers e o mundialmente conhecido World Philosophy Day (Dia Mundial da Filosofia). E razoavelmente possui algumas publicações centralizadas no Ensino de Filosofia em África50 com principal ênfase nas regiões anglófonas e francófonas. Em relação aos países lusófonos e o seu envolvimento na área de filosofia africana nota-se que poucas evidências podem sustentar claramente o seu contributo no seio da pesquisa. Apesar da Lusofonia ter uma tradição filosófica clara que remota de Antero de Quental em Portugal à Caio Prado Jr. No Brasil e as actuais tendências presentes nas diferentes escolas de actuação. A inexistência de correntes lusófonas nos CPLP herdeiras da colónia demonstra claramente que a influência da lusofonia na área da filosofia foi reduzida em relação á outras ciências sociais e humanas como a Sociologia, Antropologia e História. Talvez tal situação deva-se ao facto de principalmente nos países afro-lusófonos a tendência tenha sido de desenvolver aspectos científicos ligados à pesquisa da sociedade, do passado e validação de sistemas políticos sem a necessidade de um questionamento aprofundado dos motivos, ambições e sistemas de valores existentes por detrás das escolhas sociais e políticas. Houve pouca comunicação e transmissão de experiência entre as correntes da colónia e os herdeiros da mesma. Se fizermos uma análise conjunta sobre os movimentos filosóficos em países como Angola, Moçambique, Cabo-Verde, Guiné Bissau51 e São Tomé e Príncipe, notamos que há uma notável ausência de escolas e correntes filosóficas provavelmente devido a falta de comunicação entre o centro e a periferia, ou seja promoção de um espírito crítico pró-contra colonialismo ou em relação às teorias apresentadas aquando do aprendizado filosófico. Por outro lado, a aprendizagem da filosofia teria que ter uma 50

HOUNTONDJI P. (Coor.), Teaching Research in Philosophy: Africa, France: UNESCO, 1984. e UNESCO, Teaching Philosophy in Africa: Anglophone Countries, France: UNESCO, 2009; UNESCO, La Philosophie, une École de la Liberté. Enseignement de la philosophie et apprentissage du philosopher : État des lieux et regards pour l’avenir,1ed.:UNESCO, 2007 e UNESCO, Intersectoral Strategy on Philosophy, 1ed.: Paris, UNESCO, 2006. 51 É interessante o exemplo de guiné-bissau onde os estudos filósoficos de certa forma foram encarrados ligados ao estudo histórico-linguístico, como é o caso de estudos de B. Pinto Bull, O crioulo da Guiné-Bissau : Filosofia e sabedoria(1989) e o texto de Filomena Embaló O crioulo de Guiné-Bissau:Língua Nacional e Factor de Identidade Nacional, Papia 18, 2008,p.101107. E os estudos feitos por J. Augel, O crioulo da Guiné-Bissau in . Por outro lado, temos o caso do filósofo guineense Filomeno Lopes que reside em Roma que percorre o país anualmente para falar sobre as problemáticas sociais de uma forma lúdica ou filodramática (teatro música, contos ao redor da lareira, etc.) envolvendo a socidade civil, políticos, a igreja e militares. O autor considera que é profundamente importante a construção da crítica e da reflexão para além do espírito do povo. Como ele afirmou na sua entrevista ao e-journal Carta Maior

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relação de dependência com religião, por ser considerada como propedêutica ou auxiliar as outras disciplinas teológicas, sem deixar de lado o facto da disciplina existir em alguns liceus da época mas apenas com cunho pedagógico. A Filosofia não foi encarada como um modus vivendi mas apenas com syllabus, ou seja aprendiam os conteúdos programáticos ligados com a disciplina sem qualquer ligação com o espírito inquiridor e participativo da vida social. Essa ausência de transmissão da co-participação na reflexão, no sentido contributivo, impediu com que muitos estados herdeiros da colónia criassem um sentido de aversão e abandono do espiríto questionador, especulativo e reflexivo. Por outras palavras, desvirtuou-se o espírito crítico em prol de um espírito meramente receptor. Esse abandono da reflexão contribuiu para a não-divulgação da filosofia e diabolização dos filósofos num crepúsculo de ídolos. Quem era considerado filósofo era o louco, o padre ou o político, deixando-se de lado o facto de que o filósofo podia ser puramente filósofo. Esperamos explorar mais este aspecto um pouco mais avante no texto para recaracterizarmos o filósofo lusófono. Existem aspectos que foram negligenciados na história dos herdeiros da colónia, que posteriormente afectaram as percepções e crenças em relação á disciplina. Por isso, considero que as razões principais para a fraca promoção do conhecimento filosófico nas ex-colónias lusófonas deve-se a: 1) Fraca disseminação do papel da filosofia; 2) Ausência de envolvimento dos filósofos na vida social; 3) Mistificação e fraca percepção do papel do filósofo; 4) Despromoção da ação da filosofia na sociedade (por vezes pelo estado, instituições de ensino, Academia e outros intelectuais); 5) Receio dos filósofos de envolverem-se com a vida política ou contradizerem as ideologias/partidos/posições vigente; 6) Falta de comunicação entre os filósofos da colónia e dos herdeiros da colónia; 7) Ausência de financiamentos necessários para a promoção de publicação de materiais ligados á filosofia. Entre outros aspectos que necessitam de ser esclarecidos a fim de poder esclarecer a ausência da acção e interacção da filosofia nas sociedades lusófonas (herdeiras da colónia) 52 . Contudo, deve-se esclarecer que há casos de excepção onde em alguns casos a filosofia possa estar em melhores condições que as aqui descritas. Deixando, por isso, que as próximas investigações permitam esclarecer e aprender mais sobre como é que isso aconteceu (como é o caso do Brasil). Pois, estes exemplos de como os outros conseguiram integrar aspectos de uma disciplina clássica em crise numa sociedade globalizada representa um marco significante para uma reflexão futura. 52 Essas

suposições são de cunho pessoal, mas partindo das análises que os filósofos africanos fazem na colectânea da Teaching Research in Philosophy : Africa UNESCO

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As situações acima descritas esclarecem de certa forma a razão pela qual não podemos afirmar uma trajetória histórica da pesquisa e o diálogo na lusofonia sobre a filosofia africana. Mas isso não implica a inexistência de pesquisas existentes em relação á máteria nos herdeiros da colónia, por essa razão procuraremos analisar o exemplo de Moçambique na área de Filosofia Africana. O Estatuto da Filosofia Africana em Moçambique O pensamento filosófico em Moçambique poderá ser classificado em três estágios diferentes (que coincidentemente assemelham-se aos estágios históricos) 53 : 1) O período colonial-(1900-1975)- Este período caracteriza-se com o ensino de filosofia nos liceus e maioritariamente nos seminários teológicos, fundamentalmente a filosofia fundamentava a conceptualização e análise dos conteúdos pedagógicos nos liceus e era propedêutica para o ensino teológico para quem pretende-se tornarse clérigo; não houve uma aproximação com o pensamento africano da época; apesar de existirem obras que referem aos ditados, fábulas e anedotas em língua local; 2) O Período Nacionalista/Socialista- (1975-1992) caracteriza-se pela centralidade na ideologia comunista e da educação política em nos Institutos Superiores, Universidades, e fundamentação dos princípios comunistas no contexto moçambicano; analisam-se obras de Kwame Nkrumah, Julius Nyerere, Leópold Senghor, etc.; 3) O Período Liberal-Democrático-(1992-) O período centraliza-se na liberalização do ensino e despartidarização das escolas, abrindo as portas para novas escolas de pensamento (escola capitalista) e a tendência de promover um pensamento democrata e pacífico, surgem as primeiras obras de filosofia e de filosofia africana com o intuito de enquadrar-nos na velocidade das escolas existentes na época, a filosofia é introduzida no ensino secundário, abre-se o primeiro curso universitário em Ensino de Filosofia. Os períodos acima descritos podem variar de nomenclatura dependendo do ponto de vista de análise. Contudo, é importante considerar-se estes aspectos históricos como ponto de situação da pesquisa filosófica no país. Sem querer aprofundar todos os períodos iremos de forma breve apresentar as pequenas centelhas provocadas por pensadores moçambicanos em relação á filosofia africana. Apesar do fogo aceso ser extremo no mundo anglófono e francófono, em Moçambique a primeira obra de filosofia foi publicada pela editora Paulinas (actual Paulus) com 53

Essas posições foram-me partilhadas pelo Professor José Castiano e pelo Professor Carlos Machilli em conferências apresentadas à estudantes de filosofia em 2007, provavelmente terão outras denominações de acordo com os autores.

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o título Filosofia Africana: Das Independências às Liberdades, do pensador moçambicano Severino E. Ngoenha, Doutorado em Filosofia da História pela Universidade Gregoriana de Roma com uma tese centrada em Vico e Voltaire. Acredito que a obra suscitou muita indagação da parte dos intelectuais da altura como também abriu as portas para um novo universo de debates fora dos debates políticos fervorosos característicos da época. O facto do autor ter trazido elementos desconhecidos sobre o que falavam sobre os africanos e como os africanos falavam sobre si mesmos respondendo aos questionamentos produzidos ao longo da história da Antropologia, das Biologias, da Ciência Política e dos Estudos culturais. Acredito que essa foi a primeira obra na Lusofonia a abordar o problema em questão, tornando-se por isso um marco importante para os que questionam utilidade do saber filosófico nas sociedades afro-lusófonas. E é muito interessante a forma como o próprio Ngoenha aborda questões ligadas á identidade de uma forma quase-escondida e ex locus, para que não se dissocie o africano/moçambicano para fora do universo do pensamento filosófico no geral, dialogando com clássicos comoTempels à recentes como T. Serequeberhan e Ngoma Binda. Uma característica que não podemos deixar de notar no contributo Ngoenhiano54 é o facto de as suas obras pretenderem dar um contributo para o esclarecimento e aprofundamento da filosofia africana e como é que os moçambicanos poderão inserirse no universo do debate (e de certa forma a maneira como os países lusófonos podem entrar no debate). Para Ngoenha, está claro que os países herdeiros das colónias apresentam características similares: 1) Foram colonizados por europeus; 2) Passaram pelos estágios de escravatura, colonização e independência; 3) As línguas mais comumente usadas são às línguas da metrópole/cólonia; 4) Há uma constante busca pelo sentido de pertença e identidade próprias; 5) Necessidade de fortalecimento de valores nacionais e liberdades; Estes são alguns entre outros variados aspectos que são comuns e transversais nos herdeiros da lusofonia. A abertura sobre a possibilidade de poder-se questionar a independência e a necessidade de poder alcançar a liberdade foram os marcos principais do pensamento do autor. Sem desprezar o enquadramento que o próprio autor fez sobre a filosofia africana em Moçambique, criticando as posições tradicionalistas e ao mesmo tempo esclarecendo os contributos que ainda nos reservam o futuro. 54 Vide as obras de Ngoenha: Por Uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica (1990); O Retorno do Bom Selvagem

(1993); Mukatchanadas (1996); Estatuto Axiológico da Educação (2000); Os Tempos da Filosofia em Moçambique (2004); Machel: Ícone da 1ª República?(2010)Na sua maioria elas fazem o questionamento da origem de certas posições históricas consideradas fundamentais e ao mesmo tempo contribuem com algumas reflexões em torno da democracia e as posições que a própria filosofia fornece para solucionar alguns problemas a volta da sociedade moçambicana.

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Ora, essa obra abriu um campo muito frutífero para a pesquisa sobre a filosofia africana, o que de certa forma influnciou a pensadores como Brazão Mazula, a incluirem capítulos sobre a contradição entre a tradição e a modernidade em Moçambique na sua tese de doutoramento Ideologia,Cultura e Educação em 1993 na na PUC-São Paulo, e que posteriormente foi publicada em livro. Este autor apresentou de certa forma a contribuição que uma teoria filosófica (a de Habermas) poderia contribuir para um díalogo pós-guerra e como é que pensadores africanos poderiam contribuir de uma forma forte para o debate da democracia pós-guerra que caracterizava o caso de Moçambique e quais eram os elementos constitutivos de um discurso democrático. Este elemento dialogante no pensamento de Mazula fez com que a obra fosse bem recebida e recebesse aplausos da maior parte dos intelectuais e de muitos círculos políticos (talvez por não pretender valorizar e contrapor o pensamento de um grupo em detrimento do outro ou englobar apenas uma monovertente política)55 Contudo, Mazula preferiu de certa forma afastar-se do debate filosófico-africano dos horizontes da origem e agir como filósofo africano, no sentido de querer questionar as motivações político-educacionais existentes no panorama intelectual moçambicano. Essas posições demonstradas acima mostram claramente que o pensamento africano passou a ser inclusivo no seio dos intelectuais moçambicanos. A característica principal em relação aos escritos que marcaram o início dessa reflexão demonstram uma marca importante de manifestação identitária56. Esse elemento de procura de paradigmas locais de reconciliação, liberdade, democracia e vivência pacífica a partir do esclarecimento identitário marcou profundamente o início da reflexão filosóficoafricana em Moçambique e de certa forma impactou todas as perspectivas posteriores em relação á máteria. Ora, o movimento consequente do despertar filosófico introduzido por Ngoenha, Mazula e outros (que necessitam de ser pesquisados) levaram á introdução da disciplina de Filosofia no Ensino Secundário Pré-Universitário em 1998. E no 55

Essas posições dialogantes de Mazula pressupunham de certa forma a necessidade de poder-se dialogar de uma forma construtiva com o passado a fim de promover um sistema de valores nos quais o diálogo e a comunicação para um consenso seriam fundamentais para a construção de uma sociedade democrática. 56 Pode-se notar claramente a tentative de desmistificação da etnicidade a partir de uma abordagem histórica no pensamento de Severino E. Ngoenha, principalmente no seu texto Os Missionários Suiços Face ao Nacionalimso Moçambicano: Entre a Tsonganidade e a Moçambicanidade in Lusotopie 1999, pp.425-436, e o texto Identidade Moçambicana: Já e Ainda não na colêctane do Professor Carlos Serra Identidade, Moçambicanismo, Moçambicanidade (2003). Outro texto que claramente acompanha este artigo é a obra O Estatuto Axiológico da Educação(2000), onde volta a questionar as motivação filosófica por detrás da criação dos “mintlhavas” e o discurso de questionamento da origem da tsonganidade e a falácia de generalização do moçambicano a partir de um grupo étnico.

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programa da disciplina tornou-se necessário integrar capítulos ligados não só ás disciplinas clássicas de filosofia como também um capítulo específico em Filosofia Africana, na perspectiva de prover a contextualização em relação à problemática da sua existência ou da sua inexistência como também as principais correntes e os seus principais expoentes57. Ao mesmo tempo surgiu a necessidade de criação de um curso universitário de raíz em Ensino de Filosofia para responder ao aumento da demanda de professores de ensino de filosofia. Posição esta que foi assumida pela Universidade Pedagógica em Ora, afirmar que o primeiro grupo de formandos deste curso universitário foi composto por ex-seminaristas do Seminário Teológico Santo Agostinho e do Seminário Teológico Pio X que de alguma forma puderam ter alguns contactos com a disciplina de filosofia africana e isto permitiu que alguns dele (numa estimativa de 5% a 10%) pudessem escrever monografias ligadas á matéria. Figura. Ano de Introdução de cursos de Filosofia em Universidades Moçambicanas A figura acima mostra claramente a periodização da introdução do curso de filosofia em universidades Moçambicanas desde os anos 1930 até aos dias de hoje. E claramente podemos ver que existe uma tendência progressiva de aceitação e introdução do curso de filosofia nas universidades. Um aspecto a considerar é que a Universidade mais antiga do país a Universidade Eduardo Mondlane58 apenas introduziu um curso de filosofia recentemente após algumas dificuldades de justificação sobre a utilidade do próprio curso, contudo espera-se que a sociedade aceite a filosofia e perceba a sua importância. Ora, um pensador notável em relação à filosofia africana é o Professor José P. Castiano59 que apesar de na altura não ter contribuído com uma obra específica demonstrou a possibilidade de reflexão filosófica no âmbito educacional, com a sua tese sobre o sistema educacional moçambicano na Universidade de Hamburg na 57 Pode-se

notar o Programa do II Ciclo de Introdução á Filosofia do MINED 2010; é importante reconhecer que o facto do capítulo de filosofia africana estar patente no programa de ensino despertou muitas interrogações por parte dos estudantes e também um certo desapontamento pelo facto da maioria das obras ligadas á matéria estarem em inglês e poucos materiais em português. Este é um facto que muitos professores confirmaram em algumas entrevistas e conversas informais, pois muitos deles consideravam um grande desafio enviar um aluno á uma biblioteca mas não poder regressar com um fruto palpável. 58 É importante notar que disciplinas filosóficas como Filosofia Política, Ética, Introdução à Filosofia, etc. Já haviam sido introduzidas no syllabus dos nas faculdades de Letras e Ciências Sociais. 59 J. Castiano é notável pelo facto de ter liderado o grupo de colaboradores do manual de Introdução à Filosofia para a 11ª e 12ª Classes; ter contribuído para a criação da plataforma “Clube dos Amigos da Filosofia” e ter avançado com muitos artigos em jornais/revistas locais usando o método filosófico para esclarecer assuntos ligados á educação, democracia e saberes tradicionais.

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Alemanha. E de certa forma promoveu o interesse pelo debate filosófico de uma forma mais aberta dentro e fora da universidade, principalmente com as pesquisas feitas em relação aos saberes tradicionais. Ora, o pensador notabilizou-se com a sua participação em diversos cenários de tomada de decisão tanto a nível nacional como a nível internacional (com muitas palestras proferidas em colóquios de ciências de educação e de filosofia). O seu interesse pelo diálogo entre os saberes ditos tradicionais e os saberes ditos modernos, esclareceu muitos factos considerados obscuros pelas wissenschaften. Ora, Castiano desenvolveu uma teoria de coexistência de discursos que de certa forma alimentou a escassez de referenciais em relação à fundamentação do saber filosófico africano, tendo em vista os aspectos tradicionais, modernos e pósmodernos60. Por que, como vimos anteriormente os aspectos relacionados com o conhecimento/saber tradicional era considerado em certo ponto como um elemento separado da conjunctura epistemológica e o tradicional teria que inevitavelmente ser ultrapassado pelo moderno, ou de outra forma, o saber tradicional seria eliminado pela evolução social onde apenas o que for considerado moderno é que seria válido. A ideia segundo a qual o discurso tradicional e o discurso moderno coexistem no mesmo espaço era um aspecto quase que totalmente ignorado no seio da filosofia africana (seja anglófona ou francófona). Essa possibilidade de conversa/diálogo e a coexistência entre os saberes prefigura uma contribuição inigualável que a filosofia africana na Lusofonia. Por uma razão muito simples, por uma razão ou outra a maior parte dos pensadores anglófonos e francónos preferem olhar para a filosofia africana como aquela que irá “cavar” ou desmistificar os saberes tradicionais africanos61, que de certa forma foram esquecidos ou ultrapassados mas não deixam claro que o discurso dos saberes tradicionais podem fazer o seu lar ao lado dos discursos modernos. Outras contribuições Castianianas aprofundaremos melhor ao tentarmos avante esclarecer quais são as perspectivas para a filosofia na lusofonia. Podemos tornar um marco importante o facto das contribuições destes filósofos direccionarem-se para um universo filosófico mais amplo e dialogizante. Mas apesar dos sucessos apresentados acima ainda existem desafios presentes no contexto moçambicano que impedem o florescimento saudável e expansão da filosofia. 60

Vide o texto de José P. Castiano, O Currículo Local como Espaço de Coexistência de Discursos: Estudo de Caso nos Distritos de Bárué, Sussundenga e da Cidade de Chimoio-Moçambique in Revista Ecurriculum Vol.1, nº1, São Paulo, dez.jul.2005-2006. . Este artigo pode ser considerado um marco de viragem na reflexão sobre os saberes locais e a sua contribuição na modernidade. O mesmo texto aparece numa colectânea da CODESRIA Zimba & Castiano, As Ciências Sociais na Luta contra a Pobreza, 2008. 61 Esta perspectiva é apresentada pelos filósofos Hountondji, H.O.Oruka, Kwame Gyekye, Olufemi Taiwo, Onyemweni, Ngoenha, Mazula, etc. Por considerarem que o filosófico tradicional encontra-se num universo separado por alguma barreira inquebrável do filosófico moderno. De uma forma ou de outra a ideia de poder ouvir e escrever os princípios partilhados com alguns sábios tradicionais, parecia ser o papel mais importante do filósofo.

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Devemos questionar então quais são os obstáculos á má percepção da filosofia (africana)? Por que é que pouco se têm falado sobre essa disciplina? Quais são os méritos e deméritos do pensamento filosófico em Moçambique? Quais são os obstáculos em relação á Filosofia em Moçambique? Desafios da Filosofia Africana em Moçambique (mitos, conflitos e desafios) Parafraseando Marx podemos dizer que um espectro paira sobre Moçambique e que esse espectro é o espectro da negligência em relação á própria Filosofia. Esclareçamos essa afirmação partindo da análise feita acima sobre o motivo pelo qual a Filosofia não é aceite nos círculos de influência, preferiremos analisar alguns mitos, conflitos e desafios presentes para a filosofia africana em Moçambique. A tradição literária moçambicana pelo seu centralismo no passado, no tradicional e não na utopia reduziu a importância do pensamento e dos pensadores por se considerar que talvez fosse melhor usar parábolas e outras formas de ocultar verdades para explicar a sociedade. Perpetuou-se assim a ideia segundo a qual, “o povo” percebe melhor o mundo por meio de anedotas, músicas e não por meio de textos argumentativos (talvez seja por isso que não tenhamos uma cultura de ensaios). O pensamento tornou-se uma mera palavra, usada para explicar algo essencial existente no consciente do homem que o permite ter acesso a ideias e perpetuar o modo de luta e explicar os seus anseios. O pensamento não é uma arma, e muito menos uma força (MACHEVO, 2009)62. 1. O primeiro mito é o da inutilidade da filosofia para a sociedade moçambicana porque: 1) filosofia era para padres e aqueles que estudavam em seminários; 2) filosofia significava a ideologia marxista; 3) filosofia seria apenas princípios da vida em geral; 4) filosofia era para loucos (posição popular que considera-se de ignorância ou desconhecimento em relação á matéria). 2. O Segundo mito é o da inexistência de espaços para filosofar na sociedade moçambicana, i.e., as actuais circunstâncias de um país subdesenvolvido não permite o surgimento de oportunidade para questões puramente teóricas. E a universidade e a escola é o único espaço onde a filosofia poderá ser aplicada, o que implica de certa forma que fora das portas da universidade a filosofia não poderá fazer nada. Muitas das vezes por causa das seguintes razões: 1) Confinamento da filosofia á aspectos puramente académicos; 2) Utilização de uma linguagem considerada complexa para o “povo” ou cidadão comum; 3) A filosofia não aborda questões práticas diárias e nem ajuda a resolver estas questões diárias; 62 Certificar

o artigo Uma Filosofia Sem Filósofos de Gerson Machevo in Notícias.

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3. O Terceiro mito exclusão da filosofia da academia na sociedade moçambicana. Este mito representa o sentimento que muitos filósofos possuem em relação à falta de convites à conferências nacionais,colóquios internacionais, aceitação de publicação de textos filosóficos em revistas científicas especializadas. Por que, na verdade é considerado forte a posição serrada que muitos pensadores moçambicanos têm em relação á filosofia (na maior parte das vezes estas posições estão totalmente aliadas aos mitos acima mencionados). Esta perspectiva de exclusão da filosofia tentou ser combatida por alguns docentes universitários que envolveram-se em programas de debates televisivos e alguns artigos de opinião.Mas, existe um sentimento segundo o qual a filosofia é desorganizada e confusa demais para ser incluída nos círculos de reflexão. 4. O Quarto mito é o da ausência de uma tradição filosófica em Moçambique. Este aspecto não é comumente afirmado, mas muitos estudos literários fizeram maior contribuição em relação á cultura moçambicana. Pode-se dar o exemplo da obra, Império,Mito e Miopia: Moçambique como invenção literária de Francisco Noa63, que no fundo faz análises literárias partindo dos métodos estruturalistas e pós-modernistas na senha de Edward Said de como é que a colonialidade contribuiu para as percepções ultramarinas sobre o país. Acredito que a obra pode ser considerada de cunho filosófico, mas a verdade é que a tradição literária forneceu os referenciais de reflexão necessários para a interpretação da realidade. Se a literatura colonial desprestigiava a identidade moçambicana a literatura contra-colonial de Craveirinha, Kalungano, Armando Guebuza, Malangatana e outros teria que expressar o espírito da nação ainda em molde para que os verdadeiros receptores se identificassem com tais elementos e validassem a estrutura do campo literário. Pois, destruição de modelos coloniais de representação deturpados requeriam outros para uma solidificação do futuro por meio de uma literatura nova que apesar de tudo dependia da validação da Biblioteca Colonial64 Essa perspectiva sólida da literatura moçambicana de certa forma acabou tornandose numa barreira impermeável para a introdução de pensamento filosófico. Por outro lado isso justifica-se pela ausência de publicação de obras em Filosofia no universo de obras publicadas anualmente em ciências sociais, pois dentre 995 livros publicados anualmente apenas 10 são de Filosofia, ou seja apenas 1% das obras é 63 Há uma tendência de aliar o pensamento de Noa áquela revolução filosófica provocada pelo pensador africano V.Y. Mudimbe

com a sua obra The Invention of Africa, que no fundo demonstrou que as percepções sobre a África eram resultado de um discurso que pretendia-se científico mas terminou preconceituoso. 64 Vide Machevo, Outra Querela dos Tempos modernos (2010) in Jornal Notícias.

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que são de filosofia como mostra o gráfico acima. O que de certa forma reduz o impacto que a própria disciplina poderia fazer na sociedade moçambicana (vide figura abaixo). Este facto de ausência de promoção de materiais ligados à produção de obras de filosofia é um elemento redutivo que influencia a ausência de uma tradição filosófica em Moçambique. Mostra-se claramente que os pesquisadores de outras áreas de ciências humanas estão mais preocupados com a divulgação das suas pesquisas em relação aos filósofos65. 5. O quinto e último mito refere-se a não necessidade de questionamento da tradição em Moçambique, por que considera mais importante revalorizar as tradições moçambicanas e deixar-se o status quo tal qual é seja a nível científico seja a nível do senso-comum. O conhecimento é sempre visto como algo estático e completo em si sem necessitar de qualquer aumento ou crítica por parte dos filósofos. Outras vozes preferem considerar que as verdades não podem ser abaladas quer seja a verdade religiosa, as ideologias políticas e quer sejam os valores culturais. Assim, a filosofia é vista como uma ameaça ao conjunto de sistemas, preferindo mantê-la réfem dos mitos acima mencionados. O único elemento conflituoso que deve ser considerado é o facto de muito que a filosofia pretendia fazer acabou sendo levada a cabo por Sociólogos, Antropólogos e outros cientistas sociais em moçambique. Este facto pode sr considerado relevante quando podermos analisar as obras e textos de um sociólogo como o Elísio Macamo66, Carlos Serra, Filimone Meigos entre outros. Ou seja, estes pensadores apesar de cientistas sociais puros, contribuiram de uma forma alargada para aquela análise que devia ter sido carregada por filósofos. Essa parecência entre a Sociologia e a Filosofia é crítico para organizar-se um espaço de diálogos na sociedade moçambicana para eliminar-se a contradição e os favoritismo actuais em relação à cada uma das ciências. Como é que poderemos ultrapassar esses mitos? Será que há um espaço para a filosofia em Moçambique? Será que existe alguma possibilidade de diálogo de saberes através da Filosofia? 65 Acredito porém que outro factor que impede a publicação massiva de obras de filosofia reside no facto das editoras confiarem

apenas nos autores tradicionais, que na sua maioria estão ligados as matérias clássicas. 66 O sociólogo Elísio Macamo de certa forma contribuiu para a solidificação da Sociologia em Moçambique e possui uma variade de artigos referentes às crenças sociais e vícios em Moçambique. Uma análise que na sua tendência considero muito aproximada àquela reflexão que deveria ser feita por filósofos. Vide o seu texto A Constituição de Uma Sociologia das Sociedades Africanas, in Estudos Moçambicanos 19, pp.5-26.2000

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A Filosofia Africana como caçadora de mitos e elemento dialogizante (oportunidades e perspectivas) Os mitos são “uma parte integrante da organização social e cultural de todas as sociedades; no mito estão profundamente entranhados os modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Assim, embora a Filosofia seja uma racionalização do mito, ela não sai do interior do próprio mito”67. Essa perspectiva de escavamento do mito e da ignorância em relação à Filosofia e a Filosofia Africana, permite-nos apresentar algumas oportunidades relacionadas com a própria filosofia no País. Um dado muito importante em relação à Filosofia Africana considerar como vimos acima que apenas uma obra foi publicada e divulgada abertamente como sendo de filosofia africana em Moçambique e em português que foi a obra Filosofia Africana: Das Independências às Liberdades do filósofo Severino E. Ngoenha. Podemos afirmar que durante muitos anos essa foi a única obra usada por docentes e estudantes universitários na cadeira de filosofia africana. Contudo de uma forma geral a obra não permitia o enquadramento do pensamento africano e a introdução das novas correntes de pensamento nos curricula. E um exemplo disso é o caso dos desafios que as teorias filósoficas encontraram em relação à globalização e seus sinónimos (interculturalidade, multiculturalismo e pluri-culturalidades)68. Na mesma senda de pensamento influente da Filosofia, Severino Ngoenha escreveu Os Tempos da Filosofia: Filosofia e Democracia em Moçambique (2004), na perspectiva de esclarecer o panorama político moçambicano a partir de uma análise do pensamento político e a necessidade da liberdade a partir de uma abordagem histórico-filosófica69. O filósofo abriu as portas para questionar o próprio processo dos AGP70 abordando questões que na maioria das vezes os cidadãos e até os académicos consideravam como sendo “quentes” para serem debatidas ao ar livre.

67 Esta

frase foi retirada de uma conferência feita pelo Professor José P. Castiano numa apresentação perante os estudantes de Filosofia e docentes na Faculdade de Medicina no dia 22 de Setembro de 2007 sob o lema “Papel do Filósofo face ao Desenvolvimento e à Globalização - Filosofia e Mito”. Nesta mesma conferência o orador afirmou que “um filósofo digno deste nome é um caçador de mitos”. Essa atitude da filosofia questionar aos outros e questionar a si mesmo, foi um elemento muito controverso e complementador dos questionamentos que nutriam os estudantes. 68 É importante notar contudo que muito o filósofo Severino Elias Ngoenha fez para introduzir as problemáticas contemporâneas da filosofia política e da cultura no seio da academia moçambicana. E em certo momento interpretou o fenômeno da filosofia Ubuntu como sendo justiça restaurativa “glocal”. 69 O autor fundamenta a necessidade da filosofia em Moçambique como: 1) Análise histórica no sentido moral; 2) Interrogação da temporalidade histórica contextual; 70 Os Acordos Gerais de Paz assinados aos 4 de Outubro de 1992 que terminaram com o conflito civil entre a RENAMO e a FRELIMO no país.

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A ousadia de reflectir sobre o passado e também as aberturas que o moçambicano possui à sua frente, contribuíram para uma abertura aprofundada na academia sobre o verdadeiro papel da filosofia em Moçambique que o autor definiu como éticapolítica, epistemologia, educação71. Assim, o autor foi o primeiro a reflectir sobre a necessidade da filosofia em Moçambique como também a reflectir sobre um diálogo político-filosófico com outros pensadores africanos sobre a questão da liberdade numa perspectiva actualizada e diferente daquele que havia usado em 1993 na obra Das Independências ás Liberdades72. Ora, Brazão Mazula numa obra denominada Ética,Educação e Produção da Riqueza (2006) que marcou de certa forma a interpretação sobre o problema do desenvolvimento existente em Moçambique. É importante sugerir essa posição no actual cerne das questões no debate moçambicano sobre a eliminação da pobreza absoluta73 Está claro que o contributo do pensador é fazer com que as pessoas percebam que a ética e a axiologia (reflexão sobre os valores) contribuem fortemente na luta contra a pobreza ou por outra na luta pela produção de riqueza. Partindo de um díalogo claro com pensadores como John Rawls, Amartya Sen, Jürgen Habermas e Santo Agostinho ele aborda questões ligadas à felicidade, amor ao conhecimento, liberdade, desenvolvimento e democracia. O autor também introduz elementos de uma filosofia moçambicana no contexto multicultural com especial apelo a tolerância e a liberdade de pensamento, aspectos esses que respondem a constante demanda de enquadramento da filosofia moçambicana no contexto mundial. O marco principal desta linha de pensamento consistia no facto do autor poder demarcar um campo de acção em relação á própria filosofia ética no contexto moçambicano mas abrindo para um diálogo mais estendido com o que outros 71 Essas áreas foram consideradas pelo filósofo como sendo as áreas pertinentes de intervenção filosófica no país por considerar-

se que existe um défice em relação à estes aspectos por causa de : 1) Logo após a independência o ensino manifestou um grande deficit em tudo aquilo que eram os conteúdos lógicos e abstractos. Isto devido ao grande abandono dos professores portugueses logo depois da Independência e a falta de conteúdos com um certo recuo histórico, literários; 2) Os tecidos tradicionais de convivência comum foram combatidos primeiro pelo sistema político colonial e socialista. O cristianismo pósconcordata foi combatido pelo socialismo que existia em Moçambique até ao fim da Primeira República. A axiologia socialista foi um dos pretextos para a chamada Guerra Civil. O resultado de tudo isto é um vazio axiológico bastante pronunciado; 3) Num espaço temporal muito curto, Moçambique passou (e partilhamos esta História com os países africanos, mas em parte também com os outros da CPLP) do colonialismo ao socialismo e deste para uma democracia multipartidaria. O sentido comum confunde a democracia com a mera votação nas eleições todos os cinco anos. 72 O autor introduziu questões profundas ligadas á democracia em Moçambique, e sobre o verdadeiro papel do filósofo face a essas questões. Um dos tópicos que mais levantou polémicas foi a questão da justiça social, que durante dois meses levantou um debate aprofundado no Jornal Notícias (que é um jornal público e com abragência nacional envolvendo sociólogos (Macamo), filósofos (Castiano, Filomeno), estudantes de filosofia, cientistas políticos (Mutisse) etc. 73 É importante citar que o problema da pobreza foi levantado primeiramente pelo governo através dos PARPA (planos de redução da pobreza absoluta).

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pensadores ocidentais haviam pretendido anteriormente. O facto de o autor considerar a educação como fundamental para o desenvolvimento de uma consciência ética no país abriu um caminho para pensar-se na utilidade da filosofia para o quotidiano, ou por outra, pudemos aprender o “O que posso fazer?” kantiano, por que as atitudes moçambicanas foram consideradas numa perspectiva profunda e realisticamente problematizados. Ora as duas obras acima permaneceram no cerne dos debates filosóficos moçambicanos por muito tempo, mas recentemente surgiu uma obra com grande contribuição à Filosofia Africana que é a obra Referenciais da Filosofia Africana:Em Busca da Intersubjectivação (2010) do pensador José Castiano. Esta obra foi o resultado de quase um quinquénio de pesquisas que o autor fez em conversas, pesquisas de campo e leituras. O autor representa o conjunto de esforços de representação de reflexões moçambicanas e seu esforço de reinterpretação dos processos de produção de conhecimento, identidade e de liberdade. O principal foco da pesquisa era de encontrar possíveis referenciais existentes ou referentes da filosofia africana74. A preocupação com a existência de espaços de intersubjectivação para a filosofia africana fora dos debates sobre o questionamento da origem. Para Castiano o principal objectivo é que se reconheça que a Filosofia é uma disciplina académica que não pode afastar-se dos seus aspectos contextuais (quer seja nacional, quer seja internacional). O facto dele trazer ao debate Hountondji, Wiredu, Asante, Ngoenha, Tempels, Oruka, etc.; a partir de um ponto de vista intersubjectivoconstrutivo da filosofia africana a partir de um contexto lusófono, representa a oportunidade que a filosofia na lusofonia precisava, ou seja o próprio conceito de “abertura conceptual”75. O díalogo socrático á la africaine representa o cerne da questão, ou seja, a possibilidade de contribuir para esclarecimento de questões filosóficas tanto por filósofos africanos quer por filósofos ocidentais. Isso não apenas inclui reflexões centradas em tópicos em filosofia mas também em todos os âmbitos científicos. Na percepção do filósofo, “as comunidades não falam, apenas o sujeito é que fala”. Os referenciais da filosofia africana devem no entanto devotar-se à intersubjectivação ao invés de centrar-se apenas na subjectivação ou na objectivação. A pesquisa deverá 74

O autor identifica 1) Referenciais de Objectivação: Etnociências, Etnofilosofia;, 2)Referenciais de Subjectivação: Afrocentridade, Ubuntuísmo; e 3) Referenciais de Intersubjectivação: Liberdade; Interculturalidade; Estes são referenciais marcantes no universo da filosofia Africana. 75 Este conceito pretende ser uma revolução em relação à “descolagem conceptual” de Franz Crahay(francófono) e a “descolonização conceptual” de Kwasi Wiredu (anglófono). A abertura conceptual é considerada neste aspecto um conceito que poderá ser aproveitado para debates frutíferos pelos filósofos afro-lusófonos.

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também querer ouvir aquilo que os outros dizem e poder partilhar com o que pode ser considerado africano. O enquadramento no cenário do pensamento filosófico mundial é o que os actuais filósofos africanos deverão fazer ao invés de optar-se pela exclusão ou o eterno retorno ao ciclo vicioso do questionamento da origem. Estes três autores, apesar de não constituírem ainda uma escola de reflexão, demonstraram claramente que há uma possibilidade de um exercício filosófico e uma pesquisa na área de filosofia africana em Moçambique apesar da escassez de obras e do combate pelo sentido. Os mitos sempre estarão presentes, mas vale fazer face a eles com o exercício da razão ao invés de iniciar um ricochete inacabável. Existem problemas específicos que a filosofia poderá contribuir de forma única e característica, abrindo oportunidades de uma melhor percepção sobre o fenómeno ou sobre as soluções empreendidas. Conclusão : Oportunidades O pensamento filosófico africano em Moçambique existe e é praticado de uma forma exemplar, conforme pudemos ver acima. Contudo existem ainda aspectos a serem considerados para o fortalecimento desse exercício em Moçambique alguns aspectos que podemos considerar pertinentes: 1) Aumento de Espaços de intersubjectivação A Filosofia em Moçambique necessita de existir em espaços de intersubjectivação, de diálogos e de conversação onde o pensamento filosófico possa existir e ser construído tendo em vista os problemas pertinentes. A filosofia deverá abrir espaços para dialogar sobre a arte, a religião, a ética a política e o quotidiano, deixando de existir apenas como um campo académico. Isto também implica o envolvimento de filósofos em outros sectores de intervenção para além da educação. 2) Publicação de obras ligadas á máteria Com o aumento do interesse em relação ao campo existe a necessidade de aumento de autores a publicarem obras que reflectem problemáticas do quotidiano moçambicano e sendo por isso problemas africanos para poderem entrar no universo dialogizante que caracteriza o cenário filosófico mundial. Este esforço empreende a necessidade de poder-se traduzir obras em português para outras línguas como também a tradução de obras em francês e inglês para o português de forma que a participação no diálogo possa ser qualitativo e quantitativo. Novembro de 2012

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3) Maior envolvimento dos filósofos nos assuntos sociais Os filósofos são conhecidos historicamente pelo seu envolvimento em problemas sociais e além de problemas académicos. Isto implica envolvimento em debates públicos e contribuir para a solução e reflexão de problemas que afligem a sociedade, de forma a ampliar o universo conceptual. Há que reflectir sobre aspectos relacionados com o SIDA, crise de valores, economismo, o crime, a pobreza, desenvolvimento etc. A partir de um ponto de vista filosófico e não sociológico ou antropológico apenas.

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ESTADOS AFRICANOS E O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS NO SÉCULO XXI Carlos Mussa76 O presente artigo aborda questões da problemática da formação dos estados africanos. Defendendo a necessidade de apostar em governos democráticos sérios e responsáveis. Pois, só a democracia conduzirá a vida de qualidade em África. Palavras-Chave: Estados Africanos, Democracia, Política INTRODUÇÃO No presente estudo apresenta-se como tema Estados Africanos e o Processo de Democratização: Desafios e Perspectivas no Século XXI. Ao escolher este assunto pretende-se iniciar uma discussão a volta da problemática da formação dos Estados Africanos e do processo de democratização; provocar um debate académico que nos leve a reflectir sobre a situação africana olhando para os problemas da África no século XXI; avaliar as oportunidades, as ameaças e os desafios e perspectivas dos Estados Africanos no século XXI. A partir do século XX o continente Africano vem sendo olhado como um continente falhado em todos os sentidos: na politica, na economia e no aspecto social. Em suma, falar da África hoje faz lembrar a miséria, a pobreza e as doenças como a malária, a poliomielite, a cólera e HIV/SIDA. O afro-pessimismo talhou a África vestindo-a de estereótipos de toda espécie África é sinónimo de pobreza e vida selvagem. Apesar disto ainda existem os que acreditam na possibilidade de termos uma África forte. Uma África forte depende do desenvolvimento das suas cidades e dos seus cidadãos. Uma África forte depende da criação científica dos seus cidadãos. Uma África forte depende da capacidade de diálogo entre os africanos para o bem do homem africano e da humanidade em geral. Uma África forte depende da possibilidade de existência duma democracia real, participativa e responsável que promova e envolva todos os cidadãos sem exclusão baseada nas cores partidárias, sem ambiguidades nem complexos. Uma África forte depende da atitude do homem africano em termos de luta pela auto-estima. O africano não pode ter vergonha de identificar-se como 76 Doutorado

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em História (França), Docente no Departamento de História e Director do ESTEC na Universidade Pedagógica

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africano, os africanos tem um passado comum, todos foram vítimas da exploração colonial, todos sofreram com o comércio de escravos, todos foram vítimas do sistema colonial europeu, exceptuando a Libéria e a Etiópia. Uma África forte depende igualmente da sua estratégia de desenvolvimento económico, particularmente na agricultura, transportes e comunicação, construção civil, turismo, comercio, banca e seguros, aviação civil. Para construir uma África forte deve-se usar racionalmente as riquezas naturais do continente. África tem tudo o que se deseja para sair da pobreza. Assim sendo, porque a África continua a ser o continente mais atrasado? Pelo comportamento de alguns líderes africanos acredita-se que estes ainda não aprenderam com as lições do passado: colonialismo, exploração e pilhagem de riquezas em proveito das metrópoles. Uma das lições que mais marcou os africanos na época colonial foi o comércio de escravos, a exploração colonial, a repressão e a opressão. Aquilo que também marcou negativamente o continente foi exactamente a pilhagem colonial, a opressão e a repressão, fenómenos que não se extinguiram com o fim do colonialismo europeu no continente. Esta herança colonial se traduz na continuidade da opressão e repressão política em África, onde mesmo depois das independências, em muitos países, instalaram-se ditaduras da esquerda e da direita que substituíram o poder colonial na forma de exercer o poder, em pleno século XXI quem oprime os africanos são outros africanos. A opressão e repressão colonial europeia foram substituídas pela opressão e repressão africana conduzida por dirigentes africanos. Em África hoje fala-se mais de dirigentes e povo, no lugar de se falar de cidadãos e Governo, população e Estado. Uma manifestação em África sempre se reprime com um saldo em mortes, mesmo nos países onde se diz haver democracia. A economia é raquítica e endemicamente frágil gerando conflitos, insatisfação, efervescência e resistência popular provocando tumultos de tempo a tempo, tal como aconteceu na Guine Bissau, em Moçambique, na África do Sul, na Guine Conakri, etc. Mas África não nasceu como um bebe pobre, a pobreza em África resultou e resulta do comportamento humano ela pode ser minimizada se houver solidariedade entre os africanos, se os governos africanos serem solidários, determinados e sérios, se os governos africanos apostarem na criação dum Estado de Direito, isto e, quando as leis tiverem igual tratamento e igual aplicação para todos os cidadãos, então nascerá uma África forte. Estado de Direito implica um compromisso com a Lei, o respeito dos direitos humanos, a aplicação da justiça sem ter como base a fórmula: a lei e para o inimigo e a justiça para os amigos, uma justiça de fachada. A vitória contra a pobreza em África só será um facto quando os africanos perceberem que o seu desenvolvimento depende de si próprios, da sua atitude e do seu grau de envolvimento e do compromisso com a democracia e liberdade. Nenhum estrangeiro Novembro de 2012

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vai trazer riqueza e distribuir aos africanos para acabar com a pobreza, a pobreza existe também nos países mais ricos, embora se manifeste com níveis mais baixos. Transformar e mudar África deve ser uma responsabilidade dos próprios Africanos nas suas diferentes nações. Não serão os europeus, os asiáticos, os americanos e, muito particularmente os chineses e brasileiros, a trazer o desenvolvimento, o progresso e o bem-estar em África. Onde há liberdade o povo não teme os seus dirigentes, respeita-os. Em alguns Estados da África, mesmo nas universidades onde há mentes abertas e esclarecidas, as pessoas temem os seus docentes, os gestores da Universidade são temidos em vez de serem respeitados e isto tem como resultado o seguinte: quando o gato não esta os ratos passeiam a sua classe por todos os cantos, até na mesa do dirigente. Ora a liberdade tem como fundamento a responsabilidade, exige um compromisso com os desígnios da paz e respeito da pessoa humana. Um dirigente é uma pessoa e um cidadão comum, ele e também é uma pessoa. A liberdade e a democracia abrem as portas para o diálogo, para o desenvolvimento e para o bem-estar social. Contudo, deve-se perceber que a liberdade e a democracia não podem ser vistas como a panaceia para resolver todos os problemas da África. Os africanos devem aprender a amar e respeitar a vida, devem respeitar os direitos humanos, devem valorizar a paz, a vida e a liberdade. O progresso e o desenvolvimento não dependem apenas do crescimento económico e do dinheiro, a moral e honestidade devem acompanhar o desenvolvimento. Hoje existem muitos países em África onde se regista um crescimento económico assinalável, mas os seus povos continuam cada vez mais pobres porque os dirigentes se apropriaram do Estado para acumular riquezas pessoais. Servir o Estado passou a ser sinónimo de abrir as portas para alcançar a riqueza de forma desonesta. Vale tudo. Como explicar este paradoxo? A resposta pode ser clara se percebermos que o crescimento económico não se traduz automaticamente num desenvolvimento económico. O crescimento económico mede-se em números, o desenvolvimento implica avaliar a qualidade de vida. A qualidade dos cidadãos deve ser a chave para construir uma África forte, dinâmica e próspera, onde a paz deve ser mantida respeitando a diversidade. Uma economia pode crescer sem gerar o desenvolvimento almejado, tal como ocorre hoje em vários países africanos. A pobreza começa quando as elites políticas e económicas africanas capturam o Estado, em proveito próprio, sem beneficiar outros cidadãos. A pobreza da África hoje tornou-se uma indústria, uma máquina de fazer dinheiro para os dirigentes e políticos. Hoje para se ter bom emprego, para se viver bem em África deve-se alinhar com os desígnios dos partidos no poder, melhor dizendo temos que alinhar na política, mesmo sem querer ser político. Em consequência África está a tornar-se num continente onde se formam leões de intelectuais orgânicos que nas universidades e escolas promovem a política 114

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do yes man. O estudante universitário já não tem iniciativa, não tem pensamento crítico e autónomo, o docente universitário vive como um corpo formatado. Os estudantes são moldados para serem obedientes e servis. Os líderes africanos têm um discurso programático ao abordarem a problemática da pobreza. Falando da pobreza os políticos conseguem o dinheiro no exterior que depois expatriam colocando-o no estrangeiro como na Suíça, França, Espanha, Portugal e Estados Unidos da América, Dubai, entre outros; outros se apropriam desse dinheiro para se tornarem empresários de sucesso. Isto ajuda a entender porque em algumas Constituições se aceita a dupla nacionalidade. O dinheiro roubado e que sai de África em cada ano seria suficiente para pagar toda dívida africana e ainda sobraria para promover uma agricultura mais rentável, para construir mais escolas, hospitais e para aumentar a capacidade de abastecimento de água, para construir estradas, pontes, caminho-de-ferro, para prestar-se uma assistência sanitária mais satisfatória e mais humana, para pagar melhores salários aos funcionários públicos e para se instituir uma educação de qualidade. A má qualidade do ensino resulta do fraco investimento neste sector, em África há mais dinheiro para o sector de defesa e segurança do que para Educacao e saúde. Logo, a pesquisa nas universidades tornou-se uma intenção. Podemos pesquisar mas se não existe dinheiro para publicar será que vale a pena continuar a fazer pesquisas sem utilidade prática? Será que vale a pena pesquisar enquanto os resultados desta pesquisa não são utilizados para resolver os problemas concretos da população e dos países? O segredo para o sucesso da África depende da pesquisa científica e do seu programa de desenvolvimento em cada nação africana. Temos faculdades de medicina, mas a malária continua a matar, porque? Será que havendo concertação África não pode acabar com a malária como já aconteceu na Europa? Muitos aqui dirão que estou divagando e sonhando, mas sonhar é bom, só não sonha quem não nasceu ou os mortos. Se cada pai adoptar um programa que abre oportunidades de emprego, possibilidade de produzir mais e melhor, se cada nação africana oferecer aos seus cidadãos uma Educacao virada para a resolução dos problemas da fome, da doença, da falta de habitação, da falta de transporte e abastecimento de água potável, se cada país africano apostar na criação dum serviço de saúde mais abrangente e de qualidade, em África a pobreza será minimizada. É discurso falacioso dizer que vamos acabar com a pobreza, sejamos justos e honestos connosco mesmo. Vamos acabar com a pobreza ou vamos diminuir os feitos da pobreza? Se cada Estado Africano fizer da sociedade um servidor do individuo e se o individuo africano for a fonte do progresso, a África do século XXI pode deixar de ser um continente onde abundam a pobreza, a miséria, o sofrimento, as guerras, a ignorância e as doenças endémicas. Para tal África deve apostar em Novembro de 2012

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governos democráticos sérios e responsáveis. A democracia, implica a consolidação do Estado de Direito, a confiança no ideal da liberdade e a instauração de uma cultura de paz, isto pode ser uma alternativa maravilhosa para construir o sonho, a esperança e uma vida de qualidade em África. Mas porque a introdução focaliza estes problemas? Tudo tem como explicação se partirmos da necessidade de percebermos “ O Contexto da Criação dos Estados Africanos e a Emergência do Processo de Democratização: Desafios e Perspectivas no Século XXI”. O Contexto da Criação dos Estados Africanos e a Emergência do Processo de Democratização O nascimento do Estado Moderno em África tem relação com o colonialismo europeu. Foi o colonialismo europeu que construiu as fronteiras artificiais dos actuais Estados Africanos, naturalmente, matando as antigas nações, reinos e Estados endogenamente africanos. Os Estados Africanos nasceram num contexto de conflito entre a modernidade e a tradição. Olhando para a actualidade, o conflito entre Malawi e Moçambique vem desde o tempo colonial. Hoje temos uma situação bizarra, onde, ilhas do Malawi estão nas águas territoriais moçambicanas no Lago Niassa. Também foi o colonialismo que implantou as línguas francas europeias em África, ditas línguas oficiais, em prejuízo das línguas africanas. As religiões que hoje proliferam em África, embora sincréticas resultam da adopção do muçulmanismo e do cristianismo, religiões vindas do oriente pela via do colonialismo europeu e árabe. Na África do Norte domina o mundo árabe. África não foi colonizada apenas por europeus, mas muitos se esquecem disso. Colonialismo e colonialismo actuam pela via da pilhagem colonial desprezando os autóctones. As guerras mundiais, o anti-colonialismo americano e soviético, a acção da ONU, o movimento dos países não alinhados, criado na década de 1950, propiciaram o ambiente para a efervescência política em África que viria a terminar nas lutas políticas e nas guerras de libertação clandestinas ou abertas, para a conquista das independências. Mas, assim que os Estados africanos se tornaram independentes, eles ficaram reféns dos libertadores dos países, muitos destes optaram em instituir regimes monolíticos da esquerda (Moçambique, Angola,) ou da direita (Malawi, Zaire) imitando aquilo que acontecia nas suas antigas metrópoles. No contexto da guerra fria, os novos Estados ou alinhavam com o capitalismo ou com o socialismo. Apesar de alinhar com o capitalismo, a maior parte dos novos países adoptou o mono partidarismo, os Estados empobreceram cada vez mais. O mesmo se pode dizer dos ditos Estados socialistas. Nos Estados africanos a classe política tornou-se uma elite intocável e inamovível. Muitos dirigentes africanos não valorizam o diálogo político. Assim se explica porque houve mais de 53 golpes de Estado em África, desde da 116

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altura das primeiras independências. Vários partidos que chegaram ao poder não ascenderam pela via do voto popular. Assim, os que se instalaram no poder por meio dos seus partidos introduziram o monopartidarismo. Esta medida tinha como justificação evitar a dispêndio de recursos com a criação de diversos partidos políticos. Por outro lado, afirmava-se que esta opção política pretendia evitar o surgimento de partidos etno-tribais, era necessário matar a tribo para fazer nascer a nação moderna. Mas os políticos africanos se esqueceram que uma nação deve ser vista como uma mãe: a mãe não se inventa nem se cria, a nação não se inventa, ela nasce pela vontade de se querer partilhar o viver comum, pela vontade de querer partilhar os mesmos sentimentos espirituais e a mesma vivência, pela vontade de querer construir uma vida comum, a nação deve ser entendida como a alma de uma pessoa, ela é singular, historicamente particular, cada povo tem a nação que lhe merece de acordo com as suas origens. Quando o bebe nasce ele não escolhe a nação onde quer nascer, a nação não se cria pela simples acção política ou por mera imposição Ideológica e política, ela resulta da partilha de experiências comuns, da comunhão solidária entre os cidadãos que sentem a necessidade de viverem juntos. Nenhum político tem o direito de reclamar, indo pelos quatro cantos de um país e dizer: este cidadão me pertence, porque eu o libertei do colonialismo. A liberdade não tem preço nem patrão. O justo preço da liberdade nasce do sacrifício comum consentido no processo da luta pela independência. Esta luta não foi apenas dos que pegaram em armas, mas ela inclui também a luta dos que morreram nas cadeias coloniais por causa da tortura ou dos que morreram quando as autoridades coloniais reprimiam as manifestações populares ou no decorrer do trabalho forçado. Quando os líderes africanos reclamam que a Europa deve pagar pelo comércio de escravos, este discurso não passa duma falácia. Nenhum valor pode pagar as vidas de escravos vendidos, vitimizados e mortos, a vida de um homem não tem preço, como se de uma mercadoria se tratasse. Do mesmo jeito, ninguém pode reclamar dizendo ser o pai da democracia. A democracia deve ser vista como um processo em construção e reconstrução perpétua, a vida da democracia depende do querer dos povos e cidadãos. A mensagem difundida em muitos países recem-independentes, logo depois da independência, estava cheia de promessas e sonhos, os libertadores dos países utilizaram um discurso romântico e as vezes falacioso do tipo: acabamos com o colonialismo, libertamos a terra e os homens, vamos construir um país mais próspero para o bem dos africanos, acabamos com a opressão e repressão. Contudo, muito cedo, dirigentes como Kwame Nrumah, Nyerere e Kaunda se aperceberam que a independência não resolve todos os problemas, que a reconstrução e construção da nação pediam a colaboração de todos. Hoje, volvidos mais de 50 anos, desde o Novembro de 2012

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surgimento dos primeiros Estados na África Negra, continuamos a nos debater com os mesmos problemas: pobreza, falta de comida, falta de habitação, doenças endémicas, falta de escolas e de hospitais, inexistência de uma rede de comunicações e transporte que faça respirar a economia no pais. Ainda não existe sequer uma linha férrea que liga um país de Norte a Sul e de Oeste a Este. Mas mesmo assim diz-se que África é um exemplo de crescimento e sucesso económico! Para perceber como chegamos ao ponto em que nos encontramos vale a pena olhar o contexto da emergência do Estado e das elites Africanas. Os que se auto-proclamam serem os melhores filhos da África, aqueles que declararam as independências, não conseguiram criar melhores países, poderes e regimes políticos mais justos. O que muitos destes dirigentes fizeram foi substituir um poder repressivo e opressivo colonial por outro, em muitos casos, o novo poder africano tornou-se cruel, mais radical e repressivo que o poder colonial. Para perceber a dimensão desta questão complexa temos que reflectir sobre o contexto em que nascem as elites e lideranças políticas africanas. O nascimento de movimentos políticos e das elites políticas em África tem a ver com a frustração, a criação de sindicatos e associações de estudantes, de agricultores de café, tabaco ou cacau e a formação das associações de outros profissionais. Estes movimentos políticos e sindicais, alguns deles surgiram antes das guerras mundiais. São movimentos que também assentavam em grupos de intelectuais, em bases étnicas ou regionais. Os movimentos políticos foram-se radicalizando a medida que se aproximava a independência (M’Bokolo, 2007: 522). Os sindicatos e as associações desempenharam um papel importante na emergência das elites políticas africanas. De facto, os dirigentes destes movimentos emergiram num contexto de frustração e revolta. O tratamento desigual dos cidadãos criou um clima de desconfiança no seio dos colonizados propiciando o surgimento de movimentos de protesto e resistência contra o sistema colonial. No início, as elites intelectuais e sindicais pretendiam apenas igual tratamento, justiça laboral e salarial. Da contestação aos efeitos do sistema colonial passou-se a contestação do próprio sistema colonial. (M’Bokolo, 2007: 522). Alguns partidos políticos nasceram, em alguns casos, a partir da transformação dos antigos sindicatos. Assim se explica, por exemplo, o surgimento de Sekou Toure como líder político na Guine Konacri (Ki-Zerbo, 1972). Os africanos se apropriaram do pilar do poder político ocidental - os partidos políticos. Já antes da II Guerra Mundial, em alguns territórios franceses e britânicos nasceram alguns partidos políticos, por exemplo, o ARPS da Goald Coast(Ghana), o Nigerian Democrático Parte, o Nacional Congresso of British West África, o Partido Socialista Senegalês que nasceu em 1929, cujos membros eram intelectuais e letrados como Leopold 118

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Sedar Senghor e Lamine Gueye. (M’Bokolo, 2007: 523) Em Moçambique, ocorreu um processo similar, os actuais dirigentes políticos foram antigos membros do NESAM77, da Casa dos Estudantes do Império; deste grupo faziam parte Joaquim Chissano, Armando Guebuza, Eulália Maximiano, entre outros. Alguns partidos procuravam traduzir a multietnicidade regional, por exemplo, o Northern People Congress da Nigéria. Outro exemplo a indicar: o National Council for Nigeria and Cameroons. Mas havia também casos de partidos de cariz etno-religioso, como exemplo temos o Gâmbia Muslim Congress e o Afro-Shirazi Party de Zanzibar. Para se conseguir a independência houve estratégias diferentes nas diversas colónias. Uns recorreram a luta armada, assim que o poder colonial se recusou a dialogar pacificamente. Outros movimentos tiveram sucessos pela via de negociação política, outra forma de luta foi a não cooperação com o regime colonial e a luta pela via da literatura e imprensa. Assim sendo, os movimentos políticos passaram de moderados a radicais. Dai a recusa em aceitar o multipartidarismo visto em tempo como sinonimo de falta de unidade. As décadas de 1970 e 1980 vão ser marcadas por mudanças profundas. O colonialismo chega ao fim nos finais dos anos 80. Com a guerra fria, que se acelera dos anos 60 até aos anos 80 do século XX, em África ocorrem golpes de Estado e eclodem guerras civis (Zaire, Nigéria, Uganda, Angola e Moçambique). A falência da URSS obriga os países socialistas a aproximar-se ao ocidente para ter apoios financeiros através do FMI e BM. O colapso da RDA em 1989, com a queda do muro de Berlim, assiste-se a reunificação alemã, a cortina de ferro cai. Em 1990 a URSS colapsou. Assim, o mundo ocidental passou a ser visto como referência na política mundial. Os programas de reajustamento estrutural em curso nos diferentes países aprofundam o compromisso com o mundo ocidental que impõe o multipartidarismo. Assim se percebe porque em vários Estados africanos os políticos não aceitam o princípio de alternância no acesso ao poder. Na década 1990 há uma febre e corrida para a introdução do multipartidarismo quer pela via pacífica, quer como resultado do fim das guerras civis. Contudo esta democracia do tipo liberal não está tendo sucesso em África devido a aspectos como: não-aceitação da alternância no acesso ao poder; falta de transparência nos processos eleitorais, sempre contestadas ( ex: Costa de Marfim, Moçambique, Angola), fragilidades das instituições democráticas, sobrevalorização do poder executivo em detrimento do legislativo e judicial, existência de uma economia derrapante e frágil, elevado índice de analfabetismo, forte dependência em relação aos doadores que ate condicionam os modelos de eleições, inexistência de comissões e tribunais eleitorais independentes e 77 Associação

de estudantes secundários fundada em 1949.

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falta de igual tratamento do voto, havendo a preferência de beneficiar os candidatos e partidos políticos no poder o que cria um clima comum de déficit político, aparentando que a oposição está desorganizada e fraca, isto ocorre porque não existe liberdade de acção política, não se respeitam as constituições politicas vigentes. Em muitos países africanos hoje temos democracias do tipo “faz de conta”. A democratização foi imposta pelo ocidente como condição para se ter acesso aos empréstimos para financiar os projectos de desenvolvimento e os processos eleitorais em África. Assim a democracia continua a ser um processo em construção, uma miragem, uma meta a atingir e não um facto consumado. Os pleitos eleitorais são vividos: Kenia e Zimbabwe são um exemplo claro. A minha pergunta é: os Estados Africanos são uma realidade ou utopia? Estes Estados são Estados de facto ou Estados “faz de conta”? A resposta a esta questão depende do lado em que nos encontramos. Se fazemos parte das elites políticas dizemos que sim os Estados são soberanos, são reais. Mas se estivermos do lado do pobre dizemos que não houve mudanças substanciais entre o período colonial e o momento pós-independência, apenas mudaram os beneficiários e actores políticos. A maior desgraça da África foi não ter conseguido criar uma engenharia política que pode gerar regimes políticos e Estados endógenos. Com o advento do modernismo adoptou-se o modelo do Estado colonial das antigas metrópoles, mesmo nos países onde existem monarquias, estas estão pervertidas, não são genuinamente africanas no conteúdo e na forma de poder. África: Desafios e Perspectivas no Século XXI Que Desafios para África no século XXI? Responder a esta questão não é uma coisa fácil. Olhando para a fotografia do mundo africano hoje parece que o continente deve melhorar o seu desempenho económico para reduzir dependência face ao exterior e a pobreza. África precisa consolidar a democracia privilegiando a descentralização e não a simples desconcentração. Devese dar mais autonomia e poder as autoridades e poderes locais. Em África precisamos reforçar o papel da sociedade civil para defesa da democracia. As comissões eleitorais devem ser mais responsáveis, independentes, sérias e transparentes. Os Africanos devem apostar numa agricultura de exploração priorizando a produção de alimentos, a construção de infra-estruturas deve ser consolidada. Os países devem potenciar a criação de micro e medias pequenas empresas no lugar de apenas potenciar a criação de mega empresas. As megas empresas não promovem desenvolvimento 120

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local sustentável, veja o exemplo da Mozal, Kermar e Vale. Outro desafio consiste em saber integrar a juventude criando oportunidades de emprego, de escolarização e lazer, melhorando o leque salarial. No domínio da cultura e desporto deve-se tirar proveito económico das actividades desportivas. Na Europa o futebol e outros desportos são uma indústria de fazer dinheiro, porque é que em África isto não acontece? O poder político deve reforçar-se criando equilíbrio entre os poderes, executivo, legislativo e judicial. As sucessivas mudanças da Constituição Política não ajudam a consolidar a democracia uma vez que estas mudanças vão apenas ao encontro dos interesses dos políticos no poder ou representados no parlamento. África precisa apostar numa Educacao de qualidade, as Universidades devem ser centros de produção do saber e não do simples consumo do saber produzido por outros. Deves-se apostar numa assistência médica mais competente e actuante, devese potenciar a cooperação regional sem menos prezar o mundo extra-africano. Devese criar um empresariado nacional forte, actuante, crítico e com iniciativa, Os africanos devem criar seus próprios bancos para financiar seus projectos de desenvolvimento. Os Estados devem controlar a Banca e Seguros. Aproveitando a oportunidade que a natureza oferece, deve-se potenciar a exploração rentável e sustentável do sector de turismo, mas este turismo deve ser feito olhando para a necessidade de próprio africano desfrutar dele. Concluindo: a democracia é um projecto viável em África desde que haja vontade política, trabalho árduo e entrega. África deve prevenir-se contra: a poluição do ambiente, o desflorestamento, o lixo nuclear trazido dos países desenvolvidos, a delapidação de recursos minerais em proveito dos países desenvolvidos ou em via de desenvolvimento. A corrupção instalada no poder político deve ser combatida, a não valorização da pesquisa e dos intelectuais nacionais pode levar a que ocorra a fuga de cérebros, o não aproveitamento racional dos quadros existentes pode desmotivar as pessoas que passarão a olhar a formação como um mero passatempo. A Globalização pode ser uma ameaça se os Estados não souberem tirar vantagens do processo de criação da aldeia global. Quanto as oportunidades , África tem uma população jovem e bastante empreendedora, globalização e regionalização pode ajudar a obter mais-valia em termos de largamento de oportunidades de negócios e troca de tecnologia e conhecimento, a abundância de recursos pedológicos e hídricos e minerais pode fazer da África um continente do futuro. Novembro de 2012

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FILOSOFIA INTERCULTURAL E A PROMOÇÃO DE REFLEXÕES CRÍTICAS A PARTIR DO CONTEXTO MOÇAMBICANO Por Stélia Rosa Muianga78 O presente artigo propõe uma abordagem sobre a interculturalidade, discutindo a possibilidade de universalização de respostas particulares. Isto é, considerar a interculturalidade como superação de formas de pensar acríticas, embutidas pela lógica hegemónica, que considera uma “supercultura” da qual dependem as outras. Enfim, uma Filosofia que se fundamenta num universalismo que tem em conta a pluralidade do fazer filosófico. Para tal, examina s propostas de Habermas através do diálogo comunicacional e de Kwasi Wiredu com a sua descolonização conceptual. O artigo demonstra a necessidade e possibilidade de participação de todos, incluindo Moçambique, na construção de uma Filosofia “mais completa” através do diálogo fundamentado em modos de pensar próprios. Palavras-Chave: Filosofia Intercultural, Diálogo Comunicacional, Descolonização Conceptual, Universalismo e Relativismo Cultural. INTRODUÇÃO Este artigo, que hoje apresentamos no Congresso Internacional de Filosofia: Filosofia e Metamorfoses Sociais na CPLP, resulta das constatações da nossa dissertação do Mestrado79. A questão da convivência entre diferentes, que é o cerne da nossa abordagem, é hoje reconhecida e analisada por diferentes campos de saber, sendo que nós a abordaremos na vertentente filosófica, mas precisamente da filosofia intercultural. As sociedades actuais incluindo Moçambique são inegavelmente multiculturais, principalmente devido aos processos de mundialização/globalização e da migração. Um dos limites do processo de mundilaização/globalização em que estes encontramse, ou desenvolvem-se em grande escala nos países desenvolvidos e segundo seus princípios, sendo que os menos desenvolvidos permanecem excluídos devendo se submeter aos primeiros. Nesse sentido o multiculturalismo seria a convivência entre a cultura hegemónica mundial e a culturas dos grupos minoritários. A sociedade 78 Mestre

em Eduardo/Ensino de Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique.

79 Dialogo Comunicacional e Descolonizacao Conceptual como Pressupostos para a Filosofia Intercultural: Habermas e Wiredu.

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hegemónica projectou durante gerações uma imagem de inferioridade as outras culturas subjugando-as. Neste contexto, é nossa preocupação discutir a possibilidade de universalização de respostas particulares através da filosofia da interculturalidade, isto é, uma filosofia que supere a contenda entre o universalismo e relativismo cultural, uma filosofia onde todos possam contribuir através de um processo interactivo e de autoenriquecimento para a construção do universal. Tomamos, como ponto de orientação, para a nossa análise (1) a Habermas com a sua filosofia do sujeito comunicante e (2) Wiredu com descolonização conceptual, ou seja pela via da cultura. Habermas advoca a necessidade de intercompreensão pelo diálogo a partir do reconhecimento da diferença. E é, segundo ele através diálogo comunicacional presente na sua Teoria do Agir Comunicativo, que podemos alcançar uma universalização efectiva. Por outro lado Wiredu a necessidade de exaltação das culturas antropológicas, desconstruindo a cultura dominante, opressora e subjugadora das minorias; sem com isso rejeita-la totalmente. O que passa pela descolonização conceptual, e por tanto pela criação de modos de conceptualização próprios. Abrindo-se assim a possibilidade de todos poderem participar. Assim, a partir destes dois caminhos, teríamos uma filosofia intercultural como produto da síntese dos diferentes modos de conceptualização através do diálogo comunicacional, que possa responder aos desafios multiculturais, uma vez que pressupõe o reconhecimento e valorização do outro na sua especificidade com vista ao consenso. Retomando ao primeiro argumento dizer que a teoria habermasiana do agir comunicativo está orientada para intercompreensão. As acções entre sujeitos têm como objectivo o entendimento mútuo alcançado intersubjcetivamente, levando em conta as regras e os valores no processo do relacionamento. Habermas designa essa dimensão com o conceito husserliano de mundo de vida, que podemos considerar o espaço no qual se estabelecem essas interacções. Enquanto o falante e o ouvinte se entendem acerca de algo no mundo, eles movem-se num horizonte de vida comum, com o fim de se entender e alcançar um consenso (cf. HABERMAS, 1990:278). O mundo de vida fundamenta uma realidade social em que a relação sujeito– aluno Novembro de 2012

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e substituída pela relação intersubjectiva entre sujeitos, que capazes de linguagem e acção compartilham a realidade de um mesmo mundo vivido na sua relação com a comunidade onde eles se encontram inseridos (cf. STIELTJES, 2001: 240). A definição de mundo vida em Habermas, permite assim conceber uma racionalidade que se desdobra no movimento entre o consenso e a crítica. É na interacção que os participantes superam a subjectividade inicial de suas perspectivas, graças a comunidade de convicções racionalmente motivadas, assegurando ao mesmo tempo a unidade do mundo objectivo, o mundo social e da subjectividade de cada um dos sujeitos através da acção orientada pela comunicação – agir comunicativo fundado na intersubjectividade (Idem: 65). O mundo da vida forma, segundo Habermas, o contexto para os processos de entendimento mútuo e fornece recursos para tal80. Essas suposições “habitualizadas” culturalmente que formam o pano de fundo do mundo da vida são apenas um elemento do mesmo pois, as solidariedades dos grupos integrados por intermédio de valores e as competências dos indivíduos socializados são de maneira diferente das tradições, recursos para o entendimento mútuo. É no processo crescente de socialização, em um universo intersubjectivamente compartilhado de significados e práticas, que as pessoas podem desenvolver-se em indivíduos distintos. Esta constituição social dos seres humanos dá conta de que independentemente da sua especificidade esses indivíduos continuam numa dependência contínua das relações interpessoais e da comunicação em rede de reconhecimento recíproco e na tradição. Daí que se explica a possibilidade dos indivíduos poderem desenvolver, rever e manter a sua auto-compreensão, a sua identidade e a compreensão da própria esfera pública (enquanto espaço de interacção livre, fora da igreja, do governo, etc; que faz a mediação entre o estado e a sociedade) em que se encontram inseridos (HABERMAS, 2005, p.16). A preocupação principal é perseguir o melhor argumento e, por essa razão, segundo Bronner interpretando Habermas, a ética discursiva “D” pressupõe que “ todos atingidos por uma decisão devem ter participado dela” (BRONNER, 1997, p.357). O consenso sobre algo mede-se pelo reconhecimento intersubjectivo da validade de um proferimento fundamentalmente aberto à crítica. Trata-se de um conceito que remonta da experiência central da força sem coação da fala argumentativa, o que 80 Oferece

uma provisão de obviosidades culturais de onde os participantes da comunicação tiram esforços de interpretação os modelos de exegese consentidos.

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permite o entendimento e consenso partindo do melhor argumento (HABERMAS, 2002c, p.77; STIELTJES, 2001, p.65). Mas, para que de facto não haja nenhuma situação de imposição e ou de dominação nesse momento, há que pressupor uma situação ideal de fala onde não entram questões de poder. Neste contexto, Habermas fala daquilo que é a situação ideal de fala, enquanto suposição de igualdade entre os actores participantes, todos devem aqui desligar-se dos seus papéis – desligados do poder e qualquer outro tipo de diferenciação – que lhe dê vantagem no diálogo comunicacional. A situação ideal de fala em Habermas é uma suposição inevitável. Ela só é atingida quando todos actores têm a mesma oportunidade de falar e de ouvir. Assim, a situação ideal de fala deve ser vista à luz das pretensões de validade pois, se uma regra é violada o consenso é falso, ou seja, os actores decidiram não o que é bom para si mas o que a supremacia de alguns actores em termos de poder assim o determinou (STIELTJES, 2001, p.71). Passando para aquilo que é o segundo argumento, é de referir que Wiredu, toma como base de orientação da sua filosofia o conceito de descolonização conceptual. Mas o que entende ele por descolonização conceptual? Ele define-a como “privação do pensamento filosófico africano de todas as influências indevidas que emanam do nosso passado colonial.” A palavra "indevida" é essencial nesta definição pois, não seria racional, segundo Wiredu, rejeitar tudo que advém do colonialismo e, é admissível que um pensamento levado a cabo pelos nossos colonizadores possa ser válido ou de alguma forma salutar para a humanidade. Assim, parece provável que a modernização da própria filosofia africana irá incluir elementos indígenas e ocidentais 81 . Segundo Wiredu com a colonização foram gravemente infectadas (parafraseando Wiredu) os modos de conceptualização, através das afectacao ou colonização das religiões e sistemas de educacçao, que são veículos importantes na construcao de modos de pensar de um povo. Fundamentando esta tese Wiredu argumenta dizendo que se tentamos obter um conceptual a partir da nossa própria língua, podemos notar (comparando) que alguns conceitos estrangeiros não se encaixam de facto ao nosso contexto. Isto é, que na literatura há muita sobreposição de concepções ocidentais sobre materiais de nosso pensamento, ou seja, o pensamento africano é conceituado em categorias tais como as do espiritual e do sobrenatural que não se encaixam a 81 Diferentemente

de outros pensadores, Wiredu opta por uma solução pacífica. Frantz Fanon, por exemplo, em os Damnés de la Terre, defendia que os colonizadores usavam como principal arma a imagem que eles concebiam dos colonizados impregnando neles o sentimento de inferioridade e, para que se estes se libertassem deviam livra-se dessas imagens autodepreciativas. Fanon recomendava assim, a violência como forma para alcançar esta liberdade. (TAYLOR, 1994, p.85)

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ele. Daí que, segundo Wiredu, precisemos fazer uma crítica da aplicação de tais conceitos para o nosso pensamento e isso, pensa ele, é o início da descolonização conceptual. Passamos a analisar algumas situações nas quais Wiredu afirma haver sobreposição de conceitos ocidentais: Por um lado, a cosmologia Akan Deus é criador do mundo mas Ele não está aparte do universo: Ele juntamente com o mundo constitui a totalidade espaço-temporal da existência. Num senso mais profundo, a lacuna cosmológica indicada pela distinção entre natural/sobrenatural não existe no seio da cosmologia Akan (WIREDU, 2003a, p.21). Por outro, a noção de criação a partir do nada não faz sentido na linguagem Akan. A ideia de nada só pode ser expressa através de uma frase como se whee nni ho que significa algo como `a circunstância do aqui não ser algo aqui´. A palavra ho (aqui, no mesmo lugar) é muito importante na frase pois, indica um contexto espacial. A abolição do contexto efectivamente abole a inteligibilidade na qual a linguagem Akan está concernida. Mais ainda, Obade, a palavra Akan que Wiredu traduziu provisoriamente como “criador” significa “criador de coisas”, mas em Akan criar algo é instrumental, apenas cria-se algo a partir de algo. A razão fundamental para esta situação semântica na língua Akan é porque nesta língua existência é necessariamente espacial. Existir segundo Gyekye (1987, p.179 apud WIREDU, 2003a, p.21) é wo ho, estar no mesmo lugar. Então, se Deus existe Ele está em algum lugar. Se o nada exclui o espaço então, este conceito não tem acomodação na concepção Akan, por outro lado, se o nada acomoda espaço não é mais absoluto. Com certeza, se algo é incoerente no contexto de uma determinada linguagem não significa que há algo errado, apenas a língua é inadequada para tal82. Não obstante, a coerência da concepção da criação a partir do nada é questionável mesmo no inglês. Em inglês o conceito de `there is`— que é diferente de there — que é equivalente de existir é claramente espacial. A conotação fortuita de criação é incompatível com a circunstância ou melhor não-circunstâcia do nada absoluto. Assim, a noção de criação a partir do nada não só é incoerente na língua Akan, mas também em termos absolutos (Ibid., p.22). Não é possível criticar ou reconstruir sem compreensão conceptual (a partir do nosso próprio contexto, da nossa língua), sendo assim, a compreensão conceptual deve ter 82 Os

erros estão equitativamente distribuídos às raças heterogéneas da humanidade. Se um determinado conceito não pode ser expresso numa língua, significa que esta precisa de suplementação de outra (WIREDU, 1995, p.52).

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uma alta prioridade no projecto filosófico moderno. Contudo, há que se preservar as características tradicionais na condição de prévia avaliação crítica. Não obstante, este é o aspecto mais complicado do estudo do pensamento tradicional africano, pelo facto do estudo ser realizado em um sistema de linguagem pertencente a uma cultura e que é muito diferente da cultura africana (WIREDU, 1984a, p.34; KEBEDE, 2004, p.151). Assim, como já foi dito, a descolonização é um processo altamente conceptual que implica o desenvolvimento de estudos intensivos de elementos da cultura que desempenham papel importante na constituição do sentido nas diferentes visões de mundo africano – no qual a linguagem está pré-eminente. Não se pode pretender separar as imposições conceituais sobre o pensamento africano sem uma compreensão estreita das línguas indígenas interessadas, prescrevendo assim imediatamente uma metodologia determinada no estudo da filosofia tradicional africana. Simplificando, Wiredu estipula que a ênfase deve ser dada à execução, em profundidade, nos estudos das filosofias tradicionais de povos específicos africanos por pesquisadores que conhecem bem as línguas envolvidas (WIREDU, 1998, p.6). Para complementar dizer que segundo Kebede (2004, p.116) e Osha (1999, p.138), a descolonização deverá passar também pela crítica e reconstrução da tradição oral e da exploração dos recursos literários e científicos do mundo moderno em busca de síntese. Apresentadas as premissas (Iº e IIº capítulos), pretendemos agora defender a necessidade e possibilidade da construção de uma filosofia intercultural, enquanto oportunidade de universalização de respostas particulares. Necessidade na medida em que as filosofias de Habermas e de Wiredu demonstram a urgência de acabar com concepções totalitaristas invasivas, como a subjugação de culturas através do universalismo imperial e ou o facto de se estabelecer como verdade certas realidades inadmissíveis83. E possibilidade, na medida em que as teorias dos dois autores apresentam pressupostos para tal, isto é, os dois autores defende a necessidade de uma filosofia crítica, que conduza a viabilização do encontro entre sujeitos, longe de qualquer imposição, exclusão ou isolamento. Para Habermas: “O conflito das culturas é travado hoje, de qualquer modo, no contexto de uma sociedade global, na qual, à base de normas de convivência, bem ou mal, os actores colectivos precisam entrar em entendimento, independentemente das suas diferentes 83 Por

exemplo a questão de se considerar como verdade certas mentiras em nome do relativismo. Por outro lado, Por exemplo, ao criticar os seguidores da negritude, Wiredu observou que existiam pessoas a morrer diariamente no Gana por preferirem medicamentos tradicionais, à base de ervas, aos remédios ocidentais (APPIAH, 1997, p.150-151).

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tradições culturais. É que, na situação actual do mundo, o isolamento autárquico contra influências externas já não constitui opção possível. No mais, o pluralismo cosmopolita desabrocha também no interior das sociedades ainda fortemente marcadas pelas tradições. Até mesmo em sociedades que comparativamente são culturalmente homogéneas, torna-se cada vez mais inevitável uma transformação reflexiva de tradições dogmáticas predominantes que se apresentam com pretensões à exclusividade” (HABERMAS, 200384 apud PEIXOTO, 2006, p.119-120). Da mesma forma para Wiredu: “Temos de usar um método de crítica e de reconstrução. Essa descolonização não é um processo negativo, pelo contrário, ele pode ter resultados muito positivos. Se filosofarmos com uma consciência alerta de possíveis armadilhas de uma língua estrangeira, não podemos permanecer indiferentes as possibilidades semelhantes em nossa própria língua. Se o assunto em discussão surge a partir do pensamento tradicional ou é de proveniência moderna a abordagem, em todo caso, é no sentido de incentivar o pensamento novo e objectivo. Por causa da atenção à linguagem nessa abordagem, é desejável que baseamos nossas pesquisas sobre as línguas que conhecemos muito bem. Daqui resulta que, em nosso estudo da filosofia tradicional africano há uma necessidade de estudos intensivos das filosofias do nosso povo específico.” (WIREDU, 1984, p.43). É de salientar que na filosofia dos dois autores está patente a crítica como características principal, ou seja, eles defendem que os sujeitos devem ser críticos em relação a sua própria cultura, pois só assim poderão aceder a um verdadeiro diálogo. Pois, sem a criticidade, ou seja, qualquer interacção entre partes que não assente na abertura para o entendimento mútuo, conduz a ideia de que a nossa cultura não pode estar errada, não pode aprender com os seus próprios erros e não pode se redimensionar, condenando então o próprio diálogo. O diálogo efectivo pressupõe, neste sentido, “o respeito e a legitimação do ´outro´ enquanto agente válido de conhecimento” (GOMES, 2008, p.11; GENSLER, 2004, p.3). O programa da filosofia intercultural por nós concebido pretende levar a mudança da atitude filosófica no sentido de promover reflexões críticas a partir dos contextos de origem – a partir do tradicional e do “mundo”, e conduzir a reinterpretação do mesmo na medida em que há uma influência dos países dominantes e que se impõem 84 HABERMAS,

Jürgen. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. In: MERLE, Jean-Christophe. Direito & Legitimidade. São Paulo: Landy Editora, 2003, p.81-82.

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em relação as diversas culturas. Cada cultura, na participação/elaboração da filosofia intercultural deve reconhecer a universalidade e se reconhecer nela. De uma forma geral, a ideia de construir uma filosofia intercultural a partir de um espaço público global deve estar fundada numa legitimidade comum a humanidade (DIAGNE, 2008, p.8). É necessário ainda ressaltar que entendemos filosofia intercultural não como um simples diálogo entre culturas e nem como posição teórica; não como um processo fechado; não como disciplina académica mas como numa perspectiva de construtivismo Assim defendemos uma filosofia intercultural que tem em vista construção de um novo universalismo capaz de considerar a diferença, mas sem incorrer no relativismo cultural extremo. O que é realizável através do diálogo efectivo entre as culturas envolvendo diferentes perspectivas onde cada uma das partes possa reelaborar suas concepções. É a tentativa de criar, entre as diferentes culturas, a partir das potencialidades filosóficas, um ponto de convergência comum, sem dominação ou colonização. Muitas, ou cada cultura tem a sua forma de explicar os fenómenos. A escola convencional ensina uma monocultura, mas devemos ter em a perspectiva pluralista ao lado daquilo que é a relativista. Devemos assim descolonizar a ciência moçambicana através do reconhecimento do currículo local como fundamento e compreensão do mundo próprio, de modo a contribuir e criar condições de continuidade de ou para o diálogo quer a nível interno – em relação ao diversificado mosaico cultural que encontramos dentro da nação moçambicana (intraculturalidade85) – quer a nível da CPLP ou ainda num nível mais global (interculturalidade).

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Termo usado por Raúl Fornet-Bentacourt.

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BIBLIOGRAFIA BRONNER, S.E., Da Teoria Crítica e seus Teóricos, São Paulo: Papirus Editora, 1997. DIAGNE, S. B., Toward Global Public Square: Individual Community and Human Rights, Cameron: CODERSIA, 2008. [online] Disponível em /Links/…/souleymane_bachir dia gne.pdf, baixado a 23 de Dezembro de 2010. GEMSLER, H., Ética e Relativismo Cultural, 2004. [online] Disponível em . Baixado a 1 de Maio de 2010. GOMES, M.M.P., Fronteiras ou Zonas de Contacto? As (Im)possibilidades de um Cosmopolitanismo Cognitivo, Camarões: CODESRIA, 2008.. HABERMAS, J. O Discurso Filosófico da Modernidade, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990. HABERMAS, J. Pensamento Pós-Metafísico, 2ª Edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. PEIXOTO, E. S.P., A Sociedade Internacional Contemporânea e o Debate acerca do Alcance das Normas de Direitos Humanos: Universalismo e/ou Relativismo Cultural, 2006. [online] Disponível em . Baixado a 21 de Janeiro de 2010. STIELTJES, C. Jürgen Habermas: A desconstrução de uma Teoria, São Paulo: Germinal, 2001. WIREDU, K. E., Toward Decolonizing African Philosophy and Religion: African Studies Quarterly 1.4, 1998. [online] Disponível em . Baixado a 19 de Julho de 2009. WIREDU, K. E., “Philosophical Research and Teaching in Africa: Some Suggestions”. In Teaching and Research in Philosophy: Africa, Paris: UNESCO, 1984, pp. 31-55.

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A ACTUALIDADE DO PENSAMENTO DE KWAME NHKRUMAH E FRANTZ FANON: DESAFIOS POR UMA CONTÍNUA EMANCIPAÇÃO DE ÁFRICA Anselmo Chizenga86 e Keluna Marciana Sitoe87 A presente comunicação visa reflectir sobre questões que sustentam ou põem em causa a efectividade das independências africanas, o que fazemo-lo na óptica de Nkwame Nkumah e Frantz Fanon, uma vez que os seus ideais incluíam ideias que assegurassem e sustentassem as independências como uma espaço para a materialização da unidade, justiça e inclusão social que servissem como garantes das nossas liberdades. A África pós independência está vinculada ao mundo, as regras do mercado que sustentam as sociedades actuais, são dirigidas pelo ocidente – ex-colonizadores – as normas do mercado afiguram-se um “colonialismo de retorno” face a nova era do racismo88. E a ideias de comunidade linguística como a CPLP pode perpetuar essas assimetrias enquanto não solidificar o ideal de uma unidade efectiva, justiça e inclusão comunitária dos países daby 89 . Palavra chave - Unidade, justiça e inclusão social, emancipação e aventura ou desventura na CPLP. INTRODUÇÃO A presente comunicação visa reflectir sobre a “ A actualidade do pensamento político de Kwame Nkrumah e Frantz Fanon” uma vez que seus ideais incidiam sobre a emancipação de África abordamos juntamente as suas perspectivas acerca dos “desafios por uma contínua emancipação de África”. A partir, sobretudo, da conferência do Berlim (1884-1885) o homem africano vem lutando pela cidadania e pelos seus direitos. A África lutou contra o sistema de 86

Licenciado em Ensino de Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique, 2011. Licenciada em Ensino de Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique, 2011; Estudante de Licenciatura em Ciências Políticas (Roma, Itália). 88 Wieviorka usa esta expressão para fazer referência a ideia de que a noção de raça superior foi substituída pela noção de normas e costumes superiores. O estranho é que os mais confortáveis outrora diante das “ciências raciais”, continuam a ostentar e difundido a suposta cultura e hábitos superiores (WIEVIORKA in Serra(org.) A nova era do racismo, 1998). 89 Esta expressão foi usada por Brazão Mazula, para fazer alusão aos cidadãos que são vitimas do estado, este que ao invés de protegê-los, o mesmo ameaçava a liberdade dos cidadãos, o mesmo acontece com a comunidade de países, e a CPLP não foge a regra (Mazula, 2000). 86

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dominação colonial, conquistadas as independências africanas os desafios são hoje: o estado de direito que sirva de garante das nossas liberdades e respeitando a nossa cidadania e fraternidade, que não se reduz ao cumprimento da lei e ordem. É neste âmbito que nos propomos a fazer uma interpretação do que foram os contributos de Kwame Nkrumah e Frantz Fanon em prol de uma libertação do continente africano. O trabalho surge no âmbito dos acontecimentos que tem sucedido no mundo todo e preocupações que assolam a humanidade (a busca da liberdade e a reconhecimento), centralizando-nos em África. Porém, tomamos a África não como um espaço físico, mas sim como uma parte em representação da humanidade pelo que os problemas aqui reflectidos não dizem respeito somente à África ou aos africanos, mas sim de todos. Para que iniciássemos o trabalho sentimos necessidade de fazer uma contextualização com o objectivo de dar a conhecer os incidentes marcantes que poderiam facilitar a compreensão do mesmo. Assim, a nossa contextualização é uma apresentação do processo colonial africano, desde a sua partilha até a fixação efectiva. Temos vindo a notar um maior empenho no que diz respeito à resolução dos problemas de África, mas muito pouco se faz sentir como solução. Isto deve-se ou pela grandeza dos problemas, ou pelo não minoridade das soluções. A questão de fundo para o nosso trabalho é: para quando uma África, unida, justa e livre de todos os males? Nkrumah afirmara aquando da indepenência de Gana que “a independência nacional só teria sentido se estivesse ligada à liberdade total do continente africano”. Como hipótese para a questão colocada, os dois filósofos são unânimes em afirmar uma necessidade de resolução dos problemas que assolavam o continente no período Pós-independência. Nkrumah aponta como acto urgente a união de todos os Estados e Fanon apresenta a questão da justiça, apelando à igualdade como garantes para as boas relações entre os homens. Pretendemos participar no debate com o objectivo de socializar as nossas inquietações sobre as independências à luz do pensamento de Fanon e Nkrumah. E servimo-nos dos seus ideais para reflectir sobre a questão: CPLP: aventura ou desventura? A independência tornar-se-ia uma tarefa para o pensamento e uma problemática para a acção. Severino Elias Ngoenha 132

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Contextualização Segundo Ngoenha (2004: 42) os problemas da humanidade variam consoante os tempos. Este pensador faz uma apresentação cronológica dos problemas que mais marcaram a humanidade desde o século XVIII até a actualidade. Para Ngoenha, no século XVIII estava em causa a noção de liberdade, um século depois foi a vez da igualdade, no século XX suscitou os principais debates o conceito de revolução e na segunda metade do mesmo século toma campo a noção de justiça. Ngoenha afirmara que provavelmente, para os tempos subsequentes, o que tomaria espaço fosse a noção de supra-nacionalidade (ONU, União Africana, SADC). Os problemas anteriormente apresentados tem isp no processo de colonização da África, que tem o seu início oficial logo após a realização da Conferência de Berlim (15 de Novembro de 1884 – 26 de Fevereiro de 1885), marcada por um ambiente de interesses económicos e políticos pelo continente africano por parte da grandes potências europeias. Para tal foram traçadas politicas coloniais, tendo sido definidas como de assimilação90 (nas colónias portuguesas, francesas e belgas) ou de diferenciação91 (nas colónias britânicas e alemãs). É a estas atitudes que Fanon chama de construção de máscaras brancas. Segundo Hernandez (S.d: p. 109), o processo de colonização foi marcado pela violência, despropósito e pela irracionalidade da dominação. Foi também marcado pelo confisco de terras, formas compulsórias de trabalho, cobrança abusivas de impostos e violência simbólica construtiva do racismo. É neste contexto que, no século XX, em África regista-se o levantamento dos povos africanos dominados e explorados pelas potências que os tinham mantido em sujeição. Os povos africanos tinham como objectivo fundamental arrancar a África do colonialismo sob todas as suas formas e, a seguir a esse objectivo, unir politicamente todos os estados africanos, pois este era tido como o melhor meio de salvaguardar a liberdade tão duramente conquistada e o fundamento ideal do progresso económico, social e cultural, tanto dos indivíduos bem como da sociedade.

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A política de assimilação tinha como objectivo converter gradualmente o africano em europeu, o que significava que a organização, o direito consuetudinário e as culturas locais deviam ser transformadas. (Hernandez sa. 104 apud Ki-zerbo 103156). 91 A política colonial de diferenciação tinha como ponto básico de sustentação um conjunto de mecanismos e instrumentos voltados para viabilizar o governo indirecto. Esta baseava-se em generalizar os bens da civilização britânica, ao mesmo tempo “mantendo e protegendo as sociedades indígenas”. (ibidem, 105)

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Respondendo a esta necessidade emergiram intelectuais que reflectiram sobre as formas de suprimir a dominação colonial. Dentre vários, vamos centralizamo-nos em Kwame Nkrumah e Franz Fanon. Contudo, do mesmo modo que a força nos africanos estava centrada numa política unificadora, a do colonizador sempre esteve na desunião de África (dividir para reinar). Foi neste contexto que surgiram os Movimentos de Libertação Nacional como forma eficaz de libertarem a África da colonização estrangeira. (Nkrumah, 1977: 12). Apercebendo-se das dificuldades para a conquista da liberdade, os intelectuais que lideravam tais Movimentos de Libertação Nacional viram a necessidade de traçar ideias de como gerir as liberdades conquistadas no acto das independências políticas. Francis Nwia Kofie Kwame Nkrumah (1909-1972) Francis Nwia Kofie Kwame Nkrumah, filho de Madam Nyaniba, nasceu provavelmente a 21 de Setembro de 1909 em Nkoroful, na Costa do Ouro. O seu primeiro nome lhe foi atribuído no momento do seu baptismo no dia 21 de Setembro pela Igreja Católica Romana, tendo passado a usar este nome associado aos seus últimos atribuídos pelo seu pai. (Sherwood, 1996: 17). A figura de Nkrumah é muito difundida e associada ao conceito de Unidade Africana. Inicialmente (1947), este pensador tomava o conceito de unidade apenas a nível da África Ocidental. Em 1962 passa a conceber este conceito a nível continental. Kwame Nkrumah é merecedor de reconhecimento no âmbito das independências do Gana (1957) e da Nigéria (1960) e a distinção no universo africano, sobretudo anglófono, é divido à sua vontade de criar um sistema de pensamento autónomo e coerente. (Cf. Benet, 1981: 149-156). Também fez parte do movimento de estudantes que se aproximaram das ideias pan-africanistas espalhadas na intelligentsia dos países africanos anglófonos tendo contribuído grandemente para o despertar da África Negra – o Nacionalismo. (Ki-Zerbo, 2002: 170). A formação académica de Kwame Nkrumah deu-se em escolas católicas no Gana e posteriormente em Universidades Norte-Americanas e inglesas. A unidade como arma contra todos os males O pensamento filosófico de Nkrumah, exposto em quase todas as suas obras, centrase na questão da União Africana. Esta união era entendida como uma continuidade 134

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após as conquistas das independências políticas em povos sob dominação colonial para a conquista da liberdade e independência total e completa. Segundo Nkrmah, 1972: xi e xv, a base da dependência territorial colonial é económica, contudo a base da solução do problema em causa é política. Este pensador faz ainda um apelo no sentido de consciencializar os africanos em relação aos males do colonialismo e imperialismo, e mais, apela aos estados já independentes a não se dispor de mãos cruzadas, na medida em que devem estar preparados para fazer frente ao neo-colonialismo. Em suma, os discursos de Nkrumah eram em torno de uma liberdade e ele entendia a liberdade de forma tridimensional. A primeira era a liberdade política que significaria uma independência total e completa, livre do controlo de qualquer governo exterior. A segunda era a liberdade democrática que implicava os estados africanos despiremse da opressão e as massas se fazerem sentir. Por último, faz referência a uma reconstrução social acreditando que livres da pobreza e exploração económica e com a melhoria das condições sociais e económicas as massas estarão em condições de vidas melhores. (Cf. Nkrmah, 1972: 43). O único meio para o alcance da liberdade que tanto se anseia é a união. “Peoples of the colonies, unite: the working men of all countries are behind you 92 .” Após esta explanação, pode-se levantar a seguinte questão: como materializar a união? A união de Nkrumah pode-se entender de forma faseada consoante a conjuntura. Estando fora de Gana Nkrumah esteve engajado num projecto de união regional, de volta a casa, numa união territorial condicionada à liberdade e independências políticas e após a independência de seu país numa união continental condicionada à liberdade e independências políticas de todos os países africanos. União regional – Oeste Africano Após o V Congresso Pan-Africano, realizado em 1945 em Londres, Kojo Botsio, Bankole Akpata, Ashie Nikoi, Wallace Johnson e Awoonor-Renner dispor-se com o intuito de formar uma organização com objectivo de reunir esforços em África o mais rápido possível. Tratava-se de um projecto de união regional que tinha a designação de Secretariado Nacional do Oeste Africano. A este grupo foi convidado 92

Nkrumah. Towards colonial freedom. London. Panaf. 1972. pp43.

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Nkrumah para ocupar o cargo de secretário. O Secretariado Nacional do Oeste Africano tinha o objectivo de promover a união e lutar pela independência dos países da África Ocidental. “West Africa is one country: peoples of West Africa unite”. (Sherwood, 1996:128). Esta organização começou as suas acções com muita rapidez e vivacidade. (Cf. Sherwood, 1996: 127-129). Contudo, a organização vai abaixo por falta de fundos. Apesar disso, o Secretariado continuou a operar até 1950, altura em que não se pôde mais pagar o aluguer dos escritórios. (Cf. Sherwood, 1996: 156). Nesse momento, Nkrumah já tinha regressado à sua terra natal. União terrritorial Acredita-se que desembarcando em Gana, regressando de Londres, Kwame Nkrumah estivesse bastante fervoroso com os ideais do Secretariado Nacional do Oeste Africano, visto que o motivo que o arrancou de Londres não era divergente ao que o mantinha: lutar pela sua pátria. Daí que se justifica ter continuado o seu trabalho mesmo sem estar directamente ligado ao Secretariado empenhado-se na união do seu país. Nkrumah afirma que em estados recentemente independentes, há necessidade de se resolverem muitos problemas, sendo cruciais para tais resoluções tempo, dinheiro e conhecimentos especiais. Este pensador optou pela democracia liberal, como forma de governo para o seu país, pois acreditava que assim teria maior entrosamento do povo. (Cf. Nkrumah, 1962: 92). Contudo, por causa do ambiente de instabilidade que se vivia no seu país, devido aos abusos e desordem levados a cabo pela oposição, ele refere que em momentos deste tipo de instabilidade as democracias ocidentais optam por limitar a liberdade do povo. Segundo Nkrumah, em países recentemente independentes e subdesenvolvidos, a democracia devia passar por muitas provas, tanto que até em países mais avançados aspirando bons resultados, embora democratas, recorrem ao autoritarismo. É neste âmbito que o governo de Nkrumah “publicou uma lei sobre a não-discriminação, destinada a controlar os partidos políticos baseados na filiação tribal e relgiosa”. (Nkrumah, 1962:93). A acompanhar a democracia, o Gana, como via para o progresso, opta pelo socialismo. Com este sistema se pretendia “o pleno emprego, bons alojamentos e iguais oportunidades de educação e desenvolvimento cultural”, desta forma, o rendimento real e o nível de vida de todos os camponeses e operários aumentariam. (Nkrumah, 1962: 140). 136

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Segundo Nkrumah o socialismo seria a única via de se fazerem sentir as pretenções anteriormente referidas, na medida em que optar pelo socialismo implicaria a nacionalização dos meios de produção, da terra e dos recursos de forma que não houvesse espaço para os bens privados. E este sistema político seria movido por princípios baseados na justiça social. (Nkrumah, 1962: 142). A ideia de Nkruamah era de adaptar todas as áreas de abrangência popular às políticas socializantes, desde a educação, a segurança, a saúde, o sistema orçamental e fiscal, a vida política, “o objectivo do socialismo é o bem de toda a nação, o que implica que todos sacrifiquemos alguns dos nossos desejos imediatos na perspectiva de maiores benefícios no futuro. (…) à medida que a produção vai aumentando significativamente, (…), o Estado poderia não só dispor de capitais ao serviço do país, mas recompensar com salários mais elevados a mão-de-obra que forneceu esforço necessário.” (Nkrumah, 1962: 145). No entanto, caso o processo de produção ocorra com sucesso e se façam as recompensas salariais, acreditamos que estaríamos a pôr em causa a justiça social. Visto que o que está na base de todo o sistema socialista é dividir-se tanto o trabalho, bem como os rendimentos por igual. Supondo-se que os esforços empreendidos sejam iguais aos demais como é que no grupo se destacariam uns como mais esforçados? Dizemos mais, ainda que uns tenham realmene desembolsado maiores esforços que os outros, o que rege este sistema é que ainda que nos esforços empreendidos se distingam uns como fortes, sem a associação destes aos menos fortes nada seria possível consumarse. Aliás, afirmara Nkrumah que “devemos habituar os nossos espíritos e atitudes à necessidade de uma adaptação constante, sem nunca perder de vista os princípios e o nosso objectivo socialista”. (Nkrumah, 1962: 151). Unidade continental Com a conquista da independência de Gana, em 1957, este país torna-se um estado soberano e deste modo, Kwame Nkrumah declara que “aquela indepenência nacional só teria sentido se estivesse ligada à liberdade total do continente africano”. Nkrumah refere que há quem afirma que para um povo se unir são indispensáveis três elementos, nomeadamente: comunidade de raça, de cultura e de língua. (Cf. Nkrumah, 1977: 153).

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Senão vejamos: sabe-se que parte do norte de África é branca e grande parte do sul é negra. Desta, forma estaríamos perante um problema de diversidade racial onde poderia surgir uma nova discussão de se questionar quem realmente são os africanos: os brancos ou os pretos, os não-brancos ou não-pretos ou ainda todos eles? Quanto à cultura e à língua, a África é aquilo que é por causa da diversidade cultural e linguística o que se faz sentir nos mais ínfimos grupos que tentarmos criar. Mais especificamente, no que se refere à língua, é só uma questão de se deslocar de um ponto para o outro (dentro do mesmo território geográfico) que se é capaz de pensar que já se está em outras nações sem ter atravessado fronteiras políticas, por efeito da diversidade linguística recheada de seus dialectos. E segundo este mesmo pensador, se nestes elementos basearmos uma união verdadeiramente política entre os povos africanos, teremos grandes obstáculos ao longo do mesmo processo. Obstáculos desnecessários pelo que, para ele, “as forças que nos unem são superiores às que nos dividem” (Nkrumah, 1977: 153). Perante este dilema, para Nkrumah, 1977: 13, a liberdade de construir uma economia independente africana estaria comprometida se houvesse ainda que fosse um só país acorrentado por um governo colonial e existissem sobre terras africanas governos satélites. Em suma, a liberdade estaria em causa enquanto os estados africanos, ainda que independentes, continuassem desunidos. Para este pensador a união política era a arma. Em seu livro “A África deve unir-se”, Kwame Nkrumah diz que a união à qual ele se refere implica rejeitar a ideia de qualquer forma de separativismo pois, a África é una e indivisível desde o “(…) Cabo a Tânger ou ao Cairo, do Cabo Guardafui às ilhas de Cabo Verde93”.Diz mais, uma África unida política e economicamente a nível continental procuraria realizar três objectivos chaves para a efectivação de tal unidade. O primeiro seria o de alcançar uma planificação económica continental que permitiria aumentar o poder económico e industrial de África. Em segundo plano, teríamos que procurar estabelecer uma estratégia unificada, militar e defensiva. E por fim, o terceiro objectivo que dependeria, segundo o mesmo pensador, dos dois anteriores, isto é, “Se instituíssemos uma organização comum de planificação económica e unificássemos as nossas forças armadas, teríamos de adoptar uma política externa e uma diplomacia comuns, que imprimissem uma direcção política aos nossos esforços conjuntos no

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Nkrumah. A África deve unir-se. Lisboa. Ulmeiro (1977:244)

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sentido da protecção e do desenvolvimento económico do nosso continente94.” Frantz Fanon (1925-1961) Fanon nasceu em Forte-de-France, na Martinica, antigo território francês na América central. Aos 18 anos junta-se ao exército francês na luta contra o Nazismo dominante. Depois de cumprir o serviço militar no exército francês, em 1946, partiu para França onde inscreveu-se na Faculdade de Medicina na universidade de Lyon aproveitando adquirir uma formação sólida em Filosofia e Literatura, seguindo os cursos de Jean Lacroix e de Merlau-Ponty, lendo também filósofos como Sartre, Kierkegard, Hegel, Marx, Lenin, Husserl, Heidegger, entre outros. Logo, não é de admirar que suas reflexões tenham cunhos conotativos ao existencialismo, a tríade Hegeliana à alienação desenvolvida por Marx. Concluído, o curso em medicina, Fanon retornou a Martínica em 1951, onde um ano mais tarde publicou o seu primeiro livro intitulado “Pele Negra Máscaras Brancas”. Posteriormente dirigiu-se à França onde se casou. Em seguida, parte para África onde se torna médico chefe na clínica psiquiátrica de Blidajoinville. É neste momento que se torna engajado na luta de libertação argelina, tendo participado e representado o país em congressos pan-africanos. Ao descobrir que padecia de leucemia, preocupouse e esforçou-se em redigir seu último legado – “L’es Damnés de la Terre” – e no ano seguinte a Argélia ficou independente. Morre em Dezembro de 1961, num hospital em Nova York, padecendo da mesma doença. A obra de Fanon insere-se no contexto das independências africanas e no terceiro mundismo, exercendo influência nos negros radicais dos EUA, e sobretudo nos movimentos anti-coloniais. Nesta senda, há quem diga que: “Fanon entrou na cena cultural quando a violência revolucionária estava na ordem do dia, embora tenha sido lido timidamente e ombreado por guerrilheiros e pensadores como Fidel Castro, Chê Guevarra, Camilo Torres; ou por lideres negros como Stockley Carmichael, Malcom X e Eldridge Cleaver; ou por Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Kwame Nkrumah.” (Guimarães, A. S, 2008: 100). De facto não somos nada sobre a terra se não somos desde logo cativos de uma causa: a liberdade e justiça.

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Nkrumah. A África deve unir-se. Lisboa. Ulmeiro. 1977. pp247

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Fanon e os meios de superar a colonização95 A nossa dependência, hoje, vem perpetuar um problema genérico em África, o complexo de inferioridade, que segundo Fanon resulta de um duplo processo: o económico e a internalização desta inferioridade. Assim, quando o oprimido se apercebe de tais problemas procura superá-los, enveredando por duas vias. A primeira via consiste na construção da “mascara branca”, ou seja, embranquecimento cultural que consiste na reprodução ideológica e imitação dos hábitos dos colonos, com a pretensão de igualar-se, não obstante a sua inadequação. Portanto, esses complexos e mistificações psico-existenciais parecem abrir aos oprimidos a história que lhes tinha sido proibida há séculos, permitindo-lhes “o acesso a uma igualdade total com esta raça ilustre, senhora do mundo, dominadora dos povos de cor”. Contudo, “essa tara deve ser expulsa uma vez por todas” (Fanon, 1961: 75), na medida em que ela afigura-se como uma tentativa errada, pois, ignora a sua especificidade ontológica e criativa enquanto homem. Além de representar um encarceramento do ser, ela evidencia o reconhecimento da inferioridade e a sua falta de humanidade. Pelas razões apresentadas anteriormente, a primeira via está condenada ao fracasso, pelo que compromete os colonizados com o sistema colonial, actuando posteriormente sob forma de neo-colonialismo. A segunda via, a única que permitirá romper com a mitologia de supremacia do colono e da Europa, é a revolta e a violência constituindo o único caminho para a libertação. Mas é preciso perceber que a violência é endógena ao sistema colonial e capitalista, aliás, não é de se admirar que actualmente se fale de uma “violência estrutural” (Galtung), ou “violência oculta ou simbólica” (Freire). Portanto, sem isso estaríamos a comprometer não só o futuro de África, como também o da humanidade. E, na medida em que para além de os africanos terem o dever de exigir o comportamento humano do outro, contra todo o dualismo de espécie “dominado - dominador”, é aos colonizados e às colónias que lhes cabe edificar o princípio de igualdade entre os homens. Deste modo, estamos convidados a responder ao apelo deixado por Fanon como legado: “Devemos dizer e explicar aos países capitalistas que o problema fundamental da época contemporânea não é a guerra entre eles e o regime socialista, ou a catástrofe nuclear, mas sim é preciso investir generosamente e ajudar tecnicamente as regiões subdesenvolvidas”. (Fanon, 1961: 96) 95

Um outro âmbito de debate que tem sido difundido é saber Fanon propõe a revolta ou a revolução? No entanto somos de acordo com a segunda alternativa.

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Fanon adverte que a resposta do mundo dependerá da resposta que se der a essa questão, pois o fim último seria reabilitar o homem fazendo-o triunfar de uma vez para sempre, transcendendo as temáticas racista e egoísta exacerbadas para a nossa afirmação como humanidade. No contexto africano Fanon apresenta os caminhos que nos permitem transcendermos da luta pela unidade nacional à luta pela inclusão e justiça social feita para e em prol das massas, discutindo com elas, procurando esclarecé-las e esclarecer-se delas e uma liderança bem preparada e madura face às tendências do neo-colonialismo. Esta inclusão não devia ser com a intenção de substituir os postos e os papéis antes ocupados pelos colonos, distinguindo assim uma falsa descolonização da verdadeira. Ademais, apesar de Fanon ser apologista do socialismo em detrimento do capitalismo, ele recomenda que se reestabeleça a justiça para o continente negro, pois, para se assegurar o triunfo da luta de libertação devemos recusar entrar na competição entre o socialismo e o capitalismo, nem tão pouco reproduzirmos e nos identificarmos com esses modelos96 . Por uma contínua emancipação A partir, sobretudo, da conferência do Berlim (1884-1885) o homem africano vem lutando pela cidadania e pelos seus direitos. A África lutou contra o sistema de dominação colonial e, conquistadas as independências africanas os desafios são hoje o estado de direito que sirva de garante das nossas liberdades, respeitando a nossa cidadania e fraternidade, que não se reduz somente ao cumprimento da lei e ordem. No fim do século XX, os afro-americanos criados na sociedade norte americana segregacionista, perante a exposição às formas mais cruéis, de discriminação e intercâmbio social com os brancos puseram-se a teorizar uma identidade negro africana. Estes foram obrigados a voltar às suas origens supostamente africanas. Para Ngoenha, a concepção desses afro-americanos sobre a África residia no facto de ela servir de “bálsamo para apaziguar a dor” (1996: 111). Isto é, a África era uma força estimuladora para a exaltação do seu ser negro, opondo-se ao racismo assimilacionista. Estes afro-americanos eram influenciados pelas concepções das tradições africanas que lhes vinham a partir das leituras de antropólogos como Frobénius e Delafosse. Estes intelectuais negros africanos criaram a negritude como uma forma enérgica de emergir e de se afirmar na convivência universal. Agora desprovidos de qualquer 96

Há quem considere que a ajuda internacional tenha sido uma imposição por se temer ao comunismo.

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pretensão assimilacionista, nem de seguir aos elans nostálgicos do passado africano, mas numa perspectiva intercultural que transcendia “a invenção da África”. Iniciava o incessante processo “por uma emancipação de África”, ou como diria Ngoenha “A longa marcha Africana”, partindo do desenvolvimento segregacionista de Booker Washignton, a integração político-social de Du Bois, passando pelo Black Renaissance, a Negritude, o pan-africanismo, o back to África de Garvey, que mais tarde através da realização de congressos pan-africanos, após a II Guerra Mundial, e mais concretamente na carta de Atlântico onde se afirma que “os povos tem direito a autodeterminação”. Nesta ordem de acontecimentos catalizaram-se esforços e anseios pelas independências. Era já um passo dado para o alcance das independências e para a sua salvaguarda que se enquadra o pensamento de Fanon e Nkrumah. As suas ideias eram no sentido de que os nossos esforços não deveriam terminar aquando da proclamação das independências, mas, acima de tudo, os esforços deviam perpetuar-se e sempre com uma nova dinâmica, pois, além da disputa neo-colonial precisamos de uma união efectiva para exercer a nossa liberdade evitando qualquer colonialismo de retorno. Segundo Ngoenha estaríamos a cumprir uma fase do nosso objectivo central e passaríamos da luta pelas independências para a conquista das liberdades. Assim, Nkrumah propõe uma união continental e Fanon remete-nos a uma transição da luta nacional para uma luta e inclusão social, porque a exclusão era típica do sistema colonial. Efectivamente as independências permitiriam o triunfo do humanismo e a igualdade entre os homens, razão pela qual a luta pela liberdade e emancipação deverá ascender quando se consolida a construção nacional. Hoje, volvidos aproximadamente 50 anos da proclamação destes ideais, muitos estudiosos afrocentristas e eurocentristas, para além de afirmarem que o binómio “dominado e dominador” prevalece, reconhecem a centralização das políticas e planificações dirigidas pelo Ocidente - o herói e arquitecto da verdadeira história, capaz de orientar a humanidade “pelo caminho, da verdade e da vida”. Sendo que ninguém alcançará a humanidade senão por ele – seguindo o paradigma dos modernizadores segundo o qual “o processo de desenvolvimento europeu, desde os fins do séc. XVIII seria simplesmente paradigmático para o desenvolvimento em geral” (Kesserling, 2007: 163). Neste processo muitos países do sul estão direccionados para o norte, descrevendo o actual processo Pós-independência africano. Os críticos da dependência estão na tese segundo a qual 142

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“após a conquista da sua independência formal, - as antigas colónias – permaneceram numa dupla dependência económica, por um lado das antigas ‘nações mães’, e por outro lado da incalculável oscilação do mercado mundial, o que veio a regenerarse numa tal violência estrutural97”. Esta situação foi e é um factor para se perceber e questionar a efectividade das independências e as linhas ideológicas seguidas pelos países após as independências face a sua integração económica nas políticas de reajustamento estrutural, Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, para fazer face a trágica situação pósindependência. Enveredando pelos ditames da modernização: desenvolvimento industrial, democratização e a construção de mercados para a sua integração internacional, fazem-se sentir políticas dominantes a partir da década 80 e 90. É nesta integração internacional a qual a África se condenava “sem esperança de libertação”, o que deu maior aval a tais políticas de tomada de decisões mais importantes sobre os destinos do mundo e da África em particular98. . Portanto, diante da conjuntura actual, se partirmos das teses adjacentes à filosofia da história, segundo as quais “cada época pode caracterizar-se como uma resposta específica a um desafio”, o nosso actual desafio para a consolidação das nossas independências, exercendo a nossa liberdade e justiça, constitui o tirocínio deste “por uma contínua emancipação”, razão pela qual focalizaremos a nossa discussão em duas perspectivas: A África face a globalização e justiça e paz face as independências. A África face a globalização99, desafios para as independências O ano 60 do século XX ficou registado para a história como sendo o ano das independências africanas, isso justifica-se pelo facto de um número significante dos países africanos terem alcançado as independências naquele mesmo ano e naquela mesma década. 97

A violência estrutural actua como uma coação anónima que privilegia uns e prejudica outros, um exemplo concreto são os casos da economia dual, deterioração das condições de troca e o prejuízo da economia interna pela concorrência externa (Cf. Kesserling, 2007: 163-164). 98 Basta lembrar que no ano de 2008 a Comunidade Internacional, as Nações Unidas e o Conselho de Segurança consideraram o Zimbabwe um estado fora da lei, impondo sanções ao país e na pessoa de Robert Mugabe, face ao silêncio e imobilidade da extinta OUA, e, para a tomada de tais decisões não foram consultados os africanos e havia uma proliferação no seio dos diplomatas em criticar a diplomacia silenciosa – o melhor termo seria, diplomacia silenciada – entre outras caricaturas. Alguns estudantes em pronunciamentos nos debates académicos não hesitavam em apelar à uma intervenção militar e em chamar o presidente Mugabe de terrorista e inconsequente. 99 Há quem considera a globalização como uma expressão mais refinada do neo-liberalismo e menos expressão da democracia, tornando-se antidemocrática, incitando a própria globalização à marginalização.

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A história não se esquece de reservar reticências a essa asserção às colónias portuguesas, daí o passo a seguir e que foi o objectivo almejado que consistia em, “na base da justiça, do trabalho e da igualdade” (CABRAL, A., 1975: 12), edificar e organizar a África, dando oportunidades iguais ao povo, sendo que, a busca da liberdade, segundo Nkrumah, seria o mais importante fenómeno político no final do séc. XX, e necessariamente a luta pela emancipação política (Cf. Nkrumah, 1977). É daí que emerge o árduo trabalho e um constante diálogo e servilismo à pátria da parte da elite burguesa em relação às massas. Cumprida esta missão, estaria garantida uma efectividade das independências, e caso contrário, as independências serviriam para perpetuar a condenação dos “Condenados da Terra”, segundo Fanon. Com esta afirmação, queremos avançar a ideia segundo a qual, os pais das independências africanas estavam conscientes do cenário que toldaria o mundo nos tempos seguintes e a África não ficaria alheia ao mesmo. Referimo-nos ao evento que teve sua origem na década 70/80, ainda do século passado, que se faz sentir em todas as áreas do globo, esses eventos fizeram com que o mundo evoluísse sob o ímpeto da ciência, da tecnologia e do pensamento racionalista – a globalização. Para Giddens, esse fenómeno faz-se sentir em todas as partes do globo e teve a sua origem na Europa. Por um lado, há quem defina a globalização como sendo “a intensificação das relações sociais em escala mundial que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorridos a muitos milhas de distância” (GIDDENS apud. Mazula, 2000: 15). Por outro lado, há quem a entenda como “o entrelaçamento mais estreito entre povos e nações do mundo (…), para garantir o fluxo desimpedido de bens, serviços, capital, saber e (em menor grau) pessoas através de fronteiras estatais”. (Stiglitz apud. Kesserling, 2007: 175). As definições patentes apresentam-nos a globalização como sendo um esforço conjunto que surge para fazer face aos perigos e ameaças que atingem a todas as sociedades e só podemos superá-los se reagirmos com êxito e se todos cooperarmos. Eis a razão pela qual nos confrontamos com Mazula na sua discussão segundo a qual a África estaria face a globalização, sem nenhuma possibilidade de se desviar da mesma, afigurando-se como condição necessária para a ajuda ao desenvolvimento sustentável entre o local e o global e influenciando largamente as identidades culturais (Cf. Mazula, 2000: 14). 144

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No âmbito economicista liberal, a globalização liberal impõe um certo tipo de fórmulas de democracias globalizantes e de governação que põem em causa, quiçá em conflito, com certas particularidades. Este facto causa certas resistências por parte dos governos africanos face a tendência de padronização da democracia e governação. Assim, estes países não passam de estados e governos “teleguiados” centralmente, meros consumidores, desprovidos de suas soberanias, pondo assim em causa a dignidade e a capacidade africana no desenvolvimento do continente – eis a razão da repulsão do renascimento africano de T. Mbeki e o Ubuntismo de M. Ramose. Face à globalização, a autonomia, independência e liberdade africanas a que nos referimos não podem ser confundidas com o fechamento e isolamento em ralação ao mundo, pois, somos influenciados pelos globais direitos humanos. Diante da violência estrutural em que nos encontramos temos o desafio contando desde a luta pela independência e sempre actual, de nos impormos económica, social, técnica e mesmo culturalmente. Ademais, hoje mais do que nunca, não depende somente da vontade dos governos locais pela integração dos seus países em blocos regionais – SADC – ou em organizações internacionais, nem as nossas comunidades linguísticas, apesar de apresentar oportunidades e vantagens possíveis. Temos de aprender que em nome da soberania criam-se conflitos locais que levam a interferência da comunidade internacional que se impõem pelas sanções económicas. Como consequência, deparámo-nos com a perda da autonomia pessoal e cultural, sendo este homem condicionado cada vez mais pelas regras do mercado. Justiça e paz, desafios para as independências Segundo alguns estudiosos africanos, a base dos conflitos, contradições, guerras e distúrbios sociais está na incapacidade das políticas e estratégias de desenvolvimento, pelo que estas não correspondem às expectativas dos cidadãos e das sociedades. Como consequência geram-se descontentamentos por parte das massas. Sendo assim, urge a necessidade de se falar, antes de mais nada, de desenvolvimento humano. Se partirmos do pressuposto segundo o qual, as pessoas constituem a riqueza real duma nação, assim o objectivo básico será “criar um ambiente adequado para que as pessoas possam gozar de uma vida longa, saudável, e criativa”. Portanto o desenvolvimento humano torna-se ilusório se não pudermos contar com a paz e justiça social, pois “as situações de injustiças sociais geram conflitos e não favorecem o desenvolvimento humano” (Mazula, 2000: 27). Mazula acrescenta que o ‘trinómio’ desenvolvimento-paz-justiça exige a participação dos cidadãos na sociedade. Novembro de 2012

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Segundo Aristóteles, não se pode ser cidadão sem assumir conscientemente os princípios de cidadania. Ngoenha retoma esta tese e propõe que um dos grandes desafios da política Moçambicana seja permitir que a maioria dos moçambicanos se tornem de facto cidadãos (Ngoenha, 2004), o que em termos práticos seria ter a capacidade de falar e agir em Habermas. Por um lado, falar no sentido de expressar opinião própria, expor um parecer e poder criticar, e por outro, o agir que faz menção a capacidade de seleccionar acções concretas a serem realizadas e no concernente a tomada de decisões mais importantes que dizem respeito a vida pública. No entanto, à luz das reflexões de Habermas, Mazula apresenta esses dois indicadores – falar e agir – como elementos que limitam o diálogo entre os governos e os governados, minando a paz e justiça social, pois quando o cidadão serve para votar apenas, isso impede a permissão das pessoas em dar uma contribuição ao próprio país. Assim, quando o cidadão não participa fica desvinculado do projecto social, sem poder cooperar activamente no estado. Portanto, quando não é dada a possibilidade de falar e agir aos cidadãos, o projecto social como tal, para além de desmoronar, o estado a vida e a natureza humana, o respeito à dignidade humana, o direito à vida, a liberdade religiosa, o direito à realização própria, o direito ao meio ambiente saudável, o direito à cultura e o direito à escola, Mazula apresenta-os como sendo os grandes desafios para o milénio (Id: 28). Por isso entende que ainda reina a injustiça em muitos países africanos, sendo que a exclusão do cidadão incapacitando-o na participação e na construção do projecto social do desenvolvimento humano, assim como a monopolização do espaço publico, quer por ordem étnica, político-ideológico e económica, quer por ordem religiosa, ademais o facto de os mentores serem as elites políticas no poder, económicas e os intelectuais que partilham cargos privilegiados juntamente com os camaradas não seria errado conotar o estado como aquele que periga o desenvolvimento humano, sem excluir a corrupção que continua a minar o progresso dos países africanos. Tudo isso explica em grande medida os conflitos, as tensões e as guerras civis em África. Uma vez que está na moda, desde há 20 anos, falar de desenvolvimento humano, ao menos é de esperar que não seja o desenvolvimento que impõe que se ganhe tempo. Neste âmbito os desafios para a restauração da justiça e paz consistem em estabelecer uma inclusão real e participativa. Pois, é na participação que se fundamenta a justiça e ela será o garante da paz. Mas para tal temos de fazer face ao analfabetismo, pobreza, à fome, às perseguições políticas, à corrupção, aos genocídios, ao SIDA, entre muitos outros males que enfermam a África. Precisamos superá-los e instaurar 146

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em África a confiança recíproca entre os homens e governantes, para a materialização de um desenvolvimento humano sustentável. Ou por outra, devemos “fazer triunfar o homem por toda a parte, de uma vez para sempre”, pois apresentam-se como desafios de muitos países africanos cujas populações lutam pela configuração duma real cidadania, a implantação da democracia, a erradicação da pobreza e a construção do estado nação. Diante da actual conjuntura, deixamos ao critério de todos os quadrantes o cuidado de decidir se Nkrumah e Fanon teriam ficado desiludidos com a “nova África” ou se continuariam a lutar por ela. Países falantes da língua portuguesa face a uma comunidade: entre a aventura e desventura A propósito do título “Países falantes da língua portuguesa face a uma comunidade: entre a aventura e desventura”, pretende-se fazer alusão a ideia de que, uma vez que os países do mundo hoje, mais do que nunca precisam reunir-se face ao problemas comuns, dos quais só podemos ter êxito se todos cooperarmos, e tais problemas afiguram-se fundamentais aos destinos da humanidade como problemas ambientais, o aquecimento global, o acentuado desnível social, distribuição do poder entre outro. Esse esforço conjunto vem responder a sábia pergunta, proposta por Carl Sagan, “Quem pode salvar a Terra?” face aos poderes destruidores que a humanidade vai acumulando a partilha de riscos e não das riquezas produzidas na criação de tais risco. Se, por um lado, é o sentimento de uma ameaça e esforço comum, que conduzem todos a cooperarem, quer-se com isto dizer que os países não têm outra alternativa se não aderirem a globalização, não obstante a marginalização concomitante que ela fomenta. Por outro lado, o sucesso de lidar-mos com os mesmos problemas, dependerá da nossa capacidade de comunicar-mos uns com os outros, é aqui onde se situa a CPLP. Os países da CPLP, face aos problemas históricos que condicionaram que as ex-colónias portuguesas, usam a língua portuguesa como uma língua oficial, aceitaram conscientemente ou não que aliados a problemas históricos e problemas conjugados pela utilização da língua oficial comum, que transcenderiam suas fronteiras regionais e continentais e envolver-se-iam numa comunidade, sem a qual não teriam alternativa para agirem com êxito mercê dos problemas conjugados pelo uso da mesma língua. Eis a razão pela qual, a comunidade seria algo indispensável aos falantes da língua lusófona. Novembro de 2012

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Alguns repararam com muitas reservas, a essa ideia, pois, a ideia segundo a qual o binómio “dominado - dominador” prevalece até aos dias de hoje, questionam-se: não será a CPLP, um pressuposto de tal binómio? Ou melhor, além dos pressupostos adiantadas para justificar a colonização, não será a ideia de uma comunidade com alicerces na língua da ex-colónia uma espécie de nova era do racismo, como diria Wieviorka, onde as nossas línguas são sacrificadas em nome da língua “superior”? Ou ainda, não será um mecanismo de compensação de Portugal na Europa e Brasil na América, mercê do seu desconforto linguístico e económico na sua região, que se tenham vistos obrigados a uma união linguística, uma vez que nas suas zona geográfica que continuam dependendo das decisões dos outros, então, na sua comunidade linguística, seriam senhores do destino dos outros? – É nisso que se fundamenta a aventura e desventura da CPLP, pois, uma comunidade que se baseia na língua comum, por um lado seria uma emancipação dos problemas comuns, e por outro seria uma espécie de “manutenção do predador100”. Comecemos pela primeira via, os países africanos mais do que nunca, precisam de vínculos comuns que os unifiquem, diante dessa realidade, há que diga que, Africa não pode unificar-se enquanto não dispor de elementos comuns que transcendam miniaturas de comunidade da raça e da língua, cultura, na maneira de encarar o desenvolvimento (cf. Nkrumah, 1975: 143). Mas, actualmente não importa que língua falamos, a que raça pertencemos, de onde somos e quais são as nossas culturas, importa que pautemos por outra alianças mais produtiva que nos possam ajudar a lograr nosso êxito como humanidade face ao problemas comuns sem nos importarmos donde vem a solução, mas sim, a sua capacidade de nos ser útil também, face aos mesmos problemas. É verdade que o primeiro encontro entre Portugal e os restantes países falante da língua portuguesa, tenha sido de imposição civilizacional, da qual a língua e a religião fazem parte em nome de uma razão superior. Mas também é verdade que com formação da CPLP, hoje mais do que nunca, os países que constituem esta comunidade, estão munidos de uma “consciência histórica” face a ameaça da sua existência, que o sentimento a uma comunidade afigura-se um dever ser a preservação de língua de laços históricos entre si – eis a razão pela qual somo da opinião de que uma selecção axiológica afigurou-se fundamental ao êxito do projecto comunitário da CPLP. Para tal, a selecção axiológica não deve fundar-se no passado apenas e nos senhores da CPLP que discutem seus problemas de ortografia e a impõem aos outros, mas ela 100

Grifo nosso.

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deve ser alimenta e retro alimentada na base da justiça e da igualdade, pois com Fanon aprendemos que em matérias de humanismo é com as ex-colónias que se deve instruir - e o projecto da CPLP enquanto um projecto humano deve seguir esse ideal. Uma leitura superficial a Fanon e Nkrumah nos conduzirão ao repúdio a ideia do projecto comunitário da CPLP, porque essa seria uma outra maneira de dividir a Africa com base na língua das ex-colónias e uma aceitação ao neocolonialismo. Mas uma releitura a esses clássicos da politica africana, uma vez que a africandade é partilhada na diáspora com base em qualquer aliança produtiva, nos levarão a compreender que vale a pena enveredar por laços e cooperações produtivas e por uniões mais saudáveis do que a uniões forçadas, rumo a afirmação do homem na sua plenitude. Neste âmbito, o projecto comunitário da CPLP, seria um laço mais produtivo na edificação de uma sociedade mais humana e menos competitivo, se fundar-se na interculturalidade, sem se impor, mas permitindo que o outro se manifeste. Sem nenhuma imposição, pois enquanto esta prevalecer isso será uma perpetuação do binómio dominado - dominador. Nesses moldes, a tarefa também cabe aos danados101 da CPLP na medida em que lhes cabe exigir um comportamento humano do outro, eis a razão pela qual uma “vigilância epistemológica102”. afigura-se importante na materialização efectiva da CPLP.

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Aos países sem expressão na comunidade e em que não lhes foi reservado algo a dizer no acordo ortográfico, senão discutir o assunto de outros e suas decisões que eram vitimas. 1 0 2 Expressão usada pelo Prof. Doutor José Castiano, no jornal de publicação periódica na UP

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MERCADO E ÉTICA Por Thomas Kesselring103 Na contribuição seguinte vamos, primeiro, explicar o conceito de mercado, segundo, analizar o conceito de ética, e terceiro, abordar alguns problemas éticos do mercado em particular e da economia mundial em geral – problemas de vários tipos que vão da preponderância de uma ordem econômica injusta até a lógica estranha dos mercados financeiros e às consequências ecológicas devastadores da globalização. Palavras Chave: Ética, Mercado, Justiça O mercado e as suas virtudes Por muito tempo, os seres humanos praticaram a troca direta. O vaqueiro e o agricultor trocaram leite contra trigo. Cada um produzia, em primeiro lugar, para si mesmo. Para a troca apenas usava o superavit da sua produção. Todavia, este sistema, apesar de ter estado muito espalhado até na antiguidade (Aristoteles, Política, 1º livro), teve uma séria desvantagem: O vaqueiro apenas pôde comprar trigo, quando o agricultor precisava de leite, e vice versa. A invenção do dinheiro facilitou a troca e levou à sua aceleração, pois permitiu ao vaqueiro que vendesse o leite a qualquer pessoa que o indenizasse com dinheiro, e que ele usasse este dinheiro para comprar trigo de qualquer pessoa que lhe o oferecesse por condições aceitáveis. Antes de usar moeda metálica, o valor da troca universal foi o gado. A palavra “capital” provém de “caput” (lat.: cabeça), e a palavra latim “pecunia” (= dinheiro) tem sua origem na palavra “pecus” (gado). Fala-se em mercado de leite e de trigo, quando há vários actores que oferecem leite e vários que oferecem trigo. O essencial é que no mercado há concorrência entre aqueles que oferecem uma mercadoria, mas também entre aqueles que querem adquiríla. A concorrência entre as ofertas faz com que os preços baixem e o nível da qualidade da mercadoria tenda a subir. Na medida na qual um vendedor torna melhor a relação entre qualidade e preço do seu produto, a sua posição na competição se torna melhor também, e a sua venda aumenta. 103 Doutor

em Filosofia; um dos mais influentes pensadores da Ética nos últimos 20 anos (na Suíça, Brasil, Moçambique, entre outros países).

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Por esta razão, Adam Smith descreveu os mecanismos do mercado com a metáfora de uma “mão invisível” que faz com que o motivo de maximizar o seu proveito leva o vendedor a operar em favor do bem comum, quer dizer a satisfazer a demanda. Baixando o preço e elevando o nível da qualidade, o vendedor trabalha em favor dos compradores. Pelo mercado, o egoismo de cada ator converte-se numa fonte de transações altruistas (Smith¨1778 [Orig.], 4º livro, cap. 2)104.” Se compreendemos os mecanismos do mercado, compreendemos também as razões pelas quais muitos economistas estão convictos de que o mercado cria mais prosperidade de que qualquer ética: Pois (1) ele possibilita transações econômicas rápidas e eficientes entre pessoas que nem necessariamente se conhecem; é de acrescentar que vários filósofos do século 18 (Montesquieu 1748, livro XX, cap.2; e Kant 1795, BA 41s., por exemplo) anotaram que a troca é um hábito favorável à convivência pacífica: A partir do momento em que povos diferentes que não mantiveram contato estável entre eles começaram a trocar recursos naturais ou produtos, a probabilidade de geraram-se atos bélicos entre eles diminuia substancialmente. (2) O mercado é uma instituição que estabelece critérios de justiça: Quem oferece mais, recebe mais e / ou recebe primeiro. Muitos economistas salientam por isso que qualquer troca que segue as regras do mercado é uma troca justa (Nozick 1974). Em contrapartida, seria injusto transferir aquele bem a uma pessoa que pagasse menos. (3) O mercado estimula todos os participantes a optimizar a relação entre qualidade e preço. Os economistas que consideram o mercado como uma instituição intrinsecamente ética concluem que é melhor não mexer nos mecanismos do mercado, sendo que cada mexida “distorce” os efeitos daqueles mecanismos. Como distorções neste sentido contam todas as medidas pelo Estado, como subsídiar a venda de determinados produtos ou colocar impostos para diminuir tal venda. No entanto, todos estes argumentos juntos não são suficientes para defender a tese de que os mecanismos do mercado possam substituir a ética. Para mostrar isso, é preciso explicar primeiro o que é ética e o que é moral. Não é de duvidar que cada pessoa tem suas intuições próprias. No entanto, são subjetivas. Se queremos evitar, na ética, o relativismo total, temos que discutir a possibilidade de estabelecer critérios claros: O que é ética? Infelizmente, muitos economistas não sabem responder a esta questão. Depois de ter falado sobre a ética, vamos voltar à nossa questão inicial: Porque o estabelecimento de uma ordem social justa é imprescindível para uma vida social 104 Este

mecanismo corresponde à maneira, como numa peça de teatro (“Fausto”) de Goethe (eminente escritor alemão dos séculos 18 e 19) o diabo se define a si mesmo, dizendo que “Sou a potência que, aspirando o mal, sempre realiza o bem

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pacífica? Porque nós não podemos nos limitar a nos adaptarmos aos mecanismos do mercado? Qual é o problema básico? O que é ética, o que é moral? A moral é um sistema de normas (regras do tipo mandamento ou proibição) comprometendo os membros de uma sociedade. Em cada sociedade observam-se normas de vários tipos – leis jurídicas, costumes, regras de gentileza, regras de trânsito etc. Quais são as normas morais (ou éticas)? Poderá-se dizer que são aquelas normas cuja infração nos leva a reagir com emoções particulares, como o rancor, a indignação ou os remorsos. Estas emoções são reações espontâneas a um ato pelo qual uma norma moral está sendo infringida (Tugendhat 2005, 1ª lição): Sentimos remorsos quando nós mesmos cometemos a infração; sentimos rancor, se outra pessoa infringiu uma norma e com isso nos prejudicou (p.e. se tu me prometeste que irias devolver o dinheiro emprestado, mas não o devolveste, sem dar as razões para isso). Indignação sentimos, se uma terceira pessoa comete uma ação moralmente má, sem que nós mesmos fossemos prejudicados por ela. Quando sentimos uma destas três emoções, estamos experimentando o efeito emocional do nosso juizo moral: Nós julgamos moralmente uma ação (própria ou alheia). Na nossa interação social seguimos, então, regras morais. Mas qual é o objetivo destas regras? Uma hipótese que quase se impõe é a seguinte: As regras morais são as normas básicas que garantem a convivência pacífica entre os membros de uma sociedade (ou comunidade); segundo esta hipótese, em outras palavras, a moral seriam o conjunto daquelas regras que garantem a cooperação entre (os) seres humanos. A ética, em contrapartida, é a reflexão sobre a moral ou sobre as suas regras, mas também sobre as leis jurídicas e, na sua extensão, a reflexão sobre a ordem das instituições sociais, políticas e econômicas, como o mercado (p.e. sobre justo/injusto). Muito antiga: A regra de Ouro A chamada regra de ouro (“Não faça ao outro aquilo que tu não queres que o outro faça a ti”) tem uma história muito antiga. Ela já ocorre na China do 5º século antes de Cristo, nos sermões de Confutsio, e pouco depois (no 4º século antes de Cristo) na cultura indiana, num dos textos básicos do Hinduismo (Ma’abarrata). Na Grécia, há testemunhos escritos da Regra de Ouro já antes – a partir do 6º século antes de Cristo. Parece que várias sociedades diferentes encontraram ou inventaram esta regra Novembro de 2012

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independentemente uma da outra. No entanto, não é de admirar isso, pois a Regra de Ouro se impõe em qualquer situação de cooperação: Se me disponho a cooperar contigo, tenho a certeza de que tu esperas de mim que eu cumpre os meus compromissos, e no mesmo tempo sei que tu tens certeza de que eu espero o mesmo de ti. Sem cooperação não haveria convivência pacífica, não haveria cultura, nem arte, nem ciência nem filosofia, nem religião compartilhada... Sem cooperação, finalmente, também não haveria mercado. A ética, portanto, é uma condição necessária para que o mercado funcione. É de salientar que não é o mercado que cria a ética, mas, pelo contrário, a ética que torna o mercado possível. Sem orientação na ética, as interações no mercado tornariamse violentas e até bélicas. Sem orientação na ética, os concorrentes mais cedo mais tarde formariam cartéis ou monopólios, destruindo assim o próprio mercado. Quem cria um monopólio ou cartel pode ditar o preço e assim aproveita aos custos dos outros. – Não obstante, os mecanismos do mercado não são regras éticas. Pode observar-se uma tendência crescente de submeter as interações humanas aos mecanismos do mercado, o que pode causar o efeito de os relacionamentos humanos se alienarem gradativamente dos padrãos éticos: Cada vez mais serviços sociais, que antigamente foram prestados por solidariedade (prestar ajuda, informações, avisos etc.) hoje são cobrados. E o empresário que antigamente não teria demitido um empregado que arriscasse de não conseguir outro emprego; hoje não hesita de demitílo para aumentar o seu lucro. Recente: A Declaração dos Direitos Humanos A Declaração dos Direitos Humanos pela ONU, votados no dia 10 de dezembro 1948, talvez tenha marcado o maior avanço na história da ética no século 20. Os Direitos Humanos são aclamados por boa parte dos povos neste globo (de fato não por todos, mas pela maioria). Tal ampla aclamação é condição necessária para manter a convivência entre os povos pacífica e para realizar uma política de prosperidade. O que são Direitos Humanos (= DH)? São direitos com caracteres específicos: Os DH 1. são individuais (direitos de indivíduos, não de colectivos), 2. inatos, quer dizer que cada ser humano goza deles a partir do nascimento, 3. pre-estatais no sentido de que não depende da boa vontade dos que governam, se os cidadãos têm seus direitos concedidos ou não. 4. não negociáveis, isto é, ninguém pode liberar-se de suas obrigações políticas, p.e. da obrigação de pagar impostos, renunciando ao uso 154

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de alguns Direitos Humanos; e, finalmente 5., eles são universalmente válidos, por todas as cidadãns e todos os cidadãos em todos os paises. É preciso salientar que os DH não têm validade jurídica, mas sim, moral. Cada Estado que se torna membro da ONU com isso aceita a Declaração dos DH. Portanto ele é obrigado a tornar a sua Constituição (a lei geral) coerente com a Declaração dos DH. Num segundo passo, tal Estado tem que acomodar todas as suas leis à sua Constituição. Com esta acomodação jurídica, os DH tornam-se direitos jurídicos e, os direitos jurídicos podem ser reclamados na justiça. Na linguagem ordinária estes direitos chamam-se “direitos básicos”. Garantir os DH (ou direitos básicos) a todos os cidadãos é uma obrigação de cada Estado ou, respectivamente, do seu governo. Se um governo ofende de forma flagrante os DH mais importantes ou deixa certos grupos os ofender assim, ele é advertido ou até sancionado pela ONU. Pelo menos as infrações mais sérias, como os chamados Crimes contra a Humanidade, são conseqüêntemente perseguidas. Não obstante, a garantia dos DH pode ser ameaçada não apenas por governos ditadoriais e seus órgãos, mas também por governos democráticos. E ela pode ser ameaçada não apenas pelos órgãos do Estado, mas também por pessoas ou grupos privados105. Por outro lado: Uma ordem social pacífica, na qual os DH para todos estão garantidos, pressupõe mais de que um Estado cujos órgãos não transgridem certas normas e vigiam sobre a ordem social. Os cidadãos também têm certas obrigações. Pois, ao direito à vida, corresponde diretamente a obrigação de não matar ninguém, e ao direito a não ser escravizado a obrigação de não escravizar ninguém etc. Todos os direitos da cidadania (direitos dos cidadãos) mostram a mesma lógica: A eles correspondem, um a um (de maneira co-univoca), determinadas obrigações negativas – obrigações de não fazer isso ou aquilo: não matar ou agredir outros, não escravizar ou torturá-los, não espionar a sua privacidade etc. O papel do Estado concentra-se na proteção dos cidadãos (garantindo, mediante um sistema de sanções, que os cidadãos cumpram suas obrigações). Os próprios funcionários do Estado devem cumprir as mesmas obrigações e submeter-se à sanções, se não as cumprem. 105 Há

uma controvérsia sobre a questão em que medida actos de pessoas particulares, p.e. actos discriminatórios contra outras pessoas, representam infrações de DHs no sentido estrito. Alguns argumentam que tais infrações por definição apenas podem ser atribuidas a órgãos do Estado. Portanto, se o fulano mata seu vizinho, ele não infringe nenhum direito humano, pelo fato de ele não ser membro de um órgão estatal. Outros argumentam que na medida em que pessoas particulares cometem tais infrações, o Estado mostra sua insuficiência. Neste sentido, uma violação de um DH é sempre, em última instância, da responsabilidade do Estado (veja Tugendhat 2005, lição 17)

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O que ocorre, se um Estado ou seu governo não se interessa pela manutenção de uma ordem política, baseada nos DH? – Neste caso, a comunidade dos Estados (ONU) tem que tomar iniciativas contra este Estado. A ONU é obrigada de agir. As medidas a serem tomadas contra o Estado infrator dependem da gravidade do caso. É verdade que a ONU se torna ativa apenas quando as infrações estão muito graves, como no caso de um genocídio ou de uma discriminação sistemática, persecução e/ou expulsão de uma parte do povo... A reação pela ONU vai da repreensão e admoestação à proclamação de um boicote até à “intervenção humanitária” armada. A Declaração dos DH é um instrumento para limitar o poder do Estado. Superior a ele é o poder da ONU. Depois da Segunda Guerra Mundial a limitação do poder estatal era uma novidade. No entanto, nos últimos 15-20 anos a credibilidade da ONU foi corroido e seu poder supra-estatal cada vez mais desafiado. Mas isso não é o nosso tema. Voltando à tese, insinuada já antes, de que as regras do mercado não são regras éticas, podemos agora explicar mais claramente a diferênça: Os mecanismos do mercado regulam a troca de valores econômicos, enquanto que os Direitos Humanos definem limites a serem respeitados na interação humana. Estes limites – p.e. a proibição de empregar crianças como operários ou de prejudicar a saude e outras pessoas – estão válidos também na interação econômica. Neste sentido, os DH apresentam-se como “distorções do mercado” (Hinkelammert 2000). O que é cooperação? O ser humano é um ser habituado à cooperação. Chamamos de cooperação uma acção coletiva, pela qual duas ou mais pessoas visam um objetivo conjunto. As pessoas com as quais eu coopero variam de ocasião em ocasião. Além de cooperar com outras pessoas, posso me relacionar com elas também de outra forma: Posso competir com elas. Entre a cooperação e a competição há um contraste óbvio: Na competição cada actor segue seus próprios fins, não se importando muito se estes fins contrariam aos fins de outras pessoas, enquanto que na cooperação todos colaboram em favor do mesmo objetivo. Nem sempre cooperação e competição ocorrem conscientemente: Podemos ignorar uma pessoa pela qual não sintimos interesse algum, mas enquanto não há atos de agressão, pode-se dizer que nós seguimos certas regras básicas da ética, cooperando assim no plano do comportamento moral.

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Cooperação e competição podem ocorrer em combinação, p.e. quando diferentes grupos ou comunidades competem entre eles, enquanto que os membros de cada grupo ou comunidade cooperam. Em vez de falar em grupos con seus membros, pode-se falar também em empresas com seus funcionários e empregados. Disso podemos concluir que a maneira como os membros cooperam num grupo influe, até certo ponto, no êxito com o qual ele sai na concorrência. Quanto melhor a qualidade da cooperação, tanto maior seu sucesso competivo. O conceito de competição é básico tanto na biologia evolutiva quanto na economia. Segundo os biólogos, cada ser vivo segue, em primeiro lugar, os seus próprios interesses. O interesse principal consiste no objetivo de transmitir o número máximo dos seus genes na próxima geração. Ser vivo implica ser preponderamente auto-interessado, egoista, dizem os biólogos. Sob esta perspectiva, no entanto, a génese da cooperação torna-se enigmática. Pois, quando cooperamos, submetemos os nossos próprios interesses aos interesses e objetivos conjuntos. Qual é o motivo para isso? Esta pergunta talvez soe estranha, pois é óbvio que, em geral e a longo prazo, o indivídio aproveita da cooperação. Não há dúvida de que sem cooperação nós não poderiamos nem construir uma casa refinada. – Por outro lado, não podemos concluir disso que sempre fosse melhor cooperar de que não cooperar. Pois existe uma terceira via – enganar e explorar os parceiros: Quem finge ser disposto a cooperar, sem contribuir nada ao resultado, deixando trabalhar os outros, tira o maior proveito. Explorar os outros é a estratégia mais lucrativa. No entanto, se esta estratégia se espalha pelo grupo (ou por partes consideráveis dele), a cooperação é minada... Neste contexto vale, a pena lembrar a Regra do Ouro. Pois ela é a regra moral básica que proibe a exploração do outro dentro da cooperação: Enquanto coopero com outra pessoa, tenho certeza de que essa espera de mim que eu cumpre o meu dever, e ela sabe que eu espero dela a mesma coisa. Num grupo com número maior de cooperantes, todos esperam que ninguém explore os outros. Isso basicamente é a mensagem da “Regra da generalização”. Chamo de “cooperação qualificada” a cooperação que se baséia na Regra de Ouro e na Regra da generalização. Cooperação e Direitos Humanos Uma sociedade complexa, com múltiplas classes e etnias pode ter uma ordem injusta, racista ou fascista, mesmo se os membros apliquem as Regras de Ouro e de Novembro de 2012

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Generalização. Isso pode ocorrer pelo fato de que, em épocas históricas, a validez destas regras se limitava a sociedades relativamente pequenas e não demasiadamente complexas. Numa sociedade moderna, pluralista e multiétnica, para tornar a ordem social justa, é preciso introduzir uma regulamentação baseada nos DH. Uma tal ordem funciona como se ela se baseasse num contrato social: Os membros da sociedade se concedem mutuamente, todos a todos, os direitos e as liberdades básicos. Essa concessão recíproca tem o caráter de uma promessa mútua de todos a todos. Para pôr-la em prática, é preciso que todos a cumpram, não agredindo-se, não escravizando-se, não torturando-se mutuamente etc. Em outras palavras, os membros devem cooperar no plano das normas que correspondem à proteção dos DH, e essa cooperação deve ocorrer entre todos os membros da sociedade. – A manutenção de uma ordem social baseada nos DH necessita portanto uma “cooperação qualificada” por parte de todos os membros da sociedade. Por outro lado, um regime baseado nos DH serve também como meio para tornar a “cooperação qualificada” possível. Pois, se analizamos as razões pelas quais uma sociedade moderna baséia-se numa ordem caracterizada pelo respeito geral aos DH, e se procuramos estabelecer critérios para identificar os direitos individuais mais básicos, a nossa argumentação filosófica volta à idéia da cooperação. O argumento central é o seguinte: Os DH são aqueles direitos que garantem aquelas liberdades e oportunidades das quais cada um de nós deve dispor para ser capaz de participar na “ cooperação qualificada” (Kesselring 2001). Os Direitos Humanos e as obrigações correspondentes A conseqüência disso é dupla: 1. Qualquer que seja a nossa relação para com os outros membros da sociedade, nós temos a obrigação de respeitar os seus direitos básicos. 2. Mas a nossa obrigação não se limita a isso: Nós temos que respeitar os DH também daqueles seres humanos, fora da nossa própria comunidade, que podem ser atingidos pelas conseqüências das nossas ações e decisões. Em outras palavras, o nosso respeito pelos DH não deve limitar-se ao âmbito da sociedade à qual percentemos. Pois tampouco temos o direito de atropelar e/ou explorar membros de outras sociedades. Por respeito pelos DH estamos dispostos a omitir várias coisas: Renunciamos à formação de grupos mafiosos e / ou à participação neles. Quaisquer que sejam os grupos ou sociedades com as quais nós nos aliamos, nós não temos o direito de aderir práticas coletivas que prejudicam seriamente outras pessoas, inclusive fora do nosso grupo ou nossa sociedade. “Prejudicar seriamente” significa ofender e lesar os DH das pessoas en questão. A obrigação negativa – de não lesar os DH – 158

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se relaciona não apenas à renúncia de participar em grupos mafiosos, mas também de participação em empresas, nacionais ou multinacionais, cuja produção inibe outras pessoas a realizarem os seus DH. A declaração dos DH, então, traça os confins daquilo que é permitido – e isso tange também as transações comérciais e os negócios no mercado mundial. (Outra espécie de confins, que não coincidem com os primeiros, tem a ver com o critério ecológico da sustentabilidade.) Resumindo esta parte, podemos dizer que a “cooperação qualificada” não pode ser garantida, a não ser através de uma ordem social baseada nos DH, respeitada por todos os membros da sociedade. Os mecanismos do mercado livre não têm nada que ver com cooperação qualificada e não contribuem em nada para a realização dos DH. Porquê, hoje, é preciso uma ética universalmente válida? Esta pergunta evoca toda uma série de respostas diferentes: As interações entre os seres humanos tornaram-se globais Os contactos, a comunicação, o trânsito, o intercâmbio de recursos naturais, de capital, de mercadorias, serviços, informações etc., são de dimensão global. Durante as décadas passadas, estas interações se intensificaram e ainda continuam se intensificando. O postulado de uma ética universalmente válida não implica que qualquer regra moral dava ter validade universal. O postulado apenas implica que algumas regras, e talvez muito poucas, sejam universalmente válidas e portanto devam ser seguidas por todos. Nada impede que muitas regras têm validade restrita – a regra p.e. que o hóspede convidado deve arrotar como sinal de ter gostado o almoço. Levanta-se, portanto, a questão, quais regras são aquelas que merecem ser seguidas universalmente. Para responder a esta questão, é preciso fazer uma reflexão sobre os DH. Pois respeitar os DH, significa e implica o cumprimento de determinadas obrigações (na maioria de obrigações negativas que nos mandam de não cometer determinados atos). Disso falamos já no cap. 2.3.2. Estamos confrontados com uma série de desafios de porte global Podemos lembrar aqui alguns destes desafios: a) A crise ecológica – degradação de sois, correntes de água, do mar etc., diminuição rápida da biodiversidade e, em muitas espécies, do número de exemplares;

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b) O aquecimento do clima que gera a tarefa de prevenir uma elevação da temperatura mundial média por mais de dois graus; c) A ameaça que provem de algumas tecnologias mais “avançadas”, como a tecnologia nuclear, a construção de armas biológicas e químicas, a tecnologia genética etc. Estes desafios são relativamente novos. d) A competição econômica faz com que a tendência de explorar os recursos naturais – área agrícola, alimentos, água potável, petrólio, minerais etc. – aumenta. Aumentam, então, os preços, mas também a escassez, e em muitas regiões a degradação do meio ambiente. e) Um quinto desafio, bem mais antigo, é a migração intercontinental. A partir da segunda metade do século 20, ela também aumentou em tamanho considerável. Estes desafios atingem a todas as sociedades deste mundo: Somos, por assim dizer, todos passageiros num navio em mar alto, no qual todavia ocupamos comardes diferentes, com níveis de conforto diferentes. Os desafios, então, não nos atingem todos da mesma maneira. Ética e mercado: Um campo com tensões No que segue vou analisar de mais perto algumas questões éticas ligadas à economia e ao mercado. Competição e ética Como já foi mencionado, uma condição necessária do mercado é a competição (concorrência). O que, sob perspectiva ética, pode-se dizer sobre a concorrência? Como vimos, as regras morais nascem da cooperação e têm a função de garantir o seu caráter pacífico. A concorrência ou competição é uma área diferente. No desporte é comum pôr em ordem hierárquica as realizações dos participantes. A competição, então, desempenha um papel central: no futebol concorrem dois times, nas olimpíadas concorrem, em cada disciplina, dezenas de atletas. Nessas circunstãncias, agir segundo a Regra de Ouro seria não apenas inédito, mas sim, absurdo. Pois, se um atleta renunciasse a esforçar-se o máximo para melhorar as chances dos seus concorrentes, ele não seguiria as regras do jogo. Pior ainda: Se a maioria dos atletas fizessem isso, eles anniquilariam as condições da competição.

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As cirunstâncias vigentes no mercado mostram aspectos parecidos. Sendo que o mercado baséia-se na competição, a Regra de Ouro nele tampouco é válida. Isso torna-se óbvio, p.e., quando negociamos o preço de algo: como compradores estamos interessados em preços baixos, enquanto que como vendedores preferimos preços mais elevados. Se o comprador negociasse segundo a Regra de Ouro, ele deveria, para agradar o seu contraente, fazer com que pela negociação o preço suba, e o vendedor que aplicasse a Regra de Ouro deveria baixar o preço pelo máximo. Tal negociação invertida não apenas seria paradoxal, mas sim contrária aos mecanismos do mercado. Se todos (ou se a maioria) dos atores no mercado negociassem assim, eles tornariam inválidas as condições do mercado: Eles as destruiriam. Aparentemente há uma tensão entre a competição e a ética. Com outras palavras: a ética não nasce nem da competição nem da negociação. Na competição desportiva e na negociação a Regra de Ouro desempenha um papel apenas indireto: os actores devem seguir certas normas, como – evidentemente – a norma de não matar nem agredir o outro e de seguir as regras do jogo. No futebal o “foul” não é nada mais e nada menos de que a infração de uma regra (Kesselring 2009, cap. I.8). Quando negociamos, seguimos, primeiro, as leis da competição e, segundo, as leis da cooperação: Consideramos o outro, por um lado, como alguém com quem pretendemos fazer um negócio e com quem (ou contra quem), no mesmo tempo, queremos ganhar uma vantagem. Segundo, consideramos ele também como parceiro, com quem queremos cooperar. Portanto, logo que a negociação terminar, temos que cumprir o nosso compromisso [“pacta sunt servanda” – provérbio latim]: Enquanto compradores devemos pagar o preço combinado, e enquanto vendedores devemos ceder a mercadoria. Ambos os parceiros esperam mutuamente que o outro coopere segura e fidedignamente. O mercado pode ser eficiente, mas não é necessariamente justo Enquanto sistema de distribuição no qual cada um adquire justamente aquilo que precisa, o mercado (assumamos que nele todos dispõem de poder aquisitivo suficiente) funciona melhor de que uma instituição centralizada de distribuição - um cacique ou um órgão jurídico que atribue as mesmas coisas, na mesma quantidade, a todos os membros da sociedade. Neste sentido, o mercado é uma instituição eficiente – mais eficiente de que qualquer sistema de distribuição centralizada. Mas isso não significa que o mercado gere uma repartição de bens justa. Isso, tem a ver com um aspecto da competição que vale a pena analizar: como se Novembro de 2012

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sabe, na competição tem as maiores chances de vencer quem é o mais forte – ou, mais adequadamente – o melhor adaptadoas circunstâncias. No mercado as chances de conseguir o que se deseja dependem do poder aquisitivo. No entanto, 20% da população mundial têm que sobreviver com um Dolar (ou menos) por dia, e com isto estão condenados a lutar permanentemente pela sobrevivência. Outros 20% sobrevivemr com algo entre 1 e 2 Dolares por dia. Na soma, quatro de dez pessoas estão marginalizados: sem acesso ao mercado ou apenas com acesso precário e temporário. Os “marginalizados” vivem em circunstâncias miseráveis, difíceis, perigosas, doentias. Encontram-se num círculo vicioso, correndo o risco de perder mais ainda. Os privilegiados, por outro lado, têm acesso a serviços e informações mediante os quais conseguem acumular mais privilégios ainda. É, então, evidente que o mercado enquanto tal não é uma instituição justa. No mercado não há transparência Na teoria clássica do mercado assume se que o mercado é “transparente”. Em outras palavras, presume-se que todos os atores no mercado, em princípio, conhecem toda a oferta, e que todos os vendedores conhecem toda a demanda. Isso, no entanto, apenas é possível em pequenos mercados locais, fechados, onde cada participante conhece todos os outros participantes. Mas normalmente um mercado é aberto e acessível a novos atores; nele não se conhecem todos os participantes, e menos ainda estes conhecem toda a demanda e/ou toda a oferta. Quanto mais extenso o mercado, tanto menor, relativamente, a informação à qual os participantes têm acesso. No início da década de noventa, a maioria das empresas sapateiras no sul do Brasil colabiu devido à concorrência chinesa. O evento foi repentino – as empresas em questão não tinham antecipado tal concorrência e foram surpresas pela rapidez com a qual ela se manifestava. Anos depois ocorreu algo semelhante com a indústria têxtil: empresas chinesas que lançaram no mercado mundial vestidos e tecidos baratos sufocaram indústrias téxteis em outros paises, tanto na Ásia como em África. A falta de transparência nos mercados reais não apenas é um simples desvio da situação ideal, descrita pela teoria clássica. Pelo contrário, a falta de transparência é uma condição necessária do mercado enquanto tal. Pois, não há mercado sem que haja concorrência entre os vendedores. Essa concorrência, por sua vez, pressupõe que os concurrentes escondam, um diante do outro, os segredos do seu sucesso. Se eles trocassem as informações essenciais sobre a especialidade da sua marca, eles correriam o risco de perder os seus segredos e com eles também perderiam a dianteira. Por outro lado, é evidente que, quem dispõe de mais capital pode, mais facilmente, 162

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arranjar informações relevantes que lhe ajudam a melhorar a sua posição na competição. Não há igualdade de chances. Para quem tem mais privilegios é mais fácil de aceder a informações úteis e proveitosas de que quem tem menos privilégios... O mercado desregulado seria uma contradição em si Segundo a visão neo-liberal, o Estado deve abster-se de influir as interações no mercado, pois com isso ele distorceria os mecanismos subjacentes. Um mercado desregulado, no entanto, seria uma instituição altamente indesejável, e até contraditória. Indesejável, pois se faltar regulamentação, não se poderia recusar e impedir negócios nocivos e imorais, como tráfico de mulheres e crianças, tráfico não regulado de órgãos, narcotráfico, tráfico de armas etc. Um mercado desregulado até seria contraditório, pois se não houver proibição de formar monopólios e cartéis, estes inevitavelmente surgiriam depressa, e o mercado se auto-destruiría. O mercado não visa o futuro O que movimenta o intercâmbio no mercado é basicamente, por um lado, o conjunto daquilo que os compradores ou consumidores demandam; e, por outro, o conjunto daquilo que os vendedores ou produtores oferecem. A demanda pode basear-se em necessidades imediatas (comida, roupa, abrigo etc.), como também em desejos menos urgentes que eventualmente relacionam-se com um futuro não imediato. A qualidade ética destes desejos não tem influência alguma no funcionamento do mercado. Se a demanda de bíblias sobe, mais cedo mais tarde a oferta de bíblias também vai subir. No entanto, a mesma coisa ocorre com a pornografia. Se o mercado não for regulado, se a comercialização de produtos nocivos – pesticída venenosa ou material com radiação nuclear etc. – não for proibida, tais produtos inevitavelmente seriam oferecidos, e a sua oferta dependeria da demanda. Por um lado, não é de negar que o comprador pode influir o mercado: Se ninguém compra mais pesticida venenosa, esta vai sumir do mercado. Por outro lado, a influência que com a sua decisão de compra cada consumidor pode exercer na maioria das vezes é ínfima. Além disso, o consumidor crítico deve ser muito bem informado e eticamente esclarecido para escolher suas compras “prudentemente” e com responsabilidade. Sem planejamento pela política e sem medidas políticas, o mercado dificilmente incentiva a venda de produtos ecologicamente sustentáveis. A venda de produtos muito poluidores deveria ser freada com impostos ou com uma taxa que cobriria os custos da limpeza; e a venda de produtos limpos deveria ser promovida com subsídios até que aqueles desalojem e substituam os produtos não limpos. Novembro de 2012

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Se numa cidade houver transporte público bem organizado e seguro, a grande maioria da população preferiria usá-lo, em vez de andar com carro próprio, contribuindo assim aos engarrafamentos no trânsito. Mas onde não há transporte público, o cidadão não pode escolher... No entanto, sem os incentivos necessários, decididos pela política, a economia atual dificilmente iria transformar-se numa economia social e ecologicamente sustentável. Os perigos particulares dos mercados financeiros Há tipos diferentes de mercados: mercados com prodútos básicos pela sobrevivência do ser humano – comida, bebida, remédios, roupa etc. –; mercados com produtos luxuriosos – pedras preciosas, colares e pulseiras de ouro, whisky e vodka -; mercados com produtos ilícitos – drogas, material com radiação nuclear, armas, etc. -; mercados com serviços – hotéis, transporte, linhas de comunicação, etc. –; e mercados com “produtos” financeiros – dinheiro, “acções”, obligações, etc. É um mercado financeiro de fato um mercado no sentido estrito? Jagdish Bhagwati diz que não. Este autor, grande defensor do neo-liberalismo, argumenta que os mercados financeiros precisam de uma regulação, os outros mercados não (Bhagwati 2007, cap. 13). Como Bhagwati defende esta tese? Ele parte da idéia de que o mercado não aguenta regulação, e trata esta ideia como axioma. No entanto, inerpreta a série de crises dos mercados finaneiros como sinal de que é preciso regulá-los. Bhagwati, no entanto, errou em dois pontos: Primeiro, não se deu conta de que nenhum mercado pode funcionar a longo prazo sem ser protegido e regulado pela política (veja 5.4 e 5.5). Segundo, ele errou, quando escreveu que “os dias do capitalismo financeiro internacional selvagem provavelmente já passaram” (idem.). Escreveu isso em 2007, um ano antes da maior crise do capitalismo financeiro – uma crise que até hoje não é superada. – A questão dos mercados financeiros é tão importante que vamos aprofundá-la mais. Comercializar o dinheiro: o Banco Um dos primeiros autores que criticaram o comércio com dinheiro era Aristoteles. O filósofo grego não negava que a invenção do dinheiro facilita a troca, sendo que o dinheiro é um valor de troca universal que permite ao agricultor, por exemplo, comprar um móvel, mesmo se o marcenário não precisa de trigo (veja § 1). A crítica de Aristóteles visa uma outra consequência do dinheiro: Este pode tornar-se objeto de comércio, apesar de não posuir valor de uso. A comercialização do dinheiro cria uma novidade - os juros. Não se vende, mas empresta-se dinheiro a uma outra pessoa. 164

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Com a devolução do empréstim recebe-se, além da soma emprestada, um acréscimo, os juros (alguns porcentos da quantidade emprestada). Emprestar dinheiro, cobrando juros, desenvolveu-se num tipo de negócio completamente diferente de qualquer outra forma de troca. Quem comercialisa dinheiro não visa mais o uso concrecto de um bem, mas sim, o ganho enquanto tal. Aristoteles critica que com a comercialização do dinheiro introduziu-se a idéia de acumulação infinita de recursos. “A riqueza” que provém da comercialização do dinheiro “portanto é ilimitado”, escreveu Aristoteles (Política, 1258a 22-23). Na época dele, esta infinitude era algo completamente novo, inédito. Com ela cria-se um novo motivo para o intercâmbio econômico, aliás não muito nobre: a cobiça. Aristoteles não analizou outro efeito da comercialização do dinheiro: Os juros criam a necessidade de que a economia cresça constantemente, sendo que a obrigação de pagar juros força aquele que empresta dinheiro a usá-lo para fazer investições lucrativas. Resumindo, podemos dizer que a partir do momento em que o dinheiro mesmo se torna objecto da comercialização, a economia transforma-se num mecanismo de geração perpétua de valores econômicos. A palavra grega “economia” significava na época de Aristoteles “organização da fazenda (ou casa)”. Hoje, ela significa outra coisa: o conjunto da produção e troca de valores, chamados eles mesmos, de “econômicos”. O essencial nisso é que o crescimento da quantidade de valores econômicos tornou-se condição necessária da própria economia. Quando não há crescimento, as interações entre os parceiros da troca estão atropeladas, e o mais fraco muitas vezes tem que assumir o prejuizo. Um mercado financeiro, no entanto, não é simplesmente um lugar onde dinheiro é comercializado. Num mercado financeiro comercialisa-se outros “produtos”, mais complexos: Ações, obrigações, “futures”, e entre outras coisas. Comercializar “ações”: a bolsa Examinemos o que é uma “açao” (= um “título” de posse). Em primeiro lugar uma “ação” é um comprovante de que a pessoa X investiu numa parte do capital de uma empresa Y. O acionista X, por exemplo, assmiu os custos de uma impressora. Graças ao seu investimento, o empresário que dirige a empresa Y pode produzir algo – por exemplo imprimir jornais, livros etc. Se a sua empresa consegue rendimento, X tem o direito de receber uma parte (p.e. proporcional à sua investição). Graças à invenção da “ação” (do “título”) a criação de empresas produtivas torna-se mais fácil. A Novembro de 2012

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empresa não é nas mãos de uma pessoa ou família apenas, mas de muitas – centenas ou milhares – pessoas. Os “acionistas” são os verdadeiros detentores do capital. A história do capitalismo, sob este aspecto, também é a história da “ação”. No entanto, a partir do momento no qual a “ação” ou o “título” se torna objeto de comercialização, a situação muda completamente. Cria-se um mercado de “ações” ou “títulos” - a “bolsa”, e neste mercado cada “ação” tem um preço (que segue as leis do mercado, dependendo da relação entre a demanda e a oferta). Enquanto uma empresa promete crescimento e lucro, os seus “títulos” estão mais procurados. Quanto mais lucrativo a empresa, tanto mais attrativos os seus “títulos”. Sendo que o número de “títulos” de uma empresa oferecidos na bolsa permanece estável, a demanda crescente faz subir o seu preço, quer dizer a sua cotação. E, quanto mais a sua cotação promete subir, tanto maior a demanda, e quanto maior a demanda, tanto mais a cotação promete subir. A subida das cotações na bolsa é um processo que se reforça a si mesmo. A mesma coisa ocorre, quando a cotação desce. Pois em qualquer momento o preço do “título” pode parar a sua subida e começar a descer. Não é possível determinar exatamente o momento no qual a subida para, nem aquele no qual ela começa. As vezes as cotações sobem durante um período longo – dois, três anos ou mais. No entanto, mais cedo mais tarde a subida das cotações vira, e algumas cotações, talvez a sua maioria, começam a baixar. Neste momento, muitos acionistas querem vender os seus “títulos” o que leva o seu preço a baixar mais ainda. Como na fase da subida (na fase do “boom”), aquela da descida (fase do “bust”), os efeitos se reforçam a si mesmos. Nos seus detalhes, os eventos permanecem imprevisíveis. Quando as bolsas se metem a rolar, a economia corre o risco de entrar numa crise. Nós últimos 15 anos isso ocorreu pelo menos três vezes. Comercializar seguros A última crise dos mercados financeiros foi a mais acentuada. Ela se devia, em grandes partes, a novos “produtos”, criados no seio de grandes “Bancos de Investimento”. Entre os novos produtos tornaram-se particularmente mal-afamados os chamados “Credit Default Swaps” (CDS). Basicamento, o CDS representa um seguro que um Banco efectuou contra o risco de perder parcial ou totalmente o valor emprestado a alguém através de uma hipoteca. Para o seguro, o Banco paga, digamos, 2 ou 3 porcentos da hipoteca por ano. Essa taxa depende do risco. Se a hipoteca do Senhor João for de 20’000 Dólares e se o seguro custa 2 porcentos, então o Banco paga pelo seguro 400 Dólares por ano. Se o Banco perde a hipoteca parcial ou totalmente, o seguro o indeniza, pagando-lhe a parte não retribuida. Na crise das 166

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hipotecas imobiliárias nos E.U.A. se tornou comum que os fregueses não conseguiram mais devolver as hipotecas, e em inúmeros a perda foi de 100 porcentos. A idéia de proteger-se contra perdas imprevisíveis mediante um seguro provém da agricultura. Em muitos paises é comum que os produtores agrícolas contratam um seguro para evitar o risco de perder todas as investições numa colheita, se esta se perder, por exemplo, devido a cambalhotas climáticas. O segura contra a não devolução de hipotecas, no entanto, é uma novidade que surgia há poucos anos. Quando a última crise dos mercados financeiros iniciou, em 2008, os próprios banqueiros tinham pouca experiência com este “produto”, chamado de “CDS”. De repente, a maior casa de seguros norteamericana, AIG [= “American International Group”], constatou que, na média, cada seguro CDS foi vendido 12 vezes. Isso significava que, por cada hipoteca não devolvida, coberta pelo seguro da AIG, essa casa teve que indenizar não apenas o Banco atingido, mas sim outras 11 entidades. – Como era possível isso? O “CDS” tinha-se tornado mercadoria vendível, e com isso aquilo que antes era um seguro tinha se transformado numa aposta106. Antes da crise aparentemente ninguém tinha previsto o risco extremo que as casas de seguro correram com a comercialização dos CDS. Esta história mostra o alto grau de intransparência que reina nos mercados financeiros. A AIG, maior seguradora dos Estados Unidos, entrou em falência, e o Estado norteamericano assumiu o buraco financeiro, pois a AIG teve a chama de ser “demasiado grande para falir”. O cidadão que paga impostos teve que salvar uma das maiores empresas particulares do país. Em vez de ter tirado dos mercados financeiros o detonador, como Bhagwati acreditava em 2007, a política internacional tinha negligenciado completamente a sua regulação, com o efeito de que estes mercados se tornaram drasticamente mais perigosos ainda. E tudo isso tem a ver com o fato de que com a sua comercialização certos portadores de valor – dinheiro, “ações”, (“títulos”), seguros etc. – se perverteram de instrumentos úteis em puro veneno107. O mercado mundial enquanto desafio ético Constatamos acima que, graças aos mecanismos do mercado, nossos atos egoistas e auto-interessados transformam-se em atos altruistas dos quais os outros participantes aproveitam.

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Tirei as informações relatadas sobre a última crise financira do „NZZ Folio, Janeiro de 2009, p.23-54 principal no capítulo 5.6. é minha própria. Não conheço literatura sobre o assunto

107 A tese

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O mesmo ocorre, em princípio, no comércio internacional. Num mercado com porte transnacional o número dos participantes é de outra escala de que num mercado nacional. Quanto mais abrangente um mercado, tanto maior a variedade das opções do comprador. No mercado vinícola internacional, por exemplo, podemos escolher entre vinhos sul-africanos, portuguêses, italianos e até chilenos. Para o consumidor, a escolha maior é maravilhosa. O produtor também tira vantagem da internacionalização do mercado, pois quanto mais extenso o mercado, tanto maior o potencial da freguesia. Imaginemos um produtor de cerveja: quanto mais consumidores se interessam pela sua marca, tanto mais cerveja ele pode produzir. E quanto mais cerveja ele vende, tanto maior a sua renda: ele ganha mais recursos para novos investimentos, com isso pode ampliar a produção, mas também o reclamo por seu produto, explorando portanto novos segmentos do mercado. Investindo e consumindo mais, contribue para o crescimento da renda de outros produtores e participa no crescimento do mercado, etc. A extensão do mercado faz crescer a economia. Nesta experiência se baséia o chamado “Consenso de Washington” (consenso entre o Banco Mundial, o FMI [= Fundo Monetário Internacional] e o governo norteamericano) que recomenda a abertura dos mercados mediante (1) a diminuição ou até eliminação completa dos tributos aduanheiros, (2) o renúncio à fixação de cotas para a importação e a exportação e (3) o renúncio à subvencionar produtos que no mercado internacional não conseguem competir. A primeira vista parece óbvio que a criação de um mercado internacional, a não ser mundial, amalgando e unificando os mercados regionais e locais seria uma medida segura para fazer crescer a economia. Também parece óbvio que tal crescimento é vantajoso para todos e que uma produção que é subvencionada para poder ser vendida a longo prazo não se mantém no mercado. – No entanto, a realidade é mais complexa. A teoria neoliberal contém algumas lacunas. Quais são os problemas? Se os Estados Unidos pegam uma gripe, o resto do mundo entra em crise Mesmo que na maioria dos casos a abertura dos mercados levava a um crescimento econômico, não existe nenhuma garantia que isso sempre aconteça. Nas últimas décadas as crises financeiras, crises que no início sempre são locais, se espalharam para além do pis de origem e infectaram partes maiores da economia mundial. A crise asiática iniciou em 1998 na Tailândia, quando a especulação no setor das construções estourou. A moeda tailandêsa, o Baht, perdeu 50% do seu valor. Os investores americanos e europeus entraram em pánico e retiraram suas “investições” também de outros paises asiáticos, quer dizer, venderam os “títulos” que deles antes 168

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adquiriram. Por conseqüência, paises como a Coréia do Sul, a Indonêsia, as Filipinas e parcialmente a Malásia entraram em crise. Os eventos desencadeados pela especulação na tailândêsa espalharam-se pelos paises vizinhos. Pouco antes, a bolsa na Russia sofreu grandes perdas e infectou o Brasil: muito especuladores retiraram suas investições da bolsa de São Paulo, pelo simples fato de suspeitarem que as estruturas econômicas brasileiras fossem parecidas àquelas na Russia. – Não importa, se essa suspeita fosse bem fundamentada ou não, ela chegava a infectar da maior economia na América Latina. A moeda brasileira sofreu uma desvalorização substancial, e a pobreza explodiu... – Exemplos como esses poderiam ser ampliados (Stiglitz 2003). Mercado num plano inclinado As chances de participar nos mercados internacionais não são iguais em todas as sociedades. Entre diferentes paises há uma assimetria acentuada, não apenas quanto ao seu poder político, como também quanto ao seu poder competitivo na economia internacional. No mercado, quem tem mais poder aquisitivo goza mais vantagens. Quase 3 dos 6,8 bilhões de seres humanos, então quase a metade, vivem de menos de dois dólares por dia. Quem não tem poder aquisitivo não tem acesso ao mercado. Por outro lado, quanto maior o poder aquisitivo, tanto maior as opções daquele ator de realizar negócios lucrativos. Depende em grande medida do poder aquisitivo, que oportunidades e chances no mercado alguém tem. Não é, portanto, a mesma coisa, um negócio entre iguais e um negócio entre desiguais. Quem dispõe de mais capital, pode tirar mais vantagem de que quem dispõe de menos capital. O pobre não tem condições de investir, o rico sim. No mercado internacional as possibilidades de investimento multiplicam-se. O detentor de muito capital pode investir nos paises mais diversos. Odebrecht, uma empresa brasileira especializada em construções, estabeleceu-se no Angola também, onde emprega milhares de operários em minas de diamante. Paises poderosos, como a China ou a Coréia do Sul, compram terrenos na Africa para ampliar a sua área agrícola, segurando assim a sua futura produção alimentiça. Empresas multinacionais poderosas, como a Nestlé (Suiça) ou a Suez (França), compram, em paises Africanos e Latinoamericanos, fontes de água doce para engarafar a água e comercializá-la, com um preço (na média) 100 vezes mais alto daquele da água não engarafada. Tudo isso é possível apenas devido à assimetria entre sociedades bem posicionadas no mercado mundial e outras nele mal posicionadas. A atual ordem internacional não apenas traz consigo sérios riscos – riscos, sim, para todos, como mostram os exemplos das crises financeiras Novembro de 2012

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internacionais. Além disso, trazendo riscos mais sérios para as sociedades mais pobres, ela não é justa (Kesselring 2007, cap. 8 e 9). Os poderosos também podem tropeçar No entanto, vale acrescentar que os privilegiados também podem perder e os desvantajoses ganhar. Como isso? Lembremos brevemente a história do reino romano: depois de ter colonizado boas partes dos povos ao redor da mar mediterrânea (que, entre outras obrigações, tinham que abastecer Roma, a capital, com trigo), o reino romano entrou em declínio: se o gozo de situações vantajosas se torna hábito, ele pode, a longo prazo, tornar-se um risco: Quem desaprende lutar pode sucumbir mais cedo, mais tarde àqueles que não abandonaram a luta pela sobrevivência. Hoje, ninguém garante que os EUA e a Europa poderão se salvar deste destino. Há décadas os Norteamericanos se especializaram em consumir mais que produzir e importam mais que exportar, deixando outros paises pagar pelo seu consumo excessivo. Este consumo, argumentam muitos economistas, preservou a economia mundial de uma recessão maior. Mesmo que este argumento é sério, soa estranha a idéia de que especializar-se no consumo seja uma virtude. Além disso, a assimetria entre a produtividade alta na China e a produtividade baixa nos EUA traz consigo conseqüência inédita: o Banco do Estado Americano (FED = Federal Reserve), que define o valor do Dolar, não detem mais o monopólio sobre a definição do valor do Dolar: O Banco do povo Chinês guarda um acervo em Dolares tão grande (mais de 2000 bilhões!) que o pais asiático tem o poder de influir diretaamente no valor e na estabilidade do Dólar. O déficit estadounidense soma-se a 14’000 bilhões de Dolares e pesa na moeda norte-americana que lenta e continuamente baixa o seu valor. Os chineses cooperam ativamente na prevenção do colapso do Dólar, sabendo que a venda de grandes partes de suas divisas resultaria na sua desvalorização completa, a qual nem os chineses queriam arriscar. Implicações ecológicas do mercado mundial Nas últimas décadas a crise ecológica avançou rapidamente. Hoje ela atinge todos os paises. Ela tem várias causas diferentes, mas o crescimento da economia mundial é uma das principais, pois este crescimento vai de par com uma extração crescente de recursos naturais – orgânicos como anorgânicos (minerais). Vale a pena mencionar outro fator, mais específico neste quadro: Com a globalização a distância média do transporte de recursos naturais e mercadorias vai aumentando. 170

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Com isso o gasto de combustível (energia não renovável) vai crescendo, mas o que conta mais, é o fato de que o controle da origem dos recursos também torna-se mais difícil. O consumidor compra mercadoria da qual ele não conhece nem a origem nem o modo de produção. Não raras vezes tal produção é acompanhada pela exploração de trabalhadores, pelo emprego de menores e/ou pela extração exaustiva de recursos naturais. Até o consumidor crítico não consegue mais se salvar de produtos aos quais ele se oporia, se ele conhecesse a sua origem, como madeira proveniendo de cortes exaustivas, tapetes atadas por crianças, etc. Quanto mais extenso o mercado, tanto menos transparente ele é. No mercado globalizado a transparência é desafiada ao máximo. Isso não é boa notícia, nem para o povo nos paises mais prejudicados nem para o meio ambiente de cuja conservação aquele depende (Kesselring 2007, cap. 10). Síntese final O mercado não é uma instituição que promove justiça – fato que muitos economistas desconsideram. O mercado pressupõe competitividade, e a competição enquanto tal não implica ética. O mercado, portanto, tem de ser protegido por um conjunto de regras éticas ou uma legislação baseada nos Direitos Humanos, na Regra de Ouro e na Regra da Generalização (respectivamente Regra da Universalização). O amálgama dos mercados num só leva, por um lado, à aceleração do crescimento econômico. Por outro lado, levanta também o risco de que crises econômicas se propaguem além do pais da sua origem e infectem a economia mundial toda. O problema mais sério com os qual o mercado internacional nos confronta atualmente provém dos mercados financeiros. Durante as décadas passadas, estes mercados evoluiam rapidamente e quase sem regulação. Nesta área, a ética ficava completamente atrás. Qualquer economia que explora os pobres é injusta. E, qualquer economia que explora o meio ambiente – a base do abastecimento das gerações futuras – é insustentável. Para virar o panorama, sería necessário regular os mercados (e particularmente os mercados financeiros) e domesticá-los segundo critérios éticos.

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FRONTEIRAS DA FILOSOFIA PARA A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA EM MOÇAMBIQUE Severino E. Ngoenha108 e Eduardo F. Buanaissa109 A presente reflexão proucura estabelecer parametros fronteiriços do lugar da Filosofia na construção da democracia em Moçambique. Constitui-se neste sentido, no esforço teórico-social cuja preleção é propor um ângulo em que se possa alcançar a ordem social em Moçambique, e de consequência o progresso de todos nós enquanto povo moçambicano, mergulhados nas fronteiras da CPLP e do mundo. Palavras-chave: Filosofia, Democracia, interculturalidade Esta reflexão resulta do repertório teórico que o professor Severino Ngoenha tem vindo a desenvolver maioritariamente desde 1990. Os alicerces das ideias que pretendemos desenvolver baseiam-se fundamentalmente nas reflexões já apresentadas por ele nas seguintes obras: Filosofia Africana, Das Independências às Liberdades (Ngoenha, 1993), Os Tempos da Filosofia, Filosofia e Democracia em Moçambique (Ngoenha, 2004) e MACHEL, Ícone da Primeira Republica? (Ngoenha, 2009). Não obstante, esta reflexão também seja fruto do Primeiro Congresso Internacional de Filosofia organizado pela Universidade Pedagógica de Moçambique, cujo lema foi: Filosofia e Metamorfoses Sociais na CPLP. Decidimos ajustar o problema que nos foi proposto como base para nossa lucubração colocando, no lugar de CPLP: Moçambique, dada a complexidade e vastidão de pensar CPLP mergulhada nas fronteiras históricas de Portugal, por um lado, e do Brasil, por outro. Como filósofos, vamos privilegiar mais o terreno da história. Apesar de alguns dos nossos colegas se interessarem fortemente por temas como Identidades e Fronteiras, achamos estes, serem campos mais afins às demais ciências humanas e sociais. Na tentativa de estreitar ainda mais a nossa reflexão, nos encarregamos de 108

Doutor em Filosofia da História pela Universidade Gregoriana de Roma, 1990; Um dos mais influentes filósofos do pensamento africano (encontrando-se actualmente a trabalhar como Professor, e coolaborador em Universidades moçambicanas, brasileiras, francesas e suíças). 109 Licenciado em Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique, 2011; Mestrando (Doble Degree) em Desenho de Sistemas de Educação pela Universidade Pedagógica de Moçambique e pela Universidade de Magdeburg da Alemanha; Técnico em Africanidades pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, 2010; Técnico em Desenvolvimento Sustentável de Educação pela Universidade de Magdeburg da Alemanha.

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fixar um denominador comum ligado aos eventos históricos dos nossos países; nesse caso: a construção da Democracia. Há duas maneiras de pensar a (nossa) história: de um lado temos a perspectiva Kpovos, que pretende ser o espelho de como os eventos se desenvolvem no tempo; e de outro, temos a perspectiva Kaipos, que quer ser a busca do sentido dos actos humanos. Não é por acaso que desde Agostinho, Hegel, Voltaire, Vico, e Karl Löwith (só para referenciar os mais significativos exemplos), que o grande interesse da filosofia da história, foi sempre o Kaipos. Ou seja, se temos que pensar nos nossos países em termos de uma história somente Kpovos, remeter-nos-íamos a eventos como a chegada de Vasco da Gama ao Cabo da Boa Esperança e dos portugueses ao Brasil, que originou a escravatura e o colonialismo. Se a história fosse somente Kpovos, teríamos que tirar dela ilações problemáticas ou negativas. A filosofia não pode tender a debruçar-se meramente de assuntos como lutas, conflitos, guerras, escravatura, colonialismo, globalização, etc. Mas se tomarmos a história em termos de sentido, aqui também encontramo-nos numa espécie de ambivalência, que como dizia Hegel, criou mestres e escravos (colonialismo e escravatura) que origina violência histórica e antropológica. Por outro lado, apesar de martirizados por esta experiência, há outra dimensão que pode ser a do futuro. Que não significa esquecer o passado e os seus haveres, mas estabelecer bases antropológicas na construção de uma nova história do futuro. No fundo, a relação entre nossos países (como se apresenta hoje), pelo menos a nível de manifestação de intenções, constitui uma premissa positiva baseada sobre uma nova visão do Antropos e de consequência de uma nova e diferente visão de uma história futura. O Tema (Filosofia e Metamorfoses Sociais na CPLP) do Primeiro Congresso Internacional de Filosofia, organizado na primeira semana de Novembro de 2010 pela Universidade Pedagógica de Moçambique, já constituía em si uma tomada de consciência da existência de um espaço comparável entre nossos países nos processos que levaram a criação de Estados democráticos e de direito. A historiografia dos países africanos de língua oficial portuguesa tem insistido no facto de que a Revolução dos Cravos de 24 de Abril de 1974 em Portugal levada a cabo por militares, resultou da determinação dos povos africanos em pegarem em armas para as suas emancipações políticas. Mas esta mesma revolução abriu a porta às independências para as antigas colónias africanas. Ainda neste período, o Brasil também esteve sujeito (já à 10 anos) a um jugo da ditadura militar que só veio a terminar onze anos mais tarde. Durante 174

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este período de opressão as ciências humanas e sociais, em particular a filosofia, não tiveram espaços de expressão. Durante muito tempo, destacados intelectuais ou estavam em prisões ou em exílios. O que nos pareceu interessante no congresso de Maputo, foi ver como é que as ciências sociais, e a filosofia em particular, têm participado nos processos de democratização e nas lutas pelo desenvolvimento económico e social que se seguiram, o que supõe necessariamente um maior nível de distribuição das poucas ou muitas riquezas que os países possuem. Da parte de Moçambique, depois de anos de um sistema que se queria marxistaleninista, a partir da década de 1990, a filosofia foi convocada a dar a sua contribuição na nova dinâmica democrática que emergiu. A primeira questão a que nos confrontamos foi a de saber a que problemas a filosofia tinha que ajudar a trazer respostas. Como temos afirmado desde os finais do século XX e limiares do século XXI110, para pensar o universal, cada homem parte da sua situação específica, particular. Quem pensa o universal é sempre um homem singular, pertencente a um grupo particular, situado no espaço e no tempo. Isto tanto é valido para quem pensa a partir de Portugal, bem como para quem pensa a partir do Brasil, de Angola, China ou mesmo de Moçambique. O reconhecimento, do condicionamento particular histórico, como afirma Voltaire, levou a criação pelo mesmo filósofo, da filosofia da história, que Hegel se responsabilizou em difundir pelo mundo fora. A situação do filósofo ocidental, que faz emergir a situação do sentido total (filosófico), na dinâmica da sua situação específica (histórica), corresponde também a uma reflexão africana (moçambicana), europeia (Portugal) e americana (brasileira) de dimensão igualmente histórico-filosófica. E isto possibilita-nos a reflectir as evidencialidades da interculturalidade entre os homens, que no nosso caso é a CPLP. Como afirmamos antes, a via da interculturalidade que nos alvitramos “problematizar” é a da construção da Democracia. Democracia enquanto possibilidade dos povos decidirem por si, aquilo que deve marcar os seus eventos históricos num diálogo com o outro. E como não poderia deixar de ser, pensamos esta meta-narrativa partindo da nossa situação específica e particular: Moçambique, apoiados a uma visão estritamente filosófico-histórica. Ora, em cada mo(vi)mento histórico e em cada ambiente cultural, o filosofo é solicitado a fazer despontar a questão do sentido total e dinâmico da situação especifica em 110

Principalmente na Obra de Nogenha, S. Filosofia Africana. Das Independências as Liberdades (1993)

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que se encontra a viver. Hoje, uma tal situação não se deduz no interior de um sistema pan-lógico, mas de uma deconstrução ampla e aprofundada do que se adquire da fenomenologia social, da psicologia, da política, da cultura, que informam a mentalidade hodierna. Cada época, cada civilização e cada geração define uma finalidade que a seus olhos constitui o seu próprio legado para a história da humanidade. A nossa geração, cumpre a árdua tarefa de participar na elaboração de um futuro diferente, do presente que nos é dado viver e observar. Há mais de meio século, Moçambique vive o escândalo da fome, da ignorância, da desnutrição, de um nível de vida que não para de degradarse, do número de pobres que não cessa de aumentar. Todos os homens que até aqui consagraram as suas vidas a um devir melhor identificam os seus esforços reduzidos no Nichts. Desenvolvimento Social e a Administração Machel A história dos moçambicanos encontra a sua homogeneização naquilo que de mais negativo pode existir na vida de um homem ou de uma comunidade: foi uma história comum de sofrimento, e de um sofrimento muito particular (já tinham essas mesmas populações conhecido a escravatura). Foi o colonialismo europeu do fim do século XIX que determinou em Berlim, a divisão arbitrária dos espaços geográficos (e culturais) africanos e a opressão comum dos homens que habitavam esse espaço, a invenção de Moçambique. A história da união dos três grupos que deram origem à Frelimo111 (Undenamo, Unamo e Manu) é exemplar de como os homens dessas terras e culturas diferentes a certa altura inventaram Moçambique, unindo-se numa luta comum em prol da liberdade. A História da luta de liberdade negro-africana conheceu muitas etapas. A primeira foi no chamado novo mundo onde a escravatura concentrou muitos homens e mulheres de origem africana privados de sua liberdade. A primeira luta começou ai, e a liberdade para estes homens, como para Kunta Kinte de Alex Haley, num primeiro momento era voltar ao que Delany chamou de “Alma mater”. Ora, para a geração seguinte, a liberdade passou a significar a emancipação da escravatura, não tanto para re-ganhar a “terra mater”, mas sobretudo para viver como homens livres nos países e nas terras que lhes viam nascer.

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Frente de Libertação de Moçambique.

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Este processo teve, imediatamente, que fazer contas com o desenvolvimento social para garantir essas liberdades. Nós vivemos ainda nessa busca da liberdade como desenvolvimento social, como luta pela democracia. Já não se trata de emancipação da escravatura, da integração nos países chamados Novo Mundo, da autodeterminação política, mas do desenvolvimento económico, político e fundamentalmente social112 Para sublinhar o que estamos a dizer, temos que nos lembrar de que nos dias de hoje, Moçambique vive momentos inéditos em relação a figura de Machel. Vemos nos mais variados e diversificados cantos de Moçambique, pessoas que, procuram imediatamente resgatar o nome de Samora Machel, quando o assunto diz respeito a Pobreza e Democracia… Quando Voltaire escreveu o famoso livro intitulado O Século de Luís XIV, surpreendentemente ele não chegou em momento algum a fazer menção a Luís XIV, mas criticava indirectamente Luís XIV, demonstrando claramente que não tinha gostado de ter vivido naquela época, não entanto que época, mas precisamente sob égide da administração Luís XIV. E para o nosso caso, a questão de fundo é: Quando invocamos Machel, é de Machel, da sua época, do seu governo, do sistema político então vigente que falamos, ou Machel se torna num simples pretexto para criticar indirectamente os “ditadores do Social”, o regime político e os governantes actuais? Somos nostálgicos à Machel e a seu regime político? reconhecemos o bem fundado dos seus ideais políticos, da sua prática governativa, do mono-partidarismo então vigente ou trata-se de uma figura de estilo? Mas se Voltaire teve que adoptar a evasiva de Luís XIV era porque não podia abertamente tomar uma posição contra o então monarca francês. Ora, no nosso Moçambique actual, o que nos obriga a incomodar Samora Machel para manifestar o nosso desacordo em relação a governação dos nossos dias? Será a nossa democracia não suficientemente democrática para ouvir vozes discordantes? Seremos cobardes ou não suficientemente corajosos para ousar frontalmente dizer a nossa parte da verdade? Ou então trata-se de uma figura de estilo?113… Samora Machel, carismático, personalidade aguerrida, estilo de liderança, excessivo e exagerado… marcou a história da primeira república moçambicana, aliás, como já o tinha feito no período precedente, guiando a Frelimo, depois da morte de Eduardo Mondlane, na luta de libertação que levou a independência nacional. Foi ele quem chefiou a delegação da Frelimo na assinatura dos acordos de Lusaka em 1974; Foi 112

Ngoenha, S. E. Os Tempos da Filosofia, Filosofia e Democracia Moçambicana, Maputo, Imprensa Universitária, 2004, p. 33, 34, 35 . 113 Ngoenha, S. E. MACHEL, Icone da Primeira Republica? Maputo, Ndjira, 2009, p.11

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ele quem em 25 de Junho de 1975 proclamou a independência nacional; foi ele quem proclamou a orientação socialista da então Republica Popular de Moçambique, o mono-partidarismo do Estado e a consequente eliminação física, fortemente discutível, quer sob ponto de vista moral, quer sob ponto de vista político, de personalidades então incómodas, etiquetadas de reaccionárias. Foi Machel quem em 1977 presidiu a proclamação do marxismo; foi Machel quem fez as nacionalizações, foi Machel quem declarou que a solução do conflito com a Renamo114 passava pelas armas e não pelo diálogo, como foi também ele quem assinou os acordos de Nkomati. Foi ainda sob a sua administração que se preparou a pré e a adesão de Moçambique ao Banco Mundial e ao FMI (sem compreendermos muito bem as razões). Também foi sob sua direcção que começaram os primeiros contactos com a Renamo rumo a paz. Os principais eventos da primeira república, independentemente da análise que façamos deles ou do posicionamento que possamos ter diante deles, estão de forma intrínseca ligados a figura de Machel. Já em vida, Machel tinha os seus admiradores, aqueles que o tinham canonizado antes de morrer. Alguns dos seus camaradas de luta consideraram-no um dos principais obreiros da liberdade nacional, como estratega militar, mobilizador de populações, fautor da unidade nacional num combate sem trincheiras contra o tribalismo e o racismo. Foram dedicadas a ele canções, poemas, praças públicas e ruas, estátuas, nomes de escolas, etc. Depois de morto, alguns nostálgicos nunca se habituaram a viver sem a figura marcante de Machel, nunca pararam de comparar a administração que se seguiu à de Machel. Outros ressuscitaram-no nos mídias, num misto entre saudosismo e método indirecto de crítica aos governantes actuais. Mas o mais interessante é que Machel foi enterrado como um Farão, isto é, com todos os seus haveres: ideologia política, concepções axiológicas que vão da ideia da justiça, da ideia de identidade, do patriotismo, do papel do Estado e do partido, até aos homens que lhe foram mais fiéis. Ele foi anunciado herói nacional ao som de fanfarras solenes e depois selado hermeticamente numa tumba para que o cheiro dos seus valores, ideias, ideologia e homens não se soltasse através das fechaduras; e fez-se tudo de modo que ninguém possa de novo ter acesso ao seu reino…Dado que com a morte de Machel, o regime político, a natureza de orientação económica, a estrutura de convivialidade civil mudaram, pode-se supor a existência de uma relação intrínseca entre a morte de Machel e as mudanças que se operaram.

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Resistência Nacional de Moçambique

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Já na terceira república, depois de duas décadas de um quase silencio, Machel é ressuscitado pela vontade popular, nos chapas115, nos rapes, no teatro, nos jornais, nas rádios, etc. Mas o que anuncia esta ressurreição? Um pretexto mesmo para criticar os actuais governantes ou a convicção de que Machel tem coisas a dizer-nos ainda hoje? O que será que o Marechal presidente da primeira república socialista, pode ter a dizer aos democratas e liberais da terceira república que nós somos116? Evidentemente, com a Morte de Machel, passa-se a uma segunda republica, administrada por Joaquim Chissano, onde depois de assumir-se verdadeiramente como democrática, oscila da democracia à “dolar-cracia”. Com a passagem da primeira a segunda república, deitou-se fora a água suja e o bebe. Valores verdadeiros para qualquer sociedade foram negligenciados, deliberadamente omitidos ou mesmo invertidos. Estes acontecimentos, associados a vontade política de introduzir-se a filosofia no sistema educacional moçambicano, colocou-nos o desafio de (re)pensar a democracia à partir da filosofia. A filosofia no limiar da Democracia em Moçambique: “Um esforço filosófico a partir de Moçambique não pode deixar de se inscrever no quadro de um esforço africano mais global ligado ao nascimento da filosofia africana que, por seu turno, está intrinsecamente ligado à busca da liberdade que caracteriza a visão continental de África”117. Depois das independências, a pouca filosofia que se ensinava em Moçambique era uma simplificação do Marxismo para o maior número dos moçambicanos e escolástica para o exíguo número de seminaristas. Já nos primeiros movimentos do pensamento filosófico moçambicano, que desenvolvemos fundamentalmente desde os finais do século XX, precisamente na obra: Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica (Ngoenha, 1991), começamos a pensar Moçambique no quadro da sua dimensão histórica, que também se pode associar as lutas pela democracia, e uma das primeiras propostas feitas pela filosofia foi o respeito pelas diversidades culturais e pela igualdade na diferença. Nesta linha, sugerimos então o federalismo. Este esforço de trazer a filosofia ao debate Moçambicano atingiu inesperadamente 115

Nome atribuído aos transportes semi-colectivos em Moçambique Id. 12, 13, 15, 21 117 Ngoenha, S. E. Os Tempos da Filosofia, Filosofia e Democracia Moçambicana, Maputo, Imprensa Universitária, 2004, p. 77 116

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proporções inauditas quando em 1995 me foi dada uma daquelas ocasiões únicas na vida de um filósofo, isto é, conceber um currículo de filosofia para a Universidade Pedagógica e acompanhar a formação de professores que se encarregariam num segundo momento, de introduzir a filosofia em todas as escolas secundárias do país118. Neste processo, interrogamo-nos sobre o que estava por detrás do interesse do Ministério de Educação em introduzir a filosofia no ensino secundário. Tratava-se então de elaborar um currículo que, embora não fugisse a secular história da filosofia nas suas disciplinas nucleares, (história da filosofia, ética, antropologia filosófica, metafísica e gnosiologia), fosse desenhado em função das necessidades de Moçambique. Tratava-se de readaptar a filosofia ao contexto moçambicano sem a seduzir da sua dimensão de busca do universal, centrada sobre a realidade do Dasein. Depois de um período de profunda investigação e reflexão, destacamos três campos basilares da possível contribuição da filosofia em Moçambique: gnosiologia, ética e política. A gnosiologia resulta, de um lado das dificuldades que os estudantes “tinham” face as questões abstractas, um deficit epistemológico ligado não só a falta de filosofia (lógica), mas também a fraca preparação no conjunto das disciplinas humanísticas como, a história, a gramática, a literatura as línguas clássicas, etc. De outro lado, a gnosiologia, para além de contribuir, dando aos estudantes utensílios de análise mais apurados, ela pode trazer uma outra contribuição, menos evidente, mas não menos importante. Na história, ela teve outras nominalidades que nos ajudaram a compreender os seus desafios e, em consequência a alargar o seu espaço de aplicação. Ela é também conhecida como Epistemologia, Teoria de Conhecimento e Crítica. “Dizer ‘crítica’ significa referir-se a uma atitude do espírito que consiste em analisar rigorosamente e sem condescendia os nossos mecanismos de conhecimento, o conteúdo mesmo do que nós dizemos saber, assim como o valor intrínseco dos nossos conhecimentos119. Então a génese que envolve a preparação do ensino da filosofia em Moçambique estava associada a tomada de consciência da necessidade de uma introspecção crítica sobre o nosso “eu-histórico”, como ponto de partida para um debate de ideias, associado sobretudo a questão do nosso espaço social democrático. No que concerne à “história recente”, em pouco tempo passámos do colonialismo ao Marxismo e deste para a “democracia liberal”. A filosofia, antes de indagar-se 118 119

Id. 78 Ibid.

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sobre (a nossa história do) futuro, deveria indagar-se sobre a natureza do colonialismo, das condições históricas, políticas e sociais que admitiram a sua emergência. Da mesma maneira, temos que nos interrogar quanto às razões da escolha do marxismo, sobretudo quando sinais da sua decadência eram visíveis; quanto às razões do fracasso do não-alinhamento, dos sistemas alternativos como o socialismo Ujaama; quanto às razões endógenas da inviabilização dos Estados Unidos de África prospectada por Kwame Nkrumah; quanto à inviabilidade de uma revisão das fronteiras coloniais para criar espaços culturalmente homogéneos 120 ou economicamente complementares121. A filosofia deve também interrogar-se sobre a natureza filosófica do liberalismo como foi pensado por Jeremy Bentham, John Stuart Mill, John Locke; e sobre as metamorfoses históricas que estão na doutrina político-social que sofreu no curso da história, as diferentes faces que ela ostenta no mundo de hoje, bem como a maneira como tenta reconciliar o imperativo incondicional da liberdade com a necessidade de um pacto social para que a vida em sociedade seja possível. Precisamos de nos interrogar quanto à relação entre o liberalismo e a existência do Estado (o nosso é obrigado a esvaziar-se das suas funções essenciais), recordando que os pais da economia política como Adam Smith, assim como os teóricos que fazem mais referência à filosofia (John Locke), consideram o Estado uma instituição indispensável para a garantia das liberdades dos indivíduos. Isto tem que nos levar a uma interrogação quanto à relação entre o liberalismo clássico e o neo-liberalismo122. Em concomitância, era necessário questionar a democracia na relação do seu espírito e das instituições que dão ou podem dar corpo aos seus ideais. A filosofia deve poder demonstrar que se o espírito é uno, as formas que a democracia toma nos diferentes países do mundo são múltiplas e dependem de uma aculturação das ideias democráticas às diferentes maneiras com as quais os povos entendem e interpretam a sua vida social. Por conseguinte, no respeito da democracia, nós temos o dever de tomar a sério a nossa especificidade cultural e inventar um modelo institucional que se inspire nos substratos das populações123. O segundo momento da contribuição filosófica em Moçambique é de natureza política: com que pertinência a filosofia se pode ocupar do político? Terá ela uma contribuição 120 Diop,

C. A. Nation Nègre e Culture. Paris, Presence Africaine, 1979. M. Les Étudiants Africaine Parlent. Revue Présence Africaine. Paris, 1953 122 Ngoenha, S. E. Os Tempos da Filosofia, Filosofia e Democracia Moçambicana, Maputo, Imprensa Universitária, 2004, p. 85-86. 123 Ibid 121 Touré,

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específica, diferente daquela que pode ser trazida pela sociologia política, pela ciência política e pelo direito? Esta questão tem hoje, no contexto cultural moçambicano, toda uma pertinência particular. Não se trata para nós filósofos, de reflectir sobre a política e o político, mas de pensar filosoficamente o político e a democracia em Moçambique. A questão actual é: como pensar filosoficamente o facto político, quando ele já não se confunde com nenhuma teoria do conhecimento, nenhuma moral, e sobretudo, quando deve ter em conta a pluralidade de opiniões como um facto humano fundamental? Podemos perguntar se a actividade reflexiva aplicada ao domínio da política se reveste de algum sentido, e sobretudo, se tem alguma eficácia. A filosofia política pode parecer aos políticos de profissão demasiado idealista e sem nenhuma incidência sobre a realidade, ou então a sua eficácia se limitaria aos casos em que ela empresta o nome a certas ideologias. Entre a impotência e o integralismo, tudo o que é contrário ao espírito filosófico, não existiria uma via intermediária para a filosofia política. Para além das acusações que se lhe são movidas pelo seu carácter pretensamente não cientifico, a filosofia política estaria suspensa no vazio. Seria útil para reflectir sobre o devir ideal da humanidade (no nosso caso de Moçambique). Contudo, ela não seria viável. Seria necessário primeiro trabalhar para conhecer o mundo de uma maneira positiva, e só depois, se restasse tempo, recorrer a filosofia. É obvio que não restaria nenhum tempo. Todavia, não se pode analisar o funcionamento das sociedades unicamente à luz das ciências políticas e das sociologias, a não ser que se esteja disposto a ignorar o reconhecimento do bem e do mal que foi sempre possível subverter, mas não esquecer. Por outro lado, a sociedade e o espaço político não são sempre idênticos e demonstrar isso era uma das incumbências da filosofia. A maior dificuldade da filosofia política reside no facto de ela exprimir não só uma acção do conhecimento puro, mas também uma vontade de tornar inteligível o real ao serviço do seu objectivo próprio, que é o desenvolvimento do pensamento. A prática filosófica não é neutra, mas tende para uma certa sabedoria. Certo que o sociólogo e o politólogo têm as suas ideias sobre o estado do mundo, não podemos negar que os livros de Carlos Serra ou as produções de Elísio Macamo tenham uma visão de Moçambique sobre o que é aceitável e sobre o que não é, mas as suas análises, descritivas ou explicativas, se querem neutras. Uma tal neutralidade é impensável para a filosofia que deve tornar explícito o que é implícito nos outros discursos. O critério de juízo, no nosso caso, é o caminho em direcção à liberdade (democrática) da qual emerge, em primeiro lugar, a africanidade “moderna” e em 182

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segundo lugar, o pensamento político africano e depois a filosofia africana (moçambicana). A explicitação da democracia não se faz a partir da fabricação de conceitos abstractos, da dedução lógica e racional das ideias. Ela tem que se posicionar face a constituição de um espaço político, que só pode ser feito a partir das diferentes compreensões culturais dos grupos e dos povos. As sociedades com mais experiência democrática (a brasileira e a portuguesa só para referenciar dois exemplos) podem partilhar connosco as suas experiências, mas não podem servir de modelo. Aliás, isto levaria a um genocídio cultural de toda a dimensão política de que todas as culturas são portadoras. Ocorre criar as modalidades de participação política a partir do substrato político e cultural dos povos e dos grupos. Depois da escravatura em que todos os princípios humanistas e de bom senso foram violados, passou-se ao colonialismo, e logo a seguir, as guerras ditas civis, mas de facto, manipuladas do exterior. Hoje estamos num quadro cómico: cooperações, embaixadas, organizações económicas internacionais sem nenhuma legitimidade política apresentam-se, em nome da democracia, como defensores e garantes dessa democracia. Deste modo, a legitimidade política dos actores políticos não tem nada a ver com os povos, nem com os seus valores, mas com o beneplácito da comunidade internacional. A filosofia deve relevar à ameaça a nossa soberania que provem dessas instituições. A filosofia deve opor-se às ameaças internas representadas pela tentação de certas pessoas e grupos em reduzir a política a um campo de defesa de interesses individuais e partidários, em detrimento do interesse geral. Por fim, contra o economicismo dominante, a filosofia política deve reafirmar o primado do político sobre o económico, da deliberação popular sobre os índices das bolsas de valor. A filosofia deve fundamentalmente velar para que a democracia não se transforme num jogo de elites, que a maioria da população possa, de facto, participar com conhecimento de causa, não só através de um boletim de voto de cinco em cinco anos, como uma assinatura de cheque em branco para as elites políticas que se sentem legitimadas a fazer privatizações que vão em detrimento do povo que nelas depositou confiança. Considerações finais O Moçambique do pós-independência já se pretendia soberano, independente e democrático, como nos ilustram as constituições elaboradas de lá para cá. Já afirmamos nos Tempos da Filosofia que a primeira condição da democracia não é poder votar por um partido ou por outro, nem sequer poder escolher os dirigentes Novembro de 2012

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que pretendemos que nos governem. A democracia consiste na inserção de cada indivíduo no seio da sociedade e na participação integral na vida daquela. Por isso, temos que encontrar um espaço institucional adequado para a implementação democrática e para um diálogo de “reconciliação”. A nossa “nova história” democrática deve ser entendida como a sequência de eventos que nos têm como autores, como sujeitos livres que compõem actos morais, a partir das suas escolhas e exigências. Embora não exista um futuro a nossa espera, isso não nos impede de ostentar um farol utópico ao qual façamos referência, uma ou mais lanternas que evidenciem nas “trevas”, não simplesmente algo de possível, mas sobretudo de desejável. O único domínio temporal que o homem pode influenciar ou mesmo mudar é o futuro. O presente é em si mesmo passado no momento em que se realiza; e o passado, ainda que ofereça dados para o futuro, não pode ser alterado. Por sua vez, partindo dos dados do passado e do presente, podemos influenciar o futuro, que constitui o único espaço susceptível de se sujeitar às nossas decisões. Todavia, se o futuro é o único espaço que podemos influenciar com as nossas decisões, os diversos futuros possíveis não podem reduzir-se a um único futuro determinado. Os futuros são muitos e alternativos entre eles, ligados a decisões possíveis e a eventos. O que queremos verdadeiramente? Em que estamos radicalmente prontos a recuar ou recusar? Em nome de que finalidades pessoais e societárias? O futuro tem aqui a sua importância, segundo as nossas decisões quanto ao objectivo das nossas vidas. Tudo depende de nós! A nossa decisão será histórica porque só poderá ser uma decisão no mundo da história. Neste sentido, pensamos que existe na CPLP um espaço de diálogo interessante entre as nossas histórias políticas recentes, quanto a participação das ciências humanas, sociais e filosóficas, na emergência de nações que se querem democráticas e socialmente distributivas. Aliás, no que nos diz respeito a esta nova aventura filosófica, temos beneficiado de uma cooperação com Portugal e Brasil em termos de formação académica nos níveis de graduação e pós-graduação; incluindo também estágios de iniciação científica em universidades brasileiras. E este facto possibilita a muitos estudantes moçambicanos em desenvolverem as suas formações no Brasil e em Portugal. Contudo, ao mesmo tempo, o que dá uma dimensão de uma história partilhada, no quadro da Lei-Lula-10.639 sobre a obrigatoriedade do ensino de história africana, alguns professores tem ido dar aulas no Brasil, como temos também moçambicanos que têm sido convidados para cursos de literatura bantu em Portugal. 184

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Esta nova história Kpovos, pela sua dimensão Kaipos, toma uma extensão de um mundo partilhado que pousa (ou que se fixa) sobre uma língua comum, não porque herança colonial, porém porque escolha política e histórica, de aceitar uma diversidade cultural no interior de fronteiras nacionais, e regadas de uma axiologia cultural que encontram na língua portuguesa o regadio ideal. Assim, os nossos projectos democráticos devem ser históricos e pessoais. Históricos, enquanto devem ter em conta os dados conhecidos, das experiências feitas e reflectidas e das previsões racionalmente (filosóficas) possíveis. O conhecimento dos dados, das experiências e das previsões pode mudar substancialmente; assim como os projectos, as normas e as soluções até aqui avançadas não excluem uma reformulação necessária. Pessoais, enquanto cada um de nós é responsável. Não responsabilizando os factos, sobre a política ou sobre os outros pelo que acontece: cada um de nós, quer seja brasileiro, quer seja moçambicano ou mesmo português (só para apresentar três exemplos), é protagonista da sua própria vida, e da própria história. E isso, só se torna realizável na grande despedida do tradicional liber arbitrium à entrada triunfal do Mit-Sein.

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Novembro de 2012

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