Filosofia na Idade Média: Uma Introdução

July 14, 2017 | Autor: V. De Faria dos S... | Categoria: Philosophy, Medieval Philosophy, Filosofía, Filosofía medieval, History of Philosophy, Filosofia
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FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA: UMA INTRODUÇÃO1 Jorge J. E. Gracia Tradução: Vinicius de Faria dos Santos

A preocupação em integrar a doutrina revelada e o aprendizado secular distingue o pensamento medieval do antigo, renascentista e moderno e determina, em grande medida, os problemas filosóficos tratados pelos medievais e as soluções propostas àqueles problemas. Esta introdução examina o modo como os medievais abordaram os principais temas e ilustra como isso afetou suas escolhas dos problemas filosóficos e o modo como os trataram. Em particular, ela destaca sete problemas bastante discutidos ao longo do medievo: a relação entre fé e razão, a existência de Deus, a significação dos nomes usados para falar de Deus, o objeto da teologia e da metafísica, o modo como conhecemos, o problema dos universais e a individuação. O uso da expressão “filosofia medieval” para se referir à filosofia na Idade Média é paradoxal porque é difícil encontrar alguém no decorrer do período que se considerava filósofo, cujas preocupações fossem puramente filosóficas, ou quem compusesse obras puramente filosóficas. Autores medievais do Ocidente Latino pensavam em si mesmos mais como teólogos, pois estavam primariamente interessados em questões teológicas e muito raramente compunham obras puramente filosóficas. Para eles, os filósofos eram os antigos, Platão e Aristóteles como também autores islâmicos como Avicena de Bagdá (Ibn Sina, 980-1037 d.C.) e Averróis de Córdoba (Ibn Rushd, 1126-1198 d.C.). Havia relativamente poucos trabalhos produzidos nesse período que podem ser considerados, estritamente falando, filosóficos. A maior parte da filosofia que encontramos está contida nos livros de teologia sendo usada para elucidar a doutrina teológica. Daí a bem conhecida expressão, popularizada por Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.), 1

“Philosophy in The Middle Ages: An Introduction”. In: GRACIA, J. E.; NOONE, T.B. (eds.). The New Companion to Philosophy in the Middle Ages. Nova York: Blackwell Publishing, 2009. O presente trabalho esboça, ainda que de modo preliminar, uma tradução para o vernáculo da Introdução da mencionada obra. Convém ressaltar ainda a forçosa modificação de determinadas passagens visando conferir maior inteligibilidade ao texto.

em relação à filosofia, ancilla theologiae, serva da teologia. A expressão “filosofia medieval”, além disso, tem uma conotação pejorativa derivada do termo “Idade Média”, usado primeiramente por humanistas do Renascimento para se referir ao que eles pensavam ser um período bárbaro e negro da história ocidental, compreendido entre duas civilizadas e esclarecidas eras da Antiguidade Clássica e Renascença. Apesar da ausência de filósofos, da ausência de obras notadamente filosóficas e dos preconceitos dos humanistas do Renascimento, a Idade Média não é somente o mais longo período de desenvolvimento filosófico no Ocidente, mas também um dos mais ricos. De fato, em intensidade, sofisticação e realização, o florescimento filosófico no século treze poderia rivalizar com o apogeu da filosofia grega no século IVa.C. Os limites temporais e territoriais da Idade Média são tema de controvérsia entre os estudiosos. Não importa quais datas são apontadas, no entanto, é evidente que, quer Agostinho (354-430 d.C.), quer João de São Tomás (1589-1644 d.C.) estavam engajados no mesmo programa intelectual e, portanto, pertencem ao mesmo período. Antes de Agostinho, a vida intelectual do Ocidente foi dominada pela filosofia pagã, e Descartes (1596-1650 d.C.), geralmente reputado como o primeiro filósofo moderno, foi contemporâneo de João. Territorialmente, nós carecemos de incluir não somente a Europa, como também o Oriente Médio, onde importantes autores gregos ortodoxos, judeus e islâmicos floresceram. Um período que compreende mais de um milênio não é de modo algum uniforme e pode ser facilmente dividido em unidades menores. A primeira delas pode ser denominada Patrística, tendo começado com Agostinho, muito embora suas raízes remontem ao século II a.C. Estendeu-se até o século VII e terminou com a morte de Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.), autor de Etimologias, a primeira das várias enciclopédias Medievais. Entre esse tempo e o renascimento do Império Carolíngio, nada de importância filosófica ocorreu. Graças aos esforços de Carlos Magno (742-814 d.C.) em estabelecer escolas, regularizar a escrita e recolher em sua corte todos as grandes mentes da época a fim de fomentar a aprendizagem e replicar a magnificência de Roma, havia alguma

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atividade intelectual no fim do século VIII e início do século IX, que culminou na obra de João Erígena (800-877 d.C., aproximadamente). Este período foi seguido por uma era negra, que terminou com outro, mais duradouro, avivamento da aprendizagem nos séculos XI e XII d.C.. O renascimento do século XII, como é comumente chamado, produziu alguns dos maiores pensadores medievais: Anselmo (1033-1109 d.C.), Gilberto de Poitiers (1085/90-1154 d.C.), Pedro Abelardo (1079-1142 d.C.) e a Escola de Chartres. O período de 1150 até cerca de 1225 é de suma importância. Nesse tempo muitas das obras dos antigos tornaram-se disponíveis aos medievais pela primeira vez, graças à conquista do território pelos cristãos na Espanha, e estudiosos ocidentais dedicaram-se laboriosamente a assimilá-las. Alguns desses trabalhos foram traduzidos do grego para o siríaco no Oriente Médio, e, posteriormente, para o árabe. Do árabe, eles foram traduzidos para o latim com a ajuda dos judeus espanhóis. Outras obras foram vertidas para o latim diretamente do grego original pelos estudiosos que trabalhavam na Sicília e sul da Itália. Antes de 1550, os medievais detinham um grupo insipiente dos tratados filosóficos técnicos de Aristóteles e seus comentadores, conhecido como logica vetus. Todavia, em poucos anos não somente todo o Organon, mas também outras obras de Aristóteles, comentadas por autores islâmicos, assim como vários trabalhos científicos da Antiguidade se tornaram disponíveis. O renascimento do século XII e o fermento criado pelos textos recémdisponibilizados originou o que é usualmente denominado Escolástica. Esse é um método de ensino e aprendizagem usado em várias disciplinas, sobretudo em filosofia e teologia. A gênese do termo pode ser encontrada nas escolas medievais, onde um palestrante, particularmente um que ensinava as artes liberais (trivium e quadrivium) era chamado “escolástico”. O objetivo do método era produzir conhecimento concordante tanto com a razão humana quanto com a fé cristã, uma concordia discordantium de opiniões que os medievais reconheciam como autoridade. O método foi praticado na universidade medieval usando a lógica aristotélica como ferramenta. Como resultado, os gêneros literários usados pelos

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escolásticos refletem as atividades e configurações da universidade. O comentário é, via de regra, o produto das leituras dos textos em aula; a quaestio é o produto das disputas dos universitários; e as summae eram os manuais da época. Entre os primeiros escolásticos de relevo figuram Roger Bacon (1214/201492 d.C.) e Alberto o Grande (1200-1280 d.C.), porém eles foram seguidos por uma série de figuras proeminentes: Boaventura (1217-1274 d.C.), Tomás de Aquino, João Duns Scotus (1266-1308 d.C.), e Guilherme de Ockam (1285-1347 d.C.). Em meados do século XIV, contudo, a escolástica sofreu um revés quase irreversível através da Peste Negra (1347-51 d.C.), que dizimou as universidades da Europa. Foram necessários mais de cem anos para se recuperar e ainda mais tempo para gerar um segundo período de grandeza sob a liderança dos escolásticos espanhóis do século XVI, como Francisco Suárez (1548-1617 d.C.) e Francisco de Vitoria (1483-1546 d..C). A marca distintiva da filosofia latina na Idade Média pode ser encontrada em seu duplo objetivo: a compreensão da fé cristã e sua defesa contra os que a atacaram. O esforço de compreensão produziu obras teológicas; o esforço de defesa produziu obras apologéticas. Isto não significa, contudo, que os medievais não estavam interessados em problemas puramente filosóficos. Eles o estavam, porém o motivo de seu interesse era mais frequentemente que as soluções desses problemas tinham importantes consequências para a doutrina cristã. De fato, as soluções adotadas foram, no mais das vezes, regidas pelos princípios doutrinários que queriam defender. Nesse sentido, a filosofia geralmente estava subordinada à teologia e à apologética. Tal atitude separa a filosofia da Idade Média da Antiguidade e Renascença. A abordagem medieval contrasta com a filosofia antiga porque tanto na Grécia clássica quanto em Roma, a filosofia gozava de status amplamente independente e de uma posição predominante. A filosofia era uma busca insubordinada a qualquer atividade intelectual, cujo principal objetivo era a compreensão do mundo e do lugar do homem nele. Por outro lado, a atitude medieval é também bastante distinta daquela da Renascença, pois os humanistas olhavam o passado clássico como um modelo de suas atividades e, portanto, centraram no homem a

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atenção e canalizaram seus esforços para recobrar e emular a aprendizagem clássica, particularmente na filosofia de Platão. Em contrapartida, a filosofia medieval era subordinada à teologia, e o cerne da atenção intelectual foi Deus e sua revelação, ao invés de seres humanos; os seres humanos eram estudados apenas como criaturas de Deus feitas à sua imagem e semelhança. O modelo adotado pelos medievais não devia ser encontrado nas vidas e teorias dos filósofos antigos, mas ao invés disso buscado nas vidas e orações dos santos. O caráter da filosofia na Idade Média é evidente nos problemas filosóficos que os medievais escolheram abordar, na maneira como interpretaram os problemas que encontraram nos textos antigos, assim como nas soluções dadas à maioria desses problemas. Três das mais importantes preocupações herdadas dos antigos era o problema de como conhecemos, o problema da existência de Deus e o problema dos universais. Quatro questões que eles formularam como resultado de suas preocupações e compromissos teológicos eram o problema da relação entre fé e razão, o problema da individuação, a questão da linguagem utilizada para falar sobre Deus e a relação entre a teologia e a metafísica. Antes de passarmos ao estudo dos problemas, apresentaremos os métodos de estudo medievais.

Métodos de Estudo A Lectio A abordagem pró e contra para estudar, encontrada no tratado Sic et Non de Abelardo, proporciona a ocasião para ressaltar os procedimentos de ensino que guiavam os estudos nas artes liberais, a filosofia propriamente dita, e a leitura da Escritura ou Teologia. Tais procedimentos eram a leitura (lectio), questionamento (quaestio), e a disputa (disputatio). Cada um destes exercícios tem uma longa história. A Lectio ou exercício da leitura possui fases clássicas que remontam ao tempo de Varro, pouco antes do nascimento de Cristo. A primeira etapa da lectio era ler, no sentido simples e estrito de leitura em voz alta. O próximo nível da lectio envolvia a análise do texto: olhar seu plano, suas falhas e resultados, sua originalidade, e assim por diante. Um comentário, que inclui definições,

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etimologias, e explicações de figuras de linguagem e técnicas retóricas, vem em seguida. Este exercício mais extensivo de leitura vem acompanhado de um juízo. Tal juízo geralmente baseava-se em apreciações estéticas. Contudo, no mundo de Santo Agostinho e dos primeiros autores cristãos, os juízos sobre textos bíblicos particulares eram formulados em termos da regra de fé e mediam se a interpretação engendrava o amor a Deus e ao próximo ou não. A natureza e o propósito da lectio se desenvolveram com o passar dos anos. Roberto de Melun, um aluno e por vezes crítico de Abelardo, atacava os leitores que limitavam a lectio à recitação de textos bíblicos ou à recitação e glosas sobre eles. Roberto queria mais do lector (leitor): "O que mais podemos procurar em uma lectio do que a compreensão do texto, que é chamada seu significado?” Para ele, como para Abelardo, lectio significava todas as atividades que levavam à compreensão. “O que é conhecido, se não se sabe o significado, ou o que é ensinado se o significado não for desdobrado?”. O lector rotineiramente focava os textos tradicionalmente respeitados. A lectio para os professores de gramática estava centrada nos textos de Donatus e Prisciano; a lectio para os professores de retórica concentrava-se nos textos atribuídos a Cícero e Quintiliano. A lectio para os dialéticos centrava-se no Isagoge de Porfírio, no Categorias e De Interpretatione de Aristóteles e nos comentários de Boécio sobre eles. A lectio para a teologia era o texto bíblico. Esses eram os textos de autoridade. As glosas fornecendo definições, etimologias, e assim por diante, vinham daqueles que ofereciam especial ajuda. Para a Bíblia, em particular, as autoridades eram Jerônimo, Ambrósio, Agostinho, Hilário, Basílio, Gregório o Grande, João Crisóstomo, e outros. As autoridades filosóficas eram Aristóteles, Cícero, Boécio, Platão, Calcídio, Mário Vitorino, Macróbio e Dionísio, o Pseudo-Areopagita. As principais características da lectio eram a autoridade, baseada em intérpretes respeitados, e a assimilação, transmitindo as riquezas trazidas por uma tradição sábia. O leitor era um professor cuja especialidade era conhecer e passar os ensinamentos de autoridade das artes liberais, dos filósofos e da Bíblia, isto é, quaisquer das autoridades antigas que poderiam ajudar o estudioso ou aprendiz a aprender mais sobre os textos oficiais.

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A Quaestio O exercício da questio medieval se desenvolveu quando leitores como Abelardo, Roberto de Melun e outros foram além da recitação e glosas e tentaram descobrir o sentido dos textos estudados. Quando, por exemplo, examinaram os textos bíblicos, descobriram que a interpretação de diversas autoridades patrísticas variava. Quando as autoridades estavam em conflito, eles tinham que avalia-las e fornecer as razões pelas quais uma deu uma explicação melhor do que outra. Os argumentos das autoridades começaram a se tornar mais centrais para a interpretação de um texto bíblico do que o peso da autoridade de seus nomes. Esse não foi um evento novo; iniciou-se no período patrístico. Abelardo e Roberto de Melun alegaram seguir os Padres em seus procedimentos. Roberto de Melun assinalou o fato de que essas novas formas de questões “surgem às vezes devido a uma dúvida, outras vezes, no entanto, devido à necessidade de ensinar.”. Algumas questões, ou seja, são reais, espontâneas e naturais; outras são levantadas por razões metodológicas. O último tipo de quaestio sequer é colocado até mesmo em relação a assuntos sobre os quais nenhuma dúvida real existe: “Deus existe?” “A alma é espiritual?” “Os pais devem ser honrados?”. Tais problemas são colocados porque o professor está buscando uma compreensão mais acurada de sua parte e da parte dos estudiosos. Ele realmente não duvida de que Deus existe ou que a alma é espiritual. Frequentemente, ele levanta tais questões porque quer tão somente obter razões mais fortes (plausíveis) para afirmar a existência de Deus ou a espiritualidade da alma. Uma característica adicional da quaestio ou questão é que apenas certos tipos de questões tendem a ir além de buscar informações para adquirir compreensão. Gilberto de Poitiers descreve o tipo de questão que conduz à compreensão (ao entendimento): “Uma quaestio surge a partir de uma afirmação e sua negação contraditória. Quando uma parte de uma determinada contradição parece ser verdadeira e a outra parte aparenta não ter argumentos que sustentem (justifiquem) sua verdade, ou quando nenhum dos lados parece ter argumentos plausíveis para suas teses (...) então a contradição não é uma quaestio. Somente

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quando ambas as partes contradizentes parecem dispor de argumentos em favor de suas teses tem-se uma quaestio.”. Este tipo de questão forçava o leitor a tentar, via a dialética, encontrar uma base para reconciliar as declarações de duas autoridades opostas. A tentativa de fazê-lo tornava-se bem-sucedida para a pessoa colocando a questão quando ela fornecia boas razões para sua tese em relação a um problema (questão). Ao dar razões para a determinação do assunto em questão, ele próprio tornava-se então uma autoridade e, assim, era transformado em um magister ou mestre. A introdução desta forma de quaestio como método de investigação, assim, alterou o modo de estudo da Bíblia. Ele tornou-se uma forma racional de conhecimento. Os mestres nas escolas catedráticas, palacianas e monásticas que se estabeleceram como autoridades de influência duradoura criaram escolas e começaram a desfrutar naquele período de um respeito que, antes, só havia sido concedido aos Padres da Igreja.

A Disputatio O novo tipo de questão no início era amarrado ao texto estudado com o objetivo de chegar a uma compreensão mais aprofundada dele. Era examinado, por exemplo, o texto bíblico e eram colocadas questões do modo como eles naturalmente se colocariam enquanto a Escritura era lida em sua ordem de apresentação. Os magistri, no entanto, na medida em que se tornaram mais seguros do trajeto natural de seus esforços racionais para compreender melhor, começaram a ver a necessidade de introduzir uma ordem lógica para substituir a ordem textual das perguntas sugeridas por uma narrativa bíblica. O exercício da reunião logicamente ordenada de questões recebeu o nome disputatio como seu título. Os resultados dessas disputas eram agrupados sob a forma de uma summa – quer dizer, uma summa quaestionum. A disputatio em si mesma também evoluiu. Por exemplo, quando Odo de Soissons lecionou em Paris por volta de 1164, suas quaestiones eram separadas da lectio na medida em que elas eram levadas a cabo em uma sessão diferente da leitura da Escritura. Contudo, os temas destas quaestiones separadas ainda seguiam o texto bíblico. No tempo de Simão de Tournai (cerca de 1201), a

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separação das quaestiones disputatae das lectiones foi concluído. A disputatio havia se tornado a obra de uma disciplina racional separada. Ela ainda tratava das questões levantadas pelo texto bíblico, mas já não era a exegese do mesmo. Era um tratado organizado racionalmente envolvendo muitas questões lidando com um assunto comum.

Fé e Razão ou Teologia e Metafísica Nenhum assunto preocupou mais os medievais que a relação entre a fé e a razão, pois o sucesso do programa adotado na época dependia, em grande medida, do sucesso na elaboração dessa relação. Para os filósofos antigos, esta não havia sido objeto de preocupação haja vista que esses, em sua maioria, não eram religiosos, e, portanto não precisavam conciliar a razão à fé, ou verdades derivadas do estudo do mundo independentemente da fé a um corpo de verdades reveladas conhecidas pela fé. Sob esta rubrica, questões, variadas e distintas, ainda que inter-relacionadas, estão contidas. O problema é explicitamente formulado no século II da Era Cristã, quando alguns poucos Padres da Igreja questionaram o mérito do uso da sabedoria secular por aqueles a quem a verdade havia sido revelada por Deus. Duas posturas são facilmente identificáveis. Alguns rejeitaram o valor do conhecimento secular por completo, tal posicionamento é, com frequência, denominado fideísmo devido à recorrência exclusiva à fé. Outros encontraram um lugar para a sabedoria secular na compreensão da fé. Tertuliano (160-220 d.C.) argumentou que não havia espaço para o conhecimento dos infiéis no Cristianismo, cunhando uma expressão que fez história: “Creio porque é absurdo” (Credo quia ineptum). Entre os que viram algum mérito no uso da sabedoria secular e tentaram aliá-la à verdade revelada, figura Justino Mártir (165 d.C.). Agostinho seguiu os passos de Justino Mártir e firmou parâmetros para as futuras discussões acerca dessa questão. Para ele, toda verdade é uma só, à revelia da fonte, de modo que o cristão pode e deveria fazer uso do conhecimento secular. Contudo, é somente na fé cristã que se pode efetivamente compreender o mundo e o lugar do homem no mundo. A doutrina cristã completa, ilumina e transforma o conhecimento secular, fornecendo respostas às perguntas mais importantes e

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àquelas para as quais os não-cristãos não têm resposta. Além disso, fornece-nos um critério infalível de verdade. Qualquer coisa advinda da sabedoria secular que contradiga a doutrina cristã é falsa e deve ser rejeitada; tudo o que concorda com ela pode ser utilizado, desde que seja feito no contexto da fé. A controvérsia entre os que negam o valor do conhecimento secular e aqueles que advogam seu uso retorna novamente entre os séculos XI e XII. Desta vez, o foco estava sobre o uso da lógica, então conhecida como dialética, na compreensão das Escrituras. Entre os antidialéticos estava Pedro Damião (10071072), que foi tão longe que rejeitou não somente a lógica, mas também a gramática, pois, sob sua ótica, o diabo se tornou o primeiro gramático quando declinou a termo Deus no plural. Seu irracionalismo era sobremaneira forte e sua fé no poder de Deus era tão confiante que ele argumentava que Deus poderia fazer com que o passado nunca tivesse acontecido. O mais sincero dialético foi Abelardo, conhecido como o “Peripatético” de Pallet devido ao seu uso e predileção pela Lógica Aristotélica. Numa obra controversa, intitulada Sic et Non (“Sim e Não”), Abelardo mostrou que as autoridades cristãs se contradiziam e, portanto, uma compreensão da fé cristã requer o uso da lógica. Uma posição um tanto mais moderada pode ser encontrada em Anselmo. Inspirado em Agostinho, advogou uma utilização moderada da lógica na qual a compreensão se inicia com a fé, porém é atingida quando as doutrinas reveladas nas Escrituras são articuladas de forma lógica. Sua concepção está encerrada em duas famosas fórmulas: Credo ut intelligam (“Creio para compreender”) e Fides quaerens intellectum (“Fé em busca de entendimento”). A relação entre a fé e a razão também foi objeto de preocupação entre os pensadores Islâmicos e Judeus durante esse período. Uma das respostas mais controversas acerca da questão foi proposta por Averróis. Adotando um modelo estritamente aristotélico de conhecimento como demonstração, ele argumentou que a compreensão das Escrituras nunca pode atingir o nível de conhecimento, pois o conhecimento é baseado no raciocínio demonstrativo, e esse é fundado em premissas que, se não forem auto evidentes, não podem ser consideradas demonstrativas. A Teologia não produz conhecimento propriamente dito e, por

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conseguinte, deve estar subordinada à filosofia que produz. A posição de Averróis, assim como a daqueles que preferem a razão à fé, é usualmente conhecida como Racionalismo. No século XIII, tanto Boaventura quanto Tomás de Aquino responderam a Averróis. Boaventura rejeitou a universalidade do modelo Aristotélico de conhecimento, muito embora tenha admitido sua competência dentro de sua própria esfera. Dado que todas as coisas na ordem criada são, segundo Boaventura, sinais da Sabedoria Incriada, cada esfera da realidade deve estar em conexão com tal Sabedoria. Como resultado, mesmo que em cada uma das ciências o conhecimento possa ser adquirido sem apelo à revelação, cada ciência e seu assunto precisam ser reconduzidas (reducere) à Sabedoria Incriada, para a adequada apreciação de sua função na vida e pensamento humanos. Por conseguinte, Boaventura privilegia a sabedoria agostiniana sobre e contra a ciência aristotélica, rejeitando essa última como o mais elevado cânon de juízo no que tange ao conhecimento humano. Em contraste com Boaventura, Tomás de Aquino não rejeitou o modelo aristotélico usado por Averróis, no entanto, argumentou que nem todo conhecimento é da mesma ordem. Determinados conhecimentos têm premissas que são princípios auto evidentes – como a metafísica – mas alguns têm premissas que foram demonstradas em outros ramos do conhecimento – como a ótica, que toma seus princípios da geometria. A Teologia é baseada na fé, todavia pode ser considerada conhecimento, pois repousa sobre o conhecimento do próprio Deus, que é o único mais alto que pode haver. Aquino, além disso, abriu espaço tanto para a teologia quanto para a filosofia no corpo de todo o conhecimento, argumentando que algumas verdades podem ser conhecidas apenas através da fé (por exemplo, Cristo é Deus), algumas só podem ser conhecidas através da razão (por exemplo, todas as substâncias materiais são compostas de matéria e forma), e algumas podem ser conhecidas através de fé ou razão (por exemplo, Deus existe). Não obstante os esforços de Boaventura, Aquino e outros, a influência de Averróis continuou a ser sentida até o século XVI tendo provocado repetidas condenações de várias frentes. A mais famosa ocorreu em 1277, e inclui até

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mesmo algumas teses advogadas por Tomás de Aquino. A popularidade de Averróis era mais fortemente sentida na Faculdade de Artes do que na de Teologia. Entre aqueles que foram acusados no século XIII de seguirem Averróis estava Siger de Brabant (1240-1282 d.C.). Ele foi acusado de proferir uma doutrina da verdade dupla, de acordo com a qual existe uma verdade da fé e uma verdade da razão, e as mesmas podem e, não raro, se opõem. Claramente, isto era inaceitável a muitos dos medievais, dado que solapava todo o programa da época, quer dizer, a integração da revelação com o conhecimento secular no interior de um corpo consistente doutrinário. Se Deus é o cerne de nosso conhecimento, tem de haver uma disciplina que O estude. Mas, qual é essa disciplina? Se, de um lado, é evidente que as Escrituras Sagradas são o local no qual podemos encontrar o conhecimento revelado de Deus, de outro, o mundo contém informações sobre Ele, pois, como criador, Ele deixou marcas nele. Nesse sentido, no século XIII, teólogos encontraram textos da Metafisica de Aristóteles que falam de uma ciência concernente ao divino. Portanto, Deus deve ser objeto de reflexão da Teologia ou da Metafisica? Já no mundo islâmico, encontramos visões diferentes com respeito a esse assunto: Avicena rejeitou a tese de que Deus deva ser estudado na Metafísica porque nenhuma ciência prova a existência de seu objeto e a Metafísica prova a existência de Deus. Averróis, ao contrário, argumentou que porque a existência de Deus não é provada na Metafísica, mas na Física, Deus deve ser estudado pela Metafísica. No lado latino, Tomás de Aquino diferenciou a Doutrina Sagrada, quer dizer, a Teologia baseada nas Escrituras – que estuda Deus tal qual revelado pela criação – da que denominamos Teologia Natural – que O estuda como revelado na criação. Além disso, contrapôs ambas as disciplinas à Metafísica – que, por seu turno, não estuda Deus primariamente, mas o ser enquanto tal, isto é, o ser sem mais. A Metafísica estuda Deus somente secundariamente, como Causa Primeira do ser. Duns Scotus concordou com Aquino tendo em vista que igualmente cria que o objeto de estudo da Teologia é Deus ao passo que o da Metafisica é o ser enquanto ser.

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Tomás de Aquino e seus seguidores defenderam a tese de que o ser enquanto ser deve ser compreendido como o último ato (esse) e perfeição de uma essência, numa entidade separada, na realidade, da essência. Tanto Scotus quanto Guilherme de Ockham rejeitaram tal noção de ser; de fato, Ockham igualmente rejeitou a concepção de que qualquer ciência possua um único objeto de estudo. Em seu entender, as ciências são meras coleções de proposições mentais e porque essas proposições têm diferentes temas, não se pode afirmar que qualquer ciência tenha um único assunto ou objeto.

A Existência de Deus e seus Nomes Provar que Deus existe era imprescindível aos medievais, pois a existência de Deus é a pedra de toque da fé cristã. Tal empresa era importante tanto na fundação de toda a teologia cristã quanto para estabelecer a base dos esforços apologéticos dirigidos aos muçulmanos e judeus. Os antigos já haviam formulado alguns argumentos para a existência de Deus, todavia foram os medievais que os formularam de modo elegante e parcimonioso. Tais argumentos foram divididos em duas classes, quais sejam, argumentos baseados na análise dos conceitos e argumentos baseados na experiência. Da primeira, os mais famosos são os argumentos de Anselmo no Proslogion e de João Duns Scotus em Sobre o Primeiro Princípio. Ambos são conhecidos como versões do argumento denominado ontológico, um termo usado primeiramente por Kant para designá-los. Da última, o mais famoso são as cinco vias apresentadas na Summa Theologiae de Tomás de Aquino, que compreende tanto argumentos cosmológicos quanto teleológicos. O argumento de Anselmo deriva a existência de Deus a partir da concepção D’Ele como sendo aquilo maior do qual nada pode ser pensado. Deus existe, pois, caso não existisse, não seria aquele maior do qual nada pode ser pensado, dado que existir fora da mente é maior que existir somente nela. Anselmo assume, alinhando-se ao quadro Agostiniano-platônico, que algo que existe é maior que algo que não existe, que a noção de um ser maior do qual nada pode ser pensado é inteligível, e que a necessidade lógica tem implicação na existência. Ele foi

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criticado em virtude de todas as três premissas. No entanto, até hoje há defensores da solidez de seu argumento. Cada uma das cinco vias tomistas da existência de Deus começa por assinalar um fato da experiência sensível. A partir disso, passam a apontar, via diversas etapas, que tais fatos não podem ser devidamente explicados e compreendidos sem o recurso ao ser que, em última instância, é o responsável por eles: tal ser é Deus. A primeira via argumenta, a partir da assunção de que há mudanças no mundo, em prol de uma primeira causa da mudança. A segunda parte da causalidade eficiente que experimentamos no mundo, derivando daí a primeira causa eficiente de tudo. A terceira distingue os entes necessários dos contingentes e, disto conclui que deve haver um ser necessário cuja existência necessária não deriva de qualquer outro ser. A quarta argumenta, a partir da gradação entre as coisas, em prol de um ser que é tanto o máximo quanto a causa das coisas. Por fim, a quinta via afirma que todos os entes, quer inteligentes ou não, agem com vista a um fim, e deve haver um ser supremamente inteligente que os dirige aos respectivos fins. Demonstrar que podemos conhecer Deus era tão importante para os medievais quanto provar sua existência necessária. Mostrar como podemos conhecer Deus precede logicamente a prova de sua existência. Diversos filósofos na Antiguidade haviam falado acerca de Deus. Abundam textos em Platão, Aristóteles e nos Estoicos que tratam de uma divindade única. Em contrapartida, em todos os casos mencionados, Deus parece ter sido concebido como uma parte do mundo. Conhecer Deus, um ente essencialmente distinto de qualquer outro ente conhecido, talvez fosse, então, ainda mais difícil, uma vez que os termos que utilizamos para discorrer sobre o mundo são, via de regra, igualmente aplicáveis a Deus. A concepção cristã alterou drasticamente isso. Se Deus é o criador e transcende sua criação é questionável que usemos os termos que empregamos para falar do mundo ao tratar de Deus. Diversas foram as propostas de resolução desse impasse: Maimônides argumentou que há dois tipos de termos aplicáveis a Deus. Primeiro, os termos negativos – como, por exemplo, afirmar que “Deus é justo” é afirmar que Ele não

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é injusto – e, por fim, termos que recorrem às ações para transmitir informação, não sobre Deus stritu sensu, mas sobre suas obras em outros. Por outro lado, Duns Scotus defendeu a existência de ao menos um termo unívoco a ser utilizado ao tratar de Deus e de suas criaturas: “ente” deve ser tal termo. Por fim, Tomás de Aquino, tendo optado por uma posição intermediária entre Maimônides e Scotus, adotou a doutrina da analogia2.

Como nós conhecemos O problema de como conhecemos outros entes além de Deus foi introduzido na Idade Média via o diálogo De Magistro, de Agostinho. O problema ostensivo apontado em tal obra é a finalidade do uso das palavras, todavia a real preocupação concerne à antiga reflexão platônica sobre se podemos ser ensinados. A resposta de Platão à mencionada questão tinha sido negativa: não podemos ser ensinados pois os objetos do conhecimento são as Ideias imateriais, e o único meio de conhece-las é através de um encontro com elas em uma vida anterior, quando não estávamos acorrentados pelo corpo. Nossa única esperança de adquirir conhecimento nesta vida é relembrar a linguagem das Ideias que outrora encontramos. Agostinho, seguindo de perto os passos de Platão, porém, enquanto cristão, não podendo conceber a tese da preexistência da alma, modificou o esquema platônico: Cristo torna-se o Mestre que coloca tais Ideias em nossa memória e é lá que as encontramos quando lembrados delas através das palavras. A visão de Agostinho ficou conhecida como Doutrina da Iluminação, dado ter usado a metáfora platônica da luz para descrever como Cristo nos faz enxergar as Ideias: Cristo é como o Sol, que ilumina nossas mentes com o conhecimento das realidades inteligíveis. Essa doutrina se tornou um dos mais importantes debates entre agostinianos e aristotélicos no fim da Idade Média. Boa parte dos pensadores agostinianos aceitou a metáfora, mas foi aí que a concordância findou. Boaventura e Henrique de Gand (1217-1293 d.C.), dentre

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Os termos que nós predicamos de Deus não são empregados equivocamente (isto é, com distintos significados) ou univocamente, mas analogicamente. ‘Deus é bom’ não significa que Ele é bom como nós somos, ou que Ele não é mal no sentido que somos; isso significa que Ele é bom na proporção de Sua natureza e, assim, melhor do que nós somos, em grau superlativo, como o Pseudo-Dionísio havia afirmado. (Nota do autor)

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outros, ensaiaram respostas a algumas das questões levantadas pela Doutrina e tentaram resolver algumas de suas ambiguidades, porém Tomás de Aquino e Scotus se opuseram a essas interpretações. Tomás de Aquino argumentou que a luz da qual falava Agostinho não é outra senão a luz natural da razão, de modo que a iluminação é natural ao invés de um processo sobrenatural. Scotus, embora Franciscano, contrapôs-se a seus irmãos nesse aspecto. Ele argumentou que a interpretação de Henrique sobre Agostinho leva ao ceticismo e que o conhecimento é possível sem a iluminação entendida de forma sobrenatural.

Universais Tanto Platão quanto Aristóteles deixaram claro que o próprio conhecimento é universal, e a autoridade de Agostinho reforçou tal visão. O conhecimento, stricto sensu, é sobre um conceito geral. Os medievais, em sua maioria aceitaram isso, porém ao mesmo tempo muitos deles declararam que não somente as substâncias em sentido aristotélico (por exemplo, este gato, este homem), mas também as características dessas (por exemplo, a cor negra do gato ou a racionalidade do homem) eram individuais. Tal alegação representava uma série de problemas epistemológicos e metafísicos, um dos quais ficou conhecido na tradição como o problema dos universais (ou querela dos universais). No início do Medievo, o referido problema foi formulado em termos de três questões que Porfírio, o Fenício (232-304 d.C.) introduziu em seu Isagoge concernentes aos gêneros e espécies, e que Boécio levou aos medievais: (1) Entes como animal e homem são algo existente na mente ou somente fora dela? (2) Se existem fora da mente, são materiais ou imateriais? e (3) Eles são separados e diferentes dos indivíduos, coisas sensíveis ou alguma coisa neles e igual a eles? Boécio forneceu respostas ambíguas a essas questões. Em suma, ele considerou que animal e homem existem tanto dentro quanto fora da mente. Os universais são compreendidos de um modo na mente e existem de outro modo em coisas fora da mente; na mente são compreendidos como Universais, ao passo que fora dela são individuais e sensíveis. Além do mais, explicitamente adotando uma postura

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Aristotélica, que ele mesmo justifica por estar comentando uma obra do filósofo, rejeitou a ideia de que os gêneros e espécies existem separadamente das coisas individuais fora da mente. Instigados pelas respostas de Boécio às questões, os pensadores subsequentes desenvolveram diversas posições no início da Idade Média. Essas variam desde o extremo realismo de Erígena, de acordo com o qual os gêneros e espécies são as Ideias Platônicas, ao extremo nominalismo de Roscelin (10501120 d.C.) para o qual tratavam-se de meros proferimentos individuais. Uma resposta mais sofisticada ao problema foi apresentada por Abelardo, que argumentou que os universais são termos criados para serem predicados de diversas coisas. Muito embora tais termos não causem a compreensão de qualquer coisa individual em particular, mas uma noção comum a muitas delas que a mente manipula, a causa de tal imposição deve ser encontrada no estado das coisas individuais. O estado em si não é uma coisa, ou algum tipo de realidade, mas apenas o que as coisas são. O estado de Sócrates e Platão é homem, todavia homem não é outra entidade que Sócrates e Platão. A despeito da sofisticação da teoria de Abelardo, havia muitas questões a serem consideradas e respondidas e que foram retomadas por filósofos posteriores. No século XIII, os rumos da controvérsia foram ligeiramente modificados devido à introdução de uma nova terminologia encontrada nas recentes traduções de Aristóteles, acrescidas dos comentários de seus seguidores Averróis e Avicena. Ao invés de tratar sobre gêneros, espécies ou universais, falava-se em naturezas. Além disso, a questão foi enquadrada em termos de suas unidades e ser: que tipo de unidade e ser as naturezas possuem? A posição clássica moderada foi fornecida por Tomás de Aquino, para o qual as naturezas podem ser consideradas absolutamente ou com relação à mente ou às coisas individuais. De fato, absolutamente, apenas o que está incluído em suas definições pertence às naturezas. Por conseguinte, elas não podem ser tomadas como tendo ser ou unidade, mas de igual modo não se pode afirmar que elas deixam de ter. Como a definição da natureza de “homem” é “animal racional”, a “animalidade” e a “racionalidade” só podem ser ditas pertencentes ao homem considerado

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absolutamente. Ser e unidade pertencem às naturezas somente quando consideradas em relação com a mente ou com coisas individuais fora da mente. Em relação à mente, as naturezas são conceitos propriamente ditos e, portanto, são universais e possuem existência na mente. Em relação às coisas individuais, as naturezas são individuais e têm existência individual. “Homem”, quando compreendido, possui tanto ser quanto unidade, o ser próprio à mente, na qual é encontrado como um conceito, e a unidade própria aos universais, pois pode ser utilizada para pensar não sobre algum homem em particular, mas sobre cada um dos e todos os homens. “Homem”, considerado em relação aos indivíduos homens, possui tanto ser quanto unidade, o ser e a unidade de cada homem onde se encontra como sua natureza. Tanto Scotus quanto Guilherme de Ockham desenvolveram posturas discordantes com a de Tomás de Aquino, porém em direções distintas: Scotus aproximou-se do realismo e Ockham, do nominalismo. Para Scotus, as naturezas consideradas absolutamente têm um ser e unidade próprios a elas. Deste modo, nos indivíduos, as naturezas possuem uma dupla unidade e um duplo ser, a sua própria e a dos indivíduos: o homem tem ser e unidade próprios à natureza assim como o ser e unidade próprios do indivíduo. Ockham se mostrou bastante insatisfeito com tal realismo e aplicou-lhe sua famosa Navalha, de acordo com a qual explicações não devem multiplicar entidades além do necessário. Para ele, não há algo como uma natureza considerada absolutamente: há apenas conceitos universais existentes na mente e coisas individuais fora da mente. A ideia de uma natureza considerada absolutamente – quer seja considerada de modo neutro como em Tomás de Aquino, quer tendo algum ser e unidade como disse Scotus – é supérflua. A existência de conceitos universais na mente pode ser devidamente explicada em termos de uma capacidade natural da mente em formar conceitos gerais baseados na experiência particular dos indivíduos.

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