FILOSOFIA NATURAL E DEMONOLOGIA NOS SÉCULOS XVI E XVII: TENDÊNCIAS DE ESTUDOS E SEUS POTENCIAIS IMPACTOS NA LEITURA DE HAMLET (Q1, 1603)

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FILOSOFIA NATURAL E DEMONOLOGIA NOS SÉCULOS XVI E XVII: Tendências de Estudos e seus potenciais impactos na leitura de Hamlet (Q1, 1603) de Alexander Martins Vianna, leitura apresentada no V COLÓQUIO DIÁLOGOS EM LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA: LITERATURA E CIÊNCIA, 4 de novembro de 2015 Disponível apenas na Academia.edu

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Melencolia I (detalhe), gravura de 1514 de Albrecht Dürer (1471-1528)

*** Atualmente, tenho me interessado pelo estudo da presença dos temas Melancolia, Demonologia, Filosofia Natural e Reforma Protestante nas peças atribuídas a ‘Shakespeare’, com foco mais específico no Q1(1603) de “Hamlet”. Tal interesse se situa num campo renovado de pesquisas histórico-literárias da virada religiosa nos Early Modern English Studies. Tais estudos incorporaram marcos temáticos e metodológicos que ultrapassaram o embate “criticism vs. new historicism”. Desde 2000, o que pude constatar na historiografia literária interessada na correlação histórica entre Melancolia, Demonologia, Filosofia Natural e Reforma Protestante nas belas letras dos séculos XVI e XVII foi um recorrente cuidado em situar tais temas adequadamente num universo cultural formado pelo padrão de evidência da instituição retórica aristotélica, pelo criacionismo bíblico e pela teoria clássica dos humores quando se pensam as agências causais formativas dos mundos natural e institucional. Diferentemente dos estudos de História da Ciência feitos até a década de 1970 em chave teleológica tacitamente formada pelo horizonte científico de criticidade Iluminista e pós-Iluminista (i.e., aquele formado pela noção de filosofia natural sistêmica-processual-transformacionista da matéria e da sociedade), os novos estudos literários de histórias das ideias ou das noções de agências causais para as matérias,

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pessoas e instituições da Inglaterra dos séculos XVI e XVII tenderam a buscar compreender as formulações de causalidade nos próprios termos dos autores/atores de época, evitando julgar ou antecipar compreensões categóricas que não faziam parte de seu horizonte crítico de evidência causal. Daí a importância de reconstituir e situar os sentidos do vocabulário de época e os seus recursos trópicos de convencimento e evidência em referência à medicina galênico-hipocrática, à retórica aristotélica e à física aristotélica, renovadas e cristianizadas em chave protestante calvinista. Em certa medida, a grande questão que passou a atravessar tais estudos se mostrou tributária das indagações críticas de Stuart Clark em “Pensando com Demônios”, qual seja: Numa visão eminentemente criacionista de mundo, a demonologia e a filosofia natural (pré-iluminista) tinham um vocabulário comum sobre agências causais (por exemplo, a premissa da distinção entre agências natural, preternatural e sobrenatural, cuja compreensão dos limites varia conforme época, lugar e visão religiosa) e convergiam métodos demonstrativos na preparação dos futuros juristas, padres e médicos que dividiam, como alunos, as cadeiras nas universidades da Inglaterra na virada do século XVI para o XVII. Para analisar as correlações entre Melancolia, Demonologia, Filosofia Natural e Reforma Protestante na literatura da Inglaterra dos séculos XVI e XVII, foi igualmente indispensável o conhecimento dos estudos pós-revisionistas sobre as Reformas Religiosas Inglesas. Uma das contribuições críticas trazidas pelo paradigma pósrevisionista de estudos histórico-literários sobre as Reformas Religiosas Inglesas foi constatar que a linguagem religiosa na Inglaterra da Alta Idade Moderna é formada por intrincado entrelaçamento de uma complexa rede de elementos socioculturais na qual a análise dos elementos teológicos não poderia ser preterida, destacada ou subordinada a outros campos, de modo a não impormos ao passado uma moldura crítica iluminista de ciência, instituições, natureza e sociedade. Outra contribuição importante dos estudos pós-revisionista sobre as Reformas Religiosas Inglesas foi a premissa de sempre localizar a materialidade da performance

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da manifestação religiosa na flutuação semântica do vocabulário e gêneros que a formulam, em vez de diluí-la em categorias generalizantes construídas pela historiografia literária inglesa do século XIX. Daí a tendência de falar sempre no plural (Reformas Religiosas) e de não simplificar ou polarizar discussões sobre “rupturas” ou “permanência” de “catolicismo” na Inglaterra pós-cisma papal. Como consequência, um imperativo metodológico importante foi o cuidado de localizar adequadamente o artefato literário que manifesta ideias e valores religiosos em seus contextos originais intencionados de comunicação, deduzidos de sua materialidade e do decoro do gênero de enunciação que o configuravam como ato de sentido e comunicação. Ora, isso representou uma ressensibilização hermenêutica para aquilo contra o qual a tradição crítica romântica se revoltou: a instituição retórica clássica, que formava o horizonte crítico dos autores/atores letrados dos séculos XVI e XVII. Em si mesmo, tal tomada de posição hermenêutica teve como consequência crítica mais específica (à qual adere a minha pesquisa) o combate contra a tendência à psicologização dos personagens shakespearianos (como nos estudos literários em chave psicanalítica lacaniana em voga na década de 1970) e que, em alguma medida, passaram também a formar uma vulgata psicologizante na leitura de personagens como Hamlet para performances teatrais contemporâneas e para cinema – e (pasmem!) em obras que diluem a verossimilhança teatral do personagem em alegorias psicologizantes para autoajuda, ou em arquétipos filosóficos ou sociológicos de modernidade. Por meio dos enfoques pós-revisionista culturais dos estudos histórico-literários sobre as Reformas Religiosas Inglesas, pelo contrário, tendemos a situar o personagem Hamlet numa dobra intertextual de época que não tem como premissa que exista uma espécie de história universal hegeliana de sujeito/subjetividade, ou estruturas universais

a-históricas

de

subjetividade

moderna,

mas

sim

padrões

de

verossimilhança teatral que cumprem ou desafiam expectativas de decoro ligadas (1) ao gênero teatral (se Commedie, se Tragedie, se Historie...) e (2) aos recursos trópicos que o formam em função da intenção edificadora-exemplar do enredo, do gênero

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acionado e da caracterização (hu)moral dos personagens, tendo como horizonte de criticidade a poética e a retórica aristotélico-horacianas. Daí, há um desafio metodológico-interpretativo-contextualizante bem singular quando se pretende reconstituir os padrões trópicos epocais de legibilidade que confeririam plausibilidade cênica para as relações de verossimilhança entre Melancolia, Vingança, Crime, Suicídio, Tentação Demoníaca e a presença cênica do Fantasma nas edições de 1603 e 1604 da peça “Hamlet”. Por este viés, cada edição de peça deve ser lida na singularidade que cada editor ou livreiro do século XVII propõe, evitando-se, portanto, a tendência de criar sentido intencionado autoral (geralmente, a reboque da função-autor romântica) a partir da comparação ou fusão de edições. Nos estudos sobre “Hamlet”, desde os românticos até a década de 1980, houve a tendência a fundir linhas do Q1(1603), do Q2(1604) e Fólio de 1623, visando a fundar um “texto arquetípico”. Tal prática crítica estava baseada numa premissa romântica de autoria e genialidade que autorizaria os críticos a definirem a solução textual para a peça “Hamlet” que supostamente melhor se aproximaria da “mente de Shakespeare”. O último grande trabalho de erudição nessa direção, que foi produto de trinta anos de trabalho, foi o “Hamlet” editado por Harold Jenkins em 1982. Na minha pesquisa, cada edição de “Hamlet” do século XVII é uma materialização especificamente localizada de intenção de sentido que não passa pela especulação da intencionalidade da “mente ou religião de Shakespeare” (este ente inacessível inventado pelos românticos como premissa de relevância para estudos literários); pelo contrário, a pesquisa foca-se no estudo das escolhas que formam os padrões de verossimilhança e os recursos trópicos teológico-demonológicos que cumprem ou desafiam decoros poético-retóricos referidos, na Inglaterra do século XVII, ao tema da melancolia, à sua função no enredo da peça e à forma como o desdobramento do enredo aciona repertórios trópico-temáticos para evidenciar possíveis agências causais para a melancolia e a sua correlação com as emergências cênicas do Fantasma e do tema da vingança.

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Os estudos pós-revisionistas de materializações da linguagem religiosa na Inglaterra dos séculos XVI e XVII trouxeram uma renovada compreensão sobre as idiossincrasias sociopolíticas de uma época na qual a religião assumia muita magnitude no pensamento sobre instituições, pessoas e mundo natural. Os discursos que, hoje, denominaríamos de científicos, quando feitos por humanistas laicos e clericais dos séculos XVI e XVII, eram inseparáveis de uma compreensão de cosmo distinguido em esferas natural, preternatural e sobrenatural quando se concebiam causalidades para instituições, pessoas e o mundo físico. Por isso, para se compreender a representação literária de melancolia nos séculos XVI e XVII, foi imprescindível estudar as concepções teológico-médicas sobre as causas das flutuações dos humores no corpo, pois as categorias de percepção e avaliação sobre “corpo” e “mente” inscrevem-se em tradições culturais que nos são distantes e estanhas, podendo, na superfície, os vocábulos criarem uma ilusão de semelhança onde há uma abissal distância de premissas e de sentidos na forma do conceber agências causais para os fenômenos sublunares. Para o intertexto hermenêutico específico da minha pesquisa, a obra “Anatomia da Melancolia”(1611), de Robert Burton, serviu como um índice paradigmático de aproximação contextual para o problema da melancolia em face à soteriologia calvinista; e a obra “Demonologia”(1597) do então rei escocês James VI serviu como um índice paradigmático de aproximação contextual para o problema da melancolia em face ao repertório teológico calvinista a respeito da agência demoníaca sobre o corpo num contexto de desequilíbrio moral ou falha moral no interior da Casa *. Quando James VI fala em Casa, refere-se ao modelo da household aristocrática, que *

Considerando isso, permitam-se uma digressão sobre o Q1 de “Hamlet”: Todo o ambiente cênico de desenvolvimento da trama é a corte capitaneada pela household do falecido e/ou assassinado rei Hamlet. A sua household é a metonímia de todo o corpo político. Logo, se há algo “podre” na household régia, todo o corpo está em potencial ameaça de desagregação. Afinal, “podre” e “desagregação” correlacionam-se por ordem de consequência: Um corpo podre é um corpo em desagregação – e o corpo só desagrega-se quando não é mais animado, ou seja, quando se dissocia da alma. E o poder soberano é a alma do Estado. Portanto, sem o poder soberano, o Estado inexiste na indiferenciação da lama, pois não tem o sopro de vida que lhe dá forma. Se há algo podre, algo está virando lama... Assim, quando Marcellus, assustado pela aparição do Fantasma e pela reação do príncipe Hamlet, diz que “algo está podre no estado da Dinamarca”, é uma enunciação providencial do risco da desagregação da persona ficta do Estado.

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pode ser entendida no sentido jurídico-teológico como parva civitas (i.e., quase Estado); tal como o Estado (i.e., Civitas) poderia ser referido como magna domus (i.e., Casa Maior, Máxima Casa ou Casa Suprema) no repertório jurídico-teológico herdado da Idade Média. Em “Anatomia da Melancolia”, Robert Burton dirige-se a uma comunidade de leitores preocupada com a natureza epidêmica da melancolia em decorrência da soteriologia calvinista. Burton propõe diversas atividades para “distrair” a melancolia, mas recomenda, sobretudo, a leitura como um hábito terapêutico de cura. O foco na leitura como atividade de cura é especialmente visível na Inglaterra protestante reformada, visto que o dispositivo de intermediação entre ser humano e divindade é reduzido, na prática, a uma busca pessoal, restando uma enorme margem de incerteza devido à ausência de consolos intercessores ao modo católico. Na edição de 1603 de “Hamlet”, os momentos cênicos de Hamlet de exame de consciência pouco variam do repertório de verossimilhança que cumpre formalmente, por exemplo, as expectativas de performances prescritas nos Books of Common Prayer elisabetano e jacobita, que exige do sujeito calvinista uma postergação de si e uma autonegação permanente. Daí, “Ser ou não ser não?” não é uma questão existencialista, mas teológica num personagem melancólico que titubeia nas virtudes a seguir e cujo luto excessivo pela morte do pai não é uma figuração moralmente positiva para uma audiência/leitura de viés calvinista. Para a sua questão “Ser ou não ser não?” não há resposta intramundana até o Juízo Final, quando o puro e o impuro, então misturados na ordem do mundo, serão finalmente separados. No cosmo providencialista cristão rigorosamente crítico àquilo que os doutos (católicos ou protestantes) definiriam nos séculos XVI e XVII como superstição maniqueísta do vulgo, a tentação demoníaca não ocorreria à revelia da vontade divina, cumprindo uma função misteriosa na ordem do mundo do Homem da Queda – função misteriosa porque inapreensível pela razão. Então, nada mais condizente com isso do que as dúvidas de Hamlet, Horatio e Marcellus sobre o estatuto do Fantasma, ora argumentando com a “teoria dos humores” (ou seja, nos termos da

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filosofia natural clássica); ora argumentando com os mesmos termos causais da demonologia de James VI. Em termos de agências causais, os dois tipos de argumento convergem: somente Deus atua de forma sobrenatural, ou seja, de fora da ordem criada, produzindo milagre; as demais criaturas, o que incluem os demônios, atuam por meios naturais, ou seja, de dentro da ordem criada, mas, diferentemente dos homens, os demônios dominam as causas ocultas, podendo iludir os homens com “mirabilia” ao manipular os elementos externos e/ou os humores internos ao corpo. A grande questão é que o campo reformado calvinista douto dos séculos XVI e XVII restringiu a função exemplar do milagre: todo milagre que aconteceu teve a função de apenas distinguir o verdadeiro Messias dos falsos, ou seja, serviu para anunciar que Jesus era o Cristo. Logo, tudo que o vulgo posteriormente chamou de milagre seria produto de trapaça “papista”, superstição ou ignorância da verdadeira doutrina da fé. Na edição de 1603 de “Hamlet”, não há uma reminiscência subterrânea de “catolicismo” na figuração cênica do Fantasma como “alma do purgatório” (tese de Stephen Greenblatt), mas a sua ressignificação moral-religiosa por meio do deslocamento crítico desse repertório “da religião antiga” para um horizonte calvinista de expectativa que provoca reflexão sobre a distinção entre “miracula” e “mirabilia” – portanto, uma preocupação com os erros dos sentidos (senses) na consciência. Na peça, tal reflexão ocorre por meio da sobreposição parcial do repertório religioso e folclórico que forma a função reveladora do Fantasma. Vejamos... No sentido católico medieval das histórias de fantasmas, a “alma retornada do purgatório” que sofrera morte violenta retorna para denunciar o seu assassino e, assim, provocar um efeito moral corretivo. Na peça, diferentemente do que ocorre nas crônicas e fábulas católicas medievais de fantasmas, a ação do Fantasma não gera equilíbrio, ordem ou restauração da justiça; pelo contrário, a sua ação amplifica as contradições que levam à desagregação do Estado. Daí, o sentido moral católico de “alma retornada do purgatório” com “função corretiva” migra, no vocabulário da peça e no desenvolvimento do enredo, para o sentido moral anticatólico de “engodo diabólico”, tal como definido por James VI em seu tratado calvinista “Demonologia”,

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para o qual não pode haver “espíritos retornados” porque não há Purgatório, que é um “engodo católico”; logo, são demônios que assumem a forma de pessoas conhecidas mortas para induzir um incauto (geralmente, parente ou amigo da pessoa morta) a pecados capitais. Assim, a figuração do Fantasma cumpre a seguinte expectativa crítica de verossimilhança do tema para uma audiência calvinista também afeita à tradição folclórica medieval das “histórias de fantasmas”: representa o paradoxo moral da tentação demoníaca ao modo das agências diabólicas das Iras descritas por James VI em “Demonologia”, cuja função é empurrar o melancólico para os sentimentos diabólicos destrutivos da vingança particular. A presença de tal tentação demoníaca seria, em si mesma, a evidência de que há algum desequilíbrio moral (ainda oculto ou prestes a ser revelado) no interior da household. Logo, com um sentido moralteológico distinto, o Fantasma cênico em “Hamlet” tem a mesma função reveladora das “almas retornadas do purgatório” das crônicas medievais, mas tem consequências moralmente nefastas que demonstram que pode ser uma diabólica “mirabilia”. Como na Inglaterra pós-Reformada várias premissas e noções católicas foram demonizadas como “erros doutrinais ou superstições papistas”, não surpreende a ambiguidade moral do Fantasma cênico provocador do dilema da vingança que dá movimento ao enredo: a “revelação”(?) do regicídio fatricida pelo “Fantasma” ao jovem nobre, melancólico e letrado Hamlet apenas conduz a outra situação regicida, que terá como consequência o fim da alma (i.e., poder soberano) que agregava o corpo político da Dinamarca. Portanto, a cena epilogal é de assombro: revela a tese moral platônica-cristã de que nada providencialmente deriva de bom da vingança particular e, portanto, não há situações casuísticas que a justifiquem. Sobre o tema da vingança, a moral da peça não é, portanto, aristotélica. Aliás, a própria trama de vingança impede que Hamlet se torne um agente purgador calvinista legítimo da podridão do Estado: para sustentar a vingança, Hamlet não passa de súdito particular, ou seja, não encarna nenhuma dignidade institucional efetiva voltada para o bem comum. A sua sensação de que o seu tio seria

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a encarnação ímpia da soberania não passa de uma opinião particular, pois não tem como publicamente provar que o tio assassinou o seu pai. Por outro lado, diferentemente do que ocorre com o príncipe Hal em “Henrique IV”, os delitos do príncipe Hamlet não são fingidos e nunca são seguidos de uma ação corretiva subterrânea; pelo contrário, as suas ações subterrâneas erram o alvo e pioram a sua situação na corte, particularmente depois do assassinato do pai de Ofélia. Além disso, Hamlet afeta isolamento para cumprir a fingida verossimilhança do louco melancólico que vive o luto excessivo pela morte do pai (neste ponto, é um par antitético de Ofélia, que melancolicamente enlouquece em decorrência do luto excessivo pela morte do pai nas mãos de seu amor). Para manter a verossimilhança do isolamento melancólico, Hamlet não pode assumir as matérias do Estado, inviabilizando-se publicamente como príncipe herdeiro, como fica evidenciado pela opinião do coveiro na sequência cênica que antecede o enterro de Ofélia. A sequência cênica do coveiro, para além de servir como intermezzo cômico que será sucedido pelo embate grave entre Laertes e Hamlet na cova de Ofélia, serve também para a “audiência/leitor” e o próprio Hamlet ficarem sabendo da murmuração pública a respeito do estado mental do príncipe, ou seja, a perda de sua boa fama como potencial herdeiro do Reino da Dinamarca. Portanto, a estratégia de vingança de Hamlet cria este paradoxo: Não pode se dignificar institucionalmente com qualquer cargo no qual pudesse se aurar divinamente (no sentido calvinista) como encarnação do bem comum. Portanto, o seu plano de vingança impede que cumpra as premissas calvinistas mínimas que pudessem legitimá-lo como resistência institucional divinamente constituída ao rei Claudius. Enfim, como Hamlet não passa de súdito particular que titubeia na vingança particular, todo o padrão de verossimilhança nele aponta para ações que levam à desagregação de sua legitimidade enquanto potencial protagonista nas matérias de Estado. No final das contas, o Fantasma venceu enquanto agência diabólica desagregadora da household ímpia e do state podre.

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