Filosofia no nono período? refletindo a posição das disciplinas propedêuticas nos currículos jurídicos a partir de uma abordagem etnográfica na Faculdade de Direito do Recife

June 30, 2017 | Autor: Feitosa Gonçalves | Categoria: Etnografía, Filosofia do Direito, Faculdade de Direito do Recife, Ensino Jurídico
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FILOSOFIA NO NONO PERÍODO? REFLETINDO A POSIÇÃO DAS DISCIPLINAS PROPEDÊUTICAS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS A PARTIR DE UMA ABORDAGEM ETNOGRÁFICA NA FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE. Francysco Pablo Feitosa Gonçalves Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central FACHUSC. [email protected] João Paulo Fernandes Allain Teixeira Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Universidade Católica de Pernambuco - Unicap. [email protected]

RESUMO O presente trabalho tem por objetivo apresentar o relatório parcial de uma pesquisa etnográfica realizada ao longo do semestre 2013.1, na Faculdade de Direito do Recife, a fim de problematizar a estrutura curricular da referida faculdade, principalmente no que concerne à presença da disciplina de Filosofia do Direito no nono período, nos semestres finais, portanto, diferentemente do que acontece na maioria das instituições que costumam concentrar as disciplinas propedêuticas nos semestres iniciais. Como forma de coleta de dados, empregamos a observação participante e a realização de entrevistas informais decorrentes do próprio processo de interação com os discentes. Embora este seja um relatório preliminar, e tenha avaliado apenas uma disciplina, chegamos à conclusão provisória de que pode ser vantajosa a presença de disciplinas propedêuticas nos semestres finais, advirta-se, entretanto, que não pretendemos esgotar quaisquer das temáticas abordadas no presente trabalho, esperamos apenas que ele possa apresentar alguma contribuição para o necessário debate em torno da presença e posicionamento das referidas disciplinas propedêuticas nos currículos dos cursos jurídicos. Palavras-chave: Etnografia. Currículo. Disciplinas propedêuticas. Recife.

INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo apresentar o relatório parcial de uma pesquisa etnográfica realizada ao longo do semestre 2013.1, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, ou, como é conhecida, Faculdade de Direito do Recife ou simplesmente

“FDR”.1 Essa pesquisa se insere no âmbito de outra mais ampla, desenvolvida em nível de doutorado e que visa traçar um panorama do campo da faculdades de direito de Recife. Uma das etapas da pesquisa mais ampla consiste justamente em estabelecer (numa perspectiva boudieusiana) a posição das instituições no referido campo, e, nesse sentido, não poderíamos negligenciar a FDR, que, é a mais antiga do Brasil, junto com a Faculdade do Largo do São Francisco em São Paulo, pois, como é notório, ambas foram criadas pelo mesmo decreto imperial (cf. FERREIRA, 1994). No presente artigo, especificamente, nosso objetivo é apresentar um breve relatório da bordagem etnográfica, realizada na referida instituição, o que despertou nossa atenção e permitiu avaliar um aspecto interessante do currículo da FDR, a presença de disciplinas propedêuticas nos semestres finais da graduação. Nas linhas que se seguem apresentaremos sucintamente os passos que percorremos para a realização da pesquisa etnográfica, a partir da observação participante na turma de Filosofia do Direito, no nono período (diferentemente, portanto, do que acontece na maioria das instituições que costumam concentrar as disciplinas propedêuticas apenas nos semestres iniciais), bem como discutiremos os resultados da referida pesquisa. Procuramos avaliar o nível de interesse dos discentes, bem como as vantagens e desvantagens do seu posicionamento nos semestres finais.

METODOLOGIA Como dissemos, a presente pesquisa se insere no âmbito de outra mais ampla, voltada ao campo da faculdades de direito de Recife, essa pesquisa aliada à nossa inserção na UFPE tornou possível realização da pesquisa etnográfica na referida instituição. Optamos por aproveitar o diferente nível de contato dos pesquisadores com a Faculdade para tentar firmar uma análise mais crítica sobre a instituição, tentando “romper com a passividade empirista, que não faz senão ratificar as pré-construções do senso comum” (BOURDIEU, 2012, p. 32). Sabemos que um dos obstáculos epistemológicos na pesquisa de campo é a própria relação entre o pesquisador e o campo, quanto mais se entra numa Instituição a fim de fazer uma pesquisa etnográfica, maior a probabilidade de a instituição entrar no pesquisador, de ele absorver as normas e valores vigentes, incorporando-os aos seus esquemas de percepção de ação. Dito de outra forma, o pesquisador que teve pouco contato com a instituição provavelmente terá uma sensibilidade maior 1 A maior parte dos discentes, docentes e funcionários da referida instituição parece se referir à faculdade pela sigla, “FDR”, o que nos parece uma forma (ainda que inconsciente) de fazer referência à sua tradição como primeira faculdade de Recife e uma das primeiras do Brasil, junto com a Faculdade do Largo do São Francisco em São Paulo (cujos alunos a chamam apenas de “Sanfran”). Seria interessante questionar se essa denominação, remetendo ao curso em questão como “a” faculdade de direito do Recife, poderia representar uma forma de subalternização simbólica com as demais faculdades de direito em Recife, é algo que talvez possamos abordar no futuro, mas para os fins do presente trabalho, nos referiremos à instituição como ela é usualmente chamada: FDR.

para os dados que se lhe apresentam, na medida em que tudo para ele é novo, mas, ao mesmo tempo, ele não conhece bem a instituição (o que pode ocasionar diversos problemas na apreensão e interpretação desses dados), mas o pesquisador que teve muito contato e está muito familiarizado com a instituição (e é isso que reforçávamos) poderá não ter a mesma sensibilidade aos dados, já que se acostumou com as relações, interações e até com os conflitos da instituição. Cientes disso, aproveitamos o fato de que um dos pesquisadores havia tido pouquíssimo contato com a instituição, sobretudo em nível de graduação (que se resumiu na apresentação de comunicação oral em um evento acadêmico), enquanto o outro possui quase vinte e cinco anos (entre graduação, mestrado, doutorado e exercício da docência) na Faculdade de Direito do Recife FDR, para tentar, de forma dialógica, analisar os dados de forma mais crítica. A inserção dos pesquisadores foi facilitada por seus vínculos com a instituição (professor e estagiário de docência), a opção pela abordagem etnográfica se deu tanto em virtude da afinidade com o método como pela flexibilidade que a etnografia oferece, já que, “Diversamente de outros esquemas mais estruturados de pesquisa, a abordagem etnográfica parte do princípio de que o pesquisador pode modificar seus problemas e hipóteses durante o processo de investigação.” (LÜDKE; ANDRÉ, 1998, p. 16). Registramos que a pesquisa foi realizada com base em uma abordagem etnográfica, mas o que, afinal, entendemos por etnografia? É certo que nem sempre os pesquisadores concordam sobre os procedimentos a serem empregados numa pesquisa etnográfica. Enquanto uns parecem ser mais afeitos à observação, outros preferem trabalhar com entrevistas e há, ainda, outros, que consideram que apenas a combinação da observação com as entrevistas produziria o melhor resultado em termos de (re)construção do objeto na forma de um trabalho acadêmico. Também há alguma confusão sobre as possíveis fronteiras entre etnografia, antropologia, sociologia, etnologia (etc.).2 Embora tenhamos interesse de problematizar essas questões no futuro, dada a brevidade do presente trabalho, registraremos apenas que concordamos com o entendimento de Wolcott, citado por Hermengarda Lüdke e Marli André, no sentido de que a (…) etnografia tem um sentido próprio: é a descrição de um sistema de significados culturais de um determinado grupo (Spradley, 1979). Um teste bastante simples para determinar se um estudo pode ser chamado de etnográfico, segundo Wolcott (1975), é 2 Vide, por exemplo, Levy-Strauss que tenta estabelecer as fronteiras entre esses campos e menciona como eles mudaram de significado (2008, passim, esp. p. 378-379). Segundo Rocha: “Por muito tempo, a etnografia correspondeu à descrição dos costumes de um povo ou tratado sobre as gentes. Apesar desses costumes, de gentes e povos representarem diferentes formas de experiências culturais, em geral diferentes da cultura do etnógrafo, nutria-se a ilusão de que tais descrições eram isentas de juízos de valor. O que muda com a institucionalização da antropologia como ciência social nos séculos XIX/XX é que as descrições sobre as experiências humanas e culturais, de povos e gentes diferentes, passam a considerar a pessoa do antropólogo. Se até esse momento a figura do etnógrafo era distinta da do antropólogo, no início do século XX elas se fundem em uma única personagem. O resultado foi o surgimento do antropólogo social ou cultural como o conhecemos hoje. Um profissional com formação acadêmica e que tem no trabalho de campo um método de pesquisa, a ‘etnografia’, sendo a legitimidade desta conquistada por meio da observação-participante.” (2006, p. 99)

verificar se a pessoa que lê esse estudo consegue interpretar aquilo que ocorre no grupo estudado tão apropriadamente como se fosse um membro desse grupo. Wolcott chama a atenção para o fato de que o uso da etnografia em educação deve envolver uma preocupação em pensar o ensino e a aprendizagem dentro de um contexto cultural amplo. (LÜDKE; ANDRÉ, 1988, p. 13-14, grifamos)

Para a presente pesquisa, entendemos que a melhor forma de obter os dados a fim de produzir um estudo que o leitor pudesse interpretar como se fosse um membro do grupo seria através da observação participante e realização eventual de entrevistas informais a partir das interações com os discentes. A observação e as interações foram desenvolvidas pelos dois pesquisadores, nas aulas de Filosofia do Direito, ao longo do primeiro semestre de 2014, principalmente no turno da manhã (o pesquisador doutorando esteve presente nas aulas da turma da noite apenas em seis ocasiões, a fim de estabelecer um comparativo entre as turmas). Além disso, as observações se estendiam a outros momentos e interações dentro da instituição (corredores, secretaria, biblioteca etc.). Foi mantido o diário de campo, atualizado em detalhes ao final de cada observação. O procedimento de observação, portanto, foi em grande parte análogo ao empregado em várias outras pesquisas, como por exemplo a de Becker (cf. 2008)3 e a de Oliveira (cf. 2004),4 para citar apenas duas dentre as mais conhecidas pelos juristas, valendo lembrar que a observação foi feita pelos dois pesquisadores, o que também é uma prática comum nas ciências sociais e permite um maior diálogo e análise crítica sobre os dados. Terminado o semestre letivo, passamos à análise e debate dos dados, tentando situar os dados obtidos não apenas dentro da instituição estudada, mas também dentro do próprio campo das faculdades de direito, mais amplo, mas no presente trabalho apresentaremos apenas o relatório provisório da presente pesquisa, no que concerne à estrutura curricular da FDR e, mais especificamente, à presença de disciplinas propedêuticas nos semestres finais da graduação.

3 “Colhi o material deste estudo por meio de observação participante, interagindo com músicos na variedade de situações que compõem suas vidas de trabalho e lazer. Na época em que fiz a pesquisa, eu era pianista profissional há alguns anos e atuava em círculos musicais de Chicago. (...) A maioria das pessoas que eu observava não sabia que eu estava fazendo um estudo sobre músicos. Raramente eu realizava alguma entrevista formal, concentrando-me antes em ouvir e registrar as conversas habituais que ocorriam entre os músicos. A maior parte de minhas observações foi realizada no trabalho e até no palco, enquanto tocávamos. Conversas úteis para meus objetivos ocorriam muitas vezes nos costumeiros ‘mercados de emprego’ nos escritórios do sindicato local, onde músicos à procura de trabalho e líderes de banda à procura de homens para contratar se reuniam nas tardes de segunda-feira e sábado.” (BECKER, 2008, p. 93) 4 “A pesquisa foi realizada entre junho de 1982 e fevereiro de 1983 e compreendeu levantamento de campo em cinco agencias policiais do Grande Recife. Como a minha intenção era captar o desempenho policial relacionado a pequenos casos das classes populares, o meu critério de escolha das agencias a serem pesquisadas esteve direcionado por sua localização próxima a aglomerados habitados por pessoas de baixa renda. A pesquisa de campo propriamente dita compreendeu visitas às cinco agencias escolhidas, onde observei o desenrolar de casos, entrevistei o mais informalmente possível as autoridade e pessoas neles envolvidas e, na medida do possível, consultei os livros de queixas lá existentes. ” (OLIVEIRA, 2004, p. 25-26).

RESULTADOS E DISCUSSÃO O estágio provisório da pesquisa, bem como a compreensão de que a instituição se insere dentro de um campo mais amplo, permite e torna necessário que façamos aquele esboço de carvão ao qual Bourdieu metaforicamente se refere: (...) o proveito científico que se retira de se conhecer o espaço em cujo interior se isolou o objecto estudado (por exemplo, uma dada escola) e que se deve tentar apreender, mesmo grosseiramente, ou ainda, à falta de melhor, com dados de segunda mão, consiste em que, sabendo-se como é a realidade de que se abstraiu um fragmento e o que dela se faz, se podem pelo menos desenhar as grandes linhas de força do espaço cuja pressão se exerce sobre o ponto considerado (um pouco à maneira dos arquitectos do século XIX, que faziam admiráveis esboços a carvão do conjunto do edifício no interior do qual estava situada a parte que eles queriam figurar em pormenor). (BOURDIEU, 2012, p. 31-32, “sic”)

No que concerne às linhas gerais do campo das faculdade de direito em Recife, inicialmente podemos observar que, de acordo com o Ministério da Educação, existem 36 (trinta e seis) cursos de direito em funcionamento no Estado de Pernambuco, desses, 16 (dezesseis) situados na cidade do Recife, quando consideramos as demais cidades que compõem a

Região

Metropolitana do Recife, entretanto, esse número sobe para 26 (vinte e seis). Todo o restante do Estado conta, portanto, com apenas 10 (dez) outros cursos de Direito. Dentro desse campo, a FDR ocupa uma posição de destaque, já que não apenas é uma faculdade de uma Universidade federal, mas por toda a sua história e tradição. Um primeiro aspecto a ser observado é o relativo nervosismo que sentimos no primeiro momento em que fomos à faculdade na posição de docente ou numa situação assemelhada à docência (estagiário, monitor etc.), um nervosismo que inclusive foi relatado nas entrevistas que realizamos com outros professores. Acreditamos que não se trata apenas da história da Faculdade, que como dissemos, é a mais antiga do Brasil, mas da própria forma como essa história está objetivada no antigo prédio. A arquitetura em seus traços neoclássicos, as colunas de ferro com os cantos desgastados pela ferrugem, algumas portas cuja madeira espessa também já mostra os sinais do tempo etc., tudo isso contribui para um clima formal, que contrasta curiosamente com a hexis corpral5 dos jovens discentes (alguns de visual despojado, com shorts e sandálias de dedo) e com as faixas e cartazes do movimento estudantil. Ainda sobre os alunos, algumas coisas atípicas podem ser vistas na FDR, alunos do terceiro período interessados em descolonização, lendo e debatendo bibliografia em espanhol, representantes do DA interrompendo a aula para distribuir questionários com a avaliação dos docentes, etc. Não que isso seja exclusividade da FDR, mas certamente não é algo que apareça com 5 Termo que emprestamos da sociologia reflexiva de Bourdieu maneira durável de se portar, de se expressar, de agir etc., cf. Bourdieu, 2011.

a mesma frequência e intensidade em outras faculdades, sobretudo nas privadas.6 Outros aspectos, entretanto, mantêm o padrão de outras faculdades de direito, as turmas da manhã parecem ter uma clientela mais jovem, enquanto a turma da noite apresenta uma faixa etária mais heterogênea. Apesar da eventual variação na faixa etária ou presença de alunos que estão na segunda graduação, em ambos os casos (manhã e noite), entretanto, não percebemos diferenças nas hexis corporais e no capital linguístico que sugerissem uma estratificação social acentuada, diferentemente do que observamos em turmas de faculdades privadas nas quais convivem, em algumas turmas, com alunos que possuem mestrado e alunos com sérias dificuldades de leitura e escrita. Outro aspecto interessante que percebemos na FDR diz respeito à presença e disposição das disciplinas propedêuticas na estrutura curricular, elas tanto aparecem em maior número, como se distribuem ao longo da graduação, diferentemente do que observamos na maioria das demais instituições. No que se refere à filosofia, por exemplo, os discentes têm uma disciplina introdutória no primeiro período (“Filosofia”) e a disciplina de “Filosofia do Direito” no nono período, além da possibilidade de cursarem, como optativa, a disciplina “Filosofia do Direito 2”.7 Quando comentamos sobre esse aspecto do currículo da UFPE com profissionais de outras instituições, quase sempre provocamos algum estranhamento, ora, por que um currículo inclui Filosofia do Direito no nono período? Muitos discentes não gostam das disciplinas propedêuticas nos semestres iniciais, que interesse o público discente poderia ter, então, em Filosofia no nono período, quando muitos estão estagiando ou trabalhando e todos já estão preocupados com o Exame de Ordem e o Trabalho de Conclusão de Curso? Claro, ao longo do semestre pudemos perceber discentes que, em algum momento, não demonstravam muito interesse no assunto, alguns chegavam bastante atrasados, outros se entretiam em seus smartphones ou apenas pareciam contemplar o vazio, desinteressados, e o fato de a disciplina ser ofertada na sexta feira pela manhã certamente não contribuía para a adesão do público alvo. Mas isso se observa em qualquer disciplina, propedêutica ou não, e certamente não é o que surpreende na turma da FDR, o surpreendente era a adesão e o próprio conteúdo da participação da turma. A forma como o debate flui, demonstra como os discentes possuem um capital cultural considerável, decorrente não apenas do fato de já estarem no nono período, mas por serem discentes de um dos cursos mais disputados de uma Universidade Federal. Em uma determinada aula, por exemplo, pudemos abordar o kelsenianismo, problematizando a apropriação da teoria pura do direito em detrimento das obras de Kelsen que problematizam a democracia, e logo o debate se 6 Estamos considerando, evidentemente, o campo das faculdades em Recife. 7 Todas as informações sobre o currículo da UFPE decorrem da nossa observação e podem ser confirmadas em UFPE, s/d.

encaminhou para as contribuições de Kelsen para a jurisdição constitucional (tese do legislador negativo), seguida de uma retomada da teoria pura, o debate entre Kelsen e Cossio, um paralelo entre Kelsen e Hart e a jurisprudência analítica, para logo chegar em Dworkin e no neoconstitucionalismo.8 Com o tempo adequado, um docente poderia fazer isso em qualquer faculdade, o que surpreende é a forma como os discentes demonstram tranquilidade em relação aos temas, nenhum demonstra qualquer dúvida ou espanto, todos parecem compreender o que está sendo dito, e não raro contribuem com o desenrolar da aula, complementando e problematizando determinados temas, mesmo quando alguém fala em algum autor ou teoria mais exótica ou árida. Os próprios discentes, aliás, eventualmente mencionam conceitos ou autores pouco estudados por graduandos. Em determinada ocasião, por exemplo, nos surpreendemos quando um discente espontaneamente abordou a ideia de suporte fático em Pontes de Miranda, em outra ocasião uma discente problematizou as contradições do que usualmente se chama de liberalismo no Brasil e ao longo de sua intervenção ainda falou no equívoco de rotular políticas afirmativas como sendo políticas comunistas. Em algumas ocasiões, alguns discentes permaneceram após a aula debatendo temas relacionados à aula com o estagiário de docência, e em uma ocasião, em especial, a conversa acabou abordando a questão do ensino jurídico, e nos surpreendemos com a constatação de que os discentes tinham um posicionamento crítico sobre a didática dos professores, forma de avaliação e sobre a estrutura curricular do curso de direito, fazendo inclusive um comparativo com outros cursos de referência (como a USP e a FGV), e as vantagens e desvantagens de se ter uma estrutura curricular mais voltada ao mercado de trabalho ou um currículo com mais disciplinas optativas e atividades de pesquisa em detrimento das aulas expositivas. Surpreendentemente, um discente demonstrou conhecer as propostas pedagógicas de Paulo Freire e todos os presentes na ocasião (cerca de cinco) se mostraram favoráveis a uma estrutura curricular que contemplasse ainda mais o que chamaram de disciplinas zetéticas, em aparente alusão a autores como Tércio Ferraz Junior (cf. 2003), que chamam dessa forma as disciplinas propedêuticas. Dissemos anteriormente que os discentes demonstravam possuir um capital cultural considerável, e que acreditamos que isso se deve não apenas ao fato de já estarem no nono período, mas também ao próprio fato de o ingresso no curso em questão ser conhecido pelo nível da sua concorrência. Dito isso, formulamos duas hipóteses, não necessariamente excludentes que permitem compreender (e em alguma medida defendem) a presença da disciplina Filosofia do Direito no nono 8 Dada a brevidade do presente trabalho, não convém apresentar as proximidades e semelhanças e, menos ainda, os pormenores das teorias dos autores em questão, mas convém observar que alguns discentes apresentavam um domínio equivalente (ou talvez até superior) ao dos discentes do mestrado da mesma instituição.

período. A primeira é que o ambiente acadêmico e as condições sociais dos discentes da FDR proporcionam que eles tenham uma propensão maior à disposição escolástica, decorrente de uma relativa liberdade em relação às exigências e necessidades econômicas e sociais: A situação escolástica (cuja forma institucionalizada é a ordem escolar) e um lugar e um momento de leveza social onde, desafiando a alternativa comum entre jogar (paizein) e ser serio (spoudazein), pode-se “jogar seriamente” (spoudaiós paizein), como diz Platão para caracterizar a atividade filosófica, levar a sério disputas lúdicas, ocupar-se seriamente de questões ignoradas por pessoas sérias, simplesmente envolvidas e preocupadas com as questões praticas da existência ordinária. (…) De fato, os aprendizados, e sobretudo os exercícios escolares como trabalho lúdico, gratuito, realizado no modo do “faz-de-conta”, sem móvel (econômico) real, constituem a ocasião de adquirir por acréscimo, além de tudo o que eles visam transmitir explicitamente, algo de essencial, a saber, a disposição escolástica e o conjunto dos pressupostos inscritos nas condições sociais que os tornam possíveis. Estas condições de possibilidade, na verdade condições de existência, agem, por assim dizer, de maneira negativa, a revelia, portanto, de maneira invisível, sobretudo porque são essencialmente negativas, como por exemplo a neutralização das urgências e dos fins práticos, ou melhor, o fato de ser arrancado por um período mais ou menos prolongado do trabalho e do mundo do trabalho, da atividade seria, sancionada por uma remuneração em dinheiro, ou de maneira mais ampla, de estar mais ou menos completamente a salvo de quaisquer experiencias negativas associadas a privação ou a incerteza do dia seguinte. (BOURDIEU, 2001, p. 24-25, grifos do original)

Ou seja, os discentes que possuem uma condição privilegiada (p.ex. não pagam faculdade, não precisam trabalhar para se manter), teriam uma propensão maior para o jogar seriamente no debate de questões filosóficas. Isso explicaria, inclusive, a maior adesão da turma da manhã aos debates (que como dissemos eventualmente se estendiam após a aula) em relação à turma da noite. Isso não significa, entretanto, que apenas discentes em uma condição de liberdade das constrições econômicas e sociais possam apresentar um interesse maior em relação às disciplinas propedêuticas, e é nesse ponto que se insere nossa segunda hipótese. Acreditamos que a oferta dessas disciplinas nos semestres finais, em vez de apenas nos semestres iniciais, permite um debate de nível mais elevado e pode despertar um maior interesse dos discentes. A concentração de tais disciplinas nos primeiros períodos pode ter um duplo efeito pernicioso, por um lado, os discentes podem estar (e provavelmente estarão) ansiosos pelo seu contato com o direito nas disciplinas jurídico-dogmáticas, o que em tese os levaria a considerar as disciplinas propedêuticas como algo supérfluo. Por outro lado, a abordagem dos próprios conteúdos dessas disciplinas pode ser limitada pelo fato de que os discentes ainda não conhecem as referidas dogmáticas (e suas aporias). Exemplificando, um debate sobre a apropriação acrítica de teorias estrangeiras na prática jurídica brasileira será mais produtivo no nono período, quando os discentes já tiverem debatido exemplos dessas apropriações (ainda que em outro viés), em disciplinas como, por exemplo, Direito Constitucional ou Direito Penal. Por outro lado, se pensarmos que o discente que está nos períodos finais já tem plena

capacidade de estudar as disciplinas dogmáticas por conta própria (porquanto já conhece a técnica legislativa, a prática judicial, os manuais etc.), e que o que talvez esteja lhe faltando seja justamente uma perspectiva mais crítica em relação a esses conteúdos (considerando a carga de disciplinas dogmáticas que ele recebeu), faz muito mais sentido que o currículo contemple disciplinas propedêuticas como Filosofia e Sociologia nos semestres finais, do que disciplinas de perfil mais dogmático como por exemplo Direito Eleitoral ou Direito Processual Administrativo, as quais, nessa perspectiva, poderiam ser ofertadas em períodos anteriores.

CONCLUSÃO Nas linhas anteriores apresentamos a pesquisa etnográfica que realizamos ao longo do primeiro semestre de 2014, na disciplina de Filosofia do Direito, na FDR. Diferente do que muitos poderiam supor, os discentes dos semestres finais se mostram interessados na disciplina em questão, e os níveis dos debates certamente eram mais altos do que numa disciplina filosófica ministrada nos semestres iniciais. Como dissemos, esses resultados positivos parecem se dever, em parte, ao perfil do discente da FDR, mas sugerem, também, que a presença das disciplinas propedêuticas nos semestres finais pode ser mais interessante do que nos semestres iniciais, já que permite um maior aprofundamento dos problemas, e enquanto o discente que inicia a graduação pode estar mais interessado nas disciplinas jurídico-dogmáticas, o discente que está perto de concluir o curso pode apresentar um maior nível de maturidade e interesse me uma tematização mais crítica, o que uma disciplina dogmática nem sempre pode oferecer. Embora este seja um relatório preliminar, e tenha avaliado apenas uma disciplina, chegamos à conclusão provisória de que a presença de disciplinas propedêuticas nos semestres finais pode apresentar as vantagens mencionadas, isso não se estenderia, necessariamente, a todas as disciplinas, mas com Filosofia do Direito, os resultados foram promissores. Por fim, advertimos novamente que este é um relatório provisório e não pretendemos esgotar quaisquer das temáticas abordadas no presente trabalho, mas esperamos ter apresentado alguma contribuição para o necessário debate em torno da presença e posicionamento das disciplinas propedêuticas nos currículos dos cursos jurídicos. REFERÊNCIAS BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BOURDIEU, Pierre. Cuestiones de sociología. Madrid: Akal, 2011. ______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

______. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2007. BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. An Invitation to Reflexive Sociology. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2003. FERREIRA, Pinto. História da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco, 1994. LÉVY-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008. LÜDKE, Hermengarda; ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1988. OLIVEIRA, Luciano. Sua Excelência o Comissário e outros ensaios sobre sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Editora Letra Legal, 2004. ROCHA, Gilmar. A etnografia como categoria de pensamento na antropologia moderna. Cadernos de campo. São Paulo. v. 15, n. 14-15, p. 99-114, 2006. Disponível em [http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50100] acesso em 18/08/2014. UFPE. UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO. Componentes Curriculares. s/d. Disponível em [http://www.ufpe.br/proacad/images/cursos_ufpe/direito_perfil_0805.pdf] acesso em 12/08/2014.

AGRADECIMENTOS Agradecemos e dedicamos o presente trabalho a todos os discentes da disciplina Filosofia do Direito, no semestre 2014.1.

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