FIM DE CASO: SRA. LICENCIATURA E SR. BACHARELADO DESEJAM SE SEPARAR

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FIM DE CASO: SRA. LICENCIATURA E SR. BACHARELADO DESEJAM SE SEPARAR

Itamar Freitas [email protected]

– E aí Itamar, o que você acha da ideia? – Que ideia professora? – De se criar uma instituição para formar professores e outra para habilitar os jovens à pesquisa histórica de ponta! – Sei não. Isso está me parecendo um plano para disseminar dois tipos de injustiça. Os estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste ficarão com os “colejões” e o Sul e Sudeste permanecerão com as instituições de PósGraduação. “Como as licenciaturas são pouco dispendiosas, o dinheiro correrá ainda mais para o mar do Rio de Janeiro. O centro do Brasil formará os bacharéis e os rincões ficarão com a produção de professores – e professores ainda mais distantes da pós-graduação. (Essa última parte eu somente pensei). – Mas veja se eu não tenho razão (insistiu a professora): tem gente que é mais inclinada à escrita e ao trabalho com as fontes primárias. Tem gente que adora dar aulas e fica protelando o fechamento de um artigo acadêmico. Você não acha que a criação dos Institutos de Educação e a de Centros de Excelência em pesquisa respeitaria as singularidades desses dois públicos? – Olha só: em 1993, eu experimentei um curso de licenciatura que incorporou as matérias do bacharelado e não me arrependi. Tenho colegas que até hoje pensam em entrar na justiça para receber também o título de bacharel e eu nem se porquê... Esse diálogo me veio à lembrança no momento em que ouvia o professor Estevão Martins falar sobre a sua ideia, hoje – segundo o próprio – anacrônica, de manter dois cursos de história no mesmo Departamento com perfis diferenciado e de maneira sequencial: o bacharelado e a licenciatura.

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A posição ponderada do professor, de não “lutar contra os fatos”, de não ir de encontro à posição de 90% dos seus colegas, pelo país a fora, mexeu novamente com minhas convicções que já não andavam tão firmes como no tempo em que se passou o diálogo acima. A conversa ocorreu em 1998, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eu era, talvez, o segundo egresso da Universidade Federal de Sergipe a conseguir vaga no Mestrado em História do PPGHIS-UFRJ. Estava ali, conversando com uma renomada professora, comparando experiências bem distantes. A dela eu não conhecia. Mas a minha “dizia” insistentemente: lute contra todo o tipo de “segregação” resultante, por exemplo, das sucessivas derrotas de Lula à presidência da República e de um “golpe” sofrido pelos “trabalhadores da educação”, com o substitutivo de Darcy Ribeiro para a Lei de Diretrizes Nacionais. No mês passado, no Departamento de História da Universidade de Brasília, enquanto prestava atenção à fala do Prof. Estevão, fiquei intrigado com a minha “falta de indignação”. Eu concordava com ele! Mas concordava de um jeito que até senti vontade de cobrar-lhe mais firmeza no tal posicionamento fora do tempo. Hoje entendo melhor a razão da minha concordância. O fato é que o estoque de informações que acumulei, visitando e escrevendo, nos centros de excelência e nos rincões, sobre os planos e a generalizada iniciativa de formar o “professorpesquisador” – por mais rica e, por isso mesmo, confusa que seja a expressão – me orientaram a não rebater as afirmações do professor Estevão, como fiz, surdamente, no encontro com a professora, há 17 anos. No Brasil, a licenciatura – o sentido etimológico é claríssimo e a demanda social mais ainda (a chegada dos pobres ao secundário, a partir dos anos 1960, e à Universidade, a partir dos anos 1990) – é um curso de graduação que forma professores de crianças e adolescentes. O bacharelado, no mínimo, por exclusão, prepara profissionais que vão trabalhar com adultos (supostamente) providos de referências básicas sobre o estar no tempo para orientarem as suas vidas. As especificidades são translúcidas. Mas o que as deixava obscuras para mim e para muitos dos nascidos nas décadas de 50 e 60 do século passado?

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Aqui darei duas razões. No início dos anos 90, quando fortaleceu-se a luta pela unificação dos currículos dos dois cursos, muitos de nós consumia, dominantemente – mediante certo Max ou alguns dos seus leitores, inclusive Bourdieu (o jovem) – as teses que concebiam a escola com aparelho reprodutor de ideologia (no sentido de falsa consciência). Como palavra de ordem, lutamos para que o professor não continuasse a ser (o que infelizmente e, em não tão poucos casos, por motivos vários, continua a ser) um repassador do conhecimento histórico produzido em outras instâncias. E assim fomos modificando os currículos das licenciaturas, incorporando as disciplinas “teoria da história”, “história da historiografia”, “métodos e técnicas de pesquisa”, por exemplo, prescrevendo monografias ao final dos cursos. Pensávamos que incorporações desse tipo transformariam o “repassador” em “produtor” de conhecimento (histórico-acadêmico). O outro motivo que barrava as “ideias claras e distintas” era o desejo de frequentar um curso de mestrado (doutorado estava longe do nosso horizonte de expectativas), desejo esse partilhado por vários alunos de graduação. A licenciatura com monografia ao final – ingenuamente, pensávamos – equipararia os licenciados, em instrumentos e prestígio, ao imaginado historiador dos arquivos e produtor de livros-tese. Com a maior circulação das ideias de Michel De Certeau e Roger Chartier (para citar os mais lidos), já em meados dos anos 90, passamos a olhar a escola como produtora de saberes tão importantes quanto os aprendidos em história da historiografia, teoria da história e métodos da pesquisa histórica. Até um velho título foi ressignificado, anos depois como campo de pesquisa: a “didática da história”. O nosso desejo de “ser historiador”, por outro lado, também foi, em grande parte saciado com a proliferação de mestrados e, de forma menos intensa, de doutorados por todo o país. O Centro-Sul continua importando os melhores alunos, mas grande parte já permanece nos rincões. A criação de redes sociais, a postagem de conferências no Youtube, barateamento das passagens de avião, a viabilização de vendas de impressos pela “Estante Virtual” e, principalmente, de e-books pela Amazon, sem falar criação dos mestrados e doutorados interinstitucionais, socializaram a informação, transformando muitas práticas do ambiente acadêmico. Esses acontecimentos estimularam a demanda por

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pessoal especializado para alimentar as futuras carreiras universitárias dos lugares distantes do centro-sul. A instauração de um novo contexto explica, repito, não só a minha “falta de indignação” como também o estranhamento em relação aos discursos dos colegas que insistem na defesa fragilmente argumentada da categoria, pouco clara e bastante atemporal, de “professor-pesquisador”. Novo contexto também coloca novas questões que podem pautar o nosso cotidiano: se a escola não é mais exclusivo aparelho reprodutor de “ideologias perniciosas à classe trabalhadora”, se o noviço formado a partir do inovador currículo dos anos 90 vive acusando a universidade de não prepará-lo para a sala de aula, se as condições de trabalho do professor da escola básica nunca possibilitaram que ele agisse com os adolescentes do modo como faziam historiadores alemães em seus memoráveis “seminários” no ensino superior da segunda metade do século XIX, se os mestrados acadêmicos estão presentes em quase todos os estados do país, necessitando de talentos para alimentarem a própria pós-graduação em história (sem contar as vagas nos bastidores de TV, na educação patrimonial, museus etc., como vive repetindo a Margaria Oliveira - UFRN), por que insistir na manutenção de um curso de formação que não habilita o aluno para nenhuma das duas carreiras aqui citadas? Concluindo (com mais questões): por que manter um aluno de licenciatura afastado das salas de aula do ensino fundamental e médio por mais de dois anos durante o curso de licenciatura? Por que manter um aluno de bacharelado preso às salas de aula da universidade que tratam de todas as histórias do mundo (Brasil, América, Antiga, Média, Moderna, Contemporânea, da África, Ibérica e por aí vai)? Por que não integrar, efetivamente, o projeto pedagógico dos cursos de bacharelado às áreas de concentração dos programas acadêmicos de pósgraduação em história existentes em cada instituição? Porque não integrar os projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura às áreas de concentração dos mestrados profissionais em ensino de história (que devem ser estendidos a todos os estados)? Enfim, porque não desfazer um matrimônio que deixa infelizes duas partes litigantes? Porque não estabelecer uma nova relação, partilhando pensamentos, sentimentos e ações em “casas” separadas? O que vocês pensam dessas minhas heresias? Enquanto refletem, experimentem o "Fim de caso" de Dolores Duran.

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http://www.youtube.com/watch?v=rOOvsZRfdoU

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