Fim do mundo na Bahia – Caderno Prosa e Verso - Jornal O Globo – 11/12/2010

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Fim do mundo na Bahia – Caderno Prosa e Verso - Jornal O Globo – 11/12/2010

Pesquisa ilumina movimento messiânico extinto a bala 40 anos após Canudos

Acusado de insubordinação, indisciplina e silenciado pelo Santo Ofício,
Padre Cícero (1844-1934) vem provocando discussão em Roma. Nos últimos dois
anos intensificaram-se os esforços para sua reabilitação frente à Santa
Igreja. O processo, que está sendo revisto pela Congregação para a Doutrina
da Fé (substituta do tribunal inquisitorial) a mando do cardeal Joseph
Ratzinger, hoje papa Bento XVI, reflete a urgente necessidade de
reintegração de um polêmico personagem que, teoricamente, poderia frear a
atração de fiéis católicos para outras doutrinas religiosas, em especial as
neopentecostais. Este ano, pela primeira vez na história, uma imagem de
"Padim Ciço" foi colocada junto à outra de Nossa Senhora das Dores na
entrada da Sé Catedral da cidade do Crato, Ceará, algo impensável há alguns
anos.

Um sinal dos tempos? Há, na verdade, certa morosidade e letargia por parte
do Vaticano, tendo em vista que reconhecer a importância de Padre Cícero
para o fortalecimento da fé católica, implica também em resgatar
indivíduos, lendas e mitos que gravitaram ao seu redor durante anos e
contribuíram para o sucesso e a popularidade de sua trajetória, ainda que
em diversos momentos ele mesmo assim não admitisse. Rememorados e
reverenciados por todo o interior do país, como atestou Maria Isaura
Pereira de Queiroz, autora do clássico "O messianismo no Brasil e no
mundo", estão beatos como José Lourenço Gomes da Silva (1872-1946). Para
quem não o conhece, foi o discípulo mais ilustre de Padre Cícero e líder da
comunidade do Caldeirão dos Jesuítas, na Serra do Araripe, Ceará, entre
1926 e 1936. Zé Lourenço, um "preto" glutão e fanático, como alardeavam as
autoridades, também teve um pupilo seu, o penitente Severino Tavares que em
suas andanças pelo semi-árido esteve por volta de 1934 na vila de Pau de
Colher, município de Casa Nova, Bahia. Ali, conheceu fervorosos devotos de
um catolicismo popular típico do Alto Sertão, agregado a reminiscências
indígenas e afrobrasileiras, como identificado por Gilberto Freyre, Roger
Bastide, Cristina Pompa e outros estudiosos.

Religiosos partiram pela caatinga atrás de fiéis

Usando uma batina de algodão escura, chapéu grande de feltro, alpercatas de
couro, rosários e bentinhos a tiracolo e a barba por fazer, Severino se
dizia a "Terceira pessoa da Santíssima Trindade". As outras duas, suponha-
se, seriam o próprio Pe. Cícero, de quem se dizia "enviado" e Zé Lourenço,
de quem era "secretário". Relatos dão conta de que Severino tinha a proeza
de "ler e reler a bíblia de cabeça para baixo", mesmo sendo analfabeto.
Juntava uma multidão nas pregações que fazia e previa uma chuva de sangue
que inundaria o sertão.

A espera pelo Dia do Juízo Final, evento que se daria pelas mãos do Messias
— ser extraordinário capaz de por fim à ordem atual das coisas e instaurar
uma nova feita de justiça e felicidade tem origens na doutrina judaica do
Messiah (do hebraico mãshiah) e teria chegado ao Brasil por diversos
caminhos. Talvez o mais conhecido tenha sido a obra do sapateiro-profeta
Gonçalo Annes Bandarra, natural de Trancoso, Portugal,
denunciado à Santa Inquisição no século XVI. No fim do século XIX, outro
episódio este sim, genuinamente brasileiro viria a fortalecer as crenças na
volta de um libertador que anunciaria o eschaton final. Era o Milagre de
Juazeiro, quando Maria de Araújo, uma jovem beata de 28 anos, ao receber a
imaculada hóstia das mãos de Padre Cícero, teria vertido sangue pela boca
(o evento seria o principal motivo para a suspensão das ordens de Cícero).
As proposições teológicas que se alentaram eram gravíssimas: se o sangue
era de Cristo, o segundo advento se confirmava e era chegado o fim dos
tempos, onde só os bem-aventurados sobreviveriam. Além disso, a circulação
de textos tradicionais pelos sertões como a "Missão Abreviada", do padre
Manoel José Gonçalves do Couto, livro de orações e prédicas, também
utilizado por Antonio Conselheiro no arraial de Canudos, assim como a livre
interpretação das Escrituras, especialmente das Revelações de São João (o
Livro do Apocalipse) alimentaram as expectativas escatológicas.

Impressionado com o rebuliço criado em torno da pregação de Severino
Tavares em Pau de Colher, um roceiro e curandeiro local, Senhorinho Costa,
juntou vizinhos e familiares para aguardar o fim do mundo, o momento do
"acerto de contas". Com o fim próximo (a data raramente era revelada pelas
profecias), Senhorinho incorporou São José, o patrono dos agonizantes.
Determinado a salvar os espíritos mais atormentados e aflitos, era o último
refugium peccatorum, refúgio dos pecadores. Sua mulher, Ana Mariinha, tal
como a Virgem Maria, esposa de José na narrativa bíblica, era tida como
"minha madrinha Santa Cruz", ou seja, oferecia a proteção do crucificado,
já que acompanhara o martírio do filho Jesus aos pés da cruz. Reunidos, em
uma comunidade de fé, em uma Família Sagrada, partiram pela caatinga atrás
de fiéis. "Você é nosso ou é de Deus"? Perguntavam a quem encontrassem em
meio às veredas sertanejas. Caso a resposta não fosse apropriada, isto é,
não fossem "deles", atacavam brutalmente com seus cacetes longos varas-paus
de madeira marcados com uma cruz dupla, instrumento de punição divina.
Promoveram então uma onda de violência e agressividade em perseguição ao
Anticristo, figura onipresente na mentalidade coletiva do catingueiro sob
influência de uma tradição que cruzou feitiçaria e magia sexual de origem
africana e indígena com práticas de bruxaria portuguesas. "Frente à
multidão dos demônios, o exército dos santos é sempre vitorioso", diria
Jérôme Baschet.

Volante policial matou 400 pessoas na comunidade

A epopeia dos "caceteiros" terminou em banho de sangue. Uma volante
policial vinda de Pernambuco sob comando do capitão Optato Gueiros militar
que combateu Lampião invadiu a comunidade e matou algo em torno de 400
pessoas, de um total de aproximadamente mil integrantes. O massacre ficou
marcado no imaginário popular e, assim como tantos outros casos relatados
ao longo dos séculos XIX e XX foi mal interpretado, sobretudo sob a ótica
de ideias controversas importadas da Europa.

O darwinismo social, por exemplo, inventou "místicos" e "dementes", pessoas
entregues a surtos psicopatológicos, bem à moda de uma "escola" Nina
Rodrigues (1862-1906), médico baiano que procurou na medicina as razões
para a decadência do povo brasileiro. Décadas mais tarde, lá pelos idos dos
anos 60, a mesma turba incontrolável de fiéis ludibriada por falsos
taumaturgos, deu sinais claros de inspiração socialista tal qual insinuaram
marxistas famosos como Eric Hobsbawm, autor de "Rebeldes primitivos", obra
de referência.

Os programas de pós-graduação no Brasil reverteram esse quadro ao
incentivar, pelo menos desde meados dos anos 70, pesquisas preocupadas em
ouvir quem de fato sustentou esses movimentos. Com um olhar criterioso,
quase etnológico, historiadores, antropólogos e sociólogos se debruçaram
sobre as angústias, desejos e esperanças desses anônimos, ainda que isto se
desse por documentos datados, como devassas, periódicos de época, ou
qualquer outro registro que guardasse impressões sobre quem viu e viveu
experiências intensas como a descrita acima. Fica a torcida para que os
historiadores e teólogos do Vaticano, também sejam generosos ao revirar os
papéis dos arquivos do "Patriarca do Cariri" e abram caminho para sua
canonização e, consequentemente, valorização e reconhecimento de uma
religiosidade popular que modelou o rico, criativo e impetuoso imaginário
do sertanejo.

FILIPE PINTO MONTEIRO é mestrando em História Social da UFRJ, onde
desenvolve a dissertação "Santos, peregrinos e demonófobos", sob orientação
de Jacqueline Hermann. A pesquisa contou com apoio do CNPq
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