Financiamento cultural sem comprometer a autonomia

June 6, 2017 | Autor: Lucas Pretti | Categoria: Social Networking, Digital Culture, Art Market, Crowdfunding, Produção Cultural
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ALTERNATIVAS

Financiamento cultural sem comprometer a autonomia Plataformas de crowdfunding, começaram a se espalhar pelo Brasil desde o início deste ano. A ideia nada mais é do que a reinvenção contemporânea da famosa vaquinha, só que desta vez baseada na internet e destinada a bancar projetos culturais indepentes por Lucas Pretti

  Dinheiro é sempre o problema dos produtores culturais, seres estranhos estes – afinal, quem mais sente prazer ao tentar o equilíbrio (talvez) impossível entre manifestação artística genuína e viabilidade comercial? Até pouco tempo, havia no Brasil três saídas para o problema “quem banca a minha arte?”, todas com algum nível de contradição: ficar atento aos editais públicos (migalhas do orçamento distribuídas a alguns poucos felizardos); convencer empresas a reverter  parte  de  seus  impostos  via  leis  de  incentivo  fiscal  (e  submeter  o  projeto  aos  interesses  da  marca);  ou “empreender” (o que, em muitos casos, significa “vender cerveja no bar do teatro para produzir a peça”). Tudo muito duro e absolutamente ligado à sorte de ser escolhido por comissões duvidosas, ter amigos ou parentes influentes nos departamentos de marketing ou atrair alguns bacanas para comprar a cerveja salvadora. Mas eis que veio a internet, tempos estranhos estes – afinal, quando mais houve tanta semelhança entre questionar e  pertencer  ao  sistema?  Ter  uma  ideia  relevante,  conseguir  espalhá­la  pelos  nichos  de  interessados  no  assunto  e falar, falar, falar, foi a possibilidade que a sociedade em rede proporcionou aos produtores culturais. A febre recente no Brasil dos sites de crowdfunding mostra que o futuro e a garantia das produções brasileiras independentes (talvez) estejam exatamente na comunicação entre pessoas em rede. A  tradução  literal  de  “crowdfunding”  é  “financiamento  pela  multidão”.  Lógica  simples,  nada  mais  que  a  reinvenção contemporânea da vaquinha. Se cada um de nós tem R$ 50, juntos podemos ter milhares de reais. Desde o início do ano, mais de vinte sites brasileiros se propõem a intermediar o contato, a vaquinha, entre criadores de projetos e a multidão financiadora. Com  exemplos  fica  mais  fácil  entender.  A  jornalista  paulistana  Natália  Garcia,  de  27  anos,  concebeu  o  projeto Cidades  Para  Pessoas,  no  início  de  2011,  depois  de  pesquisar  e  militar  durante  quatro  anos  pela  causa  da mobilidade urbana e o uso massivo de bicicletas como meio de transporte em metrópoles. Ela vislumbrou a apuração profunda  e  a  produção  de  dossiês­reportagem  com  as  experiências  de  doze  cidades  do  mundo  na  busca  por  um convívio pacífico da população com os carros, sem privilegiar as máquinas – e quanto isso poderia servir de exemplo, inspiração  e  projeto  para  o  “desplanejamento”  de  São  Paulo.  Contatou  então  o  urbanista  dinamarquês  Jan  Gehl,

responsável  pelo  redesenho  de  Copenhague  e  diversas  outras  metrópoles  pelo  mundo,  e  fechou,  a  partir  dos critérios do especialista, a lista dos destinos, da qual constam, por exemplo, Roterdã e Cidade do México. O projeto duraria doze meses, um mês de vida e pesquisa em cada cidade, e consumiria R$ 25 mil – gastos reduzidíssimos, prevendo hospedagem solidária e máxima economia com voos e trens locais. Natália  poderia  seguir  um  dos  três  caminhos  tradicionais  da  produção  cultural.  Detalharia  nome,  objetivo  geral, objetivos  específicos,  metas,  justificativa,  cronograma,  acessibilidade,  democratização  do  acesso,  contrapartidas, orçamento etc. etc. etc. e submeteria tudo a meses de espera e mínimas chances de aprovação em editais públicos; faria a peregrinação entre empresas para convencer gente não tão interessada em repensar o desenvolvimento das cidades  brasileiras  e  em  associar  a  marca  a  algo  que  não  geraria  lucro  nem  teria  visibilidade;  ou  tentaria  o  tal “empreendimento individual”, quase inviável neste caso: teria de vender cerveja demais... Ela preferiu apostar em dois estudantes de administração de empresas, Diego Borin Reeberg e Luís Otávio Ribeiro, que preparavam a estreia da plataforma Catarse (catarse.me), hoje a mais antiga (tem quatro meses) e mais bem­ sucedida iniciativa brasileira de crowdfunding. A dupla reproduziu no país o modelo inaugurado pelo site Kickstarter (kickstarter.com), que em abril completou dois anos de atividades nos Estados Unidos, e a realização de mais de 2 mil  projetos  com  US$  40  milhões  arrecadados.  Natália,  então,  produziu  um  vídeo  apresentando  seu  Cidades  Para Pessoas,  e  espalhou  pela  rede  a  tal  ideia  de  viajar  doze  cidades  e  trazer  soluções  para  São  Paulo.  Para  isso, precisaria  da  ajuda  voluntária  de  internautas,  que  poderiam  doar  qualquer  quantia.  O  projeto  só  daria  certo  caso conseguisse,  em  três  meses  de  campanha,  juntar  os  R$  25  mil.  Caso  contrário,  os  financiadores  teriam  o  dinheiro devolvido. Se  tentarmos  adivinhar  pelas  postagens  no  Facebook,  neste  momento  a  jornalista  Natália  Garcia  deve  estar pedalando por alguma ciclovia de Copenhague, isso se já não partiu para Oslo, o segundo destino da empreitada. Em  noventa  dias,  ela  levantou  os  R$  25  mil  e  realiza  agora,  com  independência  absoluta,  um  dos  projetos  de  sua vida  –  e  que  se  tornou  o  primeiro  grande  case  brasileiro  de  crowdfunding.  Um  trabalho  jornalístico  de  interesse público indiscutível, financiado pelas pessoas, que só puderam se conhecer e colaborar porque estavam conectadas em rede.   Não é só bom coração Dizendo assim, parece que todos os problemas estão resolvidos. Basta algum trabalho de divulgação na internet e, pronto, há dinheiro para qualquer coisa. Pura ilusão, ainda bem. Há duas características comuns entre os projetos que conseguiram se viabilizar via crowdfunding no Brasil, um país de cultura colaborativa por natureza, sem dúvida, mas  também  bastante  desconfiado  quando  o  assunto  é  dar  dinheiro  para  pessoas  desconhecidas.  A  primeira  é mesmo o interesse público, a quantidade de pessoas que se beneficiaria com a realização do projeto e a importância moral de financiá­lo. O Cidades Para Pessoas é um exemplo, assim como o projeto Morar, do Coletivo Garapa, que pretende  realizar,  com  R$  16  mil,  uma  publicação  e  um  blog  com  registros  fotográficos  dos  moradores  e  dos escombros dos edifícios São Vito e Mercúrio, no centro de São Paulo, desocupados e em processo de demolição, num projeto discutível da prefeitura paulistana. A segunda característica é a dificuldade que o dono da ideia teria em tirá­la do papel pelas vias tradicionais. Quanto mais  improvável,  mais  o  senso  de  caridade  entra  em  jogo.  Costumam  comover  apoiadores,  pequenos empreendimentos  pessoais  como  editar  um  livro,  reformar  um  teatro,  gravar  e  prensar  CDs  de  música,  fazer  um filme.  Quanto  mais  independência,  quanto  menos  possibilidades,  mais  chance.  Quando,  por  exemplo,  a  artista plástica Maíra das Neves poderia planejar que muitas pessoas a ajudariam, com R$ 5 mil, a mobiliar seu ateliê, no Rio de Janeiro, com apenas 1 m2, mas um pé­direito muito alto? Todas  as  plataformas  de  crowdfunding  funcionam  com  a  lógica  da  contrapartida.  Cada  quantia  doada  vale  uma recompensa  ao  doador,  que  passa  também  a  interagir  e  integrar,  de  certa  forma,  o  projeto.  O  Coletivo  Garapa promete  imprimir  fotos  e  dar  várias  cópias  do  jornal  aos  patrocinadores.  Já  Natália  Garcia  vai  produzir  boletins semanais sobre a aventura nas doze cidades, e dar o livro completo ao final de um ano. E o Movimento Elefantes, coletivo de big bands paulistas que pediu R$ 1.980 para prensar CDs, vai enviar para a casa dos mecenas um álbum autografado  pelas  dez  bandas.  Isso  torna  a  relação  limpa,  transparente.  Trata­se  sempre  de  empreendimentos privados, com interesse específico. Se você resolver apoiar, recebe algo em troca, como numa transação comercial tradicional.  Senso  de  justiça  muito  bem­vindo  num  tempo  em  que  tanto  dinheiro  público  é  usado  para  produções privadas, a maior aberração da nossa Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) que, em geral, acaba favorecendo o marketing individual em detrimento da necessidade coletiva. Não é apenas assim em países como os Estados Unidos, em que a prática do crowdfunding não é mais novidade. Claro que o interesse público e a dificuldade de viabilizar entram na conta e na tomada de decisão sobre apoiar ou

não  um  projeto.  A  diferença  é  que,  por  lá,  já  se  desenvolveu  um  sentimento  que  no  Brasil  ainda  começa  a  tomar forma, pelo menos enquanto a tela do computador é intermediária: ajudar por ajudar, de graça, sem nada em troca, apenas pelo prazer de ver alguém feliz realizando seu projeto. Ao escolher a quantia a ser doada, é possível optar por  não  respeitar  a  lógica  da  contrapartida  e  simplesmente  destinar  o  dinheiro.  Toda  a  lógica  da  cultura  digital,  da vida em rede, em comunidades, é baseada nesse tipo de confiança e ajuda mútua. Foi com esse intuito que o Kickstarter nasceu, em abril de 2009, em Nova York, pela mão de três jovens americanos –  esse  tipo  de  “empreendedor  hype”  que  nasce  às  pencas  no  mundo  pós­Google,  pregando  a  flexibilidade  no trabalho, a criatividade, a alegria e muita grana no final do mês, sem atropelar ninguém (ou sem ninguém perceber o atropelamento).  Eles  inauguraram  o  modelo  de  negócio.  Uma  parceria  com  a  Amazon  Payments  garante  a segurança das transações, que rende 5% do total para os donos (e 95% para os autores de projetos). As plataformas de crowdfunding brasileiras também não proliferam à toa. É um nicho de negócio muito lucrativo, sob a  lógica  de  intermediação  há  muito  estabelecida  pela  internet,  em  que  o  intermediário  não  precisa  acumular  tanto dinheiro  nem  explorar  seus  clientes  (como  fazem  as  gravadoras,  editoras,  agências  e  outros  mal­intencionados  no mercado tradicional). Ganham todos. O dono da ideia tem o projeto realizado. Os patrocinadores recebem algo útil em  troca,  e  dormem  tranquilos  por  terem  ajudado  alguém  de  boa­fé.  E  os  donos  do  site  recebem  os  5%  de  taxa administrativa  em  agradecimento  à  hospitalidade  –  afinal,  foi  na  “casa”  deles  que  as  duas  pontas  da  produção (projeto  e  financiadores)  se  conheceram.  A  Estante  Virtual  (estantevirtual.com.br),  site  que  possibilita  aos  sebos  a venda  de  livros  por  preços  baixíssimos,  era  até  então  o  melhor  exemplo  brasileiro  desse  negócio  típico  da  cultura digital. Para que enriquecer se eu posso apenas facilitar a vida de muita gente e viver bem? É, sim, um rompimento com a visão de mundo do capitalismo pré­internet.   Homo ludens Em 2010, o escritor e publisher norte­americano Craig Mod já tinha escrito e diagramado o livro Art space Tokyo, um guia  de  arte  na  capital  japonesa;  faltava  imprimir  e  distribuir.  Menos  por  altruísmo  que  pelo  interesse  de  ter  seu projeto realizado, ele fez um estudo detalhado de como se dar bem em sites de crowdfunding, tendo como cobaia ele mesmo. Terminou por entender a lógica do comportamento de internautas quando diante de um projeto. E descobriu a palavra mágica: jogo. Segundo  a  teoria  de  Mod,  publicada  em  bit.ly/craigmod,  a  primeira  regra  é  não  deixar  o  orçamento  do  projeto  alto demais.  Isso  traz  a  sensação  de  que  o  autor  está  buscando  mais  vantagens  pessoais  do  que  realmente  a viabilização de sua ideia. Claro que o custo é relativo e depende muito das proporções do projeto. A recomendação é seguir o bom senso e a razoabilidade. A segunda regra é respeitar o que a revista Wiredjá postulava em março de 2007, com a capa “Get Naked” (“Fique Nu”), cuja reportagem principal discutiu a necessidade de transparência total entre empresas, instituições e pessoas nas relações pela internet. Ou seja, não mentir. Se o orçamento é R$ 10 mil, é recomendável abrir os gastos, mostrar as  planilhas,  mesmo  que  nelas  esteja  o  valor  do  lucro  pessoal.  Quem  navega  pela  cultura  digital  não  vê  problema nenhum nisso. A doação é mais provável quando o doador sabe exatamente onde seu dinheiro vai parar. (E isso vale para todas as esferas da sociedade em rede, política, trabalho, relações pessoais etc., mas é outra discussão). A  terceira  regra  diz  respeito  à  quantia  doada  por  cada  apoiador.  Antes  de  formatar  o  seu,  Craig  Mod  pesquisou detalhes  dos  últimos  trinta  projetos  bem­sucedidos  no  Kickstarter  e  identificou  um  traço  comum.  A  maioria  das doações foi de US$ 50 (23% do total), seguidas por US$ 100 (16%), depois US$ 500 ou US$ 25 (9% cada). Metade dos  orçamentos  dos  projetos  veio  de  pessoas  doando  essas  quantias,  levando  à  conclusão  que  se  pode  esperar muitos  doando  quantias  pequenas  (US$  25  ou  US$  50)  e,  alguns,  quantias  grandes  (US$  100  ou  US$  500). Pouquíssimos escolheram doar valores muito baixos ou muito altos. Adaptar o orçamento a esse comportamento foi um cuidado que o escritor teve. A última percepção de Mod talvez seja o centro de toda a questão. Cada autor de um projeto de crowdfunding pode escolher o período durante o qual as doações podem ser feitas, ou seja, quanto tempo cada campanha vai durar. Ele optou por apenas quatro semanas – exatamente por intuir a lógica do jogo. Nas duas primeiras semanas, o gráfico do dinheiro  que  entrou  foi  muito  ascendente,  atingindo  US$  15  mil  rapidamente.  Na  terceira  semana  o  ritmo praticamente  congelou,  para,  então,  na  última,  voltar  a  crescer  e  atingir  o  total  de  US$  25  mil  que  o  escritor  havia pedido no início. A conclusão de Mod é que a perspectiva do jogo, da gincana, do tempo que vai esgotar, estimula as pessoas  a  doar,  como  se  fosse  uma  tarefa  a  cumprir,  uma  competição  a  vencer.  Tanto  que,  no  texto  em  que descreve a experiência, ele afirma que, se pudesse refazê­la, tentaria captar os US$ 25 mil em três semanas, uma a menos. É mais incendiário, mais urgente. “Em crowdfunding, campanhas curtas são mais eficientes”, diz. Quando  se  fala  em  cultura  contemporânea  baseada  em  redes  digitais  é  preciso  ter  em  mente  que  se  fala  em

revolução. A perspectiva do mundo conectado e da velocidade de comunicação, interação, troca, construção coletiva, fazem  delirar  qualquer  futurólogo  hippie  dos  anos  60,  que  lutava  por  liberdade  e  por  uma  cultura  planetária interconectada. Qualquer aparelho celular, hoje, pode fazer ligações via Skype, utilizando redes Wi­Fi e ignorando as redes de telefonia celular. Na própria essência do aparelho, do produto, está sua destruição. Esse tipo de contradição é a materialização da contracultura sessentista. O  crowdfunding  é  mais  uma  cor  desse  delírio  coletivo  que  a  internet  causa  por  definição,  mesmo  com  tantas empresas  e  governos  querendo  controlar  o  incontrolável  e  lucrar  como  se  fazia  há  vinte  anos.  O  mundo  em  rede serve  para  questionar,  expandir,  testar  os  limites  da  ordem.  Em  entrevista  ao  projeto  Produção  Cultural  no  Brasil (producaocultural.org.br), o produtor Cláudio Prado, coordenador do Laboratório Brasileiro de Cultura Digital, resume o que chama de atitude cultural pós­rancor: “A internet abre horizontes, possibilidades. Você vê coisas acontecendo, se  estimula  e  estimula  outros.  Este  é  o  desbunde.  Eu  vejo  todos  os  dias  gente  com  sonhos.  Não  tinha  gente  com sonhos até há pouco tempo. O sonho era arrumar um bom emprego, um bom salário”. Na produção cultural brasileira, o crowdfunding abriu um quarto caminho, quase absolutamente puro, para levantar dinheiro e materializar ideias improváveis. Abriu a possibilidade do sonho.   Plataformas brasileiras de crowdfunding   Geral www.catarse.me www.benfeitoria.com www.movere.me   Projetos culturais www.multidao.art.br www.incentivador.com.br www.produrama.com.br   Outros www.embolacha.com.br  (música) www.queremos.com.br  (shows) www.wacawaca.com.br  (games) Lucas Pretti

Pós­jornalista, ator, produtor cultural e idealizador do Festival BaixoCentro.

Palavras chave: Alternativa, cultura, crowfunding, economia, projetos

 

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