FIOS, TEIAS E NÓS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: uma análise argumentativa sobre a representação.

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Luisa Mozetic Plastino

FIOS, TEIAS E NÓS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: uma análise argumentativa sobre a representação

Monografia apresentada à Escola de

Formação

da

Sociedade

Brasileira de Direito Público – SBDP,

sob

a

orientação

Professora Clio Radomysler

SÃO PAULO 2016

da

Resumo: A presente monografia se propôs a comparar os argumentos lançados em decisão abstrata do STF (ADI 4424) e as percepções das integrantes da rede de enfrentamento à violência contra a mulher de São Paulo quanto ao tema da representação. Desde 2012, os crimes de lesão corporal e violência doméstica são processados sem a necessidade de representação, ou seja, o início da ação penal prescinde da expressa manifestação de vontade da mulher. A polêmica em torno do caso surge, justamente, do confronto entre os limites de atuação do Estado e as possibilidades de exercício da autonomia das vítimas. Observou-se que os ministros

do

STF,

no

geral,

perceberam

a

incondicionalidade

da

representação como uma forma de garantir a efetiva punição judicial do agressor, e consequentemente, a proteção da mulher pelo Estado. Em contrapartida, as integrantes da rede entrevistadas enfatizaram o aspecto preventivo da Lei Maria da Penha sobre a representação. De tal modo que somente o reconhecimento da resposta punitiva, via a ação pública e incondicionada, foi considerado insuficiente para a garantia plena da proteção da mulher em situação de violência doméstica e familiar. Acórdãos citados: ADC 19 e ADI 4424 Palavras-Chave: Supremo Tribunal Federal; Lei Maria da Penha; violência doméstica; representação; rede de enfrentamento.

1

AGRADECIMENTOS Primeiro, quero agradecer à Clio, minha orientadora, pelo cuidado extremo, pela paciência e, principalmente, por apoiar minhas ideias desde o primeiro café que tomamos juntas para discutir este projeto. Obrigada por me dar tanta força. Também é preciso agradecer à Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público, bem como aos coordenadores do programa, pela oportunidade acadêmica. A todas às entrevistadas e mulheres que responderam meus e-mails, e mensagens de celular: Amelinha Teles, Anna Carolina Cabral, Branca Paperetti, Bruna Angotti, Carmen Hein de Campos, a delegada e a juíza que não puderam se identificar, Gabriela Manssur, Rute Alonso, Tatiana Perrone e Yasmin Pestana. Muito obrigada por disponibilizarem seu tempo e confiarem em mim. As conversas compartilhadas são muito valiosas e, com toda certeza, sem elas este trabalho não teria se concretizado. Aos meus pais, Monica e Orestes, e irmãs, Flávia e Isabela, pelo amor e apoio incondicionais. De verdade, tenho muita sorte em poder contar com esta rede de proteção. Amo vocês com todo o meu coração. Às minhas amigas da vida toda: do Colégio, da Faculdade, da Escola de Formação, do Grupo de Empoderamento Feminino, do Departamento Jurídico, da Clínica de Direitos Humanos, do Futmau, e de tantos outros lugares. Obrigada por estarem sempre perto, e me procurando. Um especial agradecimento à Ana Klink, Ju Duprat, Ju Chan, Gabriel Prado, Mari Mello, e Tutu, que acompanharam de perto essa loucura chamada monografia. Com toda a certeza, vocês preenchem um espaço essencial de conforto no meu dia-dia. Amo vocês. Por fim, é preciso dizer que este trabalho não faria sentido sem as meninas do Grupo de Empoderamento Feminino, o GEF. Obrigada pela parceria e pela possibilidade de construir projetos coletivos e feministas.

2

“Aqui, nós, como feministas, nos encontramos perversamente conjugadas ao discurso de vários cientistas praticantes os quais uma vez tudo dito e feito, acreditam principalmente que estão descrevendo e descobrindo coisas através de sua construção e de sua argumentação.” (Donna Haraway)

3

SUMÁRIO

1. Introdução ................................................................................ 10 1.1 Relevância Temática ............................................................................................................ 10 1.2 Conceito de representação ................................................................................................ 13 1.3 Hipótese ................................................................................................................................... 18 2. Metodologia ............................................................................. 19 2.1 Surgimento do Tema ............................................................................................................ 19 2.2 Seleção documental: a ADI 4424 ...................................................................................... 21 2.3 Classificação de argumentos ............................................................................................. 22 2.4 Entrevista ................................................................................................................................ 23 2.5 Roteiro e seus objetivos ...................................................................................................... 24 2.6 Mapeamento e seleção de entrevistadas: o conceito de rede ................................ 25 2.7 Limitações ............................................................................................................................... 27 3 Análise comparativa: leis em disputa ....................................... 28 3.1 Interpretações em debate: Lei Maria da Penha versus Lei dos Juizados Especiais (9.099/95) ................................................................................................................... 28 3.2 A ineficácia da Lei dos Juizados Especiais Criminais ................................................ 32 3.3 As intenções do legislador: ................................................................................................ 36 3.4 Reação das entrevistadas sobre a ADI 4424 e o papel do STF ............................... 39 3.5 Vantagens e desvantagens da representação: Ministros versus Rede ................ 44 4 O papel do Estado: proteção ou ingerência? ............................. 49 4.1 O artigo 226, parágrafo oitavo: em briga de marido e mulher se mete a colher ............................................................................................................................................................ 49 4.2 O desequilíbrio entre sistema jurídico e sistema assistencial: o pulo do gato da Lei Maria da Penha ...................................................................................................................... 52 4.3 O papel da Delegacia: “ninguém gosta de polícia” ..................................................... 55 4.4 Medidas Protetivas de urgência ....................................................................................... 58 5 Autonomia da vítima: a mulher enquanto sujeito de direitos .... 62 5.1 Vulneráveis, sofridas, maltratadas e frágeis: como o STF descreve as mulheres? ....................................................................................................................................... 62

4

5.2 E quando os processos ocorrem contra a vontade da mulher, o que acontece? ............................................................................................................................................................ 64 5.3 Autonomia como fortalecimento e os caminhos na Rede ....................................... 67 6 Conclusões ............................................................................... 70 7 Referências bibliográficas ........................................................ 72 8 Anexos ..................................................................................... 77 8.1 Anexo I: Roteiro ..................................................................................................................... 77 8.2 Anexo II: Transcrição Entrevistas ................................................................................... 79

5

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

SIGLA/ABREVIATURA

DESCRIÇÃO

ADC

Ação Declaratória de Constitucionalidade

ADI/ADIN

Ação Declaratória de Inconstitucionalidade

Art.

Artigo

B.O

Boletim de Ocorrência

CDCM

Centro de Defesa e de Convivência da Mulher

CEDAW

The Convention on the Elimination of

All

Forms

of

Discrimination

Against Women CF

Constituição Federal

CLADEM

Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher

CIDH

Corte Interamericana de Direitos Humanos

CP

Código Penal

CRM

Centro de Referência da Mulher

DDM

Delegacia da Mulher

GEVID

Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica

6

JECRIM

Juizado Especial Criminal

IBCCRIM

Instituto Brasileiro de Ciências Criminológicas

IPÊ

Instituto para Promoção da Equidade

JVD

Juizado de Violência Doméstica

NUDEM

Núcleo Especializado de Promoção e de Defesa dos Direitos da Mulher

ONG

Organização Não Governamental

ONU

Organização das Nações Unidas

PGR

Procuradoria Geral da República

PLPs

Promotoras Legais Populares

PUC

Pontifícia Universidade Católica

Rede

Rede de Enfrentamento à violência contra à Mulher

SBDP

Sociedade Brasileira de Direito Público

STF

Supremo Tribunal Federal

STJ

Supremo Tribunal de Justiça

Themis

Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero

USP

Universidade de São Paulo

7

LISTA DE ENTREVISTADAS

Anna

Carolina

Cabral

Lopes

de

Freitas:

Psicóloga

do

Núcleo

Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Branca

Paperetti:

Psicóloga e ex-coordenadora da Casa Eliane de

Grammont, o primeiro Centro de Referência para Mulheres da cidade de São Paulo e do país.

Carmen Hein de Campos: Doutora em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade

Católica

do

Rio

Grande

do

Sul.

Advogada

Feminista,

professora de direito e pesquisadora, com interesses nos temas: juizados especiais, violência de gênero, teoria legal feminista, e criminologia. Foi Consultora

da

Secretaria

de

Políticas

para

as

Mulheres

para

a

implementação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra à Mulher no estado do Rio Grande do Sul. Foi Consultora da ONU Mulheres e da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres da Presidência da República para a implementação da Lei Maria da Penha. Foi Coordenadora do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM Brasil (2010/2012). Integrou a entidade Themis, na qual atuou como amicus curiae na ADC 19 (2012). Assessorou a CPMI da Violência Contra a Mulher do Congresso Nacional (2013).

Delegada: Responsável por uma das nove Delegacias da Mulher da cidade de São Paulo. Optou por não ser identificada.

Gabriela Manssur: Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ingressou no Ministério Público do Estado de São

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Paulo em 2003. Foi coordenadora do GEVID – Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica – do Ministério Público de São Paulo.

Juíza: Juíza de Direito em um das Varas Criminais do Fórum da Barra Funda, onde lida diariamente com demandas relacionadas à violência de gênero. Além disso, já atuou no Juizado de Violência Doméstica da Rede Oeste. Optou por não ser identificada.

Maria Amélia Teles: Bacharel em Direito, militante e ativista feminista. Participou da resistência à ditadura militar de 1964. Atualmente compõe as Comissões da Verdade Estadual e Municipal da Verdade, com forte atuação nas questões de memória, verdade, justiça, e violência de gênero perpetrada pelo Estado. É fundadora da União de Mulheres, organização independente, onde criou em 1992 o Programa de Promotoras Legais Populares.

Rute Alonso: Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É advogada e atua no Centro de Defesa da Mulher da zona leste (Casa Mulher Ação). Atualmente é presidente da União de Mulheres no Município de São Paulo. Foi integrante do Conselho Municipal à Diversidade Sexual, e em 2015 tornou-se uma das Conselheiras da Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo.

Yasmin Oliveira Mercadante: Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo em 2011. É Defensora Pública do Estado de São Paulo. Atualmente é

Coordenadora Auxiliar do Núcleo de Promoção e Defesa do

Direitos da Mulher (NUDEM), que atua pela efetivação da igualdade de gênero, com

especial enfoque em

políticas públicas que combatam

discriminações sofridas por mulheres.

9

1. Introdução Eu acho que esse é um tema, um dos temas mais polêmicos dentro feminismo, principalmente pra quem trabalha com criminologia. Especificamente em relação a representação, eu acho que em alguns casos ela seria necessária, ela é necessária, em outros nem tanto1. (grifos meus)

1.1 Relevância Temática O tema da representação pode ser considerado como um dos assuntos polêmicos das discussões normativas sobre a Lei Maria da Penha, ou ainda – como pretendo sugerir no título desta investigação – pode ser comparado a um nó a ser desatado. E por quê? Em linhas gerais, o ato de representar é, no direito penal, o ponto de partida dos processos criminais. Todavia, desde 2012, a representação nos casos de lesão corporal leve e violência doméstica é – por decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4424 – tratada como incondicionada. Isto significa, concretamente, que tanto o início, quanto a continuidade do processo pouco dependem dos impulsos e das manifestações de vontade da mulher vítima da lesão. O Estado é o único responsável por cuidar dessas ações criminais, e motivá-las contra o agressor denunciado. Se por um lado, tal decisão pode ser justificada pelas alarmantes estatísticas que demonstram a dificuldade das mulheres em iniciar um processo criminal contra seus companheiros2. Por outro lado, a escolha pela incondicionalidade, com aponta a pesquisadora Carmen Hein no trecho supracitado, ainda é contestada dentro do movimento de mulheres, principalmente, por restringir a participação da mulher no processo judicial. A presente pesquisa se propõe, nesse sentido, a analisar a compatibilidade entre os argumentos que sustentaram a decisão abstrata do STF, e a

1

Trecho da entrevista com a advogada Carmen Hein de Campos. Anexo II, p.104 A pesquisa DataSenado de 2015, por exemplo, revelou que uma em cada cinco mulheres entrevistadas declara já ter sofrido algum tipo de violência, dentre as quais, 26% afirmaram ainda conviver com o agressor. DataSenado, Violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília: Senado Federal/Secretaria de Transparência, agosto.2015 2

10

posição daquelas que vivenciam concretamente o objeto de tal decisão. Para tanto, escolhi estudar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4424 – a qual consolida o entendimento quanto à natureza incondicionada da representação nos crimes de lesão corporal e violência doméstica – e a rede de enfrentamento à violência contra a mulher da cidade de São Paulo. Em resumo, o objetivo central da investigação é tentar responder a seguinte pergunta de pesquisa: As percepções das integrantes da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres de São Paulo sobre a necessidade de representação nos casos de violência doméstica se diferenciam dos argumentos apresentados pelo STF na ADI 4424? Em que medida?

O exercício de coleta e posterior comparação de argumentos, nesse cenário, me parece interessante, na medida em que possibilita organizar os pontos de tensão formados em torno do tema. A finalidade da ADI 4424, para os impetrantes da ação, era facilitar a apuração e o julgamento dos casos de lesão corporal e violência contra a mulher, de modo a aumentar a efetividade da Lei Maria da Penha. Com isso, esperava-se que a decisão do STF corrigisse a atuação positiva do Estado e aumentasse a proteção das vítimas. Ao mesmo tempo, entendo que a rede de enfrentamento ao congregar espaços de atendimento, acolhimento e fortalecimento da mulher, cria condições para que estas possam romper com o silêncio, e com os ciclos de agressões. Por isso, o reconhecimento das mulheres vítimas enquanto sujeitos também passa pelo apoio das integrantes da rede. Diante dessa perspectiva, contrastar ambos os discursos, do STF e da rede, é uma tentativa não só de mapear vantagens e desvantagens da representação, como também de interseccionar as dimensões da decisões judiciais e do atendimento assistencial. A discussão que quero propor, portanto, se estrutura a partir dos discursos produzidos por esse dois atores. Dito isto, organizei a análise a partir da classificação dos argumentos coletados. Assim, procurei desvendar os fundamentos que justificaram a 11

decisão pela representação incondicionada nos casos de lesão corporal na Lei Maria da Penha. Além disso, tabelei as vantagens e desvantagens elencadas nas fontes de leitura. E, por conseguinte, tentei comparar os entendimentos sobre o papel do Estado, e as possibilidades de exercício da autonomia da vítima. Finalmente, a partir do trabalho desenvolvido, pude constatar que o olhar sobre

o

tema

da

violência

doméstica

desde

uma

perspectiva

da

representação incondicionada, ou seja, da resposta punitiva estatal, pode ser muito limitador. Descobri, assim, a partir das falas da rede, que os caminhos para a superação das agressões e lesões contra as mulheres dependem também de uma atuação individualizada pelo acolhimento, a qual não está contemplada no sistema jurídico.

12

1.2 Conceito de representação Eu acho que o nome representação talvez ele não tá inserido no cotidiano. Mas existe a ideia de que não caberia representação pra nada, tudo que eu declarar tem que ser investigado. E ai talvez é isso, de que forma desmistificar e dizer que o botão que você aciona, de que tem que ser feito alguma coisa com aquilo, é o botãozinho da representação3. (grifos meus)

No âmbito do direito penal, a representação pode ser compreendida como um ato de manifestação de vontade da vítima. Nesse sentido, ao representar, a vítima instaura um procedimento, mais especificamente, uma ação penal em face de seu agressor. O crime de lesão corporal e violência doméstica é processado – desde a decisão do STF na ADI 4424 de 2012 – por meio de uma ação penal de natureza pública e representação incondicionada. Assim, por ser pública, o Estado, na forma do Ministério Público, é responsável por formalizar a denúncia, e realizar a acusação. Já a incondicionalidade implica na desnecessidade de representação, ou seja, o início da investigação e o processamento do crime em sede penal independem da manifestação da vítima. A representação, na prática, se faz presente no ambiente da Delegacia, mais especificamente, no contexto da elaboração de um boletim de ocorrência. O boletim é um documento de auto-declaração lavrado por uma escrevente que sistematiza os fatos ocorridos, e tipifica as condutas relatadas. O art.12,

inciso I, da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)

prevê: Art.12 Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: I – Ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada.

3

Trecho da entrevista com Rute Alonso, ativista e advogada do Centro de Defesa da Mulher: Casa Mulher Ação. Anexo II, p.165

13

A apresentação da representação, no entanto, nem sempre é necessária. A partir do momento em que os elementos fáticos narrados forem tipificados como crimes graves, isto é, com pena superior a 2 anos 4 , aquele documento policial vai passar da gaveta5. Em outras palavras, uma ação de investigação por parte do Estado obrigatoriamente será iniciada, e um inquérito policial será instaurado. O Fluxograma a seguir esquematiza os possíveis caminhos da representação.

4

A diferenciação entre os crimes considerados leves e graves é determinada pela medida na pena. A Lei 9.099/95 em seu artigo 89 estabelece este critério. 5 Expressão utilizada na entrevista com Rute Alonso, advogada do CDMC Casa Mulher Ação e Presidente da União de Mulheres. Anexo II, p.90

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FLUXOGRAMA:

Registro B.O na Delegacia

Crime condicionado à representação

Não representa

Crime incondicionado à representação (pena máxima maior que 2 anos)

Inquérito policial Representa

+ Pedido de medida protetiva

Fim Conclusivo

Inconclusivo

Autos no MP

Fim

Judiciário

15

No caso da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), a lesão corporal leve segue a regra da incondicionalidade. Isso porque, ainda que o texto legal preveja expressamente em seus artigos 12, inciso I, e 16 a necessidade de representação,

nenhum

desses

ou

outro

dispositivos

especificam

as

hipóteses de condicionalidade6. Na verdade, como esclarece a pesquisadora Carmen Hein de Campos: Não é a Lei Maria da Penha que disse que não vai ter representação. É que a representação é dada aos crimes de lesão corporal com pena de dois anos. A Lei Maria aumenta de dois anos, então automaticamente deixou de ser condicionada a representação, porque ele não tem pena máxima de dois anos, ele tem pena máxima de três anos. Então, nesses casos de violência doméstica se exclui a possibilidade de representação. Então o que a lei fez foi isso, ao aumentar a pena ela excluiu a incidência da Lei 9.0997.

Tal compreensão, pacificada pela referida ADI 4424, ainda que responsável por uniformizar a prática jurídica, não esgotou os questionamentos sobre a escolha pela incondicionalidade. Algumas das principais questões polêmicas sobre o tema, extraídas das leituras e entrevistas, são: a representação é sempre necessária? Em quais casos é prescindível a manifestação da vítima? Como diferenciá-los? As vítimas de violência doméstica têm condições emocionais, físicas ou econômicas para decidirem se querem iniciar um processo criminal? Quais os deveres e limites de atuação do Estado na esfera privada? Como é possível perceber, o tema da representação ainda é bastante controverso,

principalmente,

supracitado,

para

as

como

mulheres

que

destaca

Rute

desconhecem

Alonso seu

no

trecho

significado

e

6

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: I) Ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada. Art. 16 Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. 7 Trecho da entrevista com a pesquisadora e advogada Carmen Hein de Campos. Anexo II, p. 110

16

implicações. Tal controvérsia, talvez se deva ao fato da representação influir diretamente sobre as possibilidades de escolha ou não escolha da mulher. É o que veremos nos capítulos a seguir.

17

1.3 Hipótese Não tenho a pretensão de fornecer um juízo de valor ou uma avaliação final sobre o tema da representação. Antes, busquei mapear os argumentos que circundam o debate, de modo a melhor compreender as possíveis diferenças ou semelhanças entre as percepções dos atores do judiciário e das atrizes da rede de enfrentamento selecionadas. Nesse contexto, e considerando a pergunta de pesquisa já apresentada, formulei a seguinte hipótese: As percepções analisadas são distintas. Os argumentos da rede de enfrentamento à violência doméstica, coletados por meio de entrevistas, são diferentes dos selecionados pelo STF. Na medida em que as mulheres vivenciam e experimentam os efeitos da violência de gênero na prática, os argumentos por elas elaborados alcançam respostas mais adequadas às questões investigadas, isto é, conseguem apreender a complexidade da representação, e as disparidades entre a letra da lei e sua efetiva aplicação.

A confirmação ou refutação da hipótese exposta é aqui entendida como um dos resultados possíveis da própria análise das afirmações selecionadas e comparadas. Por isso mesmo, este tópico será tratado novamente na conclusão desta investigação.

18

2. Metodologia

2.1 Surgimento do Tema A ideia de estudar a Lei Maria da Penha surgiu a partir da minha experiência em um grupo de estudos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), o Grupo de Empoderamento Feminino (GEF). A extensão foi criada por iniciativa de estagiárias do Departamento Jurídico XI de Agosto – entidade que presta assistência jurídica gratuita – que sentiram necessidade de aprofundar conhecimentos teóricos e práticos para melhor enfrentar os casos de violência doméstica. Não é exagero afirmar que a pergunta da presente pesquisa é resultado, justamente, de uma das maiores crises das nossas formações: afinal, a representação tem que ser condicionada ou incondicionada? Ainda não encontramos nenhuma solução satisfatória. Tampouco pretendo responder de maneira fechada, sim ou não, para uma dessas opções. Antes, preferi buscar um caminho de compreensão dos discursos e argumentos que subsidiam tais posições. E que discursos seriam esses? O próprio STF ao se pronunciar sobre o tema em 2012 por meio de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade, a ADI 4424, produziu diferentes argumentos para sustentar ou rechaçar a decisão acerca do caráter incondicionado da representação nos casos de lesão corporal leve e violência doméstica. Nesse sentido, compreendo o acórdão enquanto um documento textual, histórico e oficial com o poder de congregar diferentes fundamentos sobre uma questão jurídica controversa. Em outras palavras, acredito que a identificação, classificação e análise de pelo menos alguns dos argumentos apresentados pela Corte na ADI sobre a representação pode ser uma estratégia para melhor compreender o tema. Além da análise textual dos votos do STF, escolhi iluminar um outro ator social

relevante

no

âmbito

da

violência

doméstica,

a

rede

de

enfrentamento. Não fazia sentido, para mim, estudar o mundo das decisões judiciais apenas a partir de suas estruturas lógico-formais internas, pareceu-me interessante considerar também a opinião daquelas que 19

vivenciam, seja por meio do estudo, do trabalho, ou da política o tema. Para tanto, escolhi utilizar o método de entrevistas semiestruturadas com as representantes da rede. Em resumo, diante da pergunta de pesquisa apresentada, pretendo traçar uma investigação qualitativa pautada em ferramentas emprestadas do direito e da ciências sociais. A situação concreta que se coloca é a natureza da ação penal nos casos de violência doméstica, bem como a necessidade de representação. Para pensar este caso escolhi dois tipos de atores, o STF e a rede de enfrentamento, e dois tipos de documentos, o acórdão e entrevistas transcritas. A partir do entrecruzamento dos argumentos encontrados, pretendo traçar uma análise que ajude a organizar os principais pontos de acordo e controvérsia sobre a representação no âmbito da violência doméstica.

20

2.2 Seleção documental: a ADI 4424 A definição final sobre a incondicionalidade da representação nos crimes de lesão, bem como o afastamento da Lei 9.099/95 (Lei que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais), foi proferida na ADI 4424. No referido caso, todos os Ministros, com exceção Presidente Cezar Peluso, seguiram o voto pela procedência do pedido – interpretação conforme dos artigos 12, I, e 16 da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha)– proferido pelo Ministro Marco Aurélio, relator do acórdão8. A decisão escolhida estabeleceu, de maneira generalizada, a natureza pública e incondicionada dos crimes de lesão corporal e violência doméstica, independentemente da extensão ou gravidade da lesão. Assim, a seleção da ADI 4424, em detrimento de outras possibilidades, se justifica na medida em que está define, em última instância, os parâmetros da aplicação legal quanto à natureza da ação penal para as situações de violência doméstica. O processo decisório, no entanto, não ocorreu de forma pacífica. A partir da leitura, foi possível observar que a maioria dos votos,

em que pese o

mesmo resultado, apresentou fundamentos diversos. Mais ainda, os debates

revelaram

divergências

e

dúvidas

interessantes

acerca

dos

melhores caminhos para uma proteção jurídica e estatal eficaz da mulher vítima de violência.

8

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: I) ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

21

2.3 Classificação de argumentos À primeira vista, identificar e classificar argumentos de onze Ministros do STF em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pareceu uma tarefa bastante abstrata e complicada. Contudo, a medida que avancei na leitura e no fichamento da ADI 4424, percebi que grande parte dos argumentos se repetiam com frequência, seja no próprio voto, seja entre os Ministros. Conforme mencionado, as principais controvérsias identificadas quanto a definição

da

necessidade

ou

desnecessidade

da

representação

se

restringiram basicamente à três tópicos: a incidência da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais) nos casos de violência doméstica, o papel do Estado, e a autonomia da vítima. A partir desses eixos, tentei classificar os argumentos encontrados sob as seguintes categorias: (I) efeitos pretendidos pela Lei Maria da Penha: incidência da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais); (II) o papel do Estado: deveres e limites; e finalmente, (III) o exercício de vontade da vítima. Cada um desses três pontos argumentativos estrutura, respectivamente, os capítulos propostos na análise. De tal modo que a explicação detalhada sobre as classes definidas poderá ser acompanhada mais adiante.

22

2.4 Entrevista A entrevista é um método de pesquisa social cujo objetivo é compreender, ao mesmo tempo, as crenças e valores dos indivíduos, bem como as estruturas simbólicas sobre as quais essas percepções estão construídas9. As

entrevistas

semiestruturadas,

especificamente,

são

aquelas

caracterizadas pela presença de um roteiro com perguntas abertas a serem realizadas oralmente. O desenvolvimento da pesquisa de campo foi composto, basicamente, por seis fases: (i) mapeamento dos equipamentos da rede de atendimento e seleção das entrevistadas; (ii) elaboração da carta de cessão e termo de confidencialidade; (iii) criação de um roteiro teste, atentando-se para as palavras escolhidas, a pertinência das perguntas em relação aos objetivos pretendidos, e a ordem com que são dispostas; (iv) o agendamento da entrevistas; (v) a realização das entrevistas; (vi) e a transcrição dos áudios gravados. No processo todo foram agendadas doze entrevistas, das quais apenas nove conseguiram efetivamente ser realizadas. Os contatos foram feitos via correio eletrônico, e o roteiro foi aplicado presencialmente. As entrevistadas foram escolhidas de acordo com a atividade realizada e sua participação na rede de enfrentamento. Finalmente, é importante destacar que, apesar das tentativas,

não

foi

possível

conversar

com

representantes

da

área

hospitalar, e nem das casas abrigo.

9

QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; FEFERBAUM, Marina (Org.). Metodologia Jurídica - Um Roteiro Prático Para Trabalhos de Conclusão de Curso. São Paulo: Saraiva, 2012. 437 p. (GV Law).

23

2.5 Roteiro e seus objetivos O roteiro de perguntas foi elaborado com vistas a facilitar o paralelo entre os discursos do Supremo e da rede. Para tanto, formulei as questões a partir da leitura e do fichamento da ADI 4424, ou seja, por semelhança aos assuntos apresentados pelos Ministros. Além disso, tentei redigir frases amplas, na forma direta, com pouca ou nenhuma adjetivação, para que a interlocutora não se sentisse pressionada a dar respostas certas. Igualmente, procurei ordenar as questões de modo a construir uma linha de pensamento contínua, ou seja, que partisse da experiência individual para uma percepção cada vez mais generalizada. As dez perguntas propostas, de modo geral, tentaram cobrir seis tópicos temáticos: (i) a experiência particular da entrevistada naquele campo de trabalho; (ii) sua opinião pessoal sobre a representação nos casos de violência

doméstica;

(iii)

as

vantagens

e

desvantagens

da

incondicionalidade; (iv) o tratamento legal sobre o tema; (v) a decisão do Supremo e sua atuação acerca da violência doméstica; e por fim, (vi) a atuação da rede de enfrentamento.

24

2.6 Mapeamento e seleção de entrevistadas: o conceito de rede A rede é assim: a gente divide ela em duas partes, embora na atuação ela esteja misturada. Uma é a rede de atendimento, ai é a defensoria, casa abrigo, esse pessoal é a rede mesmo, é profissional que tem que atender. Outra é a do enfrentamento, dai somos nós, nós entramos as ativistas. Então, quer dizer, essa luta é nossa. Agora como essa luta é nossa, então, mistura muito. Uma hora tamo discutindo lá com o atendimento, uma hora o atendimento tá discutindo aqui no enfrentamento, e a gente precisa ficar junto mesmo10.

A estrutura do trabalho em rede funciona exatamente como explica a ativista feminista Maria Amélia Teles: são duas partes diferentes, mas que atuam de forma misturada 11 . O primeiro ramo da rede, diz respeito ao atendimento, e o segundo abrange a sociedade civil. Assim, o modelo de organização em rede segue o que preconiza o artigo oitavo da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)12. Isto é, a realização de uma política pública voltada para coibir a violência doméstica e familiar que se materialize por meio da articulação e integração operacional

das

instituições

e

entidades

governamentais

e

não

governamentais. O objetivo desta articulação, é desenvolver estratégias que pautem o empoderamento das mulheres e seus direitos humanos, a responsabilização dos agressores, e a assistência qualificada13. A seleção das entrevistadas, nesse sentido, tentou reproduzir a diversidade de serviços e participantes abarcados pelo conceito de rede. Todavia, a triagem foi norteada por dois critérios. Primeiro, priorizei as atrizes que compõe a rede de atendimento e enfrentamento da cidade de São Paulo. E

10

Trecho da entrevista com Amelinha Teles, ativista feminista e fundadora da União de Mulheres. Anexo II, p. 83 11 A categorização da rede em dois eixos foi utilizada como referência para metodologia da pesquisa. O mapeamento da rede, bem como a escolha dos lugares visitados e das pessoas entrevistadas foram pautados pelo material institucional fornecido pela pelo Guia de Serviços da Prefeitura de São Paulo. 12 Art. 8o: A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não governamentais. 13 Informação retirada do site: http://www.spm.gov.br/sobre/acoes-e-programas

25

em seguida, considerei as experiências pessoais dessas atrizes sobre o tema da Lei Maria da Penha. Quanto ao critério geográfico, oito das nove entrevistadas compõe a rede de enfrentamento da cidade de São Paulo. A divisão regional se deu da seguinte forma: quatro integram a rede centro, três participam da rede leste, e uma da rede sul. Reconheço que tal espalhamento pode implicar em uma falta de uniformidade das visões captadas. Contudo, não foi possível delimitar uma área geográfica fixa, pois a maior parte dos contatos foram viabilizados por indicação das próprias entrevistadas. Desse modo, o segundo parâmetro adotado abarcou o acúmulo histórico e político das atrizes. Assim, procurei contatar mulheres que participaram ativamente dos processos de formulação do Projeto de Lei 4.559 de 2004, que deu origem à Lei Maria da Penha, e das discussões dos julgamentos no STF14. Além disso, priorizei aquelas atrizes que foram reconhecidas dentro dos serviços visitados por vivenciarem a implementação de políticas públicas voltadas para a consolidação do atendimento em rede. É nesse contexto também, que se justifica a escolha pela única entrevistada não residente em São Paulo. A professora, pesquisadora e advogada feminista Carmen Hein de Campos – ainda que não componha diretamente a rede de enfrentamento de São Paulo – foi considerada uma fonte de informações extremante relevante para a compreensão histórica do tema15.

14

Refiro-me a Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19 (ADC 19), que reconheceu a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, e a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4424 (ADI 4424), objeto de análise deste trabalho. 15 Isso porque, não só participou como membro do consórcio de ONGs responsável por desenhar as bases da Lei Maria da Penha, como também atuou como advogada do Instituto Themis, uma das entidades participantes da audiência pública da ADC 19.

26

2.7 Limitações Gostaria de destacar algumas das limitações e adversidades do campo. Primeiro, não foi possível abarcar todos os tipos de equipamentos existentes na cidade. Encontrei especial dificuldade para contatar os serviços de abrigo, os hospitais, e a Secretaria de Política para as Mulheres. Alguns

dos

obstáculos

práticos

percebidos

foram:

dificuldades

de

comunicação, de agendamento, e alguma resistência frente a pouca ou nenhuma familiaridade de parte dos serviços com a atividade de pesquisa. Além disso, é necessário pontuar a falta de homogeneidade dentro da própria rede. Em outros palavras, ainda que pesquisa conseguisse abarcar todos os equipamentos existentes na cidade de São Paulo, isso não garantiria qualquer tipo de uniformidade nos resultados obtidos. As próprias entrevistadas reconheceram que (i) a rede não atua de harmonicamente, e (ii) que sua opinião pode não representar o posicionamento da instituição em que trabalha. Sobre esses pontos, a psicóloga Branca Paperetti formula uma hipótese interessante para explicar a atuação heterogênea dos serviços. A gente teve uma grande dificuldade quando a assistência passou a cuidar também da violência doméstica sem ter o olhar de gênero, porque eles têm o olhar voltado pra manutenção dos laços familiares. E por mais que a gente tentasse trabalhar junto, e em algumas situações a gente conseguiu, em outras não. Foi muito difícil e ainda é muito difícil isso. Porque, por exemplo, ficou separado assim: os CRMs eram da Secretaria de Politicas pras Mulheres, os abrigos foram todos pra assistência. E a assistência trabalha no sistema de convênio, convênio com entidades que muitas vezes são religiosas, tem uma perspectiva diferente do olhar da emancipação da mulher16.

Assim, as diferenças no olhar de cada integrante e serviço da rede – alguns que priorizam a questão de gênero, outros que valorizam a família – talvez justifiquem a dificuldade metodológica de extrair opiniões e percepções sempre consonantes.

16

Fala da psicóloga e ex-coordenadora do CRM Casa Eliane de Grammont. Anexo II, p.98

27

3 Análise comparativa: leis em disputa 3.1 Interpretações em debate: Lei Maria da Penha versus Lei dos Juizados Especiais (9.099/95) Eu acredito que a maioria das varas, até a decisão do Supremo, entendiam a ação relacionada a lesão corporal leve como uma ação pública condicionada à representação. Por isso mesmo, aquilo que eu tinha falado da minha experiência no interior, naquele momento em que eu tive que me posicionar e aplicar ou não a Lei 9.099, que estava vedada pela Lei Maria da Penha. Essa questão da ação ser pública condicionada à representação era algo que eu não me questionei

na

época.

Eu

entendia

que

era

condicionada

à

representação. Até porque tem um dispositivo...Na verdade, a própria lei ela gerou dúvida quanto a esse entendimento. Acho que até por isso houve a necessidade do STF se posicionar sobre essa questão, porque pelos dispositivos da lei dava pra fazer as duas interpretações. E no STJ prevalecia o entendimento no sentido 17

contrário à decisão do STF .

O

debate

sobre

a

natureza

da

ação

penal

e

condicionalidade

da

representação nos casos de lesão corporal e violência doméstica, como ilustra a fala da juíza supracitada, é complexo. E é complexo, porque envolve diferentes entendimentos jurídicos sobre a questão. A própria entrevistada aponta duas possíveis causas ou justificativas para as controvérsias interpretativas. A primeira seria a falta de clareza dos dispositivos da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), e aqui provavelmente ela se refere aos artigos 12 e 16 do instituto 18 . Já a segunda, seria a produção de decisões jurisprudenciais divergentes em relação a incidência

17

Trecho da entrevista com a juíza do Fórum da Barra Funda. Anexo II, p.149 Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: I) ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público 18

28

ou não da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95) nos casos de lesão corporal e violência doméstica. Como referido anteriormente, o texto normativo da Lei Maria da Penha, resultado da luta e articulação dos movimentos de mulheres, ao mesmo tempo que prevê expressamente necessidade da representação, não especifica as hipóteses de condicionalidade. Por outro lado, a definição da natureza da ação penal é dada pela Lei 9.099 a partir da medida da pena do crime praticado. O art. 89 da Lei 9.099/95 define: Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). Antes da existência da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), os crimes de lesão leve relacionados à violência contra a mulher eram processados mediante a atuação dos Juizados Especiais Cíveis e 9.099/95).

Por

isso,

as

dúvidas

geradas

quanto

a

Criminais (Lei necessidade

da

representação são resultado também de uma aplicação inconstante da Lei 9.099/95 sobre os crimes de violência doméstica após a aprovação dos dispositivos da Lei Maria da Penha. A relação de conflito entre a Lei 9.099/95 (Lei dos JECRIMs) e a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), se expressa a partir do art. 41 da Lei Maria da Penha, justamente porque afasta a incidência da Lei dos Juizados Especiais Criminais nos casos de violência doméstica. Tal determinação, no entanto, nem sempre foi observada no âmbito dos juizados. Como relatou a juíza entrevistada no trecho supracitado, a lesão leve combinada com violência doméstica na maioria das varas criminais continuou a ser processada mediante representação da vítima.

29

Inclusive, a necessidade da criação da Lei Maria da Penha, como relata a pesquisadora e advogada Carmen Hein de Campos, parece ter surgido como consequência da realidade dos JECRIMs. E a gente começou a perceber que não tinha como trabalhar, e que lógica do Juizado era outra. E aí a gente começou a discutir o assunto junto com outras organizações não governamentais, e resolvemos que nós tínhamos que propor uma lei específica de violência contra as mulheres. E em 95 entrou em vigor a Convenção do Belém do Pará (...) em 2001 sai a decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E nisso já tinha toda uma trajetória feminista denunciando a violência contra as mulheres (...) E ai, então, a gente, com toda essa história, resolve juntar essas organizações e pensar uma legislação específica para tratar sobre o tema19.

Especificamente

quanto

aos

Juizados

Especiais

Criminais,

estes

têm

competência para julgar os crimes considerados como de menor potencial ofensivo, isto é, aquelas infrações cuja pena máxima cominada não extrapole a medida de dois anos. Além disso, o artigo 88 determina a condicionalidade das lesões corporais leves: Art. 88 da Lei 9.099/95: Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.

Diante dessas informações, é possível depreender pelo menos duas consequências quanto ao tratamento dado as lesões corporais leves perpetradas contra mulheres no âmbito doméstico e familiar. A primeira é simbólica, ou seja, as lesões físicas leves resultado de violência doméstica passaram a ser consideradas como um crime de menor potencial ofensivo. E segunda é prática, isto é, o início da investigação criminal passou a ser condicionado à representação da vítima. O tratamento legal conferido pela Lei 9.099/95 (Lei dos JECRIMs) às mulheres em situação de violência, em função também destas duas consequências,

19

foi

considerado

por

todas

as

entrevistadas

como

Fala da pesquisadora Carmen Hein de Campos. Anexo II, p. 107

30

inadequado. Mais ainda, a jurisprudência produzida, à época, sobre o tema se mostrou bastante contrastante. A produção de decisões discrepantes foi estimulada pelos pedidos de Habeas Corpus (HC), requerimentos provisórios de liberdade, interpostos por agressores. O ajuizamento desses HCs ocorreu, em grande medida, pelo processamento de ações criminais sem a manifestação da vítima, ou seja, mediante ações penais públicas e incondicionadas. A defesa dos acusados de violência doméstica, alegava que o processamento dessas ações criminais, devido a gravidade das lesões desferidas, dependeria da expressa manifestação da vítima, conforme o disposto no art. 88 da Lei 9.099 (Lei dos JECRIMs). A época, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu decisões bastante contrastantes sobre o tema. A Sexta Turma do STJ, por exemplo, foi uma das primeiras a decidir no sentido de que a ação penal pública deveria ser incondicionada. Posteriormente, em fevereiro de 2010, o mesmo STJ ao julgar

o

Recuso

Especial

Repetitivo

N.

1.097.042-DF,

decidiu

pela

condicionalidade da representação nos casos de lesão leve. A definição decisiva sobre a incondicionalidade da representação nos crimes de lesão, bem como o afastamento da Lei 9.099/95 foi proferida na ADI 4424 à pedido da Procuradoria Geral da República20. A inicial ajuizada pela PGR solicitava ao Supremo que oferecesse interpretação conforme dos artigos 12, I, 16, e 41, de modo assentar a natureza incondicionada da ação penal em crime de lesão corporal praticado contra a mulher em ambiente doméstico.

20

A ADI 4424 foi precedida em 2011 pelo julgamento do HC 1062012 no STF, o qual afastou a aplicabilidade do art.89 da Lei 9.099/95 quanto aos crimes praticados com violência doméstica. A decisão foi tomada sobre o caso de Cedenir Balbe Bertolini, acusado de desferir tapas e empurrões contra a sua companheira, e condenado no Mato Grosso do Sul à pena restritiva de liberdade por 15 dias. O réu era representado pela Defensoria Pública da União (DPU), a qual defendeu a interpretação dos atos praticados como crimes de menor potencial ofensivo, ou seja, passíveis de aplicação da Lei dos JECRIMs.

31

A procedência dos pedidos foi acatada por dez dos onze Ministros, apenas o Ministro Cezar Peluso não acompanhou o voto vencedor. A pequena disparidade numérica entre votos vencedores e vencido não significou, no entanto, a inexistência de pontos de disputa. O primeiro deles, versa exatamente sobre os modos de interpretar os dispositivos da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha). Tal discussão se apoiou sobre dois tópicos principais: a ineficácia da Lei dos JECRIMs, e as intenções do legislador. 3.2 A ineficácia da Lei dos Juizados Especiais Criminais O Ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ADI, inicia seu voto de mérito com o seguinte enunciado: Eis um caso a exigir que se parta do princípio da realidade, do que ocorre no dia a dia quanto à violência doméstica, mais precisamente a violência praticada contra a mulher. Os dados estatísticos são alarmantes 21 .(grifos meus)

A apresentação de dados estatísticos e pesquisas científicas foi um recurso bastante

utilizado

na

construção

argumentativa

dos

ministros,

principalmente, com a finalidade de demonstrar os altos índices de renúncia por parte da vítima (estimados em 90% pelo relator). Tamanha desistência foi justificada nos votos por dois fatores: as dificuldades individuais das vítimas, e o fracasso da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). Nesse sentido, a Ministra Rosa Weber atesta: Não tivesse a experiência com a aplicação da Lei 9.099/1995 se mostrado inadequada ou insuficiente para lidar com a violência praticada no âmbito familiar, e não teria o legislador inserido, na Lei 11.340/06, o seu art 4122. (grifos meus)

No mesmo sentido de refutar a política criminal erigida pela Lei dos JECRIMs (9.099/95), o Ministro Luiz Fux frisou a impossibilidade de se conferir ao ofensor dos casos de violência doméstica os benefícios despenalizadores23. Assim, a condicionalidade da representação, tal qual a

21 22 23

Voto do Ministro Marco Aurélio na ADI 4424, p. 8 Voto da Ministra Rosa Weber na ADI 4424, p. 42 Intervenção do Ministro Luiz Fux nos Debates da ADI 4424, p. 29

32

suspensão da pena, a transação penal, e outras vantagens da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), tampouco poderiam ser concedidas ao réu de violência doméstica e familiar. Contudo, é importante registrar que nem todos os magistrados se manifestaram contra a incidência da Lei 9.099/1995 (Lei dos JECRIMs) nos casos de violência doméstica. O Presidente à época, o Ministro Cesar Peluzo, se manifestou em defesa dos mecanismos e procedimentos despenalizadores. Segundo o que pode ser lido em seu voto, a Lei dos JECRIMs apresenta como principais atributos positivos a celeridade e a possibilidade da composição dos conflitos. Porque a celeridade é um dos ingredientes importantes do combate à violência, pois, quanto mais rápida for a decisão da causa, maior será sua eficácia. Segundo, a oralidade, ínsita na lei, é outro fator importantíssimo, sobretudo porque essa é violência que se manifesta no seio familiar. Fui Juiz de família durante oito anos, conheço muito bem como as pessoas interagem de modo positivo na presença do magistrado24.

De maneira bastante semelhante a maior parte dos Ministros, e por conseguinte oposta ao Presidente, as atrizes da rede enfatizaram a ineficácia das decisões judiciais produzidas anteriormente à Lei Maria da Penha. A questão trazida por elas, no entanto, não foi tanto a grande quantidade

de

renúncias,

mas

antes

os

problemas

intrínsecos

aos

procedimentos previstos pela Lei dos Juizados Especiais (9.099/95). Possivelmente tal diferença se deva ao fato das atrizes perceberem a renúncia apenas como uma mera consequência daqueles procedimentos. A ponderação da psicóloga Branca Paperetti dialoga com essa ideia: Parece que antes de desistir elas passam por um assistente social, por uma psicóloga e conversam. Mas, no meu entendimento, continua sendo um escracho isso. Por quê? Porque, na verdade, a mulher não foi mobilizada pra ir lá pra saber como é que tá o caso dela, pra ver o que vai acontecer, pra ver o que ela pode fazer pra coisa andar. Não. Ela é perguntada se ela quer desistir. Sendo que a coisa tá mal parada. Então eu acho que a forma como isso é feito

24

Voto do Ministro Cezar Peluso na ADI 4424, p. 91

33

é pra induzir realmente a mulher a não ir pra frente. Aí fica aquela pecha de que a mulher não sabe o que quer, de que ela é uma eterna reclamona, que quando chega na hora ela desiste. Eu também desistira se as coisas não andam, se eu não vejo solução, continuo com o mesmo problema, o problema às vezes aumentando25. (grifos meus)

No mesmo sentido, a fala da advogada Carmen Hein de Campos ilustra bastante o cenário e a forma como eram conduzidos os ritos judiciais nos casos de violência doméstica anteriores à Lei 11.340/06. Nos começamos, eu como advogada, começamos a atender mulheres em situação de violência pela Lei dos Juizados Especiais Criminais, e era um desastre. Acho que pouquíssimas mulheres, eu até fiz uma pesquisa na época sobre isso, que a gente atendia entendiam a atuação dos Juizados como positiva, e isso começou a criar um problema muito grande pra gente. Porque a gente ia pras audiências e, pelo menos no Rio Grande do Sul e pelo o que vi em outras pesquisas sobre o tema acontecia em todo o país, 99% dos casos eram conciliados. Na verdade, não era uma conciliação, porque as mulheres não tinham interesse. Mas era uma conciliação forçada pelo judiciário 26 . (grifos meus)

Além das conciliações forçadas, outro mecanismo próprio da Lei 9.099 apontado pelas entrevistadas como problemático nas situações de violência doméstica, foram as transações penais. A transação penal é, em linhas gerais, um acordo entre o réu e o Ministério Público. O ato envolve a aceitação e a declaração de culpa pelo acusado e como benefício a pena é reduzida pelo promotor. A experiência da promotora Gabriela Manssur enfatiza os problemas da transação: Eu entrei antes da Lei Maria da Penha, e a mesma realidade continuava no meu dia-a-dia, eu pegava já os processos em que as mulheres estavam machucadas, em que as mulheres estavam humilhadas, em que as mulheres sofriam uma violência psicologia muito grande, e eu tinha que oferecer a transação penal pra essas mulheres, porque era um crime de menor potencial ofensivo mediante representação da vítima (...) Há essa parte de que se ela denunciava e representava, o processo ia adiante, ela sequer era chamada, porque

25 26

Fala da psicóloga Branca Paperetti. Anexo II, p. 103 Fala da advogada e pesquisadora Carmen Hein de Campos. Anexo II, p. 106

34

quem aceita a transação penal não é a vítima, é o autor dos fatos, ou seja, você de denunciou então deixa que o Estado vai cuidar. E como o Estado vai cuidar? Ah, o senhor aceita uma cesta básica pro processo se encerrar? Então ficava barato a agressão contra a mulher, valia a pena27. (grifos meus)

Na mesma linha, de crítica a atuação massificada do judiciário, foram apontadas também como grande problema as audiências do art. 16 da Lei Maria da Penha, as quais a pesar de não serem determinadas pela Lei 9.099, funcionavam por consequência da condicionalidade da representação e aparentemente sob a mesma lógica de celeridade. Assim, as audiências do artigo 16 eram marcadas nos casos de lesão corporal de natureza leve, até então tratadas como ações publicadas incondicionadas, para consultar as vitimas sobre o desejo de continuar ou não com o processo. Como relata a Defensora Pública Yasmin Pestana: Eu estudei lá na minha tese antes da decisão do Supremo, então, eu participei muito daquelas audiências do artigo 16 da Lei Maria da Penha que eram feitas lá na Barra Funda. E eram feitas assim em massa, então, chamavam tipo 70 mulheres, reunia-se 70 mulheres e meio que tentavam convencer elas a continuar o processo. E aí tipo tinha uma palestra, uma palestra sobre o que era violência (…) e ai depois era uma audiência batidão: quer continuar, não quer continuar? e aí ia, entendeu? Pelo menos a que eu fui, eram juizas de cada lado, duas defensoras, e iam chamando as mulheres e, muitas vezes, as mulheres desistiam28. (grifos meus)

Esse modelo de audiências, conhecido como audiências do art. 16, foi colocado pelas entrevistadas como uma outra maneira de desestimular as vítimas, e de certo modo forçá-las a não dar seguimento aos processos. O problema principal, ao que parece, não reside no pedido de renúncia propriamente, mas antes na forma como o judiciário conduz essas audiências, ou seja, de forma massificada e sem necessariamente se respaldar na iniciativa da mulher. Diante de tantos exemplos negativos – conciliações forçadas, transação penal e audiência do 16 – a opção pela incondicionalidade da representação

27 28

Fala da promotora Gabriela Manssur. Anexo II, p. 133 Fala da defensora pública Yasmin Pestana. Anexo II, p. 178

35

nos casos de lesão leve foi defendida por muitas das entrevistadas como uma forma de evitar esses mecanismos de desestímulo. Afinal, uma das grandes

consequências

da

incondicionalidade

é

a

impossibilidade

da

renúncia.

3.3 As intenções do legislador: Para além dos problemas intrínsecos à aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais,

os Ministros do STF se preocuparam em enfrentar o

debate sobre a adequada interpretação dos dispositivos questionados pela PGR. Afinal, apesar do art. 41 da Lei Maria da Penha afastar explicitamente a Lei 9.099/95 (Lei dos JECRIMs),

não era consenso, na época, entre os

aplicadores do direito a incondicionalidade dos crimes de lesão leve. Como afirma a Juíza de primeira instância entrevistada: Eu acredito que a maioria das varas até a decisão do Supremo, elas entendiam a ação relacionada a lesão corporal leve como uma ação pública condicionada à representação (...) Então naquela época (entre 2007 e 2009), eu realmente não me questionava sobre a ação ser pública e incondicionada nos casos de lesão leve29.

A explicação vencedora, proposta pelo relator, segue a seguinte lógica: o afastamento da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais) pelo artigo 41 da Lei Maria da Penha, acarreta a não aplicação daquele instituto legal por inteiro, o que logicamente incluíra o art.88 da Lei dos Juizados Especiais Criminais e, portanto, excluiria a possibilidade de condicionar a representação nos casos de lesão corporal e violência contra a mulher. Tal lógica se coadunaria com a própria intenção do legislador. A fala da Ministra Rosa Weber explicita bem esse pensamento: O legislador da Lei Maria da Penha não explicitou, nem no art. 41, nem em qualquer outro dispositivo desse diploma, os fins para os quais negou a aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Referiu-se à lei in totum. É regra básica de hermenêutica jurídica que não cabe ao interprete distinguir onde o

29

Fala Juíza. Anexo II, p. 149

36

legislador não distinguiu, de modo a excluir a eficácia do preceito, no caso, a definição do tipo de ação penal cabível30.

Contudo, o entendimento acima exposto não foi pacífico entre os Ministros. O próprio Presidente do STF, o Ministro Cezar Peluso, cita a presença dos artigos 12 e 16 enquanto demonstrações claras da intenção legislativa pela condicionalidade,

uma

vez

que

ambos

os

dispositivos

mencionam

explicitamente o a natureza condicionada da ação penal. Foi o próprio legislador que, quando estabeleceu nos artigos 12 e 16, o condicionamento da ação penal, examinou – eu suponho que bem examinou – a realidade anterior à essa lei e onde havia uma dificuldade, uma inibição de as mulheres levarem ao conhecimento da autoridade policial as ofensas físicas que sofriam. Então, eu acho que já houve aí um juízo do legislador31.

No mesmo sentido de pensar as intenções do legislador, o Ministro Gilmar Mendes, apesar de acompanhar o voto do relator, em seu voto afirma não ter certeza quanto ao caminho interpretativo correto: Então me parece que, aqui, eu tenho assim uma dificuldade de dizer simplesmente, como já se colocou no debate, que é a melhor escolha – e a doutrina realmente é muito dividida quando faz essa consideração de lege ferenda -, se a melhor forma de proteger é a ação condicionada ou a ação pública não condicionada32.

Tais questionamentos da ordem da interpretação textual também foram mencionados por duas das atrizes da rede como um fator relevante a ser observado.

Nenhuma

delas

defendeu

diretamente

a

incidência

dos

dispositivos da Lei 9.099/95. Mesmo assim, algumas reconheceram a presença do artigo 16 como um fator de confusão interpretativa. Nesse sentido, a ativista feminista Maria Amélia Teles, ao ser perguntada sobre a Lei Maria da Penha, afirmou: Aí já é complicado né. Porque a lei é ambígua, aquele artigo dezesseis ele fica meio, né? Fica meio embaralhado, meio difícil de entender, de entender uma pessoa leiga,

30

Voto Ministra Rosa Weber. ADI 4424, p.39. Semelhante afirmação é feita pelo Ministro Marco Aurélio na ADI 4424, p.15. 31 Debates – falas Ministro Cezar Peluso. ADI 4424,p.28 32 Voto Ministro Gilmar Mendes. ADI 4424, p. 70

37

porque talvez as pessoas que estão tecnicamente preparadas consigam entender de uma forma mais fácil33.

A fala é interessante, justamente porque supõe que possibilidades de compreensão sobre os dispositivos da lei são mais fáceis para aqueles que são considerados técnicos do direito. A análise dos votos da ADI, no entanto, revelam uma situação bastante diferente, em que o problema interpretativo é sim uma das questões centrais do debate. Nenhuma das entrevistadas discutiu diretamente as intenções do legislador no momento de construção da Lei, como fizeram os Ministros do STF. Apenas a ativista feminista Amelinha Teles considerou a possibilidade se implementar melhorias interpretativas na Lei, no sentido de tornar seus dispositivos mais explícitos. (...) fala que não pode aplicar a Lei 9.099/95, fala que não pode, né? Eu acho que a Lei Maria da Penha tinha que ser mais explícita quanto a isso, e talvez a ideia fosse que ela tivesse mais, isso fosse mais objetivo, mais explicitado, com mais detalhes. E ai o próprio movimento de mulheres tem que ser mais ouvido, as vítimas serem mais ouvidas, teria que ter uma consulta mais organizada a respeito disso, né? Mas eu sou contra mexer na Lei Maria da Penha agora, eu sou radicalmente contra, porque eu não confio nesse Congresso, não merece a menor confiança da minha parte, eu sou radicalmente contra34.

A ausência de discussões sobre o papel do legislador por parte das entrevistadas, em relação ao apresentado pelos Ministros, talvez possa ser justificada por dois fatores. O primeiro deles, provavelmente se deve a relação de disputa interna dos poderes Legislativo e Judiciário. De tal modo, que conflitos sobre as atribuições de cada um desses poderes seriam pautas comuns para os magistrados. Quanto ao segundo motivo, imagino que esteja relacionado ao fato de todas as

entrevistadas

terem

considerado

a

decisão

do

STF

acertada

e

suficientemente esclarecedora quanto a interpretação dos artigos 12, inciso I e 16 da Lei Maria da Penha.

33 34

Fala da ativista feminista Amelinha Teles. Anexo II, p. 80 Fala da ativista feminista Amelinha Teles. Anexo II, p. 80

38

3.4 Reação das entrevistadas sobre a ADI 4424 e o papel do STF A reação das entrevistadas sobre a decisão aqui estudada dependeu, em grande parte, de seus conhecimentos sobre o tema. Quanto a isso, a maior parte das atrizes declarou conhecer a ADI 4424, quando perguntadas sobre o assunto. Apenas uma das entrevistadas não reconheceu imediatamente a nomenclatura e do conteúdo da ação. Duas delas admitiram não terem lido a decisão, apesar de conhecerem as matérias abordadas. Além disso, muitas das interlocutoras confundiram a ADI 4424 com a ADC 19, o que provavelmente se justifica pelo fato de ambas terem sido julgadas no mesmo dia35. Dentre nove conversas registradas, seis das entrevistadas se referiram ao posicionamento da Corte como fundamental ou importante36. O primeiro argumento positivo utilizado por algumas dessas entrevistadas foi no sentido de uniformização dos entendimentos. Assim, um dos principais méritos do Supremo teria sido facilitar a aplicação legal. E isso não só no âmbito dos juizados, mas também do Ministério Público e da DDM. Tal impacto pode ser observado nas afirmações da Juíza, da Promotora e da Delegada. A primeira enfatiza o poder das decisões do STF sobre as instâncias inferiores: Eu realmente desconheço que algum juiz não aplique isso (a decisão do STF). Seria algo contraproducente, né? Até o efeito prático. Os juízes, a gente tem um cuidado muito grande com a nossa vara. Então seria contraproducente ficar processando recurso pra depois voltar37.

De maneira semelhante à juíza, a promotora Gabriela Manssur demonstra como o entendimento do STF se aplica no Ministério Público: o Ministério Público adota o entendimento do STF, já adotava antes, e havia uma recomendação inclusive da Corregedoria de que os crimes de violência contra a mulher não se aplica a Lei 9.099. Não se aplicando a Lei 9.099 os crimes de lesão

35

A ADC 19 e ADI 4424 foram julgadas no dia 9 de fevereiro de 2012, em mesma sessão do Plenário. 36 As entrevistadas que consideraram importante foram: Anna Carolina Cabral, Carmen Hein de Campos, a delegada, Gabriela Manssur, a juíza, e a defensora Yasmin Pestana. 37 Fala juíza entrevistada. Anexo II, p. 159

39

corporal são de natureza pública e incondicionada, porque você sabe que quem colocou a condicionalidade da representação foi a Lei 9.09938.

Igualmente

a

delegada

entrevistada

pontua

a

existência

de

uma

normatização do entendimento: Eu não li a decisão, mas eu sei que houve a decisão. E a partir de então a policia civil adota pela incondicionalidade da lesão. Nos casos de lesão, eu nunca vi nenhum delegado que tenha depois dessa decisão se posicionado ao contrário(...) Há inclusive, no âmbito do DECAP(Departamento da Capital), comunicados nesse sentido39.

Além disso, outra consideração positiva feita em relação à decisão do STF foi no sentido de dar publicidade à violência doméstica, compelindo a atuação do Estado nessas situações. A expressão tirar de quatro paredes foi mais de uma vez mencionada nos discursos das atrizes. A defensora Yasmin e explica bem essa ideia. Na minha tese, eu defendia muito que tinha que ser ação penal incondicionada. E muito na lógica, eu acho, de como a Lei Maria da Penha foi pensada, e dentro do acúmulo do movimento de mulheres, que vieram muito numa lógica de combate a uma violência de gênero e com uma análise que essa violência de gênero tá imbricada no sistema patriarcal. E dentro dessa lógica, o reconhecimento do Estado de que essa violência doméstica é uma violação de Direitos Humanos é muito forte. Então, liga-se esse reconhecimento a uma medida penal, mesmo que não seja o objetivo primeiro da Lei. Eu não acho que o objetivo primeiro da lei é a punição, é a prevenção, é a proteção da mulher. Mas liga muito isso, né, ao reconhecimento de que a violência doméstica não tem que ficar em quatro paredes, que têm que se meter a colher, com o reconhecimento de que o Estado tem que processar criminalmente os autores da violência40. (grifos meus)

No mesmo sentido, a promotora Gabriela Manssur afirmou: Mas o mais importante de tudo, Luisa, é que a Lei Maria da Penha, essa declaração de constitucionalidade do STF, tirou de quatro portas a violência contra a mulher, saiu da

38 39 40

Fala da Promotora Gabriela Manssur. Anexo II, p. 138 Fala da Delegada. Anexo II, p. 124 Fala da Defensora Pública Yasmin Pestana. Anexo II, p. 175

40

esfera privada, em que briga de marido e mulher não se mete a colher, e tornou essa causa pública, em que o Estado tem responsabilidade sim41. (grifos meus)

As falas apresentadas abordam muitas questões interessantes, tais como a luta pelo reconhecimento da violência de gênero e a atuação movimento de mulheres, mas o quero ressaltar aqui é a ideia de responsabilização estatal como uma implicação direta da incondicionalidade. Assim, a escolha pela incondicionalidade, ao implicar a obrigatória resposta do Estado, pode ser entendida também como uma maneira de reconhecimento da gravidade das lesões corporais. Em outras palavras, a decisão do STF teria contribuído, de alguma maneira, para diminuir a banalização da violência. De outro lado, palavras negativas também foram associadas aos Ministros da Corte, tais como moroso e conservador. entrevistadas



as

quais

Dessa forma, algumas das

interessantemente

não

trabalham

como

operadoras do sistema jurídico – não tiveram a mesma compreensão sobre o impacto da decisão judicial aqui estudada. Muitas das integrantes da rede entenderam, portanto, que o alcance do Supremo se restringiria apenas a alguns setores específicos da sociedade. A psicóloga Branca Paperetti aponta o linguajar utilizado pelos juízes como um dos principais fatores de restrição. E eu acho que isso, para o Judiciário, serve meio que de (parâmetro) mais pra eles, né? Porque eles ficam tentando achar brechas, porque eles querem acabar com ela. Ficam dizendo que é inconstitucional, porque dá trabalho. Então eu acho que para eles, no linguajar deles, dentro do paradigma deles, ter o Supremo falando que é isso aí mesmo tá ótimo, precisa42.

No mesmo sentido, a ativista e advogada Rute Alonso compara a repercussão da decisão do STF ao impacto causado pelas novelas da rede de televisão Globo quando estas apresentam casais lésbicos43. Para ela, as escolhas que o STF faz, ainda que ajudem a amplificar o debate, atingem

41

Fala da Promotora Gabriela Manssur. Anexo II, p. 137 Fala da psicóloga Branca Paperetti. Anexo II, p. 102 43 Fala da ativista e advogada Rute Alonso. Anexo II, p. 168 42

41

um público bastante diminuto, e tampouco resolvem modo como os atores e atrizes da rede trabalham no cotidiano. Além desses aspectos positivos e negativos, fica explícito na fala de algumas das entrevistadas que a decisão pela incondicionalidade precisa ser compreendida dentro de um contexto histórico especifico, isto é, de reconhecimento

de

direitos.

Assim,

parece

que

uma

das

principais

justificativas pela escolha da incondicionalidade está bastante relacionada a um momento de luta das mulheres contra um tratamento jurídico e legal para o qual não se pode retroceder. Tal ponto pode ser observado na fala da Defensora Yasmin Pestana: Então, eu acho que a gente vem depois desses dez anos, acho que essas mulheres tem atendido, eu acho que faz parte de um processo histórico, acho que precisou talvez ter esse empenho pra reconhecer que a violência doméstica é um crime, pra conseguir, às vezes, ter uma análise mais afastada do problema não tão apaixonada 44 . (grifos meus)

Da mesma forma, a psicóloga Anna Carolina Cabral do NUDEM também afirmou:

Porque eu acho que talvez seja isso, nesse momento histórico a gente ainda precise que seja incondicionada como algo pedagógico mesmo pra sociedade. Mas talvez caminhando, pra depois, a gente também quer que não tenha nada disso. Mas, é isso, teoricamente como as outras medidas que tiveram, não tinham tanta efetividade, acho que talvez agora precisa ser (incondicionada), que pese a mulher fique um pouco sem autonomia nesse sentido 45 . (grifos meus)

Assim, a defesa pela incondicionalidade dentro do STF aparece nas falas das entrevistadas dentro de uma dimensão histórica. O caráter incondicionado da representação surge como resposta a uma atuação do Estado pouco satisfatória, ou incapaz de encontrar medidas eficazes que não se enquadrem no campo da criminalização, ou do Direito Penal.

44 45

Fala da Denfesora Pública Yasmin Pestana.Anexo II, p. 176 Fala da Psicóloga do NUDEM Anna Carolina Cabral. Anexo II, p. 92

42

Além de discutirem o conteúdo da ADI 4424, muitas das entrevistadas se posicionaram sobre a atuação do STF em relação a violência de gênero e outros direitos das mulheres. Várias delas não só acreditam que o judiciário deveria tomar decisões a respeito de outros temas importantes, como aborto. Mas também propõe mecanismos de deliberação que garantam a paridade de gênero e um olhar mais qualificado sobre temas feministas. A ativista feminista Amelinha Teles, por exemplo, tece críticas contundentes ao posicionamento do STF sobre temas relacionados aos direitos das mulheres: Eu acho esse STF tão hipócrita. Porque não fala assim em relação ao aborto? Em relação ao aborto devia legalizar totalmente. Porque as mulheres vão fazer o aborto, vão correr risco de vida, que é o de ficarem mutiladas, e a vontade delas não é respeitada46.

A pesquisadora Carmen Hein de Campos, por sua vez, fez as seguintes sugestões quanto à atuação dos Ministros:

Talvez até devesse ter no próprio STF algum mecanismo de discussão de gênero. Eu acho que seria importante pra evitar, inclusive, a persistência e a manutenção de visões estereotipadas por parte dos membros do Judiciário, que contrariam a própria Constituição Federal. Então eu acho que seria interessante o Judiciário pensar em mecanismos de discussão de gênero, de promover inclusive uma maior representação feminina nos quadros dos Tribunais (...) Como não tem muita discussão de gênero, e essa é uma discussão da teoria feminista, a apropriação dessa discussão por parte do poder judiciário ela é feita de uma forma muito reduzida do ponto de vista teórico47.

Os trechos selecionados são interessantes, porque demonstram que apesar da maior parte das entrevistadas considerar a atuação do STF sobre os direitos das mulheres como relevante, isso não o exime de críticas. Mais do que isso, as atrizes da rede vislumbram possibilidades de tornar a Corte mais representativa, seja por meio da apropriação dos estudos feministas, seja com um maior número de juízas.

46 47

Fala da ativista feminista Amelinha Teles. Anexo II, p. 84 Trecho da entrevista com a pesquisadora Carmen Hein de Campos. Anexo II, p. 113

43

3.5 Vantagens e desvantagens da representação: Ministros versus Rede Quando perguntadas sobre as vantagens e desvantagens da representação nos casos de violência doméstica e lesão corporal, a maior parte das entrevistadas apontou aspectos positivos e negativos desse mecanismo jurídico. Em termos numéricos, apenas quatro das nove entrevistadas defenderam posições extremadas, isto é, condicionar todos os crimes de violência contra a mulher ou incondicioná-los48. O placar, nesse quesito, foi exatamente dois à dois. Quanto às outras cinco entrevistadas, estas se mostraram ou com dúvidas ou satisfeitas com a situação atual. O objetivo dessa sistematização, nesse contexto, é facilitar a compreensão sobre as implicações práticas da representação, bem como sobre os fundamentos que justificam ou não sua necessidade. Assim, as tabelas a seguir têm como objetivo organizar os pontos levantados tanto pelas integrantes da rede, quanto pelos ministros. Vantagens da incondicionalidade Vantagem

Integrante da Rede

Ministro do STF

A continuidade do

Anna Carolina

Marco Aurélio de Melo,

processo não depende

(psicóloga), Carmen

Carmen Lúcia, Ayres

mais da mulher, dela

Hein de Campos

Britto, Luiz Fux,

mudar de ideia, dela se

(pesquisadora),

Ricardo Lewandowski,

sentir insegura, dela

Amelinha Teles

Rosa Weber, Celso de

não estar preparada,

(ativista feminista),

Mello, e Dias Toffoli

das ameaças que

Gabriela Manssur

sofre. O peso está nas

(promotora), Juíza, e

mãos do Estado. É uma

Yasmin Pestana

proteção.

(defensora).

48

A ativista feminista Amelinha Teles e a promotora Gabriela Manssur defenderam que incondicionalidade fosse adotada todos os crimes cometidos contra à mulher. Já a advogada Rute Alonso e a delegada se posicionaram pela condicionalidade da representação.

44

Aumentar a pena da

Anna Carolina

lesão no caso de

(psicóloga), Juíza,

violência doméstica, do

Yasmin Pestana

ponto de vista

(defensora).

pedagógico, é positivo. Dá mais seriedade para a Lei. Permite que a denúncia

Yasmin Pestana

feita por terceiro seja

(defensora)

Marco Aurélio de Mello

investigada. A falta de orientação e

Amelinha Teles

o mal atendimento das

(ativista feminista) e

DDMs inibem as

Anna Carolina Cabral

iniciativas de

(psicóloga)

representar. A incondicionalidade obriga o registro do B.O e o seguimento do inquérito A impossibilidade de

Branca Paperetti

mudar os rumos do

(psicóloga), Yasmin

processo, dá maior

Pestana (defensora)

segurança para os serviços e agentes da rede atuarem Deixa de tratar a lesão

Amelinha Teles

Marco

Aurélio,

Ayres

corporal como delito de

(ativista), Carmen Hein

Britto, Rosa Weber

menor potencial

de Campos

ofensivo

(pesquisadora), Yasmin Pestana (defensora)

45

Uniformização da

Delega, Juíza, Gabriela

atuação no sistema

Manssur (promotora),

jurídico

Yasmin Pestana (defensora)

Desvantagens da incondicionalidade Desvantagem

Integrante da Rede

A mulher não quer

Anna Carolina

criminalizar por vários

(psicóloga), Carmen

motivos legítimos,

Hein de Campos

como filhos, conhecer

(pesquisadora),

o sistema penal,

Delegada, Juíza, Rute

manter relação de

Alonso (ativista e

afeto com o agressor.

advogada), Yasmin

Ministro do STF

Pestana (defensora) Se a incondicionalidade

Branca Paperetti

fez com que a violência

(psicóloga), Amelinha

física fosse reconhecida

Teles (ativista), e

como grave, por outro

Gabriela Manssur

lado

(promotora).

contribuiu

colocar

a

para

violência

psicológica e ameaça, sem

marcas

visíveis,

de escanteio. A representação na

Delegada, Yasmin

prática vincula o

Pestana (defensora)

pedido e o deferimento da medida protetiva. A impossibilidade da

Delegada, Rute Alonso

Cesar Peluzo, e Gilmar

46

retratação pode

(ativista e advogada)

Mendes

intimidar a vítima a fazer a denúncia ou até potencializar o risco de ser ameaçada e agredida Mentiras e

Delegada, Juíza, e

possibilidade de

Yasmin Pestana

denunciação caluniosa

(defensora)

Não respeita o tempo

Delegada, Rute Alonso

de decisão da vítima

(ativista e advogada), Yasmin Pestana (defensora)

Um primeiro olhar sobre os dados tabelados permite perceber pelo menos duas informações: a quantidade numérica de vantagens e desvantagens é praticamente a mesma, ou seja, realmente a escolha por apenas uma das opções, condicionalidade ou incondicionalidade, não é óbvia ou fácil. Ademais, a segunda informação contrastante dessa tabela é justamente a disparidade numérica de argumentos apresentados por cada um dos atores escolhidos, STF e rede. Conforme é possível verificar, para os Ministros a discussão sobre as vantagens e desvantagens da natureza da ação penal abrange apenas quatro dos treze argumentos levantados. Em seguida, uma observação mais cuidadoso permite extrair as duas principais questões em debate, isto é, aquelas que foram as mais repetidas nos discursos e, por isso, irei considerá-las como a maior vantagem e a maior desvantagem. É importante pontuar que a determinação das maiores vantagem e desvantagem se deu apenas por um critério quantitativo, ou seja, não significa que são os melhores ou piores efeitos da representação, apenas são aqueles que foram citados mais vezes.

47

Desse modo, parece que a maior vantagem da incondicionalidade seria garantir o acesso e a continuidade dos casos trazidos pelas mulheres ao sistema de justiça, isto é, dar uma resposta estatal para situações em que a mulher se encontra desamparada. Por outro lado, a maior desvantagem da incondicionalidade parece ser, justamente, contrariar a vontade da mulher, obrigando-a a prosseguir com o processo criminal. É estranho perceber, e até mesmo paradoxal, que a maior vantagem da representação incondicionada pode ser considerada, ao mesmo tempo, sua grande desvantagem. Explico melhor: a maior vantagem apontada parece ser a inserção da mulher dentro do sistema de justiça, ao mesmo tempo, a maior desvantagem também pode ser mantê-la nesse sistema.

48

4

O papel do Estado: proteção ou ingerência?

4.1 O artigo 226, parágrafo oitavo: em briga de marido e mulher se mete a colher A própria existência da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) fundamenta-se no artigo 226, parágrafo oitavo, da Constituição, o qual enuncia o dever do Estado de assistir à família, criando mecanismos para coibir a violência entre seus membros49. Talvez por isso, seis dos dez votos mencionam este dispositivo com o objetivo de discutir o papel do Estado na vida da mulher50. A maior parte dos ministros é a favor da interferência estatal na vida privada. Mais uma vez, apenas o voto dissidente questiona os limites de ação do Estado. De modo a embasar a possibilidade de intervenção do Estado na vida privada,

os

justificadoras.

Ministros E

que

mencionam

circunstâncias

determinadas seriam

essas?

circunstâncias Em

resumo,

a

possibilidade de intervenção, para alguns dos magistrados, deve prevalecer quando o objetivo for proteger sujeitos hipossuficientes, cujas relações são marcadas por um desequilíbrio. Destaco, então, um trecho do voto do Ministro Dias Toffoli: Naquele momento, eu referi que o mais cruel criminoso, o mais vil bandido que se possa pensar, se confessar um crime sob tortura, nós iremos anular essa confissão. E o mais vil bandido, que não tiver um advogado de defesa, Ministra Rosa, terá direito a um defensor público para defende-lo. Quem defende a mulher e a criança no seio familiar, dentro de casa? Não há ali, defensor dativo, não há um advogado a ser nomeado51.

No mesmo sentido, de balanceamento de valores, o Ministro Marco Aurélio, relator do acórdão, afirmou:

49

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. 50 Os ministros que se utilizaram, ou pelo menos mencionaram, o art. 226 da Constituição Federal em seus votos foram: Marco Aurélio, Rosa Weber, Dias Toffoli, Luiz Fux, Ayres Britto, e Celso de Mello. 51 Voto do Ministro Dias Toffoli. ADI 4424, p. 63

49

Indago: coaduna-se, harmoniza-se, com o tratamento exigido pelo § 8º do artigo 226 da Constituição Federal, no tocante à necessidade de o Estado implementar a proteção para coibir a violência doméstica, ter-se como imprescindível a representação? Representação que, na maioria dos casos, não ocorre. A agressão dá-se entre quatro paredes e fica, quase sempre, escondida. Entender-se possível o recuo, visando a manutenção da família, é algo irreal. Precisamos sopesar valores52.

A obrigação do Estado, portanto, se faz necessária em situações de desequilíbrio. Por isso, ao não se exigir a representação, o peso da escolha deixaria de recair sobre os ombros das mulheres. Tal argumento, inclusive, é levantado pelas atrizes da rede. A psicóloga do Núcleo Especializado de Promoção e de Defesa do direitos da Mulher, Anna Carolina Cabral, pondera: Ela tá no limite, ela já não aguenta mais, ela vai fazer a denúncia, aí o cara sabe e ai ameaça pra ela retirar, renunciar, mas como já não depende mais dela, acho que isso até , pensando nos agressores, eles já colocam mais seriedade na Lei. E é isso que eu te falei, é pensar que essa ação, essa agressão ela não é aceita pela sociedade, ela não é uma escolha da mulher, a sociedade não aceita53. (grifos meus)

Não obstante, nem todos os ministros e nem todas as integrantes da rede entrevistadas concordam sobre esse tipo de atuação estatal. A visão do Presidente, Cezar Peluso, novamente, vai no sentido contrário a ideia de Estado protetor. Para o magistrado, natureza pública e incondicionada da ação não impede que sejam desferidas agressões contra a mulher, ou seja, não implica necessariamente numa maior proteção. O Ministro alude, inclusive, a possibilidade de acirramento das atitudes violentas, uma vez que o ofensor não aprovará a existência de um processo criminal em seu nome54. De modo semelhante, algumas das entrevistadas advertem sobre os limites de atuação do Estado nos casos de violência doméstica. Para elas, a

52 53 54

Afirmação do Ministro Marco Aurélio no debate da ADI 4424, p. 19 Fala da psicóloga do NUDEM, Anna Carolina Cabral. Anexo II, p. 90 Voto do Ministro Cezar Peluso, ADI 4424, p. 93

50

existência de um processo criminal contra o agressor não seria suficiente para proteger a vítima de possíveis violências e ameaças. A delegada entrevistada afirma inclusive que a incondicionalidade é uma forma de ingerência do Estado na vida da mulher, isto porque não respeitaria o tempo de amadurecimento e das escolhas dela. A ativista Rute Alonso, de maneira parecida, alerta sobre os efeitos desse olhar, que ela considera verticalizado, do Estado sobre a mulher. Assim, ao tratá-la como incapaz de realizar suas escolhas, o poder estatal não necessariamente garante sua tutela, mas com certeza diminui seu status de sujeito de direitos. Por isso, a resposta ideal, apontada pela ativista, talvez não seja retirar a escolha da vítima, mas antes de tudo subsidiá-la.

51

4.2 O desequilíbrio entre sistema jurídico e sistema assistencial: o pulo do gato da Lei Maria da Penha O problema é que o Direito Penal ele te oferece uma resposta muito limitada, ou seja, a resposta legal ela é sempre uma resposta genérica para problemas que não são genéricos, para problemas que não são concretamente específicos55.

A fala acima, da pesquisadora Carmen Hein de Campos, explicita uma das principais limitações da resposta jurídica conferida pela representação incondicionada, qual seja a definição de uma única resposta para diferentes tipos de casos individuais. Afinal, cada mulher tem seu tempo e sua história, cada uma delas totalmente única. Por isso, talvez, o Direito não seja capaz de sozinho cuidar de toda a complexidade das situações de violência. A fala da pesquisadora Carmen Hein continua, e explica melhor essa ideia: E o problema é que a resposta do Direito Penal ela é uma resposta genérica, ela é um sim ou não, quando existem situações de talvez, se for de outro jeito. Então, eu acho é um dilema que o Direito Penal não vai nos resolver. Nem todas as situações tanto, assim como eu não posso dizer nunca em nenhum caso representação, eu não posso dizer em todos os casos representação. E esse é o problema, o Direito Penal me diz: ou em nenhum caso, ou em todos os casos56.

Parece, então, que para responder as lacunas deixadas pelo Direito em casos complexos como a violência doméstica, é preciso recorrer a outras áreas do conhecimento, como a psicologia e o serviço social. Os aspectos assistenciais da Lei Maria da Penha, presentes no título III da legislação, são os mais valorizados e celebrados pelas entrevistadas57. A lei foi

descrita

pelas

atrizes

com

palavras

como

integralidade

e

tridimensionalidade. Tamanha valorização pode ser observada nas falas da psicóloga

Branca

Paperetti

e

da

promotora

Gabriela

Manssur,

respectivamente.

55

Fala da pesquisadora Carmen Hein de Campos. Anexo II, p. 104 Fala da Pesquisadora Carmen Hein de Campos. Anexo II, p. 104 57 O título III da Lei 11.340/06 abarca as medidas integradas de prevenção, as possibilidades de prestação de assistência por determinação judicial e a o atendimento policial. 56

52

O grande pulo do gato da Lei é a questão preventiva, é a questão da visibilidade dela, então que a violência doméstica, violência de gênero possa ser percebida por todos os segmentos da sociedade, que isso venha na educação, essa sensibilização pras questões de gênero 58 . E a Lei Maria da Penha tem essa caráter que eu falo tridimensional. Um: rede de acolhimento, ela precisa ser inserida na rede de acolhimento. Dois: a punição propriamente dita que aí sim é o processo penal, os casos que exigem representação, e os casos que não vão exigir representação, ou os casos que são queixa-crime. Mas prevê expressamente. E três: a ressocialização do agressor, isso eu acho fundamental, porque 65% dos casos são cometidos pro reincidentes59.

Tais aspectos – acolhimento e ressocialização – não foram enfaticamente considerados pelos Ministros do STF. Uma hipótese possível para esse fato talvez resida no próprio objetivo da ADI, qual seja dar uma resposta sobre a condicionalidade da ação nos casos de lesão e violência doméstica. Por isso, a ideia de proteção da mulher quase sempre foi referida pelos magistrados como uma consequência da atuação Estatal no sentido de retaliar o agente do crime. O seguinte trecho do voto do Ministro Marco Aurélio revela essa perspectiva: Esvazia-se a proteção, com flagrante contrariedade ao que previsto na Constituição Federal, especialmente no § 8º do respectivo artigo 226, no que admitido que, verificada a agressão com lesão corporal leve, possa a mulher, depois de acionada a autoridade policial, atitude que quase sempre provoca retaliação do agente autor do crime, vir a recuar e a retratar-se em audiência especificamente designada com tal finalidade60.

A incondicionalidade da representação enquanto resposta punitiva, além de não parecer muitas vezes adequada para as atrizes da rede, na maioria das entrevistas foi considerada pouco eficiente se dissociada do trabalho preventivo. Mais uma vez, um exemplo da promotora Gabriela Manssur explicita a necessidade de um acompanhamento integral das vítimas de violência doméstica.

58 59 60

Fala da Psicóloga do CRM Casa Eliane de Grammont, Branca Paperetti. Anexo II, p. 94 Trecho da fala da promotora Gabriela Manssur. Anexo II, p. 142 Voto do Ministro Marco Aurélio, ADI 4424, p. 12

53

A punição isoladamente nos crimes de violência contra a mulher não basta. Isso eu já tenho prova eu já pedi protetiva, eu já prendi, já ficou preso três anos e já matou a mulher. O que que eu fiz? Aplique a Lei Maria da Penha? Apliquei, lutei, pus essa mulher na rede, eu protegi a mulher, mas eu não tratei dele. Ele saiu de lá e matou a mesma mulher. E eu me senti a pior promotora do mundo61.

A maior parte das falas, dessa maneira, seguiu no sentido de pensar a ampliação da presença estatal no âmbito preventivo, isto é, por meio de políticas públicas e do fortalecimento dos equipamentos das redes. A ênfase no sistema jurídico, dada meio da representação, foi considerada por algumas das atrizes como uma resposta incompleta. Uma das falas mais críticas e interessantes sobre este ponto, foi feita pela advogada e ativista Rute Alonso, na qual ela reflete: Se o Estado, de fato, tivesse interessado numa vida sem violência pras mulheres, acho que haveria investimento em outras coisas. Tantas coisas que na prática daria pra fazer em outros espaços, na UBS, na escola, na própria assistência, mas em outros equipamentos. O equipamento onde eu trabalho, a gente trabalha muito em prevenção também. Então ter um maior investimento na prevenção, do que depois quando a mulher tá lá toda machucada e você diz que ela não tem pra fazer, pra decidir sobre a vida dela62. (grifos meus)

A

necessidade

da

representação

incondicionada

parece

surgir

em

decorrência, não só da falta de investimentos no sistema assistencial, mas também como resultado de um mal serviço prestado, com deficiências e dificuldades para oferecer informações e o acolhimento adequados. Para várias das entrevistadas, o mal atendimento se relaciona quase que diretamente às DDMs e sua posição na rede de enfrentamento.

61 62

Trecho da fala da promotora Gabriela Manssur. Anexo II, p. 143 Fala da ativista e advogada do CDCM de Guaianazes, Rute Alonso. Anexo II, p. 169

54

4.3 O papel da Delegacia: “ninguém gosta de polícia” O espaço que a Delegacia ocupa dentro da estrutura de combate à violência doméstica parece ser central para as entrevistadas. Afinal, é ali que tudo começa: o boletim de ocorrência, a representação, o inquérito e o pedido das medidas protetivas de urgência. A demanda diária – em média são atendidas na DDM entrevistada de quinze mulheres à vinte mulheres – e a falta de funcionários no quadro são justificativas para que um atendimento diferenciado não aconteça. Tanto que, a própria delegada reconhece a centralidade da DDM, bem como suas limitações. Qual o primeiro local que você vai quando acontece um crime? É na delegacia. É o primeiro local que elas tem que ser atendidas. E elas procuram a gente. A gente não consegue dar conta da demanda que recebe hoje de uma forma, eu não vou te dizer de excelência, porque é difícil um serviço público atingir a excelência. Mas eu acho que a gente da conta da demanda de uma forma satisfatória. Todo mundo meio que torce o nariz pra policia, mas esquece que é aqui que a maioria das coisas começam63. (grifos meus)

Igualmente, a advogada Rute Alonso enfatiza o papel das delegacias quando o tema é representação:

Então, não sei se eu vou te satisfazer. Quando eu penso na representação eu vou quase meio que associar com a Delegacia, tá? Porque essa representação só vai vir por conta de ter acionado a Delegacia, ou ter elaborado o boletim de ocorrência64.

A centralidade das Delegacias de Defesa da Mulher não só é problematizada por parte das entrevistadas, como também é explicada por elas. Segundo algumas integrantes alertam, o fato de ser necessária a representação para que seja produzida uma reação positiva do Estado tem como uma possível consequência negativa a promoção de uma estrutura que prioriza o caminho policial e jurídico frente as opções preventivas. A fala da defensora pública Yasmin Pestana ilustra bem esse ponto:

63 64

Fala Delegada. Anexo II, p. 121 Fala da Advogada Rute Alonso. Anexo II,p. 164

55

Eu acho que tá muito distante se desvincular o processo criminal, porque toda a estrutura de combate a violência doméstica tá calcada nas delegacias, nos procedimentos criminais. E eu acho que tem que ser mesmo, mas também é isso, um olhar um pouco mais inclusivo das dificuldades que as mulheres enfrentam pra acessar o sistema de justiça, né65? (grifos meus)

Na mesma toada, é interessante observar que a incondicionalidade obriga as delegacias a investigarem o relatado, procedimento este que, segundo algumas das entrevistas, supriria a lacuna informativa ou os problemas de comunicação resultantes da burocracia das DDMs. Tal fato aparece com relevante, principalmente quando os crimes de ameaça são mencionados. Isso porque, ao contrário dos crimes de lesão, o processamento da ameaça depende da representação da ofendida. E segundo as falas coletadas, as investigações realizadas sobre o crime de ameaça – ainda que o número de registros sobre esse crime, aparentemente, seja maior de todos – são muito desiguais se comparada às lesões. Tal fato seria revelador não só da seletividade para com o tratamento de crimes que envolvem violência psicológica,

como

também

dos

efeitos

práticos

produzidos

pela

incondicionalidade. Além do papel investigativo, outra característica importante que diferencia a DDM de outros serviços é o poder de produzir documentos oficiais e acionar a justiça. Assim, são as delegacias as responsáveis por lavrar o boletim de ocorrências, ou seja, por realizar o primeiro registro oficial. Sobre essa atividade, a entrevistada Rute Alonso destaca: Tem um fetiche atrás do boletim de ocorrência, né. Como se você registrasse um boletim de ocorrência mudasse a vida. Tinha uma mulher que eu atendi essa semana também e ela disse: não, porque eu quero um encaminhamento pra fazer um boletim de ocorrência. E pra que? Ah porque querem construir uma grade na frente da minha casa. Ah mas o boletim de ocorrência não serve pra isso. Não, não, mas eu recebi a instrução de que sim servia. Não, ele tem uma outra função, né? Então acho que a gente parte de muito desconhecimento, de muita crença66.

65 66

Fala da Defensora Pública, Yasmin Pestana. Anexo II, p. 184 Fala da ativista Rute Alonso. Anexo II, p. 164

56

O registro do boletim de ocorrência, como demonstrado no fluxograma (p.15), é um procedimento necessário para que ocorra a representação. Ao mesmo tempo, como explica a advogada Rute Alonso, a falta de informação sobre as características e finalidades desse documento – qual sejam uma simples auto declaração com o objetivo de realizar a notícia crime – podem resultar numa supervalorização do B.O, e até mesmo na sua má utilização. Para as situações de violência doméstica, a presença do boletim de ocorrência foi apontado pelas entrevistadas como essencial não só por permitir a representação, mas

também por propiciar a realização dos

pedidos de medidas protetivas de urgência.

57

4.4 Medidas Protetivas de urgência As medidas protetivas estão elencadas no art. 22 da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) e têm como objetivo principal obrigar o agressor fazer ou não

fazer

as

condutas

determinadas

67

.

Assim,

se

comparada

a

representação cujo poder é iniciar um processo criminal, a medida protetiva é a concreta e primeira resposta dada pelo Estado ao problema enfrentado pela vítima. Segundo o disposto na Lei Maria da Penha, um dos procedimentos possíveis de serem adotados pela autoridade policial consiste justamente em remeter expediente ao Juiz no prazo de 48h com pedido de protetiva para a ofendida. E é neste momento que a representação e as medidas de proteção se entrecruzam. Um vez que, na prática, ambos procedimentos foram apontados como vinculados. A explicação dada pela delegada sobre os procedimentos ordinários da DDM explicita essa vinculação:

67

art. 22 da Lei 11.340/2006: Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios. § 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público. § 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso. § 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. § 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).

58

Na verdade, se ela fizer o B.O hoje, for ouvida, e quiser a medida protetiva, a gente já faz o pedido. Tá? E nos crimes de ameaça, nos crimes que vão demandar representação, a medida protetiva a gente faz junto com a representação. Porque infelizmente elas ainda não estão desassociadas do inquérito policial. Algumas eu mando (para o JVD) utilizando a decisão do STJ que entende que ela é uma medida cautelar de cunho satisfativo, que não necessita de um inquérito policial de procedimento criminal, porque ela integra a própria pretensão da vitima. Como a vara aqui ela não nos comunica se concedeu ou não, eu não sei te dizer se foram ou não concedidas68.

Como relata a delegada entrevistada, a prática demonstra que pedido e consequente deferimento das medidas protetivas pelas varas dos Juizados de Violência Doméstica depende da existência de um boletim de ocorrência. No mesmo sentido, a promotora Gabriela Manssur afirmou: Outra questão: a autonomia das medidas protetivas. As medidas protetivas podem ser aplicadas independentemente da medida de um crime ou da vítima querer processar? Por exemplo, eu estou sofrendo ameaça, eu não quero processar, mas eu preciso de proteção, eu preciso de uma medida protetiva. O descumprimento de medida protetiva causa crime de desobediência? Pode prender em flagrante? São questões que são atuais e que o STF ainda não se pronunciou em relação à isso69.

Assim, um que um dos principais obstáculos práticos apontados pelas entrevistadas foi, justamente, no sentido de pensar a independência das medidas. Isto é, assegurar que o pedido das medidas protetivas possa ser realizado e aceito por vias distintas do boletim de ocorrência, como por exemplo, por meio de uma petição inicial. A principal vantagem, destacada pelas atrizes, dessa possibilidade é permitir que a concessão da proteção sem o processamento de uma ação penal. A delegada entrevistada enfatizou bem essa ideia: É o que eu te falei, às vezes a pessoa quer a medida protetiva, ela quer afastar o cara da casa, não quer mais conviver com ele, mas ela não quer processá-lo70.

68 69 70

Trecho destacado de entrevista com a delegada. Anexo II, p. 118 Fala da promotora Gabriela Manssur. Anexo II, p. 145 Fala da delegada entrevistada. Anexo II, p. 125

59

Sobre esta polêmica apareceram duas posições distintas. A primeira delas, defendida pela juíza entrevistada, sustentou a vinculação das medidas a existência de um procedimento criminal. Tanto que as vezes tinham umas situações que a medida protetiva ia até o transito em julgado da decisão. E aí depois a pessoa falava mas e agora? É meio que um limbo dessa questão das medidas protetivas. Aí tem que ficar esperando ele de novo fazer alguma coisa? Então isso era uma questão. Mas não tinha, eu não via na época amparo legal. Porque elas tem a natureza cautelar, né? Então, na minha visão, teria que estar vinculado a um fato principal, a um delito que foi cometido (...) você restringir os direitos fundamentais de uma pessoa por prazo indeterminado sem vincular isso a uma forma cautelar, eu não sei. Acho complicado71. (grifos meus)

Já a segunda visão, apresentada como tese jurídica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, sustentou a desnecessidade do Boletim de ocorrência para a realização do pedido das medidas. Hoje o Núcleo ele defende que as medidas protetivas independem do boletim de ocorrência. E a gente faz essa defesa, muito por entender, que é isso, a proteção da mulher não deve depender de nenhum processo criminal, até porque, é isso, muitas mulheres têm medo, muitas mulheres acham que o processo criminal pode ampliar a violência que elas tão vivendo, muitas mulheres, é isso, elas não querem ter envolvimento criminal, mas querem a medida protetiva72. (grifos meus)

O STF curiosamente não abordou essa questão na decisão estudada, e a expressão medidas protetivas de urgência não foi sequer mencionada no acórdão. Muito menos vislumbrou-se nos votos qualquer relação entre o deferimento das medidas protetivas de urgência e a existência ou não da representação. É difícil entender o porquê deste fato, mas talvez seja possível pensar que a autonomia das medidas não fosse uma questão à priori, ou a época do julgamento. Como sugerem algumas das atrizes, a correlação entre o boletim de ocorrência e as medidas protetivas de urgência é em grande parte resultado de uma prática adotada pelos

71 72

Fala da juíza. Anexo II, p. 158 Fala da Defensora Pública Yasmin Pestana. Anexo II, p. 174

60

Juizados Especializados. De tal modo que, possivelmente, para o STF a polêmica em torno da natureza das medidas protetivas não existia.

61

5

Autonomia da vítima: a mulher enquanto sujeito de direitos

5.1 Vulneráveis, sofridas, maltratadas e frágeis: como o STF descreve as mulheres? Os olhares dos magistrados sobre as mulheres em situação de violência se revelam

em

grande

medida

pela

maneira

como

as

descrevem,

principalmente por meio dos adjetivos escolhidos para caracterizá-las. Algumas vezes esses olhares se mostram depreciativos ou negativos. A pergunta levantada pelo Ministro Ricardo Lewandowiski em seu voto exemplifica essa visão: o que acontece com a mulher, sobretudo a mulher fragilizada que se situa nos extratos inferiores da camada social? Ela está exatamente nesta condição: sob permanente temor de sofrer um dano pessoal73.

A concepção de mulher reproduzida pelo Ministro é da fragilizada, pobre, que não está apta a decidir, antes está paralisada pelo temor. Este tipo de descrição que essencializa a condição feminina se fez muitas vezes presente na retórica da igualdade material. O discurso da hipossuficiência e da vulnerabilidade histórica que precisam ser corrigidas, ainda que utilizado para

justificar

uma

conduta

positiva

do

Estado,

também

pode

se

transformar em uma armadilha contra a mulher, principalmente a mulher pobre, sem escolaridade A

Ministra

Carmen

naturalização

da

Lúcia

ideia

comenta

de

essa

questão,

vulnerabilidade

e

feminina,

problematiza

a

destacando

a

contingência desta característica. E isso que hoje se diz, ainda não sei se com certo eufemismo, com certo cuidado, de que nós somos mais vulneráveis, na verdade, significa que somos mulheres maltratadas, mulheres sofridas, todas nós que passamos por situações que, na generalidade, não deveríamos passar74.

73 74

Voto do Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 4424, p. 67 Fala da Ministra Carmen Lúcia na ADI 4424, p. 65

62

De maneira semelhante, Rute Alonso destaca o processo de objetificação da mulher como uma possível consequência desse olhar, que ela considera, verticalizado: Mas é porque eu olho ela não como sujeito. Eu olho essa mulher.. como você já viu essa gente simples? No direito tem muita gente que fala ai essa gente simples. Mas não é gente simples, é gente que não teve acesso ao conhecimento que você tem. E se você explicar ela vai ter capacidade pra dizer alguma coisa, né? Porque assim ela tá toda machucada, e tal. Ai se quer o registro? A gente registra né. E ai explicar... Mas assim é construir com ela75.

É preciso observar também que em nenhum dos votos aparece menção a ideia de construção conjunta das soluções entre o Estado e a mulher. A resposta dada pelo STF, talvez por não tratar dos aspectos preventivos e assistenciais da lei, é sempre unilateral. Isto é, depende de uma ação combativa do Estado,

e ainda que legitimada pela Constituição, não se

respalda nas iniciativas e movimentos individuais da mulher.

75

Fala da ativista e advogada Rute Alonso. Anexo II, p. 166

63

5.2 E quando os processos ocorrem contra a vontade da mulher, o que acontece? Conforme exposto, uma das maiores, senão a maior, desvantagem da representação incondicionada foi justamente a criminalização da situação ocorrida contra a vontade da mulher. Situação que pode ser explicada inúmeras vezes pelas entrevistas. O Ministro Cezar Peluso, voto vencido, foi o

único

a

apresentar

argumentos

no

sentido

de

se

respeitar

a

individualidade das situações envolvendo violência de gênero. Alega-se que a mulher ignora – vamos dizer – as sutilezas jurídicas de uma ação pública. E, neste caso, para mim, a situação é ainda pior. Por quê? Porque há o risco dela ser, continuando a conviver com o parceiro que a ofendeu – e pode ter sido ofensa eventual e isolada – , no meio dessa convivência eventualmente já pacificada, mediante renovação do pacto familiar, ser surpreendida com uma sentença condenatória76. (grifos meus)

É muito interessante, nesse contexto, observar a similaridade entre o exposto pelo magistrado, e a colocação de uma das entrevistadas, a pesquisadora Carmen Hein de Campos. Eu posso ter uma situação em que a mulher realmente não quer representar, porque já resolveu o problema, porque ou separou ou juntou, ou resolveu de outra forma, e não tem mais interesse, quer simplesmente colocar uma pedra no assunto77.

Tal posicionamento foi veementemente rebatido pela Ministra Carmen Lúcia e o Ministro Marco Aurélio, afirmando que a proteção reside no fato da ação incondicionada não exigir uma postura da mulher que confronte o companheiro agressor. Assim, se por um lado, quando a mulher recorre à delegacia, seu intuito é receber uma resposta concreta – como defende a Ministra Carmen Lúcia – por outro lado, a impossibilidade de retratar-se parece gerar consequências complicadas.

76 77

Voto Ministro Cesar Peluzo na ADI 4424, p. 92 Fala da pesquisadora Carmen Hein de Campos. Anexo II, p. 104

64

O momento dos Debates na ADI é ilustrativo quanto a esse dilema: O SENHOR MINSITRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE)- Mas isso é pior, Ministra, vou lhe dizer por quê: ela dá uma notícia sem saber das consequências. A SENHORA MINSITRA CÁRMEN LÚCIA – Não, não. Na hora que ela vai e representa, ela vai querendo que tenha consequências jurídicas. O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE) – E a ação se processa, e ela tem uma surpresa, a do resultado da ação. A SENHORA MINSITRA CÁRMEN LÚCIA - Ela vai querendo consequências. E quando se pergunta o que ela quer, ela diz que quer justiça. Ela quer que o Judiciário funcione, é isso78.

E que consequências são essas? Na teoria, a incondicionalidade aumenta o número de casos obrigatoriamente analisados pelo judiciário, o que poderia ser interpretado como uma maneira de fazer justiça. Na prática, uma das principais consequências apontadas é o processamento de um ritual criminal sem o consentimento, e muitas vezes sem a compreensão da vítima. Por isso mesmo, talvez o grande imbróglio da incondicionalidade resida no fato de transformar o que seria uma proteção em um procedimento indesejado. Assim, se antes, com a Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais) a conciliação obrigatória não respeitava os desejos e o lugar de fala da mulher, parece que a representação incondicionada como substituição do antigo modelo, tampouco conseguiu proporcionar uma escuta ativa da vítima.

Tanto

é

que

um

dos

possíveis

efeitos,

mencionados

pelas

entrevistadas, seria a produção de relatos controvertidos pelas mulheres nas audiências. A juíza entrevistada ao descrever a prática das audiências explica como esse fenômeno ocorre: Acaba acontecendo na prática de muitas dessas mulheres ficarem indignadas durante a audiência de não poderem encerrar aquela ação, elas ficam muito bravas, tem mulheres que mentem, sabe? Sim, porque elas se arrependem de terem denunciado o companheiro, e dai não tem mais como voltar atrás como acontecia antes. Algumas como foi logo depois da mudança: a mais não podia

78

Debate extraído da ADI 4424, p. 20

65

voltar atrás? Eu achei que pudesse...Então era uma situação que a gente enfrentava nas audiências, das próprias vítimas que também ficam numa situação complicada, elas depois mentirem como se elas na verdade denunciado falsamente aquela pessoa79. (grifos meus)

Como pode-se observar na fala acima, nem sempre a proteção pelo sistema jurídico consegue se concretizar. Em alguns casos, as próprias estruturas se voltam contra aquelas que pretende tutelar. Conforme alertou o Ministro Luiz Fux, é possível que a mulher experimente do próprio veneno80. E como isso seria aconteceria? Uma possível resposta parece residir na possibilidade das vítimas ocuparem o banco dos réus pelo crime de denunciação caluniosa81. Conforme relatam algumas das entrevistadas, as mentiras produzidas em audiência pelas mulheres vítimas com o intuito de desfazer as acusações podem gerar algum tipo de responsabilização penal dessas mulheres. A defensora Yasmin Pestana destaca essa possibilidade: É isso né, a mulher às vezes faz uma denúncia, mas depois não quer continuar. E o Ministério Público fica bravo com a mulher, porque ela não quer continuar, porque conta outra versão. E aí ameaça ela de que vai fazer uma denúncia sobre crime de denunciação caluniosa. Então, as próprias mulheres viram rés82.

As falas das atrizes revelaram, interessantemente, que quando os processos criminais acontecem contra a vontade das mulheres isso além de causar desgastes e desconfortos para a vítima, também pode gerar consequências jurídicas negativas.

79

Fala da juíza. Anexo II, p.151 Afirmação do Ministro Luiz Fux na ADI 4424, p. 21 81 A ocorrência desse acontecimento foi apenas mencionada como uma possibilidade por algumas entrevistadas. De modo que o tema da denunciação caluniosa nos casos de violência doméstica precisa ser melhor investigado. 82 Fala da Defensora Pública Yasmin Pestana. Anexo II, p. 183 80

66

5.3 Autonomia como fortalecimento e os caminhos na Rede A discussão sobre as possibilidades de escolha da vítima seja de iniciar o processo penal, seja de desistir dele, perpassa pelo entendimento do conceito

de

autonomia.

independentemente de

E

no

caso

das

entrevistadas

da

rede,

suas opiniões pessoais sobre a representação,

parece que a autonomia das mulheres foi pensada sob as bases do fortalecimento e do empoderamento das mulheres. Sob está ótica, a fala da Defensora Yasmin Pestana é muito ilustrativa: Então eu acho assim, o ideal seria, do meu ponto de vista, que tivesse todo esse trabalho de fortalecimento da mulher pra que caso ela escolhesse pela opção pela via do processo criminal ela soubesse o que é a representação, tivesse esse esclarecimento e optasse por isso. E aqui eu acho interessante colocar que não é um respeito à autonomia da parte da mulher do ponto de vista liberal assim, tipo vamos respeitar porque é um indivíduo tem livre arbítrio, acho que não é isso. Acho que é pensar também o que a representação, o que a ação pública incondicionada, quais os efeitos de você deixar todo os crimes de violência doméstica como ação pública incondicionada tem sobre a vida daquela mulher83. (grifos meus)

A noção de fortalecimento pareceu estar intimamente relacionada com o ato de oferecer informações e condições tanto emocionais como materiais para que a mulher possa escolher. A promotora Gabriela Manssur, nesse sentido, definiu empoderamento da seguinte forma: E aí você vê se essa mulher precisa ser inserida, inserida na rede protetiva. Ah não to correndo risco, não quero proteção. É, mas você precisa de trabalho?’’ Você não quer conversar com outras entidades? Tem que empoderar. E o que é empoderar? É dar autonomia pra mulher pra decidir84.

Especificamente quanto a representação a psicóloga Anna Carolina Cabral do NUDEM pondera exatamente no mesmo sentido de oferecer opções: Deixar isso como como poder de decisão da mulher é importante. Mas desde que ela seja de fato muito bem informada sobre o que é a representação, o prazo que ela

83 84

Fala da Defensora Pública Yasmin Pestana. Anexo II, p.177 Fala da promotora Gabriela Manssur. Anexo II, p. 143

67

tem, por que tomar essa decisão, por que não tomar, e que isso seja realmente acompanhado. Se ela decidiu não representar, o que mudou85?

Do mesmo modo quanto a representação, a ativista feminista Amelinha Teles pontua:

E se na hora do julgamento, se a mulher mudou de ideia, se ela foi acompanhada, tem vários técnicos que participaram desse processo de mudança dela, não foi só ela, que podem tá subsidiando aquele processo, dando parecer ali: olha ela mudou, a coisa tá assim, né. A outra coisa é o seguinte: ela pode até na hora que o cara tá sendo julgado, ela falar olha eu preferia que não fosse mais julgado, porque mudou o comportamento comigo. Gente, porque se ela faz uma declaração dessa e a cara dela tá bem, você tá vendo, você tem que ter essa capacidade né, de olhar a cara das pessoas, e ver, a cara diz muita coisa86.

Como pode ser observado nas afirmações acima, o fortalecimento - que passa necessariamente pelo sistema assistencial de atendimento à mulher – permite que as situações de dúvida sejam trabalhadas, valoriza a escuta da mulher, de seus desejos. O fortalecimento, diferentemente da resposta jurídica,

não

preestabelece

um

caminho,

antes

procurar

construir

possibilidades de trajetória em conjunto com a mulher. É interessante perceber também que o fortalecimento das mulheres depende reciprocamente do fortalecimento das redes, ou seja,

vai de

encontro com o reconhecimento das entrevistadas do papel exercido pelo Estado na forma prevenção e acolhimento. A psicóloga e ex-coorderadora do

CRM

Casa

Eliane

de

Grammont,

Branca

Paperetti,

faz

alguns

apontamentos relevantes sobre o papel das redes: As pessoas não ficam um longo tempo trabalhando com isso. Elas se frustram muito, elas vão embora, elas adoecem, elas mudam (...) Então quando tá funcionando uma rede, uma micro rede, ou um serviço, de repente aquela pessoa, ou aquelas pessoas que estavam envolvidas não estão mais, e ai tem que começar tudo de novo. Essa sensibilização e essa capacitação tem que ser continuada sempre, e aprofundada. Então, eu acho que os serviços precisam funcionar em rede

85 86

Fala da psicóloga do NUDEM Ana Carolina Cabral. Anexo II, p. 91 Fala da ativista feminista Amelinha Teles. Anexo II, p. 84

68

mesmo, acho que precisa ter supervisão, supervisão clínica, supervisão pras redes, pras pessoas poderem suportar melhor, e funcionar melhor87.

Desse modo, se para os magistrados do STF, a autonomia da mulher vítima de violência, ou melhor a falta dela teve como resposta a imposição de um procedimento jurídico que obriga o Estado a processar criminalmente o agressor. Para as atrizes da rede, parece que autonomia das ofendidas foi pensada a partir da construção conjunta, entre rede e mulher, das condições emocionais e materiais necessárias para realização das escolhas. A atuação do Estado para a proteção da mulher, defendida largamente pela maioria dos Ministros na ADI 4424, não é refutada pela definição de autonomia adotada pelas atrizes. O exercício da autonomia não foi associado, por elas, a ideia de não interferência do Estado no livre arbítrio dos indivíduos. A presença estatal foi considerada positiva para a autonomia da mulher quando viabilizou mecanismos para o seu acolhimento e informação. Portanto, a atuação do Estado não foi totalmente contraposta ao exercício da livre escolha da mulher.

87

Fala da psicóloga Branca Paperetti. Anexo II, p. 98

69

6

Conclusões

A pretensão desta investigação consistiu em analisar a compatibilidade entre os argumentos dos Ministros do STF e das atrizes da rede de enfrentamento à violência contra a mulher sobre o tema da representação. O estudo sobre a representação foi considerado relevante, na medida em permite pensar os lugares ocupados pelas mulheres vítimas de violência doméstica nos processos judiciais. O objetivo deste trabalho, basicamente, se resumiu à organização dos principais pontos de acordo e controvérsia entre o STF e a rede quanto à incondicionalidade da representação nos casos de lesão corporal e violência doméstica contra à mulher. Para tanto, selecionei duas fontes de pesquisa: os

votos

dos

ministros

na

ADI

4424

e

as

entrevistas

com

nove

representantes de organizações da rede de enfrentamento à violência contra a mulher de São Paulo. O desenvolvimento da análise desse material envolveu a classificação dos argumentos, a partir de um recorte temático em três grandes tópicos: as disputas entre às aplicações da Lei Maria da Penha e da Lei dos Juizados Especiais Criminais, o papel do Estado, e as possibilidades de exercício da autonomia da vítima. Quanto

ao

primeiro

tópico,

foi

possível

perceber

a

aproximação

argumentativa entre os dois atores analisados, ou seja, tanto os votos majoritários do STF, quanto a maior parte das entrevistadas, consideraram ineficaz da Lei dos Juizados Especiais Criminais para o enfrentamento da violência doméstica. A tabulação das vantagens e desvantagens quanto a incondicionalidade da representação permitiu confirmar a hipótese formulada. Isto é, a rede não só

apresentou

quantitativamente

mais

argumentos

sobre

os

pontos

negativos e positivos sobre a incondicionalidade da representação, como também considerou aspectos e implicações práticas da representação. Alguns dos principais apontamentos, nesse sentido, levantados pela rede foram: o tipo atendimento prestado pelos serviços, o papel das delegacias,

70

a vinculação das medidas protetivas ao boletim de ocorrência, a produção de processos de denunciação caluniosa. Ao que parece, a tensão central do tema estudado, ou seja, a oposição entre o papel do Estado e o exercício de expressão de vontade da vítima, é aparente. Conforme demonstrado, principalmente por meio do relato das atrizes da rede, não existe necessariamente uma contradição entre a atuação do Estado e a autonomia da mulher, ambos podem conviver. Mais ainda, a presença estatal na forma de serviços das redes de atendimento pode se desenvolver reciprocamente ao fortalecimento das mulheres. De tal modo que a pergunta certa, ou mais precisa, talvez não seja quanto a incondicionalidade da representação, mas sim em relação aos caminhos e as formas de atuação do Estado. Por isso, se o STF em sua decisão consolida um entendimento voltado para a punição e responsabilização do agressor.

As

criminalização

integrantes

da

rede,

ainda

que

da violência de gênero, preferem

concordem

com

ressaltar um

a

olhar

preventivo e assistencial sobre a Lei Maria da Penha. Considero, portanto, que a principal conclusão desta monografia, ainda que aparentemente óbvia, é que o direito sozinho não serve para resolver questões complexas como a violência doméstica. A representação, dessa maneira, pouco importa se tomada isoladamente. O olhar do Estado e da sociedade sobre a mulher que sofre agressões familiares deve contemplar além de um atendimento jurídico, um cuidado assistencial especializado.

71

7

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75

Disponível

em:

http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-

content/uploads/2015/08/DATASENADO_PesquisaViolenciaDomesticacontra aMulher2015.pdf

Relatório anual (ano 2000) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos referente ao caso Maria da Penha. Disponível em: .

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Anexos

8.1 Anexo I: Roteiro Roteiro de Entrevista

I) Como a sua entidade trabalha com as mulheres em situação de violência e com a Lei Maria da Penha?

II) Como a questão da representação nas ações penais aparece no cotidiano de trabalho do seu serviço?

III) A sua instituição possui uma opinião consolidada sobre essa questão?

IV) Qual a sua opinião pessoal sobre o tema da representação em casos de violência doméstica? Acredita que ela é necessária ou não? Sempre ou só em alguns casos? Por quê?

V) Para você, quais as vantagens e desvantagens de exigir a representação para a persecução de penal dos crimes da Lei Maria da Penha?

VI) Você acha que a Lei Maria da Penha dá um tratamento adequado para a questão da representação?

VII) Você conhece a decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema da representação em casos de lesão corporal e violência doméstica? Se sim, qual a sua opinião sobre?

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VIII) Qual o papel que, na sua visão, o STF deve exercer em relação ao tema da violência de gênero? Você o considera como ator relevante?

IX) Por fim, você considera que a sua entidade integra a rede de enfrentamento a violência contra a mulher de São Paulo?

X) Acha que a rede possui opiniões diferentes sobre a questão da representação? Você poderia indicar pessoas da rede que trabalham com esse tema e que poderiam ajudar na pesquisa?

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8.2 Anexo II: Transcrição Entrevistas Amelinha Teles – Ativista Feminista e fundadora da União de Mulheres Luisa – Basicamente, a minha pesquisa é sobre a questão da natureza da ação penal, da representação incondicionada, nos casos de violência e lesão corporal na Lei Maria da Penha. E eu comecei a pensar, de repente, se quem trabalha com isso, na ponta e há muito tempo, tem o mesmo posicionamento que o STF. E, enfim, eu conversei já com a Defensora do NUDEM, entrei em contato com outras mulheres. Amelinha – Com a Ana Rita? Luisa – Com a Ana Rita, falei com a Rute também. Amelinha- A Rute Alonso? Luisa – É. Ela vai me receber também. E eu fiquei muito feliz também de você me receber também. Amelhinha – Ah legal. Luisa – E aí tudo bem responder umas perguntinhas? Amelinha – Posso claro. Luisa – Bom, eu queria que você falasse, se pudesse, como é que a sua entidade, no caso a União de Mulheres.. Amelinha – Fica ali na frente. Luisa – Ah é aqui perto? Amelinha - É assim, eu moro nos fundos e fica ali na frente. E eu falei pra gente vir pra cá, porque ali tem hora que é muito frio, e nossa.. Luisa – É? Amelinha – É, e hoje ta meio esquisito né? E eu to meio cansada, então fica muito frio. Mas é e eu moro aqui nos fundos. Luisa – Ah que legal. Bom, e ai eu queria saber então um pouco como a União trabalha, enfim, sobre as PLPs, sobre um pouco dessa ideia, só pra contextualizar. 79

Amelinha – Hã, eu acho que assim a União de Mulheres tem várias fases na sua existência, até porque ela tem 35 anos, vai fazer em dezembro. Então tem vários momentos políticos, e a União de Mulheres é um entidade autônoma, feminista e política. Enfim, nós entendemos o feminismo como um movimento político, inserido nesse contexto político. Portanto, isso tudo interfere muito nas nossas diretrizes. É uma organização aberta pra todas as mulheres, mas lógico que tem um objetivo, um objetivo assim de criar condições, de lutar pra que as mulheres tenham condições de serem protagonistas de suas próprias ações, esse é o primeiro objetivo, e um objetivo que a gente preserva muito em toda a nossa existência. E aí nós temos, resumidamente, dois caminhos, ou duas diretrizes. Uma voltada para ações políticas, manifestações, dependendo do que tá acontecendo, sempre articulado com outros movimentos, ou sempre, ou quase sempre, a gente busca ter essa articulação. E uma outra diretriz que é de formação. Então, PLPs corresponde a essa diretriz, mas preenche também a outra. O PLPs acabou sendo assim, o primeiro investimento nosso era de formação e multiplicação, e acabou sendo também um espaço de articulação política né. E das PLPs houve um desdobramento em relação a Lei Maria da Penha. Nós temos o projeto Maria-Marias que só trabalha com a Lei Maria da Penha. Luisa – Ah, o projeto do IBCCRIM? Amelinha – É. É que não é do IBCCRIM né, é nosso. Funciona no IBCCRIM, mas muita gente acha como o IBCCRIM é uma instituição mais formal e tem mais visibilidade, então todo mundo acha que é do IBCCRIM. Mas não é, é nosso. Nós oferecemos ao IBCCRIM essa possibilidade, de ter essa parceria né. E o IBCCRIM recebeu, acolheu com bom.. com um bom acolhimento, deu um bom acolhimento. Mas é um projeto que é a nosso, aqui da União de Mulheres. Luisa – Ah que legal. Amelinha – Então, basicamente é isso, pra resumir. Aí principalmente o Promotora Legais Populares é um projeto que aparece de tudo. Ele é um processo em permanente construção, ele não é um processo definido, vai

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ser assim, com esse objetivo, não. Ele vai sendo construído a cada ano com as próprias mulheres que participam. Luisa – Ah que legal. E ai pensando um pouco nas PLPs e todo esse objetivo incrível das mulheres construírem também o curso, e seus próprios caminhos, a relação das PLPs com a Lei Maria da Penha, você acha que de alguma maneira elas enfrentam a questão da representação, ou pelo menos como se processa uma violência domestica? Isso aparece no cotidiano delas, nas discussões? Amelinha – Isso aparece muito, principalmente no Maria Marias que a discussão é só sobre a Lei Maria da Penha, praticamente se discute todos os artigos da Lei. E ai a representação é um assunto que é muito discutido porque se a Lei muda o olhar do Estado em relação a necessidade do protagonismo das vítimas, portanto, a Lei obriga o Estado a dar uma resposta, a intervir. Todas as mulheres que buscam ajuda num serviço público tem que ter uma resposta do Estado. E essa resposta se ela é obrigatória, ela não pode depender de representação né, é óbvio que não. É isso que a gente entende. A própria Lei diz isso né, há uma discussão, há uma má vontade. Eu acho que a própria discussão é um pretexto pra não aplicar a Lei, entendeu? Fica assim discutindo...Até que em 2012 o STF tomou uma decisão definitiva, espera-se né, de que tem de fazer alguma coisa. A mulher dando uma queixa de que ela está sendo ameaçada, de que ela está sendo violentada, o Estado tem que fazer alguma coisa. Então a representação pra nós fica dessa forma. E muitas vezes nós discutimos. Por outro lado, a vontade, o protagonismo da vítima vai, inclui a vontade dela, né. Então, se em determinado momento ela não tiver em condições, ou ela não tem vontade de tocar o processo, o que devia acontecer é uma avaliação muito séria sobre isso. Não é assim, ah então você não quer tudo bem, como tem sido, tem aplicado até a Lei 9.099/95 que não podia ser aplicada na Lei Maria da Penha. Tá muito explícito isso gente. Em mais de um artigo né, de forma taxativa. Eu acho que é uma pegadinha contra nós, é uma forma de banalizar a violência de uma forma mais sofisticada. Parece que tá atendendo ao desejo, a vontade das mulheres, elas não querem. Mas eu não deva ser assim não, eu acho que se o Estado não tem 81

capacidade pra aplicar a Lei, e ainda não tem né, ai a gente nota isso, é então aplica do jeito que tá, a representação não, entendeu? Agora, se o Estado, se é que ele vai evoluir né pra uma postura mais democrática, eu acho que não, não tenho esperança mais. Pelo menos eu não vou ver esse Estado Democrático né, na minha idade eu não acredito que eu veja não, porque o Estado é muito autoritário, muito violento e muito pouco democrático, e cada vez menos. Mas se ele for evoluir pra um Estado Democrático, ai a representação pode ser...Não a representação, a suspensão do processo há de ser pensada não nos termos do JECRIM, nunca pode ser a suspensão do processo pode ter algo vinculado com aquela ideia de que é um crime de menor potencial ofensivo, esse que é o problema, entendeu? Então tem que ser com muito cuidado, eu penso assim né. Isso eu penso, discuto com as mulheres, as mulheres discutem, mas não quer dizer que todas as mulheres pensam desse jeito né. Aí se tá me entrevistando, você vai ver outras opiniões. Luisa – Claro. E pensando um pouco nisso que você acabou de colocar, muito legal, da representação também como uma forma de resposta do Estado e até proteção da mulher. Hoje a gente sabe que a representação ela só é incondicionada nos casos de lesão corporal, pensando sobre isso, você acha que ela deveria ser estendida pra qualquer outro tipo de crime? Ameaça, injuria.. Amelinha – Claro, claro. Eu acho, porque a ameaça é o principal crime pelo qual as mulheres procuram ajuda, é pela ameaça. E, então, a ameaça ela é totalmente desqualificada pelo Estado, não tem importância, você ser ameaçada não tem importância. E é justamente aí que você precisa de proteção mesmo, porque como a ameaça não te deixa marcas físicas né, visíveis, então você fica muito mais vulnerável. Ninguém acha.. Se você foi ameaçada, qual o problema gente? Pegou em você? Não. Bateu? Não. Então qual que é o seu problema? Você tá reclamando do que? Entendeu? Todo mundo é ameaçado filha, quem é que falou isso uma vez? Tem até alguém que falou isso uma vez, algum desses famosos ai. Não posso. Então, ou o Estado se propõe a cumprir a Lei, que o Estado acho que tem que cumprir a Lei, se bem que ele não tem cumprido. Mas se ele se propõe 82

a cumprir a Lei, então que cumpra com toda a integralidade que tem a determinação da Lei, ou seja, quando é ameaça também cabe, cabe. É essa mulher tá sendo ameaçada, então no mínimo nós vamos fazer um programa de atendimento que seja toda semana ela vir aqui pra vir falar como que tá a situação, ou acionar um de nós que tá aqui no caso de ela ver na ameaça grandes possibilidade de concretização, entendeu? Então eu acho que tem que ter o esquema. Mas eu acho, eu não separaria ameaça de lesão não, porque numa ameaça, que tem mulher que é ameaçada o tempo todo e depois é assassinada, ela não vai ter a lesão física, ela já vai ter o assassinato. Da ameaça para o assassinato, entendeu? Então eu acho que ameaça não é brincadeira não, é claro que tem a maioria das queixas das mulheres é ameaça, e nem

todas se concretizam. Porque se

concretizassem, nós já estávamos acabando praticamente com a população feminina do mundo, né. Daqui a pouco acaba, porque se concretizasse. Tá bom, o Brasil tem um feminicídio altíssimo, o Brasil tem que ver outros fatores também, tem que ver a sua política no todo né, aqui o feminicídio é um problema enorme né , enorme. Então não dá pra falar é ameacinha aqui,

não,

vamo

ver,

no

Brasil

tudo

é

possível,

esse

Brasil

tem

possibilidades. Já devia ter até jurisprudência, que não teve jurisprudência pra essas coisas né, ninguém se preocupa com isso. Aquela menina mesmo que foi assassinada aqui na UBS, aqui da República, a Fernanda Santé, ela ultimamente ela não era espancada por um homem, até porque ela fugia sempre dele. Ele só ameaçava (riso irônico), só ameaçava. A Juíza achou por bem indeferir o pedido dela de medida protetiva. Aquela Juíza devia sofrer alguma penalidade ali, alguma responsabilização criminal, porque o que ela fez levou a morte, quer dizer não pode ter esse tratamento burocrático né. Eu vou deferir tantas, vou indeferir tantas, e pronto ta resolvido o problema, isso aqui eu acho que não é violência de gênero, isto eu acho... Ela disse que não era violência de gênero, então o que que é violência de gênero pra ela? É o que? Entendeu? Ela não sabe o que que é, como é que ela tá no Juizado? E isso acontece no Brasil, então a gente não pode abrir mão, não pode abrir mão. A ameaça é tão grave quanto qualquer espancamento.

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Luisa – E pensando assim um pouco, do outro lado né, você acha que tem alguma desvantagem na representação, porque até agora você defendeu bastante.. Amelinha – Ah não! Só tem desvantagem.. Luisa – É? Amelinha – A representação? Luisa – Sim. Amelinha – Por isso que eu não gosto. Representação ainda mais com as mulheres, gente que confusão que faz, porque só vale até seis meses, eu tenho que representar durante seis meses, ai é aquela confusão, ai já pegou outro espancamento, ai eu tenho que ter advogado, porque se não tiver advogado não vai acontecer nada. Gente nós não temos advogados, será que não dá pra entender isso? A mulher que tá sem...Até com dinheiro ela ta sem advogado, se acredita? Às vezes ligam ai... Me procura a mulher: eu tenho dinheiro, o que é que eu faço? Minha filha, você pode contratar um advogado. Mas eu quero um advogado bom, porque os advogados não me explicam nada, contratei... Quando eu vou ver, já tem advogado, já tem procuração. Eu falo, então você não pode procurar outro advogado, tem que rescindir esse pra depois começar outro, é uma confusão, entendeu? E a própria polícia, o próprio Estado jogam com isso. O que que o Estado quer? O Estado quer nada. Ele quer que você leve uma boa advogada, uma boa assim: uma que fala bonito, que pode ser boa ou ruim, mas que chega lá com cara de advogada, aí ele te atende. Se você não vai com essa ele não te atende. Então representação pra mim, no caso da violência contra as mulheres, não to falando de representação pra todos os crimes não, não to falando pra todas as situações, to falando pra essa situação, só dá problema. Quando põe a representação, eu falo: Meu Deus do Céu, agora vou ter que arrumar um advogado pra essa mulher, e aonde que eu vou arrumar? A defensoria (campainha tocou).. você espera um pouquinho? Luisa – Com certeza.

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Luisa – Vamo lá ta acabando. Acho que algumas perguntas finais, assim. Você acha, enfim, apesar de tudo isso que você colocou que a Lei Maria da Penha dá um tratamento adequado pra questão da representação? Amelinha – Aí já é mais complicado né. Porque a Lei é ambígua, aquele artigo duzentos, dezesseis aliás, não é duzentos porque lá não tem duzentos (risos). Aquele artigo dezesseis ele fica meio, né? Fica meio embaralhado, meio difícil de entender, de entender uma pessoa leiga, porque talvez as pessoas que tão tecnicamente preparadas consigam né entender de forma mais fácil. Então é uma coisa, é uma coisa que eu diria, devia ser mais...Embora pra quem é da área do direito tá bem claro, né? Eu acho que tá, porque fala que não pode aplicar a Lei 9.099/95, fala que não pode, né. Eu acho que a Lei Maria da Penha tinha que ser mais explícita quanto a isso, e talvez o ideia fosse que ela tivesse mais, isso fosse mais objetivo, mais explicitado, com mais detalhes. E ai precisa até do próprio, o próprio movimento de mulheres tem que ser mais ouvido, as vítimas serem mais ouvidas, teria que ter uma consulta mais organizada a respeito disso né. Mas eu sou contra mexer na Lei Maria da Penha agora, eu sou radicalmente contra, porque eu não confio nesse Congresso, não merece a menor confiança da minha parte, eu sou radicalmente contra. Tanto é que nós fizemos um encontro com 300 mulheres e nós decidimos, foi com 300 mulheres, não foi com nem uma ou nem duas, foi com 300, e nós decidimos (telefone tocando). Luisa – Quer atender? Amelinha – Vou ter que atender. Amelinha - Pior que tem gente que liga de tudo quanto é lugar (risos). Bom, mas ai fala... Luisa – Bom, ai tem isso da Lei. Amelinha – Então, o que é que eu tava falando? Luisa – Do Congresso.

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Amelinha – Nós no encontro que nós fizemos (telefone toca)...Ela vai ligar de novo... No encontro que nós fizemos agora em agosto né, na ocasião do aniversário da Lei a gente sempre faz alguma coisa. Luisa – Pera ai vou dar um pause pra você atender. Amelinha – Ela quer me buscar amanhã, só que eu vou a pé, tem uma palestra lá na Santa Casa, tem um seminário sobre violência né. E eu vou Luisa – Ah você tava me contando do Congresso que vocês fizeram. Amelinha – Então, sempre no aniversário da Lei a gente faz o abraço solidário. Dessa vez foi muita gente, 300 mulheres, nem sempre a gente tem essa oportunidade de juntar tantas mulheres. E ai as mulheres viram que tem mais de cem Projetos de Lei pra mudar a Lei Maria da Penha, e que nós não vamos aceitar nenhum, porque a tendência é piorar, porque o Congresso não merece confiança. Não é só a mim, mas a todas que estavam presentes. Então não vamos querer mudança, mexer com a Lei é uma loucura. Ela tem que mudar, melhorar, aperfeiçoar? Tem. Mas tem que ser feito democraticamente, entendeu? Assim com essa onda conservadora que domina o Congresso, é muito perigoso, eles são autoritários, eles não ouvem ninguém, eles tem umas ideias estapafúrdias, e depois você não consegue mudar, então é isso. Luisa – E ai pensando um pouco também na decisão do STF, você conhece essa decisão que eu comentei de 2012? Amelinha – Eu conheço, é eu já vi, se quiser lembrar, eu conheço, é a decisão que fala que a Lei é constitucional não é isso? Que não pode usar a Lei 9.099. Quer dizer, fala o que já tem na Lei, o óbvio e ululante. E o que, que mais? Então, portanto, não pode ter representação. Luisa – E pensando nisso, assim na sua visão, o STF ele deve exercer algum tipo de relação ou algum tipo de decisão nova sobre a violência de gênero? Como você vê o papel do STF um pouco nessa questão? Amelinha – Eu acho que o STF é muito moroso, e muito manipulador. Eu tenho muito medo também do STF. Aliás eu to com medo de todas as instituições, to muito desconfiada. E ai eu acho que o STF, eles

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praticamente, se eu não me engano, você é uma conhecedora do assunto, eu sou uma ativista, se não me engano, esse STF ele discutiu mais o artigo 41 né, foi o art. 41. Se ele fosse um órgão mais sério já pegava a Lei por inteiro, e referendava toda a Lei, porque a Lei precisa ser referendada e melhorada. Hoje, por exemplo, toda a sexta feira eu discuto com o Maria Marias, eu tenho reunião lá no IBCCRIM, é lá. E o pessoal do IBCCRIM participa também, e nós estamos vendo assim que a questão da mulher que pode ser afastada do trabalho sem perder o vínculo empregatício, esse artigo é muito difícil de ser aplicado, e assim as advogadas que tavam lá elas colocam a dificuldade, não tem como, não ta detalhado, como faz, quando é funcionaria pública, quando é CLT, quando é terceirizado, tinha que colocar de acordo com a realidade do mercado de trabalho. Quando é informal, quando é formal, entendeu? Tem que colocar. Quando você fala trabalho fica uma coisa assim... Para o nosso país né, porque tem país que nem precisa detalhar tanto que já sabe que tem que garantir o emprego da mulher com salario e tudo. Dai no caso, não garante salario, tendeu? Então é complicado. Então o STF deveria ter estudado a Lei num todo, dado um parecer na Lei num todo, e podia até tratar do artigo 41. Como é que ele trata do artigo 41 sem estudar a Lei toda gente? É uma coisa esquizofrênica no meu modo de ver. Sabe por quê? Porque não dá para pra pensar que o art. 41 tem o 40 antes, tem o outro, tem o outro, tem outro, tem o outro, você entendeu? Não dá pra eu determinar assim uma decisão né. E foi bom pra nós, porque ainda que seja com toda essa precariedade, tava um embrólio, e resolveu, resolveu assim lá, porque na prática você sabe que a coisa é diferente. Resolveu lá, mas mesmo assim resolveu mal. O STF...Eu nunca to satisfeita com as decisões do STF, sabe? E eu to com esse medo pela mídia, não sou uma entendida no assunto, sou uma ativista e me preocupo com as decisões do STF, porque elas interferem muito na vida. Mas então, é isso que eu penso. Luisa – Tendi, muito legal. E só pra falar um pouquinho assim sobre a rede. Obviamente cada opinião de cada pessoa é diferente, mas você acha que a rede ela tende a ter um posicionamento que seja mais a favor da representação ser incondicionada ou...

87

Amelinha



A

rede,

você

ta

falando

qual

rede?

Luisa – A rede de enfrentamento, ou seja, tanto as entidades mais institucionais, defensoria, CRM, CDCM Amelinha – A rede é assim: a gente divide ela em duas partes, embora na atuação ela esteja misturada. Uma é a rede de atendimento, ai é a defensoria, casa abrigo, esse pessoal é a rede mesmo, é profissional, tem que atender. Luisa – Sim Amelinha – Outra é a do enfrentamento, dai somos nós, nós entramos as ativistas. Então, quer dizer, essa luta é nossa. Agora como essa luta é nossa, então mistura muito. Uma hora tamo discutindo lá com

o

atendimento, uma hora o atendimento ta discutindo aqui no enfrentamento, e a gente precisa ficar junto mesmo. Eu acho até que a rede devia chamar de atendimento e de enfrentamento, dai já punha todo mundo junto mesmo, porque é todo mundo junto, independente se você é profissional ou ativista. Porque precisa da opinião de todo mundo, do entendimento, da compreensão, né. Agora, a rede não quer saber de representação também não. Porque todo mundo critica. Em todas as reuniões que eu vou, eu não sei como é que é a moça lá do NUDEM, eles falam NÛDEM, eu falo NUDÉM, eu gosto do acento mais assim, sabe? Luisa – Tanto faz eu acho. Amelinha – É, eu falo NUDÉM. Eu gosto assim NUDÉM, eu acho bom falar, prazeroso, mas não NÛDEM. É uma besteira, né? Mas é, essa moça eu não sei como ela respondeu, mas eu acho que ela é contra também. Nós tamos todas juntas lá, todo mundo tá falando a mesma coisa. A gente fala muito igual, viu? Apesar de que uma é institucional, profissional, e tem toda, digamos uma formação completamente distinta da minha, mas nós, a gente se entende, estamos no mesmo barco, todas nós estamos defendendo as mulheres, cada um com a sua bagagem né. Luisa – E só ultima coisa eu queria saber é: quem é a contra a representação incondicional, ou pelo menos lendo os votos dos Ministros, não que necessariamente eles saibam defender as mulheres, um argumento 88

que eles colocam bastante é sobre como que forçar que um processo aconteça pode ir contra a vontade da mulher. Amelinha – Ah, então eles defendem a representação? Luisa – Então, em alguns casos eles defendem que sim tem que ter a representação. Amelinha – Pra não ir contra a vontade da mulher? Luisa – Isso, esse é um dos argumentos. De que nos casos de lesão corporal o Estado tem que agir independente da vontade da mulher, a representação é incondicionada. Mas em outros casos eles consideram que, enfim, a representação depende sim da mulher, depende da vontade dela começar e continuar no processo penal. Como é que você enxerga isso? Amelinha – Eu acho esse STF tão hipócrita. Por que não fala assim em relação ao aborto? Em relação ao aborto devia legalizar totalmente, porque as mulheres vão fazer o aborto, vão correr risco de vida, que é o de ficar mutiladas, e a vontade delas não é respeitada né deixando ilegal, porque as mulheres vão fazer o aborto, você entendeu? Porque eu acho que a questão da representação não precisa ter... E se na hora do julgamento, se a mulher mudou de ideia, se ela foi acompanhada, tem vários técnicos que participaram desse processo de mudança dela, não foi só ela, que podem tá subsidiando aquele processo, dando parecer ali: olha ela mudou, a coisa ta assim, ta assim, ta assim, né. A outra coisa é o seguinte: ela pode até na hora que o cara ta sendo julgado, ela falar olha eu preferia que não fosse mais julgado, porque mudou o comportamento comigo. Gente, porque se ela faz uma declaração dessa e a cara dela tá bem, você ta vendo, você tem que ter essa capacidade né, de olhar a cara das pessoas, e ver, a cara diz muita coisa. Se você olhar pra cara e ver que ela ta bem e falando aquilo de coração, o parecer técnico já chegou antes pro Juiz ou para Juiza, chegou dizendo houve uma mudança, eles tem se encontrado, ou mesmo eles separaram, mas se entenderam, ah assim, quer dizer ela não se sente mais ameaçada, ele pode ser até ajudado, absolvido, ser arquivado o processo, aí tem mil formas, maneiras da justiça fazer justiça, não tem? Pra não injustiçar. Eu acho que o problema é fazer a injustiça, né? Então faz 89

isso na hora, por que que não faz? Fala: olha, você perturbou muito aqui a justiça, me encheu o saco, porque toda hora você ta ameaçando essa mulher, entendeu?

Mas parece que durante os últimos seis meses você

melhorou, e tal. Ela pede, faz o parecer, pronto acabou. Agora, a justiça não tem capacidade de fazer justiça né, esse que é o problema, entendeu? Eu acho que os pareceres... Por que eles não falam isso em relação ao aborto? Uma situação terrível, a mulher solitária, você não tem pra quem apelar, é só você. Não tem pra quem falar. Um fala faz, outro fala não faz você vai morrer, o outro isso é crime, o outro não sei o quê. E você tá lá sozinha com seus botões: eu tenho que fazer, eu vou fazer. Tem quinhentas falas ao seu entorno, mas você vai dizer eu vou fazer. Por que eles não falam isso? Não dão um parecer ? Se eles estão tão preocupados com autonomia da mulher, com a vontade né. Respeita nisso, porque se não respeitar nisso, quanta confusão na vida das pessoas por conta desse aborto não ser legalizado. Porque a confusão vai para mãe, vai pro pai, vai pro marido, ex marido, ex namorado, pro filho, não fica só nela. Porque a sequela sempre tem, de um modo geral. (Telefone volta a tocar). Amelinha – Deixa eu ver se é a moça. Não acho que é outra, deixa eu ver aqui. Alguém ligou procurando a Laudelina, não conheço (Risos). Luisa – Ah, muito legal esse ponto de vista. E por fim, Amelinha, você acha que tem alguma pessoa legal pra você indicar também da Rede? Que você acha importante? Se não tiver também, não tem problema. Só pergunto pra ter uma pesquisa mais completa, né. Amelinha – Você pegou aquela menina Yasmin lá do Nudem? Luisa – Sim conversei com ela. Amelinha – Porque ela estudou a representação. Ela fez um TCC, que nossa é muito valioso. Ela é muito boa essa menina. Deixa eu ver quem mais. Tinha uma outra que deu uma aula lá no Maria Marias que eu to querendo lembrar o nome. Mas eu esqueci.. é uma Fernanda que é Defensora Pública. Outro dia o cara falou pra mim, o cara que é presidente do IBCCRIM disse

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que ele é casado com ela. André.. como chama o presidente do IBCCRIM? Vou ver se eu tenho aqui. (Sai da mesa para buscar um papel). Luisa – Mas acho que, talvez, presidente do IBCCRIM dá pra achar no google né. Amelinha – Aqui ó (me mostra o boletim do IBCCRIM). É esse cara aqui ó, quer ver. Ele falou assim ‘’eu sou casado com ela’’ e eu disse nossa que sorte, é inteligente essa menina hein. Luisa - (Risos) Amelinha – Olha só que confusão você vai ter que procurar com quem ele é casado (risos). E tem uma menina lá do IBCCRIM que também é muito boa Luciana Zafalon. Aí tem uma outra também que é muito boa, mas que ela ta meio recolhida por causa da tese dela que é Fernanda Castro, ou é Fernanda Fernandes, ela é conhecida como Fernanda Fernandes, como ela é miudinha todo mundo chama ela de Fefe. Ela é boa essa menina. Deixa eu ver quais outras. Aí tem uma mais velha que sofreu tanta repressão da prefeitura,

prefeitura

do

Haddad

viu,

fico

impressionada,

é

Branca

Peppereti. Luisa – Ah a Branca, eu mandei mensagem. Vou entrevistar ela semana que vem. Amelinha – Ela é boa. Luisa – Legal. Amelinha – Uma outra que é da periferia, não sei nem onde que ela tá, é uma menina negra da periferia, é Rosangela Martins. Ela também foi muito massacrada por aí. Eu até preciso ligar pra ela, falar com ela, porque ela é uma pessoa muito boa, muito interessante, muito observadora. Ela também é interessante você entrevistar. Tem muita gente né.

Eu to lembrando

assim uns nomes, mas tem muita gente. Luisa – Ah legal, brigada Amelinha. Deixa eu só te perguntar, você se incomodaria de assinar o termo?

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Amelinha – Não, não. (Assinando o papel) Amelinha – Que bom que você estuda isso. E você trabalha, ou só estuda? Luisa – Agora eu só estudo. Amelinha – Coisa boa. Luisa – Coisa boa. Amelinha – Ai eu vou por aqui ativista feminista tá? Porque eu não tenho cargo nenhum não. Eu já cansei de cargo. Eu sou ativista. Luisa – Ta bom. Brigada Amelinha, foi um prazer enorme.

Anna Carolina – Psicóloga do NUDEM Luisa – Fica tranquila. Primeiro, qual o seu nome? Desculpa. Anna – Magina. Eu sou Anna Carolina, eu sou psicóloga aqui do NUDEM. Luisa – Ah legal! Eu sou Luisa. Ai Anna eu queria saber, primeiro, qual a sua opinião pessoal sobre o tema da representação nos casos de violência doméstica? Você acredita que ela é necessária ou só em alguns casos? Enquanto psicóloga, na sua atuação, você percebe isso no cotidiano da mulher? Anna – Acho que a gente pode pensar um pouquinho como era antes e porque que ela, que as pessoas que impuseram

pra fazer a lei , pra

elaborar a lei, fizeram dessa forma. Porque antes, assim como outras questões

de

violência

doméstica

continuam

sendo

condicionadas

a

representação da mulher. É um assunto delicado, acho que é até por isso que você tá estudando, não é fácil enfim. Pensando do ponto de vista da autonomia da mulher, dela poder decidir se ela seguir com aquilo ou não, com aquela ação ou não. Eu não sou da área do direito, então se até me ajuda aí se eu tiver falando bobagem. Eu entendo que mesmo sendo incondicionada, mas chega um momento do processo que ela vai poder se manifestar e ai ela pode também se posicionar de outra forma. Então a autonomia dela vai estar sendo respeitada em algum momento do

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processo. Como lesão corporal é um abuso grave, que a sociedade ta mostrando que não é aceitável. Eu acho que do ponto de vista pedagógico ou de mudança cultura eu acho muito importante. Eu acho que seria interessante entrevistar as mulheres que passaram por isso, pra ver como que elas né veem essa situação. Outra coisa que eu acho interessante de ser incondicionada é porque que as que precisam de atendimento, muitas vezes elas não são claramente orientadas na delegacia. Muitas vezes até assinam um termo de ciência, mas sem uma compreensão mesmo de que elas tem seis meses, um prazo de seis meses, não fica claro. Houve relatos de mal atendimento nas delegacias das mulheres, também inclusive. As vezes é a falta do profissional orientar adequadamente, mas também pode ser por conta do momento que a mulher ta passando, ta muito fragilizada, são muitas informações ao mesmo tempo, as vezes ela não consegue entender. Até pra mim, quem não é da área do direito como eu tem dificuldade de entender como funciona, é enfim.. Como a representação às vezes

fica

confusa

pra

mulher,

ser

incondicionada

nesses

casos

é

interessante também. Luisa – E você faz atendimento aqui no Núcleo? Anna – Aqui no Núcleo a gente funciona mais como referência temática, então tem que apronfudar num tema de estudo a gente aprofunda. Mas a gente também, quando chega uma mulher aqui, ou por telefone, ou manda e-mail a gente atende, faz um acolhimento, as primeiras orientações, e encaminha

pro

acompanhamento

processual

dela,

jurídico,

pra

um

atendimento psicológico por mais tempo, mas isso não é feito aqui. Mas a gente faz o primeiro acolhimento sempre e encaminha pra referencias em outro lugar. Luisa – E nesses atendimentos que as vezes acontecem, vocês, pensando um pouco nisso que você falou que talvez eu devesse falar com as mulheres,

você sente que elas entendem alguma coisa, sabem alguma

coisa do processo penal , ou não? O que elas demonstram de demanda? Anna – Quando elas chegam elas não sabem quase nada. Mas é.. Acho que se gente pensar que quando elas tomam a decisão , até mesmo de ir na

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delegacia, que é uma porta de entrada, quando chegam pra gente a gente costuma fazer um acolhimento mais completo, de encaminhar pro Centro de Referência da Mulher, justamente pra ela ter toda essa orientação mais detalhada, ter varias explicações, porque a delegacia é aquele atendimento mais né... Na correria, ficar lá esperando, é um atendimento diferente. Mas o que a gente vê, muitas vezes quando a mulher vai direto pra Delegacia, ela já vai com uma decisão tomada de que é uma denuncia formal, e aí não sei, a minha experiência é de que é difícil ter um arrependimento assim, que ela já sabe que é uma coisa séria fazer uma denúncia. Ela não sabe talvez condiciona, incondicional, isso não, mas ela sabe que já é algo que vai mudar um pouco, ela quebrou o silêncio né, o ciclo da violência, e ela mostrou aquilo pra sociedade de uma forma mais formal. Eu acho que ela não sabe os detalhes, mas ela sabe que é um caso sério. Por isso as vezes ela demora muito, ela demorou dez anos pra denunciar, por isso, porque ela já tentou resolver de outras formas, no momento que ela denuncia já é algo mais definifivo pra ela. Luisa – E Anna deixa eu te perguntar: você conhece a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a questão da representação nos casos de violência doméstica

e

lesão

corporal,

que

é

a

ADI

4424?

Anna – Se eu conheço essa decisão? Não. Luisa – Não. Tudo bem. E assim, pensando um pouco, é óbvio que você é mais da área da saúde, mas pensando um pouco essa intersecção entre saúde e direito, você acha que, por exemplo, o STF e mesmo o judiciário tem que interferir no tema da violência e gênero? Você considera o STF um ator relevante? Anna – Sim, eu acho que ela tá lá pra justamente tomar umas decisões que tem algum conflito, que não tão tranquilas né, que tem alguns impasses, então ele olha pra isso. Mas acho que quanto mais tiver participação nessas decisões no sentido de disputar, de levar em conta a mulher, no sentido de respeitar os movimentos feministas, os movimentos de mulheres, eu acho importante.

Qual

que

é

a

decisão?

Agora

eu

fiquei

curiosa!

Luisa – Ah Claro! É uma decisão de 2012 que decidiu que a representação

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vai ser incondicionada só nos casos de violência domestica e lesão corporal. Então, por exemplo, no crime de ameaça a representação ela não é incondicionada, ela depende da mulher expressamente dizer. Então foi meio que uma interpretação, porque da Lei não da pra entender muito bem isso, porque tem dois artigos que falam sobre a necessidade de representar, e um artigo que é o 41 que fala sobre afastar a Lei 9.099 né, que era a Lei de 95, antes da Lei Maria da Penha, e aí ela tratava essa questão da lesão corporal como menor potencial ofensivo, era bem diferente. Anna – Eu acho importante também a incondicional, por que é isso, as vezes ela quer representar, mas ai ela é ameaçada e muda de ideia, então assim é algo que não depende mais dela, o agressor não pode ameaça-la mais ainda. Entendi, então essa decisão do STF esclarece. Luisa – Pensando nisso, assim, que você falou, dessa vantagem de até uma proteção pra mulher... Anna – Ela tá no limite, ela já não aguenta mais, ela vai fazer a denúncia, aí o cara sabe e ai ameaça pra ela retirar, renunciar, mas como já não depende mais dela, acho que isso até , pensando nos agressores, eles já colocam mais seriedade na Lei. E é isso que eu te falei, é pensar que essa ação, essa agressão ela não é aceita pela sociedade, ela não é uma escolha da mulher, a sociedade não aceita...Enfim. Luisa – E pensando um pouco nisso, você acha que talvez fosse interessante expandir essa ideia pra outros tipos de violência, como violência psicológica, por exemplo? Anna – É complicado, é bem complexo. Obviamente eu sugiro você entrevistar as mulheres, pensei agora de entrevistar grupos do movimento de mulheres, por exemplo a Amelinha Telles, porque elas tem uma compreensão histórica, eu acho que seria interessante. Luisa – Eu entrei em contato com ela e com a Rute. Anna – Ah então, eu acho bem legal. Mas acho que a gente sempre toma muito cuidado com a questão da autonomia da mulher, eu não sei se você viu, mas o NUDEM ta a frente disso, da não obrigatoriedade de B.O.

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Luisa – Eu vi a recomendação. Anna – A recomendação não é só pra abrigo, mas também pra medida protetiva. Por que? Em respeito a autonomia das mulheres, então as vezes a mulher quer, precisa, ninguém quer uma medida protetiva, ela precisa. Só que ela não quer criminalizar, por vários motivos, porque é o pai dos filhos, ou porque ela gosta do cara, ou porque tem medo, ou porque a situação dela vai piorar muito concretamente se ela, enfim, vários motivos, sempre pensando na autonomia da mulher. Pras as outra violências deixar isso como pode de decisão da mulher é importante, mas desde que ela seja de fato muito bem informada, o que é a representação, o prazo que ela tem, porque tomar essa decisão, porque não tomar, que isso seja realmente acompanhado, se ela decidiu não representar, o que que mudou? Acho que os Centros de Referência tem esse cuidado, tudo bem você decidiu não representar, por que? Então vamos te proteger pra você poder exercer o seu direito. Eu acho interessante envolver a mulher.. Não sei, eu queria aprofundar mais. Luisa – Não, foi muito legal. E, acho que a gente conversou sobre o quase tudo um pouco do que eu to tentando investigar. E assim, sobre a rede antes de terminar, já ta no final, você acha que a rede ela é coesa sobre essa questão da representação ou ela tem opiniões distintas? Qual é um pouco sua percepção? Anna – Acho que é diferente. Nessa questão da obrigatoriedade de B.O, tem gente na rede que acha que tem que ser obrigatório o B.O. A gente aqui não. Tem questões polêmicas na rede, acho que não é coeso não. Luisa – Você conseguiria talvez pensar em algum motivo especial pra isso? Anna – Acho que fica essa questão da autonomia da mulher. To aqui pensando umas pessoas do movimento das redes que até na lesão corporal tem que ter essa autonomia de decidir, tem gente que pensa assim sim né. E eu a principio também não fecho, gostaria de até ouvir esse debate, de quem defende que tem que ser tudo incondicionada, depois queria até que você enviasse um feed-back pra gente. Luisa – Claro, óbvio. 96

Anna – Porque eu acho que talvez seja isso, nesse momento histórico a gente ainda precise que seja incondicionada como algo pedagógico mesmo pra sociedade. Mas talvez caminhando, pra depois, a gente também quer que não tenha nada disso. Mas talvez é isso, teoricamente como não resultou as outras medidas que tiveram, não tinha tanta efetividade, acho que talvez agora precisa ser, que pese a mulher fique um pouco sem autonomia nesse sentido. Como eu te falei, depois no processo vai ter um momento que, mesmo sendo incondicionada, na audiência ela vai poder mudar de opinião. Luisa – Só última coisa Anna, você acha que, assim, da sua experiência da rede, poderia me indicar algumas pessoas que trabalham com esse tema? Você mencionou a Amelinha. Anna – Da rede eu acho legal, a Márcia Valéria, a Leliane do Centro 25 de março, a Branca psicóloga e que foi coordenadora da Casa Eliane de Grammont, ela tem muitos anos de experiência. Elas devem ter histórias de mulheres que se arrependeram, ou até de que bom que era incondicionada porque ele tava me ameaçando. O que que mudou né? Acho que essa é uma pergunta legal. Luisa – Ta bom. Adorei, brigada.

Branca Paperetti – Psicóloga e ex-coordenadora do Centro de Referência à Mulher Casa Eliane de Grammont Luisa – Vou ligar aqui. Posso deixar aqui? (refiro-me ao celular que está gravando). Branca – Pode. Quer deixar aqui mais perto? Luisa – É talvez, brigada Branca. Vou só pegar aqui o roteiro. Branca – Tá gravando? Luisa – Tá, tá gravando. Então Branca, se você pudesse primeiro começar me contando um pouco da sua atuação, talvez a experiência na Casa Eliane

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de Gramont, que você foi coordenadora lá. Enfim, só pra contextualizar um pouco. Também seria legal. Branca – Então, eu sou psicóloga e trabalhei 20 anos na Casa Eliane de Grammont, e peguei um período anterior a Lei Maria da Penha. Então, era a Lei 9.099, e fiz parte inclusive de reuniões, de preparo e de estudo pra implementação da Lei Maria da Penha, foi bem bacana. Tinha muitos grupos feministas, gente que já tava pensando isso. Mas algumas reuniões foram na Casa. Eu tive oportunidade de participar, de pensar junto, foi muito rico. E ai quando a Lei finalmente foi criada, foi um grande ganho, foi muito interessante, foi uma mudança de paradigma muito importante. E assim, na minha experiência, no começo parece que ela deu até mais certo do que depois com o passar do tempo, as mudanças e as dificuldade parece que foram surgindo. Então a gente teve um impacto interessante no começo, logo de cara, alguns casos foram resolvidos muito exemplarmente, medidas protetivas foram pedidas, eu não sei se o pessoal tava mobilizado, entusiasmado. E ai com o passar do tempo a gente começou a perceber muitas dificuldades, muitos problemas no entendimento. Eu gosto sempre de citar a pesquisa da Wânia Passinato, você conhece? Luisa – Sim! Eu gosto muito dela. Branca - E ela tem uma pesquisa super bacana que mostra as contradições no Brasil, que fala de como essa lei é aplicada de forma diferente, com recursos diferentes, com entendimentos diferentes no Brasil inteiro. E isso, assim, dentro da prática o que a gente mais sofreu com essas dificuldades foram a não compreensão do que é violência psicológica, os crimes de ameaça, os crimes que na verdade não tem uma marca física. Então existiu a partir de uns anos atrás, eu não sei lembrar agora exatamente quando foi, quando algumas delegacias começaram a dar problema pra fazer o B.O, a não recolher direito a mulher. Houve muita grita, muita reclamação, e ai teve uma recomendação do próprio judiciário para as delegadas tirarem fotos dos ferimentos, das marcas da violência. E parece que isso, por um lado, fez com que a violência física fosse prontamente reconhecida. Por outro lado, fez com a violência psicológica e os crimes de ameaça fossem

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ficando pra escanteio. E até hoje parece que isso é um grande problema. E também os crimes de violência sexual dentro das relações afetivas. O crime sexual que acontece na rua, por desconhecido ainda são identificados. Agora o crime sexual que acontece nas relações afetivas, ele passa desapercebido também, porque dificilmente se tem provas, e a mulher dificilmente consegue falar disso logo de cara, e ter esse problema como realmente reconhecido. Então assim, essas foram situações graves e que parecem que continuam acontecendo. Outra questão que eu acho que... assim se eu tiver indo pra longe do seu foco você me avisa, tá? Porque eu posso ir falando coisas e vão fugir do que você tá interessada. Vai me puxando pra o que você quiser. Luisa – Imagina. Branca - Uma outra coisa que eu acho que a Lei tem...O grande pulo do gato da Lei é a questão preventiva, é a questão da visibilidade dela, então que a violência doméstica, violência de gênero possa ser percebida por todos os segmentos da sociedade, que isso venha na educação, essa sensibilização pras questões de gênero. Isso tá previsto na lei, as questões das medidas protetivas. Só que a gente esbarra no entendimento de juízes, de pedir provas, de pedir esclarecimentos pra mulher, o que pode muitas vezes levar muito tempo pra acontecer. Então o caráter pronto da medida protetiva, de ser uma medida de urgência, pra proteger realmente a mulher de uma situação mais grave, nem sempre ela cumpre o seu papel. Então isso é uma outra questão delicada na aplicação da Lei. Que mais que eu acho que é interessante falar da Lei? Ah, também a questão patrimonial. Tem juízes que juntam as questões de divisão de bens, as questões patrimoniais com as medidas protetivas, querem julgar tudo junto. Eles nem sempre compreendem que a medida protetiva tem que vir antes e depois se pensar essas questões financeiras, e patrimoniais. Então isso também faz com que muitas vezes esse tempo com que o julgamento aconteça no processo maior faça com que a mulher fique numa situação de vulnerabilidade, então isso é uma outra questão.

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Luisa – E Branca, só pra eu entender melhor, como é que funciona a Casa Eliane de Grammont? Quais são as atividades? É uma casa de abrigo? Branca – Não, não... A Casa Eliane de Grammont é um Centro de Referência. Luisa – É um CRM? Branca – É. Foi o primeiro criado no Brasil, como um projeto piloto, serviu de modelo, de exemplo pra muitos outros, até fora do Brasil. E ele foi pensado pra ser um lugar de atenção integral à mulher em situação de violência, e que pudesse além da escuta e do acompanhamento psicológico, ter também o atendimento jurídico, social, e fazer as pontes. Foi assim o percursor da ideia da rede. No Centro de Referência que se pensava em fazer os elos com os outros serviços, pra abrigo, pro judiciário, e tudo. E ele era o único realmente e numa época em que a assistência ainda não atendia violência contra a mulher. Então assim ele era um lugar privilegiado dessa atenção integral. Aos poucos, com o passar do tempo, e depois que a Secretaria Nacional foi criada outros Centros foram sendo criados. Ai a atenção à violência doméstica foi norteada por uma política, e ai foi se estabelecendo o conceito de rede, de quem fazia o que, como a rede podia e devia se interligar, trabalhar junto, que é ainda um desafio grande hoje. Luisa – Sim. E você trabalhou lá antes e depois da Lei Maria da Penha? Branca – Uhum. Luisa – E ai eu fico pensando, você observando as mulheres, quanto ao tema de representar ou não, ir na delegacia, registrar um B.O, e enfim dar continuidade com um processo, não sei se você teve possibilidade de acompanhar isso. Mas, você percebeu algumas mudanças importantes principalmente, e se possível, a representação incondicionada depois da Lei Maria da Penha? Branca – Olha, parece que depois da lei realmente as mulheres ficaram melhor informadas sobre essas possibilidades, e passaram a acreditar um pouco mais que haveria um caminho jurídico, passaram a representar mais e fazer o B.O. Mas nem sempre este é o único, ou o melhor caminho, a

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gente sabe que tem muitos casos em que ir pra esse caminho da polícia ou jurídico ele é posterior a um primeiro momento de compreensão do fenômeno, de compreensão mesmo do que virá pela frente. Porque o caminho de ir procurar a policia, a delegacia, e procurar o caminho jurídico ele é muito desgastante, muito difícil, nem sempre ele é liso e fácil, e as coisas vão acontecer como tá previsto, né? Então ela precisa ta muito bem preparada pra isso, pra saber vai o que ela vai enfrentar, e se preparar pra essas adversidades também. Interessantemente, eu to aposentada, já to afastada de lá desde fevereiro. Mas assim, de fevereiro pra cá, eu já tive quatro casos de me chamarem no fórum pra depor sobre situações que aconteceram há quatro, cinco seis anos atrás. Amanhã? Amanhã não. Depois de amanhã eu vou no fórum de novo pra falar de um caso que eu mandei um último relatório pro juiz em 2010. Assim, eu tô muito brava com essa história. Era um caso gravíssimo de violência contra a mulher, de violência sexual contra o filho, e nada aconteceu nesses anos, né. Tudo bem, aconteceu de que foram suspensas as visitas do pai pra criança. Mas ela nunca recebeu uma pensão, nunca ela conseguiu nenhum tipo de ação. E agora em 2016, eles estão me chamando pra me ouvir. E eu falei que absurdo né, que absurdo. Luisa – Sim. Branca – Não é? E a mãe é advogada, de uma família culta, com condições. Então assim, se num caso como esse a gente esbarra nisso, isso é um exemplo de que nem sempre as coisas funcionam de forma lisa. Luisa – Duas coisas que você falou que achei muito interessante: a primeira sobre a violência psicológica que é colocada de lado, e isso das coisas não acontecerem de forma lisa. Achei muito legal. Porque o que acontece, ou pelo menos parece que acontece, não tenho certeza, é que o fato da representação ser incondicionada nos casos de lesão corporal obrigada a delegacia a registrar o boletim de ocorrência e prosseguir com o inquérito. E ai fico pensando também: você acha que seria uma boa solução aplicar o mesmo

procedimento

pra

ameaça

e

violência

psicológica?

Ou

não

necessariamente?

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Branca – Não sei, não sei. A gente enfrenta um grave problema com as delegacias, porque elas alegam, e em parte é até verdade, mas elas usam isso como desculpa, que elas não tem pernas pra fazer inquérito, averiguação das coisas, nós tivemos vários casos. Teve um que a própria Ana Rita quando trabalhava lá ainda, antes de ser coordenadora do NUDEM, ela foi plantonista lá, e ela mesma pegou esse caso botou debaixo do braço, e nós duas resolver pegar na unha assim. Mas era um caso de tentativa de homicídio gravíssimo, a moça chegou a ser esfaqueada, ficar no hospital. Nós tivemos que mudar a moça de quarto várias vezes porque ele entrava no hospital pra tentar...Sabe? Foi um horror, um horror, um tragédia. Ela ficou com marcas no corpo inteiro, foi um caso de 2008, eu acho. Ele nunca foi preso, foi agora em 2014, foi preso. E só que a delegacia dizia que não tinha como ir atrás dele. Ele continuou morando na mesma casa, com a mãe, e a moça ela precisou fugir com as crianças. E ela as vezes recebia a informação de que ele tava no bar ali na esquina, ela ligava pra delegacia e a delegacia falava, você tem provas? E assim, e ela ligava pra gente desesperada: olha ele tá lá agora. E a gente ia pra delegacia, a Ana Rita chegou a ligar pra delegada e falar olha precisa...esse cara tá lá. Ah mas a gente não tem viatura, a gente não tem não sei o que. E assim foi, o tempo foi passando, essa moça com a vida completamente desestruturada, se escondendo, as crianças numa situação de medo, e ele solto. E ele foi demorar sei lá quantos anos, de 2008 a 2014 pra ser preso, estando no mesmo endereço, postando foto no facebook. Então, a pergunta é assim: será que isso resolveria? Eu não sei, porque se num caso de violência física grave desse tipo eles alegavam que não tinham pernas pra fazer, não sei se com a violência que eles vão considerar menor, se eles não vão usar o mesmo subterfúgio, ou ainda pior. Teoricamente talvez fosse interessante. Mas pra isso eu acho que teria que ter uma outra estrutura funcionando, uma outra valorização, uma outra importância. Luisa – Nossa, muito forte essa história. E eu achei muito legal essa história um pouco pra pensar que talvez o caminho tradicional da policia e da justiça não necessariamente funciona, né. Pareceu isso. Branca – É verdade. 102

Luisa – E ai, pensando na sua super experiência com o tema e com a área, quais são os caminhos que talvez funcionem? Como você acha? Branca – É, é difícil. Mas se a gente pensa, eu acho que um grande norte é a própria lei. A lei ela é muito redondinha, tem tudo lá. Então se a gente pensar no que ela propõe que é a sensibilização e a educação desde os bancos infantis escolares, até as áreas de especialidade no direito, na medicina, psicologia, no serviço social, tudo... que se pensa as questões de gênero, que se estude as questões de violência de gênero, isso eu acho que já faria uma mudança de conceito, de paradigma, e que devagar iria mudando o olhar da sociedade. Porque a gente sabe que dentre as pessoas que trabalham com violência, nem todo mundo tá preparada, e tá sensibilizado pra isso. Fora que, pelas dificuldades e pelo impacto que isso trás, o trabalho e essa aproximação com a violência, a gente tem um turn over muito grande. As pessoas não ficam um longo tempo trabalhando com isso. Elas se frustram muito, elas vão embora, elas adoecem, elas mudam de ... Então quando tá funcionando uma rede, uma micro rede, ou um serviço, de repente aquela pessoa, ou aquelas pessoas que estavam envolvidas não estão mais, e ai tem que começar tudo de novo. Essa sensibilização e essa capacitação tem que ser continuada sempre, e aprofundada. Então, eu acho que os serviços precisam funcionar em rede mesmo, acho que precisa ter supervisão, supervisão clínica, supervisão pras redes, pras pessoas poderem suportar melhor, e funcionar melhor. Esse foi uma coisa que a gente sempre procurou fazer ao longo de todos esses anos que a gente trabalhou na Casa se fortalecer enquanto profissionais, tanto dentro do serviços, a gente sempre prezou por ter reuniões semanais garantidas pra gente discutir caso, estratégia, pra gente se apoiar, se fortalecer, estudar. E também fazer isso com as redes, porque desta forma é uma maneira da gente ter apoio. Porque não dá pra resolver nada sozinho, nenhum serviço, nenhum profissional faz milagre sozinho. Então se a gente tiver uma mínima condição de trabalhar junto, isso fortalece muito. E se as pessoas envolvidas tiverem também trabalhando nessa perspectiva comum, isso facilita muito. Acho que esse é um caminho. Acho que outro caminho é, por exemplo, a gente teve uma grande dificuldade quando a

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assistência passou a cuidar também da violência doméstica sem ter o olhar de gênero, porque eles tem o olhar voltado pra manutenção dos laços familiares. E por mais que a gente tentasse trabalhar junto, e em algumas situações a gente conseguiu, em outras não, foi muito difícil e ainda é muito difícil isso. Porque, por exemplo, ficou separado assim os CRMs eram da Secretaria

de

Politicas

pras

Mulheres,

os

abrigos

foram

todos

pra

assistência, e a assistência trabalha no sistema de convênio, convênio com entidades que muitas vezes são religiosas, tem uma perspectiva diferente do olhar da emancipação da mulher. Então, o que que acontecia: quando a mulher vinha pro Centro de Referencia e tinha que ir pra um abrigo da assistência, a gente perdia essa mulher, porque eles passavam a não permitir que ela voltasse pro atendimento, e se a gente precisasse de qualquer comunicação com ela, eles não passavam. Então, era tudo truncado, a gente não conseguia um fluxo. Mas por uma questão de política, né, de visão da assistência, e de visão do nosso trabalho. Então, mesmo que eles viessem muitas vezes em reuniões de rede, que a gente chamasse pra discutir caso junto, a diretriz era outra. Então eu acho, pensando assim, o que é que vai fazer funcionar? Precisa ter uma diretriz. Que nem quando a Secretaria de Políticas de Mulheres foi criada e criou uma diretriz, foi muito interessante, foi um momento, foi em 2003, foi um momento muito rico. Só que aí os serviços foram sendo criados, e conveniados, e ai a assistência também entrou, a assistência passou também a assumir, até porque

do conta do LOAS, da lei do LOAS, que

passou a ter uma verba pra isso, né? E eles conseguiram pulverizar esse atendimento não só pros abrigos, mas também pros Centros de Referência, só que os deles chamam CDCM, CRAS. E assim, cidadezinhas do Brasil que não tinham outros serviços, as vezes tinham um CRAS era ali que caia a situação da violência. Então, a vantagem dessa pulverização de serviços foi ter mais possibilidades, mais lugares pra essas mulher buscar ajuda. Só que nem sempre essa ajuda chegou pra ela como a gente acredita que deveria chegar, pela nossa perspectiva de olhar. Então, o que talvez, não sei e eu to puxando muito a brasa pra minha sardinha, eu acho que talvez o que pudesse fazer a diferença é esse olhar transformador, de gênero, onde o

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principal objetivo seja a superação dessa violência, pra essa mulher poder ser sujeito da sua história, das suas escolhas, do seu caminho, e sair daquele julgo da violência que ela vive. Hã...Eu to um pouco pessimista atualmente, porque a Secretaria de Políticas pras Mulheres Nacional foi desarticulada, agora com a mudança de governo em São Paulo a gente não sabe o que vai acontecer com a Secretaria Municipal, né? E a própria Secretaria Municipal, enquanto existiu, a gente botava muito mais fé nela. A gente imaginava que a criação de uma Secretaria traria muito mais poder político de juntar e dar a diretriz dessa politica pra cidade, o que não aconteceu. Na verdade, esse tempo todo, esses quatro anos de governo com a Secretaria elas não conseguiram fazer esse azeitamento com a assistência e fazer esse fluxo acontecer, que era o que gente queria. Inclusive a gente teve um retrocesso muito grande, porque o que antes da Secretaria Muncipal funcionava até com acordos e tal com a Secretaria de Habitação, a gente conseguia aluguel social pras mulheres como alternativa a abrigos, esse pacto não aconteceu mais, por questões políticas também. Então, alugueis sociais que estavam funcionando deixaram de funcionar, foi muito dificultado o acesso a esse benefício pras mulheres. Então assim, a gente não avançou grande coisa com essa Secretaria. E agora a gente não sabe o que vai acontecer com a mudança de governo. O que que vai virar? Se vai continuar uma Secretaria, os rumores são de que vai voltar a ser uma coordenadoria, vai perder o status de Secretaria e vai ficar ligada ou agora dentro da assistência, e ai talvez incorporada, mas com os valores da assistência, o que eu não acho que vai ser bacana, ou vá pra Secretaria de Governo e mantenha as características, mas aí tem que ter alguém que tenha pulso pra não perder esse olhar. Então não sei te responder (risos). Luisa – Nossa, mas muito interessante essa disputa política dentro da rede, né? Se fala em uma desarticulação, mas eu não tinha ideia de por trás tivessem tantas questões políticas. E, ah Branca acho que a gente falou muitas coisas...Eu fiz esse roteiro, mas é mais pra guiar, eu não gosto muito de ler as perguntas. Mas acho que a gente abarcou a maior parte das coisas, você me contou como a sua entidade trabalhava com a situação de violência, a gente acabou discutindo um pouco isso da representação, e os

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caminhos, da própria lei e da rede. Uma das minhas perguntas era essa: das opiniões da rede sobre a questão da representação. Então, não sei, parece que elas acabam tendo opiniões diferentes por conta desse disputa, né? Branca – É, e não só disputa, mas diferenças no olhar. Então, por exemplo, a assistência eles atendem todos os tipos de violência, violência urbana, tudo...E ai só pra você entender, dentro do CREAS onde vão atender, por exemplo, o drogado, o morador de rua, o idoso, a criança que tem algum problema, e a mulher que sofre violência, que muitas vezes é a mulher do drogado, do morador de rua, a mãe da criança, a filha também. E ai vão todos lá, e eles não conseguem dar pra essa mulher um atendimento diferenciado que a gente entende que ela precisa. Vai tudo no mesmo caldo, e muitas vezes é o mesmo profissional que atende, no mesmo dia ele tem acesso a ela, a equipe. Então essa mulher não tem esse olhar de gênero né, no atendimento que a gente considera importante pra que ela possa superar essa situação de violência. É uma questão de paradigma mesmo, uma questão teórica, de entendimento mesmo. Então a gente fez vários seminários, encontros, tentando ajustar, tentando fazer o fluxo, mas isso também depende da vontade política e dos profissionais que ali estão. Luisa – Sim. E acho que só última coisa, porque a gente não falou muito sobre isso. Sobre o Supremo Tribunal Federal, você falou muito agora dos paradigmas, e do olhar. E ai o Supremo dá uma decisão num sentido, considera constitucional a Lei. Branca – Sim. Luisa – E ai pensando também um pouco o quão relevante é o papel ou a ação do STF pra esse paradigma ou pra esse olhar. Ou pra você não? Branca – Não, é muito importante. Eu acho que depois que teve...Se você tiver oportunidade, no youtube tem até as falas deles. Você já viu? Luisa – Não, eu só li a decisão. Branca – Tem as falas deles, se você tiver um tempo, qualquer hora entra. Tem uma que eu gosto muito que é a do Luiz Fux quando ele diz que é constitucional. E quando ele fala, acho que em 2012, eu até quando vou dar 106

aula, eu até menciono, eu tenho powerpoint disso. Quando ele fala da mulher trans já em 2012. Não é o que o pessoal fica falando que foi agora, não... Foi lá atrás, já faz tempo que definiu, ele não, tá na Lei, mas ele deixou claro que a violência de gênero contra a mulher ela se aplica em qualquer situação, inclusive a mulher trans e tal. E eles vão justificando as posições dele e é muito interessante. E eu acho que isso, para o Judiciário, serve meio que de, mais pra eles né, porque eles ficam tentando achar brechas, porque eles querem acabar com ela, ficam dizendo que é inconstitucional, porque dá trabalho. Então eu acho que para eles, no linguajar deles, dentro do paradigma deles, ter o Supremo falando que é isso aí mesmo tá ótimo, precisa. Recentemente eu fui lá no fórum da Barra Funda fazer uma palestra pra eles, e eles chamaram todos os juízes de todas as varas de São Paulo, e era pra falar sobre isso. E eu fiquei meio assim nossa eles não gostam de ouvir profissional que não é do judiciário, ainda mais falando uma coisa que é o calo deles, né. Mas foi legal. Algumas pessoas gostaram muito, alguns até vieram falar comigo achando bacana. Outros ficaram meio de cara feia assim, não gostaram. (risos) Luisa – Normal. Branca – É não gostaram, porque essa história de que, por exemplo, isso é uma coisa muito delicada também. Na lei tá escrito que a mulher só pode desistir diante do juiz, só que o que acontece. Isso é...Cuidado como você vai escrever isso, porque é complicadíssima a situação. Eles tem todas as formas bonitas de explicar porque eles fazem isso. No meu entender é pra facilitar a vida deles. Então o que eles fazem: eles chamam 200 mulheres mais ou menos, via intimação, chamando pra que elas vão lá pra uma palestra, assunto do interesse delas. Elas não sabem do que se trata, algumas estão esperando há meses algum andamento do processo delas. Chega lá elas assistem alguma palestra sobre autoestima, sobre não sei o que. Antigamente, depois que eu andei falando umas bobagens lá eles pararam, mas eles davam espelhinho e batom pra mulher ter autoestima. E ai elas perguntavam, a juíza lá na frente, se tinha alguém que queria desistir. E algumas que não sabiam exatamente o que elas estavam

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fazendo ali, e o por que daquela pergunta ah eu to de saco cheio, eu quero desistir. Dai metade desistia. Luisa – É, eu já tinha ouvido falar um pouco dessas audiências do artigo 16. Branca – Isso. Agora parece que isso tá um pouco diferente. Parece que antes de desistir elas passam por um assistente social, por uma psicóloga e conversam. Mas, no meu entendimento, continua sendo um escracho isso. Por quê? Porque, na verdade, a mulher não foi mobilizada pra ir lá pra saber como é que tá o caso dela, pra ver o que vai acontecer, pra ver o que ela pode fazer pra coisa andar. Não. Ela é perguntada se ela quer desistir. Sendo que a coisa tá mal parada. Então eu acho que a forma como isso é feito é pra induzir realmente a mulher a não ir pra frente. Aí fica aquela pecha de que a mulher não sabe o que quer, de que ela é uma eterna reclamona, que quando chega na hora ela desiste. Eu também desistira se as coisas não andam, se eu não vejo né, não vejo solução, continuo com o mesmo problema, o problema às vezes aumentando. Não dá pra julgar desse jeito. Luisa – Claro! Muito legal. E, ah não sei, acho que a maior parte das perguntas, os assuntos aparecerem. E não sei Branca, você acha que tem alguma pessoa importante que eu deveria conversar, pra me indicar? Branca – Você já falou com a Amelinha? Luisa – Conversei, foi muito legal. Branca – Eu gosto muito da Amelinha, eu acho que ela é uma pessoa interessante pra conversar. Uma pessoa que talvez seja legal você conversar,

é

a

Graziela.

Você



conversou

com

ela?

Luisa – Não. Branca – A Graziela é professora da PUC, ela é assistente social, ela agora acabou o doutorado dela. E ela estava na Casa na criação da Casa. Ela trabalhou lá até se aposentar, muitos anos. E ela entende muito dessa coisa da política da assistência, porque ela é do serviço social, e ela estuda muito essa parte da política, ela conhece bem isso. É super feminista e tal. E ela continua dando supervisão, e cursos, e tal. Ela é uma pessoa que

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talvez...Não sei como ela tá de tempo, porque ela dá muitas aulas e tal. Mas ela é uma pessoa legal pra você encontrar. Luisa – Ah legal! Dá pra encontrar ela pelo site da PUC? Você acha? Branca - Eu vou te dar o telefone dela, pera ai. Deixa eu ver se eu acho aqui. (Passou o telefone e desliguei o gravador).

Carmen Hein – Professora e Advogada feminista (Conversamos um pouco antes, expliquei a pesquisa e pedi permissão para ligar o gravador) Carmen – Não, não tem problema, pode gravar sim. Luisa – Tá bom, brigada. Bom, eu acho que a pergunta mais importante, a principal, já que a gente não tem muito tempo, é: qual a sua opinião pessoal sobre o tema da representação em caso de violência doméstica? Você acredita que ela é necessária ou não, sempre ou só em alguns casos? E por quê? Carmen – Tá. Bom, como a gente tava conversando, comentado. Eu acho que esse é um tema, um dos temas mais polêmicos dentro feminismo, principalmente pra quem trabalha com criminologia (algumas palavras inaudíveis). Especificamente em relação a representação eu acho que em alguns casos ela seria necessária, ela é necessária, em outros nem tanto. Só que o problema, qual é o problema? O problema é que o Direito Penal ele te oferece uma resposta muito limitada, ou seja, a resposta legal ela é sempre uma resposta genérica para problemas que não são genéricos, para problemas que são concretamente específicos. Então cada situação é uma situação. Eu posso ter uma mulher que não queira representar, por digamos razões muito distintas do que se ela estivesse em uma outra condição ela representaria. Eu posso ter uma situação em que a mulher realmente não quer representar, porque já resolveu o problema, porque ou separou ou juntou, ou resolveu de outra forma, e não tem mais interesse, quer simplesmente colocar uma pedra no assunto. E o problema é que a 109

resposta do Direito Penal ela é uma resposta genérica, ela é um sim ou não, quando existem situações de talvez, se for de outro jeito. Então, eu acho é um dilema que o Direito Penal não vai nos resolver. Nem todas as situações, assim como eu não posso dizer nunca em nenhum caso representação, eu não posso dizer em todos os casos representação. E esse é o problema, o Direito Penal me diz: ou em nenhum caso, ou em todos os casos. Luisa – Tá. E só pra entender um pouco melhor: apesar desse problema do Direito Penal ser binário, você acha que em quais casos seria, é importante que a representação seja incondicionada? Carmen – Eu acho que em casos em que as mulheres não representam, ou que sentem medo de representar. Não porque já estejam, por exemplo, junto de uma pessoa (linha cortou), nesse caso não. Por exemplo, ela não tem muito apoio digamos de outro, porque ela tá sozinha, por exemplo, ela mora sozinha na cidade, ela mudou, então ela não tem muito apoio, seja ele familiar, seja ele de amigos. Então ela fica só, e ai ela se sente insegura em representar. Então nesse caso, obvio que não é só a representação. A representação por si não vai resolver. Por isso que a Lei Maria da Penha ela foca em outras perspectivas, na perspectiva da prevenção, na perspectiva da assistência. Então, você teria que ter toda uma rede por trás, ao lado, né, pra dar suporte a essa mulher. E é claro que se você tem, boas advogadas, se você tem uma cobertura no mínimo jurídica qualificada, essa cobertura jurídica pode dar esse suporte pra essa mulher, que quer representar, mas que por alguma, digamos nesse caso, está sozinha, né, ela fica em dúvida, ela fica com receio de fazer uma represália maior, e isso pode ser inclusive uma fantasia dela, não é? Então, é claro que se é uma fantasia você tem que trabalhar com isso né. E o Direito não consegue trabalhar com essa, digamos, essas outras dimensões da vida e que interagem o tempo inteiro... A questão psicológica, a questão dos afetos. Então

em

alguns

casos

eu

acho

que

seria

interessante

ter

essa

possibilidade, né. E obviamente, e é por isso que a Lei Maria da Penha, na minha opinião, ela reforça muito essas outras dimensões que é a da assistência, da rede de assistência, da rede de atenção às mulheres. E a 110

gente vê essa rede muito fragilizada. Tem uma, digamos, um sistema de justiça muito mais fortalecido que a rede de prevenção né. As redes muito menos enfatizadas, muito menos trabalhadas, então, eu acho que esse é o problema. Acho que fica peso muito grande no sistema de justiça e o que deveria importar, na minha avaliação, é essa parte da prevenção e da assistência, então fica um desequilíbrio muito grande. Então, por isso que há sempre um foco maior no sistema de justiça, quando deveria ser o foco no sistema de atenção e na prevenção. Luisa – Ai muito legal. E, Carmen será que você poderia me contar um pouco sobre como...Assim, eu vi que aquela entidade que você trabalha, não sei se eu estou enganada, a Themis, ela participou do Amicus da ADC 19, né? Carmen – Sim. Luisa – E você participou ativamente desse processo? Como você enquanto advogada trabalha com essa situação? Se você pudesse me contar um pouco da sua experiência seria muito legal. Carmen – Tá. Não, então, eu não estou mais na Themis. Eu já sai da Themis

(problemas

de

som).

Mas

iniciei

trabalhando

com

o

tema

justamente nessa organização da Themis em 93, já faz alguns anos aí. E a Themis é uma referencia né. Uma organização que sempre atendeu mulheres em situação de violência, tem o programa das Promotoras Legais Populares. E a gente atendia mulheres, e na época, dois anos depois passou a existir, veio a Lei dos Juizados Especiais Criminais. Nós começamos, eu como advogada, começamos a atender mulheres em situação de violência pela Lei dos Juizados Especiais Criminais, e era um desastre. Acho que pouquíssimas mulheres, eu até fiz uma pesquisa na época sobre isso, que a gente atendia entendiam a atuação dos Juizados como positiva, e isso começou a criar um problema muito grande pra gente. Porque a gente ia pras audiências e, pelo menos no Rio Grande do Sul e pelo que eu vi em outras pesquisas sobre o tema acontecia em todo o país, 99% dos casos eram conciliados, na verdade, não era uma conciliação, porque as mulheres não tinham interesse. Mas era uma conciliação forçada pelo poder

111

judiciário. No Rio Grande do Sul eles faziam uma coisa que não tinha valor jurídico nenhum que era um termo de bem viver, encerravam o processo, as mulheres com aquele termo de bem viver que se o sujeito descumprisse não tinha nenhuma possibilidade de ingressar, de dizer olha descumpriu, como por exemplo uma medida protetiva. Não cumpriu o termo de bem viver, não adiantava nada, era um documento fictício e isso criava muitos problemas, porque as mulheres retornavam muito indignadas. E a gente começou a perceber que não tinha como trabalhar, e que a lógica do Juizado era outra. E aí a gente começou a discutir o assunto junto com outras organizações não governamentais (som cortou – parece que ela falou alguns nomes de organizações), e resolvemos que nós tínhamos que propor uma lei específica de violência contra às mulheres. E também em 95 entrou em vigor a Convenção de Belém do Pará, então a gente tinha a Convenção de Belém do Pará que dizia uma coisa, a Lei de Juizados que diziam outra. Em 2001 sai a decisão da Comissão Interamericana de Direitos

Humanos.

E

nisso



tinha

toda

uma

trajetória

feminista

denunciando a violência contra as mulheres. Em 91 já tinha tido um Projeto de Lei pra tentar criminalizar a violência contra às mulheres. E ai então a gente, digamos, com toda essa história, a gente resolve juntar essas organizações e pensar uma legislação específica pra tratar do tema. E a nossa ideia nunca foi aumentar, pelo menos a ideia da Themis, tinham algumas que queriam uma repressão mas a gente acabou discutindo e esse consórcio, a gente formou um consórcio nacional, e esse consórcio de ONGs chegou ao entendimento que não era através da repressão. A gente não queria aumentar o poder punitivo do Estado em relação a violência doméstica, a gente queria oferecer às mulheres medidas rápidas, e ai se pensou nas medidas protetivas de urgência, e focar na prevenção e na assistência. Então, essa foi a ideia original do projeto desse consórcio de ONGs. Luisa – Ah legal. Carmen – E é claro que uma vez no Congresso Nacional é muito mais difícil, todo mundo quer né. O Congresso manteve, digamos, toda essa estrutura originária do consórcio e botou outras coisas que não eram. Aí as 112

parlamentares, cada uma quis contribuir, dar a sua contribuição. E aí surge a Lei Maria da Penha, a maserte dessa proposta desse consórcio nacional. E eu na época representei a Themis nesse consórcio nacional, assim, a gente se reuniu durante dois anos, discutiu com praticamente todo movimento de mulheres, ampliou pra juristas, foi discutir em plenários. E isso é tão verdadeiro que, você pode ver, a Lei Maria da Penha ela não tem nenhum tipo penal novo. Ela não estava nessa lógica de aumentar pena, a única coisa que a gente queria era que saísse dos Juizados Especiais Criminais. E pra isso, aí sim teve que aumentar, e foi só da lesão corporal, porque poderia ter aumentado da ameaça. Luisa – Sim, é uma discussão né. Carmen – Exatamente. Tem gente que acha que tem aumentar a pena pra ameaça, também tornar a ameaça uma ação pública incondicionada. Mas a gente na discussão toda... Porque a Lei de Juizados, a lei não, mas a previsão de delitos de menor potencial ofensivo é constitucional, a lei que determina quais são os delitos de menor potencial ofensivo, Lei 9.099/95, tem como critério a pena, a medida da pena. Então, se é a medida da pena, você tem que aumentar a pena. Então o aumento da pena do crime de lesão foi única e exclusivamente pra poder sair dos Juizados Especiais Criminais e entrar no Juizado Especializado da Violência Doméstica, não é? Se não continuaria no Juizado Especial. E a gente achava que isso, primeiro, tratava a violência domestica como um delito de menos potencial ofensivo, e aí pra nós isso era um problema teórico importante. Determinar o que é um delito de menor potencial ofensivo pela medida da pena é muito complicado. Então a nossa discussão foi essa. Óbvio que chegou no Congresso nacional, e bom ai... A gente lutou, a gente discutiu o tempo inteiro juntas, e conseguimos manter a estrutura original do projeto do consórcio. E agora eu estou na Universidade Federal de Vila Velha. Luisa – Ah legal. Carmen – É. E a gente criou aqui, estamos com um Núcleo de atendimento às Mulheres, pra um atendimento jurídico e também um atendimento psicológico. É uma equipe multidisciplinar e a ideia é que a gente possa

113

contribuir não apenas do ponto de vista jurídico, mas nessa linha de fortalecer a rede de apoio pras mulheres, e ver como é que funciona, como é que está funcionando, como é que a justiça se movimenta, por onde vão as mulheres. Acho que a gente pode ter daí, digamos, futuramente um campo pra investigação também importante. Luisa – Nossa muito legal. E, não tá muito dentro do escopo da minha pesquisa, mas só por curiosidade esse núcleo que vocês tem aí ele é composto por alunas, ou só professoras e pós-graduandas? Carmen – Então, é composta por professoras, alunas, e pós graduandas. E também voluntárias. Tem alunas que, digamos, já terminaram o mestrado e que estão no projeto. Então tá bem interessante. Luisa – Muito legal. Carmem – É um projeto de extensão, que a gente propôs como um projeto de extensão vinculado ao Núcleo de Prática Jurídica que a gente viu aqui que a prática jurídica não tratava da violência doméstica. Apareciam os casos de violência mas eram tratados, digamos assim, o discurso da violência ele sumia nos processos de família. Então, a gente resolveu tratar da Lei Maria da Penha, e é um projeto de extensão, porque o Núcleo de Pratica Jurídica é um projeto de extensão. E a gente abriu a pouco, agora em agosto. Luisa – Ah que legal! Carmen – E tá bem interessante, ta bem bacana. Luisa – Ah que ótimo. Queria muito visitar um dia se desse. Carmen – Claro. Luisa – Legal. E deixa eu ver o que mais, pra não tomar muito o seu tempo. Bom pensando um pouco nisso que você acabou de me contar do processo de consórcio das ONGs pra aprovação da Lei Maria da Penha, você acha que apesar das mudanças que o Congresso promoveu, e tentando pensar um pouco também nas interpretações que o STF consolidou sobre a aplicação da lei, você acha que ela dá um tratamento adequado pra questão da representação, ou não? 114

Carmen – Como é que é? Eu não entendi. Quem dá um tratamento adequado? Luisa – A lei, porque assim...Você acha que a lei em si, o texto legal ele dá um tratamento adequado pra questão da representação? Carmen – Não, na verdade, a Lei Maria da Penha ela não trás isso né. O que prevê ... Não é a Lei Maria da Penha que disse que não vai ter representação, é que a representação é dada aos crimes de lesão corporal, com pena de dois anos. A Lei Maria da Penha aumenta de dois anos, então automaticamente o crime deixou de ser condicionada a representação, porque ele não tem pena máxima de dois anos, ele tem pena máxima de três anos. Então nesses casos de violência domestica se exclui a possibilidade da representação. Então o que a lei fez foi isso, ao aumentar a pena, ela excluiu a incidência da Lei 9.099, e ai incidiu, digamos, sobre todas as medidas previstas na Lei 9.099. Então é isso, a Lei não determinou. Luisa – Mas quanto a isso: a lei não determinou explicitamente, e aí acho que também por isso, não sei posso estar com uma interpretação errada, pode ter gerado uma certa confusão na aplicação da lei por algum tempo né? Pelo menos, pelas pesquisas que eu li antes, falaram um pouco isso que até 2012 antes da decisão do Supremo a aplicação não era tão uniforme, né? Carmen – É não era, mas não por conta disso. Luisa – É? Carmen – É, na minha opinião. Luisa – Ahã, claro. Carmen – Eu acho que tem um histórico antes disso. E esse histórico está no Rio de Janeiro, a Rosane Reis tem um artigo muito interessante que tá naquele livro que eu organizei, Lei Maria da Penha: comentada em uma perspectiva jurídico feminista, contando o que aconteceu. Logo que a Lei Maria da penha, antes disso...Quando a elaboração do consórcio propôs a lei, discutiu com os juízes dos Juizados Especiais Criminais. Especialmente 115

os juízes do Rio de Janeiro. Esse juízes queriam manter, porque eles faziam até que um trabalho interessante, eles queria manter o julgamento dos casos de violência domestica nos Juizados Especiais Criminais. E aí eles participaram de todo processo de discussão, a gente discutiu com eles dizendo que não concordava, que nós achávamos que a Lei, que não podia tratar nos Juizados por conta disso, porque o Juizados tratavam de delitos de menos potencial ofensivo, e eles até poderiam fazer um trabalho bom, mas continuava tendo essa conceituação, e não tinha como se livrar disso pelo bom trabalho de alguns juízes. E esses juízes quando a gente apresentou o Projeto de Lei pra Secretaria de Política das Mulheres, esses juízes fizeram um lobby muito grande na Secretaria, a Secretaria constituiu um grupo interministerial pra discutir o nosso projeto. Esses juízes fizeram um lobby muito grande na Secretaria, e a Secretaria altera o nosso projeto que previa a criação dos Juizados Especializados em Violência Doméstica, e mantém o julgamento dos crimes da violência doméstica nos Juizados Especiais Criminais. E mandou esse projeto para o Congresso Nacional. E no Congresso Nacional, ai a gente faz a pressão no Congresso Nacional, e conseguimos reverter ao nosso projeto original. Então a gente teve dois momentos de disputa muito nítidos: a pressão dos juízes dos JECRIMs lá na Secretaria, e eles saíram vitoriosos, porque conseguiram convencer o grupo interministerial de que manter nos Juizados Criminais era melhor do que criar Juizados Especializados de Violência Doméstica convenceram o governo.

No

Congresso

Nacional,

nós

conseguimos

convencer

as

parlamentares. E eles participaram, e a parlamentar de mérito da Câmara, digamos assim, foi a Jandira Feghali , e a Jandira Feghali fez audiências públicas pra discutir a proposta da Lei Maria da Penha em todo país praticamente, e fez no Rio de Janeiro. E eles sempre foram aos debates no Rio de Janeiro, e eles perderam o debate. Perderam, mas não se conformaram. E ai o que que aconteceu? Eles perderam o debate, perderam no Congresso Nacional, e logo que a Lei Maria da Penha é publicada sai um enunciado do Fórum Nacional dos JECRIM, chamava...como é que é? Não me lembro. Mas era o Fórum Nacional dos Juízes do JECRIM dizendo que a lei era inconstitucional. Então toda a (áudio cortou) começam a negar, dizer

116

que a lei é inconstitucional, que não podia afastar a Lei 9.099. Então eles continuaram aplicando a partir daí a Lei 9.099. Então, na verdade, toda a incidência, digamos assim, toda a discussão sobre a constitucionalidade ou não da lei, a aplicação ou não dos dispositivos da Lei 9.099 tá vinculada a esse grupo de juízes do Rio de Janeiro que perdeu a discussão política e quis ganhar no tapetão. Luisa – Ah, entendi. Carmen – Entendeu? Então como eles eram juízes eles resolveram aplicar conforme eles achavam que era, porque eles não aceitaram a derrota democrática, eles não aceitaram ter perdido. E ai passaram a promover enunciados, a dizer que a Lei era inconstitucional porque protegia só as mulheres, e não os homens. Então quem criou toda essa cultura de não cumprimento da Lei Maria da Penha por parte do poder judiciário foram esses juízes do JECRIM. Luisa – Olha só. Caramba. Então, meio que por trás da disputa jurídica tá uma disputa politica mais antiga, né? Carmen – Exatamente. É que na verdade, é transformar a discussão jurídica. É utilizar o direito de uma forma, é um ativismo politico, na minha opinião, inconcebível. Acho que o poder judiciário ele participou do processo, assim como nós, nós participamos do processo. A gente poderia ter perdido. Eles podiam ter conseguido convencer os parlamentares de que a proposta deles era melhor, como conseguiram convencer o governo, não é? Luisa – Sim. Carmen – Mas eles não convenceram. Nós convencemos e eles não admitiram isso. Então eu acho que teve uma profunda atitude anti democrática desses membros do poder judiciário que aceitaram a derrota e usaram o seu poder de caneta pra dizer que a lei era inconstitucional, de um processo que eles participaram o tempo inteiro. Então, assim, eu disse isso pra vários deles: vocês não ganharam na disputa democrática e tentaram ganhar no tapetão. Puxar o tapete usando do seu poder de magistrado. O que, na minha opinião, é antidemocrático, viola digamos as 117

prerrogativas do próprio judiciário, faz um ativismo politico, quer dizer, rompe com toda a, digamos, atribuição do judiciário. Eu posso descordar da lei, mas eu não posso descumprir a Lei. Não preciso ter juiz né? Não preciso ter magistrado, ter um Supremo Tribunal Federal. Se um juiz de primeiro grau acha que pode interpretar a lei do jeito que ele quer, porque que

eu

tenho

Supremo

Tribunal

Federal?

Pra

que

que

eu

tenho

prerrogativas? Então eu acho que tem uma coisa no Brasil que é muito ruim, né? Que é o poder judiciário se achar, e eu acho que essa disputa pela Lei Maria da Penha exemplifica muito bem isso, se achar acima, não aceitar. É uma visão autoritária, profundamente autoritária. E isso tá muito bem exposto no artigo da Rosane Reis. Luisa – Ah legal! Vou ler. E Carmen, assim, só mais duas perguntas. Um pouco pensando nisso que você acabou de falar do Judiciário. Você acha que o STF deve exercer um papel em relação ao tema da violência de gênero? Pensando um pouco no direito das mulheres no STF, quanto você acha que eles devem tomar parte nessa discussão? Carmen – Eu acho que a garantia dos direitos da mulheres é uma discussão de cidadania, de democracia, de Estado de Direito. E se é, o Poder Judiciário e o STF tem que estarem presentes. Então, é importante que discutam, é que importante que...Talvez até devesse ter no próprio STF algum mecanismo de discussão de gênero, eu acho que seria importante pra evitar inclusive a persistência, a manutenção de visões estereotipadas por parte dos membros do Judiciário que contrariam a própria Constituição Federal. Então eu acho que seria interessante o Judiciário pensar em mecanismo de discussão de gênero, de promover inclusive uma maior representação feminina nos quadros dos Tribunais. Quer dizer, não é só a discussão da violência domestica, é a discussão sobre a presença das mulheres no próprio sistema jurídico que ainda é muito masculino. Se você olhar o numero de mulheres que fazem direito, e se você for subindo, você vai ver que não há uma representação equânime, né? Nem nos órgãos de classe, pega a OAB. Mais de 50%, ou no mínimo 50% das mulheres são advogadas, dos advogados são advogadas. Mas não há nem 20% de representação de mulheres nos quadros de direção da OAB. Então, você 118

tem uma disparidade muito grande. Então não é só uma discussão da violência

domestica.

É

uma

discussão

sobre

a

cidadania,

sobre

a

participação politica das mulheres, a presença das mulheres, inclusive no campo do direito, e discutindo os conceitos. Porque o que a gente pode ver é daqui a pouco reprodução de senso comum quase por parte dos magistrados, inclusive do STF. Por exemplo, na própria decisão, não na decisão propriamente dita, mas mencionada, a questão da vulnerabilidade. O que que é a vulnerabilidade de uma mulher? Pra ter incidência ou não da Lei Maria da Penha...Não é só uma vulnerabilidade social, digamos assim, por ter menos poder aquisitivo, não né. Então, eu acho que tem discussões assim que são... Como não tem muita discussão de gênero, e essa é uma discussão da teoria feminista, a apropriação dessa discussão por parte do poder judiciário ela é feita de uma forma muito reduzida do ponto de vista teórico. Então por isso que é importante que Poder Judiciário discuta isso, mas discuta a partir da teoria feminista e não da sua compreensão equivocada sobre conceitos não oriundo do direito, mas oriundo da elaboração feminista, da elaboração da teoria queer. Quando o poder Judiciário se apropria disso, ele se apropria de uma forma muito reduzida, e aí corre o risco de interpretar às vezes até contrariamente a própria concepção teórica. Luisa – Sim, é verdade. Ai Carmen, eu acho que eu já consegui abarcar a maior parte das questões que eu precisava, enfim, cumprir aqui do roteiro. E só por último, você poderia me indicar algumas pessoas, sei lá, que pra você são essenciais, que poderiam ajudar nessa pesquisa, na discussão sobre representação. Carmen – Sim. Você já entrevistou a Leila Linhares? Luisa – Não. Mas eu adoro o artigo dela do seu livro. Carmen – Ah então, eu acho que a Leila é uma cara legal. E eu acho que talvez assim entrevistar, quem mais, a Silvia Pimentel. A Silvia pode ser interessante não só pela questão da lei, mas pela visão, pode te trazer uma visão mais, digamos, internacional do tema. Quem mais? Você quer, assim, no campo do direito ou fora do campo do direito?

119

Luisa – Não necessariamente no campo do direito. Eu to entrevistado várias mulheres da Rede. Então até agora eu conversei com mulheres do direito, qual a defensora do NUDEM, conversei com uma delegada, com uma juíza. Conversei também com psicóloga, com a Amelinha Teles e com a Ruth Alonso da União de Mulheres. Eu to tentando um pouco mapear algumas pessoas importantes daqui de São Paulo. Carmen – Ah tá. Deixa eu ver.. de São Paulo. Eu acho que talvez fosse legal alguma dessas organizações mais jovens, ah eu acho que sabe quem? Entrevistar as mulheres negras. O Geledás tem também o Promotoras Legais Populares. Acho que o Geledés é bem legal, acho que tem a visão das mulheres negras, como é que elas tão acompanhando o julgamento da Lei Maria da Penha em relação ao racismo, pode ta tendo um racismo institucional

de

repente.

Acho

que

poderia

ser

isso.

Luisa – Ah legal. E não sei se é pedir muito, se você tiver o contato poderia me passar por e-mail? Carmen – Claro posso sim. Luisa – Muito obrigada Carmen. Eu vou ligar o vídeo de novo só pra te dar tchau. Carmen – Aham. Deixa eu ligar o meu aqui também. Então tá, boa pesquisa. Depois me manda o resultado quando você finalizar. Luisa – Ta bom Carmen, com certeza. Obrigada mesmo pela entrevista foi ótimo. Carmen – Imagina, tchau. Luisa – Tchau tchau brigada.

Delegada Luisa – Tudo bem por você, tudo tranquilo? Delegada – Tá, tudo bem. Luisa – Tranquilo. Então só pra entender um pouquinho, primeiro eu queria que você me contasse como que é o trabalho aqui na DDM? Como é que 120

vocês trabalham com as mulheres em situação de violência? Um pouco do cotidiano mesmo só pra contextualizar. Delegada – Tá. Então, a DDM diferente de outros Estados ela não atende só vitimas de violência doméstica, tá? Então a gente atende vítimas mulheres. E aí dentro da violência contra a mulher vem a violência de gênero. A principio elas registram o boletim de ocorrência. Quando a gente percebe uma situação que vá gerar um inquérito policial que é, por exemplo, lesão corporal que a gente não tem como fugir da instauração do inquérito, a gente já ouve a vitima em declarações pra...auxiliar no inquérito, da uma agilidade no inquérito e auxilia da vitima não ter que retornar pra ser ouvida novamente. Aqui a gente registra em média uns 15, 16 B.O por dia. Na segunda feira é sempre maior a procura, por volta de uns 20, nos dias de calor, principalmente, 30. Aqui o que a gente percebe muito é que existe uma grande incidência de violência por conta de bebida alcoólica. Então, o que dispara...Vamos lá, uns 70% das ocorrências tem histórico ou de uso de substancia entorpecente, ou de uso de substância alcoólica.

Então

quando o autor acaba ingerindo esse tipo de substancia acaba se tornando extremamente agressivo, o que culmina na lesão, enfim. Então como tá muito quente, a probabilidade de ingestão de bebida alcoólica é maior, geralmente nessa época do ano as nossas ocorrências dobram. Época de calor é uma época que realmente tem bastante coisa. Aí o segundo passo pras

ocorrências

que

não

vão

ser

instauradas

de

imediato

é

a

representação. Por conta do problema de funcionários, e até pra facilitar a administração da delegacia,

eu estabeleci alguns horários que até o

presente momento tem dado certo. Então o boletim de ocorrência qualquer hora que a vitima vem ela faz. E a representação a gente colhe em determinado horário, porque ai faz com que...Diminui o fluxo de pessoas lá embaixo, e diminui o tempo de espera da vitima. Porque na parte da manhã as escrivãs conseguem dar andamento dos inquéritos já instaurados e na parte da tarde elas passam a recolher representação. Na representação, quando a vitima já vem com testemunha a gente já ouve todo mundo no ato. Então os inquéritos aqui praticamente não demandam um exame de corpo de delito, geralmente é só a oitiva do autor que fica, geralmente dá

121

um seguimento rápido. Um problema, um obstáculo que a gente encontra é na localização das partes. Dificilmente elas retornam aqui pra dizer mudança de endereço, enfim. E acaba dando um trabalho maior pra que a gente localize todo mundo. Então isso acaba postergando o inquérito policial. E até mesmo por conta de cota ministerial, as vezes o promotor tem alguma dúvida, e a gente acaba indo procurar a vitima e não consegue localiza-la. Então essa é a dificuldade que a gente encontra. Pra falar a verdade acho que essa é a maior dificuldade que a gente encontra hoje, que é na localização das partes. Telefone que a gente liga e ninguém atende. Então, assim, o ideal é que todas as intimações fossem feitas pessoalmente. Isso é o ideal. E a gente sabe que a gente tá bem longe do campo do ideal, né então. A dificuldade da localização delas dificulta bastante o prosseguimento do inquérito. E muitas delas não estão orientadas no sentido de que não basta só vir aqui na delegacia e fazer o boletim de ocorrência. Não nos casos de representação, não é isso. Muitas delas não entendem que vai demandar outros atos, as vezes é um cota que o Promotor quer ouvi-la novamente, as vezes precisa de uma testemunha. Então isso dificulta bastante o nosso trabalho. Luisa- Entendi. Eu só fiquei com duas dúvidas. A primeira é a seguinte , quando é caso de lesão corporal e a representação ela já é incondicionada. Delegada – É, não tem representação na verdade, o inquérito já instaurado. Luisa – Na hora? Delegada – Na hora. Então, a gente já colhe a oitiva delas, porque já vai ser instaurado. Eu não aguardo a chegada do laudo, ta? Luisa – Ta. Delegada – E ai tem um outro gravame, que pese elas saiam daqui conscientizadas de que devem proceder, na questão de corpo de delito, algumas não se submetem. Então a gente acaba dependendo depois de prova testemunhal. Luisa – E os pedidos de medida protetiva eles já são feitos aqui também? Junto quando instaura o inquérito?

122

Delegada – Na verdade, se ela fizer o B.O hoje, for ouvida, e quiser a medida protetiva, a gente já faz o pedido. Luisa – Ah legal. Delegada – Tá? E nos crimes de ameaça, nos crimes que vão demandar representação, a medida protetiva a gente faz junto com a representação. Luisa – Ah ta. Delegada – Porque infelizmente elas ainda não estão desassociadas do inquérito policial. Algumas eu mando, eu mando utilizando a decisão do STJ de que entende que ela é uma medida cautelar de cunho satisfativo, que não necessita de um inquérito policial de procedimento criminal, porque ela integra a própria pretensão da vitima. Como a vara aqui

ela não nos

comunica se concedeu ou não, eu não sei te dizer se foram ou não concedidas. Mas eu fiz um tempo. E eu fiquei meio receosa, porque ele não ta me respondendo, o juiz não respondeu. Então eu tenho medo às vezes de ficar pedindo desta forma e acabar dando um problema até mesmo pra vítima. Então eu fiz um tempo, não veio resposta de nenhuma. Então eu não sei dizer se foi ou não concedida. Mas o que eu sei dizer é que a Defensoria aqui é bem atuante, e as meninas que trabalham aqui na área da violência doméstica sempre trabalham em parceira mesmo com a Delegacia. Luisa – Ah que legal. Delegada – A gente não tem problema nenhum de comunicação graças a Deus. Até porque também eu já estagiei na Defensoria, então, a gente já tem uma afinidade assim. Eu sei que elas pedem, que elas tão pedindo. E acho que até recorrendo de decisões desfavoráveis. Mas também eu já não sei te dizer o que ta ocorrendo. Luisa – Tá, legal. E ai, bom pensando um pouco sobre isso de ter ou não a representação. Primeiro, eu queria saber sua opinião pessoal sobre esse tema da representação em casos de violência domestica. Você acredita que ela é necessária ou não? Sempre ou só em alguns casos? Por quê?

123

Delegada – Então, eu acho que talvez inviabilize de que outras vitimas venham procurar. Porque as vezes a vitima ela não quer processar criminalmente o agressor, seja porque é pai da criança, do filhos, ou porque mantem o sustento da casa, enfim, ou porque tem ainda carinho por ele. Mas elas querem que a agressão cesse, e pra isso eu vejo que a medida protetiva é eficaz. Então eu acho que a partir do momento que você cria um obstáculo pra concessão disso, você impede que outras mulheres venham a procurar. Eu acho que deveria desvincular, porque muitas delas não querem mesmo representar contra ele. Você cria um óbice que no meu entender a lei não criou. Eu não vejo que a lei tenha criado como condição da concessão a representação. Acho que esse nem é o espírito da lei. Então eu acho que acaba intimidando. Luisa – Sim. E quanto a isso que você falou, muito interessante, de acabar intimidando. Como percebe esse movimento, se tem ou não desistência. Delegada – Então, a retratação aqui já foi maior. Eu tenho percebido assim que tem diminuído. Eu não posso te dar porcentagens, porque a gente não tem esse tipo de estatística aqui. Mas quando elas querem retratar-se, eu colho

novamente

as

declarações

dela

e

encaminho,

e



ai



é

encaminhado pra audiência de justificação. O que eu percebo, eu não sei ai se há uma pressão ou não, é que geralmente na audiência de justificação elas

se

retratam

novamente.

Então

elas

falam

que

querem

dar

prosseguimento. E eu acredito que seja porque elas tomem consciência de que a medida protetiva nesses casos vai cessar os efeitos, ou então que há uma pressão nesse sentido. Eu não sei. Porque o que tenho tido relatos é de que existem alguns juízes que tão pedindo pra que se inquérito por denunciação caluniosa, de vitimas que falam ah mas não foi bem assim, porque elas falam. Se eu falo pra elas a lesão é pública incondicionada, não tem mais o que você fazer, a gente vai instaurar,

ah mais não foi bem

assim, elas acabam imputando a culpa a elas mesmas no intuito de tirar o cara, o agressor da situação. E há relatos de que eles estão oferecendo denunciação caluniosa, pedindo pra que se instaura inquérito policial de denunciação caluniosa. Eu acho que a imposição da representação, eu não sei até que ponto é bom o Estado intervir dessa forma nas relações, porque 124

elas são complexas. Infelizmente tem vítima que reata com o agressor, ainda não rompeu o ciclo da violência, cada um tem seu tempo, algumas demoram anos pra conseguir romper. Então eu não sei até que ponto isso é bom, porque se ocorrer uma nova agressão ela não vai querer vir. Luisa – Porque agora ela já sabe como funciona? Delegada – Porque ela já sabe como funciona. Então eu não sei até que ponto isso inibe elas. Luisa – E você sente que a maior parte delas não compreende ou não sabe o que significa a representação? Delegada – A gente explica. Luisa – Ah é? Delegada – A gente explica. Tanto que nos boletins de ocorrência de lesão corporal a gente explica que independentemente da vontade dela será instaurado o inquérito policial. Quando elas, às vezes mesmo no de lesão elas voltam na delegacia, porque reatou, enfim, a gente colhe a oitiva e na própria oitiva a gente fala que foi informada que independente da vontade dela... Luisa



Então

ela

é

informada

mesmo

antes

do

inquérito?

Delegada – Sim, ela é informada. É que também meio que a gente fica preso, né? Se ela me fala que ta sendo agredida, e eu to vendo a lesão, como eu não vou fazer? Depende também da minha vontade, se tornou pública e incondicionada. Então são orientadas, mas o registro é feito e o prosseguimento é dado da mesma forma. O que eu faço é que eu consigo que nas declarações dela que ela não quer vê-lo processado. Luisa – Ah, vocês colocam isso? Delegada – A gente deixa consignado. Luisa – Ah legal, entendi. É bom pra eu entender melhor como funciona o procedimento. Delegada – É, não, a gente deixa consignado. É porque as pessoas, assim, ainda existe muito o que ser feito da policia em questão de violência

125

doméstica. Eu acho, por exemplo, que eu poderia ter uma psicóloga aqui, como tem no Ministério Público, como tem na Defensoria, que auxiliassem. Porque tem mulher que precisa de auxilio psicológico antes de mais nada, pra entender a questão da violência, pra ter esse tato com elas. Eu acho que a gente poderia fazer muito, mas enfim. Luisa – É, talvez. Pensando nisso que você falou agora, ter uma psicóloga é muito interessante, e ai do que a delegacia poderia fazer, fazer muito mais. Como é que você enxerga o papel da delegacia dentro da rede? Delegada – É fundamental! Elas não vão procurar a Defensoria, elas não vão procurar o Ministério Público, ou elas só vão quando elas tiveram a porta da delegacia batida na cara delas. O primeiro local que elas vão até por ser, como eu posso te dizer, não é histórico a palavra correta. Mas é intuitivo. Qual o primeiro local que você vai quando acontece um crime? É na delegacia. É o primeiro local que elas tem que ser atendidas. E elas procuram a gente, procuram. A gente não consegue dar conta da demanda que recebe hoje de uma forma de, eu não vou te dizer de excelência, porque que é difícil um serviço público atingir a excelência. Mas eu acho que a gente não dá conta da demanda de uma forma satisfatória. Luisa – Quantas mulheres por região mais ou menos? Você sabe? Delegada – Aqui nós atendemos a área de 12 delegacias. A zona x é divida em 3 seccionais. A minha pega uma área xxx, que é uma área extensa, que falta investimento do Estado, é uma área carente, então assim que a demanda é grande. Luisa – Entendi. É bem grande mesmo. Delegada – É bem grande (risos). Aqui a gente não tem reclamação de vitimas de ah eu fui lá e não fiz o boletim de ocorrência. Vai registrar, talvez demore, se for um dia que tá tulmutuado, infelizmente demora. A gente tem pouquíssimas pessoas no quadro, né. E assim, não é só na DDM, é no quadro em geral. A gente tem poucas pessoas pra atender a demanda. Mas reclamação de que não fez, ou de que não houve boletim de ocorrência, de que não foi pedido a medida protetiva, isso nós não temos.

126

Luisa – Ah que bom. Delegada – É. Já é um avanço né? Luisa – Sim, claro. Com certeza. Delegada – Agora assim, a questão do mal atendimento é uma questão... O que que é um mal atendimento? Eu ainda não... É que é difícil eu falar, porque eu meio que vou defender minhas funcionárias, porque assim tá todo mundo num nível de stress grande e assoberbada de trabalho. Se tá todo mundo assoberbada de trabalho, você acha que essas funcionarias vão ter condições de tratar todo mundo muito bem? Não. A gente vai tratar todo mundo bem, mas de uma forma célere. E às vezes a vítima ela demanda de um pouco mais de atenção, as vezes ela quer explicar a situação com todas minúcias, e a gente aqui não consegue, entendeu? E eu acho que o problema maior nosso é esse, é falta de funcionário de forma estrutural pra que todo mundo seja tratado de uma forma satisfatória. A gente faz o que dá, né? Luisa – E agora, pensando um pouco sobre a própria Lei Maria da Penha. Você

acha

que

ela



um

tratamento

adequado

pra

questão

da

representação? Delegada – Na verdade, eu acho que os institutos da Lei 9.099 foi bom ela ter retirado, porque na verdade ela um instituto despenalizador, o objetivo é esse. Mas realmente pras questões de violência doméstica ela não deveria ser aplicada, deveria ser tratado de uma forma um tanto mais rigorosa. Agora a questão da representação, eu, sinceramente, não acho adequado. Luisa – É? Delegada – Eu não acho adequado. Eu acho que é ingerência do Estado na esfera particular da mulher. Porque foi o que eu te falei, às vezes ela quer o que? Ela vai querer que cesse a agressão, não necessariamente ela vai querer que o indivíduo seja processado, porque isso em tese gera determinadas consequências pro agressor, e algumas, não vou dizer a maioria, hoje acho que nem é mais a maioria, mas algumas delas ainda sentem carinho, não querem vê-lo processado. Então acho que a partir do

127

momento que você cria um obstáculo pra ter uma pretensão, elas vão acabar não vindo. Luisa – Então talvez, pensando um pouco nisso que você disse, a solução fosse desvincular as medidas protetivas da representação ou tornar sempre condicionada a representação à vontade da vítima? Delegada – Eu acho que a solução, muito mais do que discutir se representa ou se não representa, é discutir se há necessidade de um procedimento criminal pra concessão das medidas protetivas. Eu acho que isso tem que ser desvinculado. Tem mulheres que não querem que seja instaurado um procedimento criminal contra o autor, contra o agressor. E eu acho que isso é um direito delas. Contudo elas querem a protetiva, elas não querem manter contato com eles. E eu acho que isso poderia ser viabilizado, até pra que fosse concedido em juízo civil, na esfera civil. Luisa – E essa vinculação você entende que ela acontece mais por causa da prática ou por que a Lei dá a entender que tem que ser assim? Delegada – Eu acho que acontece muito mais por causa da prática, porque agora vai uma crítica ao judiciário mesmo. O intuito da Lei era que fossem criadas varas híbridas, que as varas atuassem tanto na esfera cível quando na esfera criminal, e isso não acontece. Isso não acontece. Todas as questões de esfera cível, pelo menos é o que eu vejo aqui, eles acabam não decidindo sobre a questão por falar que demanda mais provas e que tem que ser avaliada na esfera civil. Luisa – E ai vai pra uma vara diferente? Delegada – Vai pra uma vara diferente. E eu acho que esse não foi o espírito da lei. A lei foi acelerar em tudo, né. Às vezes a mulher já acha que vai sair daqui e já vai ter resolvido a questão da guarda, a questão do divórcio...E isso poderia ser resolvido numa vara híbrida. Não acontece. Eu pelo menos aqui nunca vi, pode ser que em alguma outra vara por aí eles já estejam decidindo. As que eu vi, eles nunca se manifestam sobre questão de alimentos, sobre questão de guarda. Luisa – Nossa, isso é um dado bem interessante.

128

Delegada – É, eles não se manifestam. Isso foi até um levantamento que a Yasmin fez, ela fez uma palestra pras Promotoras Legais e ela levantou realmente essa questão que muito mais...Acho que o intuito da Lei é amparar em todas as esferas, foi esse o sentido, de agilizar, de dar uma celeridade a tudo, e não é o que está acontecendo. As varas de violência doméstica, do meu ponto de vista, eu creio que elas tem caráter meramente criminal, elas não tem esse cunho híbrido. Luisa – Entendi, muito interessante a colocação. E ai talvez só pra gente não demorar muito e eu não tomar seu tempo, falta pouquíssima coisa. Eu queria te perguntar: você conhece a decisão do Supremo Tribunal a respeito

da

constitucionalidade

da

Lei

Maria

da

Penha

e

da

incondicionalidade da representação, que é a ADC 19 e a ADI 4424 ? Delegada – Eu, pra ser sincera, não li a decisão. (risos) Luisa – Tudo bem, não se preocupa. Delegada – Eu não li a decisão, mas eu sei que houve a decisão. E a partir de então a policia civil adota pela incondicionalidade da lesão. Nos casos de lesão, geralmente, eu nunca vi nenhum delegado que tenha depois dessa decisão que tenha se posicionado ao contrário. Luisa – Então ela realmente uniformizou a atuação? Delegada – Sim, sim. Há inclusive, no âmbito do DECAP, comunicados nesse sentido. Luisa – Desculpa, o que é DECAP? Delegada – Desculpa, é que eu falo... Luisa – Desculpa. Delegada – Não, não. Você é que tem que me desculpar, você não tem obrigação nenhuma. A policia civil está dividida em departamentos. Então, a capital ela fica dentro de um departamento que é o DECAP. É o Departamento da Capital. Então dentro dessa organização, todas as delegacias da cidade são subordinadas a esse departamento. E há, desde

129

que saiu a decisão, a manifestação do Departamento no sentido de que tornou-se pública e incondicionada. Tanto que isso foi um problema pras DDMs no começo, todo mundo ficou bem desesperado, porque a gente não sabia o que fazia com aqueles inquéritos que...Na verdade os boletins de ocorrência que não tinham prescrito, não estavam registrando prazo decadencial, mas também não haviam sido instaurados, e tinham sido anteriores a decisão. Teve muitas delegadas de Delegacia de Defesa da Mulher que acabaram instaurando, e ai também isso gerou um problema, porque a estrutura não tava preparada. E ai gerou um boom de inquérito. E isso foi até um problema no começo, mas agora é pacificado, pelo menos aqui, que é pública e incondicionada. A gente não tem mais essa discussão se condiciona à representação ou se não condiciona. O que acontece, pelo menos aqui, é que tem casos em que não é aplicado a Lei 11.340. É raríssimo, mas eu entendo que não houve uma violência de gênero, ou não há uma hipossuficiência da parte em relação ao agressor, e dai a lei não é aplicada. Mas dai a gente deixa claro no histórico do B.O e informa no histórico do B.O que é condicionada a representação. Luisa – Ah ta. Delegada – A gente justifica. Luisa – E, enfim, só ultima pergunta um pouco sobre a rede. Como você acha que os outros serviços de atendimento enxergam um pouco Delegada – A policia civil? Luisa – Não só. Como enxergam vocês e a representação. Você acha que é muito diferente? Delegada – Em relação a policia civil, é o que eu te falei, ninguém gosta da polícia, é incrível. É muito difícil ser policial. Em tese por conta da própria polícia que tá se modernizando, que tá melhorando. Mas isso não acontece de um dia pro outro. Acho que tem muita coisa que precisa melhorar na polícia civil, muita coisa mesmo. Mas já existe um preconceito formando em relação às delegacias, é como eu enxergo. Existem maus atendimentos? Existem. Mas eles são maioria? Eles não são. O que eu vejo é que a mídia pega uma coisa ruim, lança, e tudo que você fez de bom não aparece. E 130

isso também é ruim, porque inibe com que as mulheres venham. Parece que elas vão chegar aqui, que a gente vai agredir. Isso acontece em outras delegacias delas sofrerem uma segunda vitimização? Acontece. Mas eu não acho que seja a maioria. Aqui o que pode acontecer, às vezes a gente não tá nos melhores dias. É difícil sorrir pra todo mundo. Mas todo mundo que vem procurar, a gente atende e tenta tratar da forma mais digna possível. Então eu sinto assim um certo preconceito. Todo mundo meio que torce o nariz pra policia, mas esquece que é aqui que a maioria das coisas começam,

a

maioria

das

coisas

se

iniciam

aqui.

Na

questão

da

incondicionalidade, agora você me pegou...Então, tem instituições que eu acho que veem isso de uma forma muito arcaica. Não é o caso da Defensoria, a Defensoria eu sei que tá lutando ai pela desvinculação da medida protetiva. Agora, eu não sei. É tão difícil falar de outras instituições, né? Luisa – É...Mas é só uma opinião mesmo. Delegada – Eu não sei relação assim a parte assistencial, essas Casas...Eu não tenho muito contato. O contato que a gente tem é em palestras, mas a gente não tem uma afinidade maior com as pessoas que estão dentro dessas unidades pra que eu possa falar. Agora, o Ministério Público tudo que eles fazem eu vejo assim com um pouco de receio. Eu não sei até que ponto eles realmente são contra a questão da violência, ou até que ponto eles usam isso...enfim...como política. Eu, no meu ponto de vista, entendo que deveria voltar a ser condicionada a representação. Por que eu vou ter menos trabalho? Não, porque a maioria volta pra representar, por incrível que pareça. Luisa – Sério? Delegada – Sério. A gente pede, por dia, cerca de seis medidas protetivas, dessas seis medidas protetivas, quatro de representações. Elas tão voltando. E elas voltam com testemunhas. A gente já orienta quando vier representar, trás uma testemunha, ainda que seja uma testemunha indireta. Elas já trazem. Eu acho que hoje a maioria já tem essa consciência. Eu particularmente, não acho que isso vá me dar menos

131

trabalho, eu acho que vai ficar...Também não vai me dar menos, nem mais. Eu acho que vai ficar elas por elas. Vai acabar ficando elas por elas. E eu acho que é uma forma de você não inibir a vítima a procurar. Eu acho que você tem respeitar o tempo das pessoas. Eu acho que o Estado não tá respeitando o tempo das pessoas, entendeu? As vezes as pessoas precisam de um tempo maior pra entender que aquela situação é correta. Mesmo que seja

um

caso

representatividade.

gravíssimo, Porque

se

aí cai

também numa

tiraria lesão

a

grave,

questão

da

gravíssima,

independente da vontade delas seria, porque elas não estão abarcadas pela Lei 9.099, da questão da representação. Eu acho que seria dar um tempo, respeitar o tempo e a vontade da vítima. Luisa – Entendi, legal. Delegada – Não sei se eu to falando besteira. Luisa – Não, que isso. Delegada – Tem estudos que eu... Inclusive promotores vieram falar que eles entendem que tem que romper o ciclo da violência, que tem que romper com esse tipo de violência. Eu acho que a gente tem que respeitar a vontade das pessoas. É o que eu te falei, às vezes a pessoa quer a medida protetiva, ela quer afastar o cara da casa, não quer mais conviver com ele, mas ela não quer processa-lo. E eu acho que isso é até uma forma de você fazer com que a vitima permaneça naquele relacionamento. Porque ela pensa então se eu for lá na delegacia representar, necessariamente eu vou ter que processá-lo. E isso acontece muito em casos de violência entre mãe e filho. O que eu vejo mais, nesse sentido, não é tanto marido e mulher. Mas eu tenho bastante caso de violência de filho contra a genitora, por conta do uso de substancia entorpecente e alcoólica. E ela vem aqui, mas ela não quer processar o filho. Luisa – Uhum, é muito delicado. Delegada – É muito delicado você incondicionar. Nesses casos quando elas vem pedir protetiva, a gente explica olha tem uma decisão no STJ, mas pode ser que, lógico que não dessa forma tão jurídica. Mas a gente fala pra elas que pode ser que seja indeferido, que é bem provável que seja 132

indeferido. E mesmo assim elas optam por não pedir a protetiva e não querer ofertar a representação. Lembra que eu te falei que eu tinha colhido algumas nesses sentido? Luisa – Eu lembro. Delegada – A maioria foram casos de mãe com filho. Luisa – Ah, olha só. E quando isso acontece, vocês também recomendam, por exemplo, ir na Defensoria? Ou se precisar de alguma Casa Abrigo... Delegada – Então a Casa Abrigo eu peço aqui. Eu peço, ou a gente entra em contato com o CREAS, ou a gente tem o Conviva da policia civil também. Geralmente eu peço pro CREAS, porque é mais rápido e é na região. Então, eu mesma consigo depois encaminhar a vítima pro abrigo. Na Defensoria, eu pedi até pras meninas me darem os papeizinhos com os dos documentos que precisa pra ação. As defensoras responsáveis... Luisa – Eu conheço uma delas. Delegada – Elas são maravilhosas, eu gosto demais delas. Geralmente quando é um caso mais grave, esses dias veio uma senhorinha com uns 80 poucos anos, e o filho dela tinha problemas psiquiátricos, era interditado, inclusive ela era curadora. Dá ultima vez que ele a agrediu, ele deu um chute na perna dela, e cicatrizou de forma errada...Enfim. Dai ela veio aqui, narrou que esse menino tava fazendo horrores com ela. Mas ela queria processá-lo? Não, nesse caso nem cabe, porque ele é interditado. Mas ela queria que ele fosse internado. E ai não tinha...Ela ligava pro SAMU, o SAMU não ia, ele tinha sido expulso do CRAS. E ai a gente acabou encaminhando ela pra Defensoria, nós ligamos pras meninas, e as meninas falaram pra encaminha-la. Então eu acho que esse contato com todo mundo da rede melhora o trabalho. Ela veio aqui, e o problema não era aqui. Mas é o que te falei, elas sempre acabam procurando primeiro a delegacia. Até por questão da Defensoria ser um órgão relativamente novo, e as pessoas não terem tanto conhecimento da atuação deles. Mas a gente encaminhou, eu não sei te dizer se deu certo, mas eu acredito que sim, porque as meninas são maravilhosas, vestem mesmo a bandeira.

133

Luisa – Muito legal. Eu acho que é isso, já abarcou todas as perguntas que eu estava precisando. Foi ótimo. Delegada – Espero que eu possa ter te ajudado. Luisa – Ajudou muito, muito obrigada. Vou desligar aqui.

Gabriela Manssur - Promotora Luisa –Eu sou aluna lá da sanfran, mas eu tô fazendo uma pesquisa na Sociedade Brasileira de Direito Público, não sei se você conhece. Gabriela – Conheço. Luisa – Conhece? Legal. Então, eu escolhi como tema de monografia esse ano a aplicação da Lei Maria da Penha.

Mas especificamente, eu tô

tentando fazer uma comparação de argumentos. Algo bem simples, porque é minha primeira pesquisa. Então, eu tô tentando comparar os argumentos que o STF utilizou na ADI 4424, sobre a representação incondicionada, e os argumentos

das

entidades

e

instituições

que

compõe

a

rede

de

enfrentamento de São Paulo. É óbvio que é impossível cobrir toda a rede de São Paulo, então eu tentei fazer uma seleção de pessoas. Gabriela – Quem que você já entrevistou? Luisa – Eu entrevistei na Defensora lá do NUDEM... Gabriela - A Yasmin? Luisa – A Yasmin. Falei com a Yasmin e com a Ana Rita. Gabriela – Legal. Luisa – Muito queridas. Gabriela – Muito. Luisa – Falei também com a psicóloga de lá, a Anna Carolina. Gabriela – Não conheço. Luisa – Conversei com outra psicóloga, do CRM Casa Eliane de Grammont, a Branca.

134

Gabriela – A Branca? Adoro a Branca. Luisa – Conversei também com... Gabriela

-

Ela

não



mais

lá,

tá?

Luisa – Não ela saiu. Ela se aposentou. Mas ela saiu em fevereiro. Gabriela – Ah, você conseguiu fazer? Luisa – Sim. Foi muito legal. Aí também

eu conversei, deixa eu

lembrar...Com uma juíza, com uma delegada. Gabriela – Qual juíza? Luisa – Eu conversei com a Dra. X (não fui autorizada a revelar o nome na transcrição). E com a delegada da X DDM, a doutora Y. Gabriela – É uma gracinha a Dra. Y Luisa – Ah que legal. Eu também entrevistei a Amelinha Telles, a Rute Alonso, algumas pessoas da União de Mulheres, enfim. Gabriela – Tá. Só gente legal então. Eu acho que eu tô aquém desse pessoal aí. Luisa – Imagina que isso. Brigada por ter me respondido, de verdade. Gabriela – Imagina. Luisa – Então se você pudesse começar me contando como é que você e o MP, principalmente o GEVID, trabalham com violência doméstica. Como é que isso aparece no cotidiano? E se aparece, como é que aparece essa questão da representação nas ações penais? Gabriela – Até é bom que eu tô... Não com isso na cabeça, mas ontem eu escrevi um artigo. Vai ter um livro de mulheres auto-impacto. E eu falei gente, eu não sou empreendedora. Eu sou promotora, é diferente. Mas elas quiseram. Então eu comecei a lembrar qual que é o impacto da violência doméstica na sociedade, pra ter uma estratégia pra adaptar pro livro, que é mais ou menos o que elas querem. E eu acho assim, quando eu entrei no Ministério Público, aliás é bom que você tá aqui pra eu fazer um paralelo. Quando a minha mãe, a minha mãe é advogada de família, ela faz outras

135

coisas, mas ela faz muito família. E as mulheres chegavam pra se separar... E eu era estagiária, fazia direito, já bem ligada nessas causas da mulher. As mulheres elas vinham assim sem o mínimo empoderamento, sem a mínima autonomia na questão da violência psicológica, na questão da violência física, da violência moral. E elas sofrem, e isso eu vejo até hoje, uma violência patrimonial muito grande. Porque a mulher quando ela resolve se separar, sair do ciclo da violência, ela sofre por todos os lados. Ela tem que mudar a rotina, ela tem problema financeiro, porque ela diminui sim o patrimônio dela. Ela, muitas vezes, não trabalha, tem essa dependência econômica. Ou se ela trabalha, muitas vezes...Dificilmente a mulher, naquela época, tinha um cargo ou salário maior do que o do homem. E quando ela tinha, ela sustentava toda família, ou seja, a partir do momento que ela se separa é óbvio que ela tem que despender uma quantia maior pra sustentar a família, e vai ter que dividir o patrimônio. Então muitas mulheres saem de casa, abandonam o emprego, trocam os filhos de escola. Então essa logística causa uma depreciação financeira pra essa mulher. Ela também lutou, ela também construiu. É que nós mulheres nos apegamos muito menos a essa parte patrimonial quando a gente quer se livrar de uma violência do que o homem. Então eu comecei a perceber o seguinte: que as mulheres elas não tinham uma autonomia no momento da separação. E autonomia não tem só a ver com independência financeira. Autonomia é você ter liberdade pra fazer as suas escolhas, é você ter: independência financeira, autoestima, e informação sobre seus direitos. Isso pra mim que é autonomia da mulher. E ai ela pode escolher. No momento em que a mulher tá numa situação que ela tá em situação de vulnerabilidade, ela não consegue resolver. Então eu via que as questões penais, as questões criminais ficavam muito soltas. E isso é um direito da mulher, também, ter uma resposta do Estado pra que ele crime em que ela é vítima. Luisa – Uhum. Gabriela – Então eu ficava muito sensibilizada com isso. Os xingamentos nos processos, eu falava nossa que absurdo, chamou de vaca, chamou de vagabunda e não vai acontecer nada? Ah a mulher tem que contratar um advogado, pra entrar com a ação penal, porque as vezes o escritório que 136

faz o direito de família, não faz a parte penal. Ela não vai ter dinheiro pra fazer isso. A Defensoria Pública não está preparada pra entrar com essas ações criminais, não tem...Tanto que no GEVID da Penha não tem Defensoria Pública, é o advogado dativo, aquele convenio com a Defensoria e a OAB. Então a mulher vai deixando essa parte, como se a moral dela não fosse importante. A ação penal privada são os crimes contra a honra: injuria, calúnia, e difamação. Os casos de ameaça...Em uma separação, via de regra, tem muita ameaça, ou a separação é uma consequência daquela ameaça que ela vem sofrendo: se você não ficar comigo, não vai ficar com mais ninguém, eu vou te matar, eu vou te perseguir. E há essa perseguição efetiva: espera na porta do escritório, espera na porta do trabalho, espera saindo de casa, espera na porta da faculdade. É uma perseguição que eu falo que é o stalking da mulher, e o crime de ameaça é ação penal pública condicionada à representação. Essa mulher não vai na delegacia, naquele momento, não vai representar, pra daqui seis meses o Ministério Público entrar com a ação penal que é de competência dele, mas ele precisa da autorização da vitima. A mulher também não sabe disso, e também não tá naquele momento com a informação própria, e com o poder de decisão não, eu quero. E aí vem a lesão corporal que era condicionada à representação, e as mulheres chegavam machucadas, isso era o que eu via antes do Ministério Público, as mulheres chegavam machucadas, com hematomas. E minha

mãe

atendia

mulheres

de

um

nível

socioeconômico

maior,

escolarizadas: advogadas, médicas, psicólogas...Enfim mulheres como a gente que tiveram acesso a educação, tiveram acesso à justiça...E com camadas e camadas de maquiagem, roxas, faltando no trabalho, com vergonha de sair de casa, falando pro filho que caiu da escada, que bateu a porta do carro. E também naquele momento elas não tinham a condição de representar pra que aquele crime fosse adiante. Isso num escritório de advocacia em que as mulheres tinham consciência, estavam pagam pra separação. Então, a parte penal que é a dignidade, a honra, a integridade física, a integridade moral, a integridade psíquica da mulher, ela era abandonada. E ai eu comecei muito a fazer essa parte desse trabalho de querer entender, de querer saber, e quando eu passei no concurso...Eu

137

sempre falo que eu ia levar o escritório da minha mãe à falência, porque eu só queria ver essa parte, eu não queria cobrar, e eu ficava com pena, e eu queria ajudar de alguma forma. Eu entrei antes da Lei Maria da Penha, e a mesma realidade continua no meu dia-a-dia, eu pegava já os processos em que as mulheres estavam machucadas, em que as mulheres estavam humilhadas, em que as mulheres sofriam uma violência psicologia muito grande, e eu tinha que oferecer a transação penal pra essas mulheres, porque era um crime de menor potencial ofensivo mediante representação da vítima. E muitas delas desistiam, muitas, porque 90% das mulheres querem a retirada do processo, a retirada da queixa. E ai tem, por um lado, essa falta de autonomia da mulher decidir se ela quer ou não decidir continuar com o processo, se ela quer ou não representar contra o autor dos fatos. Há essa parte de que se ela denunciava e representava, o processo ia adiante, ela sequer era chamada, porque quem aceita a transação penal não é a vítima, é o autor dos fatos, ou seja, você de denunciou então deixa que o Estado vai cuidar. E como o Estado vai cuida? Ah, o senhor aceita uma cesta básica pro processo se encerrar? Então ficava barato a agressão contra a mulher, valia a pena. É como se o Direito Penal não gostasse das mulheres. E ai eu comecei a ficar muito incomodada com isso, muito incomodada, porque elas retiravam a queixa de lesões corporais leves. Mas, às vezes, eu falo que a gravidade e leveza da infração não tem uma relação, porque se é leve, levíssima, ou grave, gravíssima, é de acordo com o Código Penal. Mas uma consequência de uma lesão física na mulher, na minha opinião, é muito grave. Por exemplo, levar um soco no olho e ficar 15 dias com um hematoma roxo, e não poder trabalhar, não poder realizar as suas atividades de rotina, se esconder dentro do banheiro, ficar com vergonha dos filhos, isso pra mim é uma lesão gravíssima, gravíssima...que claro tecnicamente ela é leve, porque ela não se afastou por mais de 30 dias, ela não ficou com nada imobilizado por mais de 30 dias, não perdeu nenhuma função. O Instituto Médico Legal ele segue exatamente a descrição do Código Penal pra classificar a gravidade das lesões. Então, às vezes, você fala nossa, deu um soco, quebrou o dente, não sei o que, é lesão leve?. É, porque tem que seguir ficou afastada mais

138

de

30

dias?



algum

dano

estético?

Você

entende?

Luisa – Aham. Gabriel – É, é ruim. Aí o que é que eu percebi, que tinha que ter uma modificação, porque as mulheres não podiam ficar...Esse ônus que fica nas costas da mulher que já tá em situação de violência, ele é prejudicial. Exatamente, porque no momento da violência a mulher não está preparada pra falar se ela quer ou não o autor dos fatos, que via de regra, 80% dos casos, é o namorado, ex-namorado, marido, ex-marido, companheiro, execompanheiro, o ficante, ou ex-ficante, o pai, ou o filho. Então tem situações que você deve prestar atenção, porque não é uma pessoa que você nunca teve contato, que vem te assaltar e você fala lógico que eu quero que ele seja processado, ele roubou meu carro, ele furtou o meu celular que eu comprei com meu dinheiro. Eu não sei quem é, mas eu quero sim que ele seja processado. É diferente de você falar assim não, eu quero processar meu pai, eu quero processar o pai dos meus filhos, eu quero processar o homem que eu amei a vida inteira e que me bateu, que me ameaçou. Então existe esse aspecto subjetivo e que todo ser-humano leva em consideração, porque eu falo todo mundo ama, todo mundo gosta, todo mundo chora. Existe esse caráter emocional nos casos de violência e eles devem

ser

observados,

óbvio,

porque

claro

que

condiciona

o

posicionamento da mulher de uma forma ou de outra. E aí eu vi que elas desistiam muito, então, não dava em nada. Eu vi que os processos não iam adiante, porque a transação penal extingue a punibilidade e eles aceitavam, ficava barato. E eu percebi que precisava ter uma modificação na lei penal. E eu comecei a acompanhar o Projeto da Lei Maria da Penha, antes de ser aprovado. Eu comecei a acompanhar as discussões, e vi que realmente era esse o pano de fundo da discussão: a mulher naquele momento, ela pode decidir ela vai processar ou não? A mulher vai sofrer depois uma pressão pra retirar a queixa?. A gente tem em tese que olhar pro agressor e dizer o seguinte você cometeu um crime, e você vai se responsabilizar por esse crime. A pessoa, a vítima não tem nada a ver com isso, não é responsabilidade dela tirar ou não a queixa. O seu problema agora é com o Estado, é uma questão de ordem pública. É o Estado que vai tratar o seu

139

caso, não é da responsabilidade da vítima. Você tem que tirar das mãos das vítimas, que já estão em situação de vulnerabilidade e num contexto de ligação com o autor dos fatos, esse ônus processual. Isso é uma coisa que eu sempre falo, acho que é muito salutar, que mudou muito. E aí eu lembro que eu tava em Embu Guaçu, e ainda era transação penal, era mediante representação, não era incondicionada, havia essa discussão ainda. E eu lembro que o autor dos fatos sentou, me chamaram pra oferecer a transação penal, o autor dos fatos sentou do lado, a mulher sentou do autor, a vítima, chamaram a vítima ah você vai retirar? Na frente do réu. E ele assim, olhando muito forte pra ela, com um pode bem intimidatório, o filho do lado, ou seja, perguntando pra ela na frente do filho você vai processar o seu pai? E quando você fala processar, a outra pessoa que é leiga, que é uma criança acha que é você vai prender o seu pai? Você vai mandar seu pai pra cadeia? É bem assim. E E eu lembro que ela tava com o braço engessado de ter apanhado, de ter quebrado com o filho do lado, o autor dos fatos na minha frente, e a minha atitude foi seguir a lei, porque eu também fui pressionada ali pelo contexto. O juiz: a Dra. vai oferecer a transação penal, ou não vai oferecer? . Ai eu oferecei a transação penal, dai ele lógico, aceito. e naquele dia a transação era comprar ração de cachorro pro canil do fórum, que a gente tinha uns cachorrinhos lá que a gente mantinha. E ai eu vi aquela mulher saindo, ele com a ração de um lado, a mulher do lado, naquela situação do tipo o que eu tô fazendo aqui? Por que eu fui denunciar? A situação ficou pior, porque eu perdi a minha dignidade, eu sequer fui ouvida, nem perguntaram se eu concordava ou não, e o processo foi extinto, ou seja, não deu em nada. E aí eu fui acompanhando e fui passando a aplicar já, antes da decisão do STF, que a ação era pública incondicionada nos casos de lesão corporal leve, e mais. Mas isso foi no desenvolvimento, foi mais pra frente ainda. A partir de 2008, antes mesmo do posicionamento até do STF, eu não aplicava mais a 9.099 nos crimes contra a mulher, a lesão corporal pra mim eu denunciava todos os casos, independentemente da vontade da vítima, e não admitia mais a retratação nos casos de lesão corporal, era incondicionada. Então se tinha, o depoimento da mulher, o laudo de exame corpo de delito, ou o prontuário

140

médico com uma testemunha, mostrando que aquela mulher de fato sofreu uma lesão corporal, eu já oferecia a denúncia. Isso impedia o quê? Várias coisas: chamar a mulher pra perguntar se ela quer ou não denunciar... Na Itália, acabei de voltar de lá, eles chamam de vitimização secundária, e aqui a gente fala em revitimização, e isso eles querem muito evitar. É uma vez só que a vítima tem que ser ouvida, e é uma vez só pro resto do processo. E evitar de ficar chamando, porque isso dá margem pra ela mudar de ideia, pra ela ser pressionada, pra ela se sentir culpada por estar processando uma pessoa que é um ente querido, pai dos

filhos, filho, namorado, ex-

namorado, enfim, fica numa situação constrangedora que pode até colocar em situação de risco, e a gente acaba banalizando a violência contra a mulher. Então, eu comecei a já fazer isso, criar uma identidade. Então eu chamava as vítimas pra explicar o contexto, eu nem perguntava, eu queria explicar o contexto da violência contra a mulher. Então eu pegava os boletins de ocorrência, eu telefonava pras vítimas, marcava reuniões na promotoria na parte da manhã, eu fazia como se fosse uma aula magna e explicava o ciclo da violência, como é que funcionava, de grupos assim entre 15 e 20 mulheres. E elas vinham, porque Embu Guaçu é uma cidade pequena em que há uma facilidade de locomoção, de comunicação, então eu acabei criando essa identidade com elas. Então assim, eu aumentei muito as denuncias propriamente ditas, os processos penais de violência contra a mulher, e isso começou a trazer um resultado positivo, porque as mulheres começaram a procurar mais a justiça, procurando mais a justiça você tem mais medidas protetivas deferidas, e as mulheres com muito mais segurança e credibilidade no sistema de justiça. E aí eu vejo a diferença de atuar antes da Lei Maria da Penha, e atuar depois da Lei Maria da Penha. Eu vejo antes da posição do STF de falar que a Lei Maria da Penha é constitucional, e inclusive é ação penal pública incondicionada nos crimes de lesão corporal. E vejo a diferença depois, é muito mais fácil, é muito mais rápido porque você não fica esperando dar os seis meses da representação, da mulher vir desistir. Eu nunca espero, mas via de regra, as pessoas esperam ah vamos esperar seis meses pra ver se ela desiste da representação, que é o prazo que

ela tem. Eu falo: gente denuncia, o

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processo tá aí, ela representou, tem a palavra dela, é um crime de ameaça condicionado a representação, por que é que não vai denunciar? Depois, qualquer coisa, se não for comprovado você absolve. Mas ficar isso são também estratégias que a gente acaba usando, porque o poder judiciário fica muito abarrotado de processos, muito, e você acaba não fazendo justiça. Pra mim justiça é agilidade, é você dar a prestação jurisdicional no tempo certo. Não adianta você dar depois que a mulher nem lembra o que aconteceu, provavelmente já tá em outro relacionamento, ou já reatou o relacionamento com aquele agressor, e nem quer mais a providencia jurisdicional. Mas o mais importante de tudo, Luisa, é que a Lei Maria da Penha, e essa declaração de constitucionalidade do STF, tirou de quatro portas a violência contra a mulher, saiu da esfera privada em que briga de marido e mulher não se mete a colher, e tornou essa causa pública em que o Estado tem responsabilidade sim, porque o fio da violência geral é familiar, o inicio. Se você vive, se você cria os filhos num ambiente violento, se você convive com violência, e acha que aquilo é normal, você vai acabar, não em regra, mas via de regra, se tornando uma pessoa violenta, intolerante, sem limites, porque você conviveu com isso. E isso vai causar outro tipo de violência, ou as pessoas ficam muito frustradas, com depressão, acabam indo pras drogas, acabam indo pro álcool, acabam indo pra criminalidade, como rota de fuga. Assim, eu conheço histórias de pessoas que conviveram em um ambiente muito violento e que geram rotas de fugas positivas. Por isso que eu falo, o esporte é uma dessas rotas de fuga, e é uma das minhas fontes de empoderamento, tanto meu quanto das mulheres. Porque eu acabo convivendo com essa violência na minha vida, todos os dias, 24 horas por dia. E quando eu vou pro esporte é um jeito deu sair, mas tem gente que vai pras drogas, tem gente que vai pro álcool, enfim... E a menina que é submetida a violência, que convive com a violência ela acaba também perdendo a autoestima e ela acaba se enfiando num relacionamento abusivo também, porque ela não tem autoestima. Então ela acha que é certo xingar, é certo ameaçar, é certo controlar, é certo submissão, é certo bater. Então ela aguenta aquele relacionamento, e ela pula etapas, porque ela é agredida, ela fica grávida, ela não tem como

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sair daquela relação de violência, ela não estuda, ela não trabalha. Então também tem esse ciclo da violência, não da violência propriamente dita, mas da violência familiar. Por isso eu acho muito importante a ação ser pública e incondicionada. Eu to respondendo tudo.. Luisa – Não, muito legal. Acho que abarcou muitas importantes. Gabriela – É! E dai depois você faz um resuminho. Agora, só pra te falar: o Ministério Pública adota o entendimento do STF, já adotava antes, e havia uma recomendação inclusive da Corregedoria de que os crimes de violência contra a mulher não se aplica a Lei 9.099. Não se aplicando a Lei 9.099 os crimes de lesão corporal são de natureza pública e incondicionada, porque você sabe que quem colocou a condicionalidade da representação foi a Lei 9.099. Então não se aplicando a 9.099 automaticamente os crimes de lesão corporal não são de pública e incondicionada, porque não está isso no Código Penal, está na 9.099. Já os crimes de ameaça, tá no Código Penal que é mediante representação da vítima. Luisa – Tá. E sobre os crimes de ameaça, Gabi, ante tudo que você expôs, muito

interessante,

você

acha

que

a

representação

deveria

ser

incondicionada pra ameaça e esse tipo de crime? Gabriela – Eu vou ser um pouco radical, não me pegando ai no aspecto processualista. Eu sou muito promotora de colocar a mão na massa, de estar na linha de frente, de atuar nos processos, é isso que eu gosto de fazer, de atender as vítimas. Eu acho que essa é a minha contribuição, é dar prestação jurisdicional propriamente dita. Na minha opinião, todos os crimes de violência contra a mulher deveriam ser incondicionados. Os mesmos fundamentos usados pra uma lesão corporal, tem que ser usados pra uma ameaça. Às vezes a ameaça ela é mais grave, ela causa uma consequência muito mais grave do que um tapa na cara, do que um soco na cara, porque essa ameaça pode ser reiterada, essa ameaça muitas às vezes ela utilizada pra esconder o agressor, e ele sabe disso eu não vou deixar marca, mas eu vou te ameaçar, eu vou te perturbar, eu vou te perseguir. Então o que eu comecei a fazer: eu comecei nos crimes a juntar várias

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ameaças contra uma mesma vítima, ameaça e xingamento, e transformar isso numa lesão corporal. Tem o crime de lesão corporal, né? Luisa – Uhum. Gabriela – No crime de lesão corporal ele diz assim: ofender a integridade física ou a saúde de outrem’’.

Então eu comecei a colocar no ofender a

saúde, saúde psíquica. Então, pra mim, eu consigo dependo do caso, quando tem ameaças reiteradas, violências reiteradas, como eu falo que é o stalking, como eu falo que é o xingamento reiterado, ele não pode ser só ofensa a honra. Não. Todo dia ele me chama de vagabunda, todo dia me chama de puta, todo dia ele fala que eu não presto pra nada, todo dia fala que eu sou um lixo, que eu sou gorda, que eu sou’’...Vários xingamentos que causam prejuízo psíquico nessa mulher em termos de autoestima, síndrome

do

pânico,

depressão,

doenças

relacionadas

com

o

peso,

pensamentos suicidas, fobia social, automutilação. É chocante as coisas que você vê. Então eu comecei a relacionar todos esses atos num crime maior: lesão à saúde. E aí ela é pública incondicionada. Porque evita o quê? Ela desistir, ela ter que ser chamada, ou ela não ser representada na Delegacia e esse processo nem vem pro Ministério Público, evita essa rota crítica, que a gente chama, da vítima. Eu denunciei, e ai não aconteceu nada? Não aconteceu porque não representou. Não, mas eu fui lá, mas você tinha que ter representado em seis meses. Ah, outro cenário ele fica me pressionado pra eu tirar a queixa, fala que a culpa é minha, porque ele tá sendo processado, vai perder o emprego, agora não tem mais a ficha limpa. Não, a culpa não é sua. A culpa é dele que cometeu um fato criminoso e tem que se responsabilizar por isso. Então você evita o quê? Que os crimes de violência fiquem banais, todos serão processados. E isso é importante Luisa pelo seguinte: os crimes de violência virtual, os crimes cometidos por meio virtual, o xingamento, a pornografia de revanche... Todos esses crimes acabam ficando sem apuração, porque ou eles são mediante representação pública condicionada à representação, e ai tem toda essa via crucis que eu falei da mulher, ou mediante ação penal privada. A pornografia de revanche aquelas fotos que ele coloca a foto íntima como forma de vingança do término do relacionamento, isso é o que? Crime contra a honra. Existe 144

algum dispositivo que fala é crime contra a honra, porém se for publicado na internet, que tem um alcance muito maior pra vítima, é mediante representação incondicionada. Não tem, ou seja, o nosso Código Penal não acompanhou a nossa evolução tecnológica, porque é muito menos gravoso eu te xingar ou mostrar pra cinco pessoas as suas fotos intimas de quando a gente terminou o relacionamento, do que postar isso no facebook e viralizar, e sempre viraliza. Luisa – Uhum, claro. E só uma pergunta Gabi: essa tese jurídica que você desenvolveu da violência psicológica, só você utiliza ou tem outras promotoras? Gabriela – Não, tem outras promotoras. Não sei se todos, mas eu já vi algumas promotoras utilizarem sim aqui em São Paulo, inclusive, a gente já denuncia e na denúncia ``requeiro ao final a condenação nos danos morais e patrimoniais de acordo com o art. 387, inciso IV, do Código de Processo Penal. Inclusive teve uma decisão recente do STJ que permite que os juízes fixem danos morais pras vitimas de violência doméstica, você viu? Luisa – Não. Legal. Gabriela – Depois eu te passo, eu tenho. Tem dois interessantes que saíram: um que o STJ reformou uma decisão do Tribunal de Justiça que entendeu que o beijo roubado não foi estupro. Acompanhou essa? Luisa – Não, eu não vi. Gabriela - O cara derrubou a menina no chão, passou a mão e pegou um beijo. Falaram que foi um beijo roubado. Isso não é beijo roubado, isso é uma tentativa de estupro. Foi denunciado pelo Ministério Público, o juiz condenou, a parte recorreu e o Tribunal reformou e entendeu que a defesa tinha razão. Aí o Ministério Público recorreu e o STJ confirmou a decisão de primeira instância, como se isso fosse uma tentativa de estupro. E isso é muito importante pra gente, porque nós temos esse vácuo legislativo do ato obsceno, ou da importunação ofensiva ao pudor, ou da perturbação do sossego com o crime de estupro. Nós temos esse ah e se for um beijo, se for uma passada de mão, considera um estupro? Infelizmente sim, ou

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felizmente, dependendo do cado concreto. Mas você não pode classificar como só um ato obsceno, é só uma perturbação do sossego. Você entende? Luisa – Entendo. Gabriela – Nós não temos a figura do assédio sexual no Código Penal. O assédio sexual ele é muito falado, mas tecnicamente, juridicamente não existe. Existe o assédio moral. Luisa – Uhum. Gabriela – Que também não é o assédio moral do trabalho, do dia-a-dia, o assédio moral ou sexual que é aquele lá da relação de trabalho. Quando você é assediado sexualmente por alguém hierarquicamente superior dentro do seu ambiente de trabalho. Mas na rua, esse assédio sexual que a gente tanto fala não tem. E na Itália eles criaram uma legislação que são os atos sexuais, e ai com pena de x à x. E ai o juiz pode de acordo com o entendimento dele, com provas produzidas e as consequências da vítima, ele pode fixar a pena de acordo com a gravidade dos fatos. Pode ser bom ou não, porque também depende como é culturalmente visto esse ato sexual num determinado espaço de tempo e de lugar mesmo, de acordo com a mentalidade das pessoas. E parece que lá as pessoas são machistas também. E só pra concluir o raciocínio, o Ministério Público entende então que é pública e incondicionada a lesão corporal de natureza leve e aplica isso no seu dia-a-dia. Luisa – Ah, muito legal. Gabriela – Tem outras pessoas também, fora do Brasil, fora de São Paulo que aplicam também essa tese da violência psicologia. O que você precisa só comprovar? O nexo causal entre esses atos de violências que foram praticados ao longo do tempo, num curto espaço de tempo pra configurar que era uma habitualidade com alguma alteração psíquica dessa mulher, como laudos, com laudos psiquiátricos, tem que ter um lado médico...Que seria o laudo da lesão corporal, só que violência psicológica ela não é identificada ah olhei pra você e nossa, você tem que ter um tempo e isso é um pouco ruim, porque às vezes aquela mulher precisa de uma proteção um pouco mais rápida. Mas quando vem pra mim elas já estão abaladas 146

emocionalmente, e a gente já consegue um laudo, já consegue comprovar que ela tá sofrendo uma violência psicologia. Luisa – Tá, legal. E eu acho que assim, a gente já abarcou muitos pontos importantes sobre a representação, sobre o MP, a sua opinião, muito legal. E eu acho que só pra não deixar de fora, faltam só dois pontos que eu queria explorar um pouquinho mais. O primeiro deles é: você acredita que a Lei

Maria

da

Penha



representação ou não?

um

tratamento

adequado

pra

questão

da

E além disso pensar um pouco a rede de

enfrentamento no geral. Você acha que ela atua de uma maneira uniforme em relação a representação? Tem problemas na sua visão? Gabriela – Tem, tem. Por isso que eu acho, exatamente por desses problemas que eu enfrento no dia-a-dia, que eu vejo, que eu escuto, que eu acabo tendo contato. Por exemplo, algumas delegacias entendem que a mulher vai lá dá o depoimento dela, dai ela tem que voltar depois pra falar ou não se ela quer representar. No momento que a mulher sai da delegacia, vai pra casa, ai tem a pressão psicologia dos filhos, ai tem a pressão do próprio agressor, ai tem todo esse aspecto cultural, todo esse aspecto socioeconômico, ai tem esse aspecto do gostar, da pressão, enfim, ela nem volta. E o que que acontece quando ela nem volta e aquele boletim de ocorrência não vai pra frente? Você não insere essa mulher na rede protetiva. Por quê? O processo vai pro Ministério Público, do Ministério Público e a gente não articula a rede, não vê se essa mulher precisa de trabalho, de acompanhamento psicológico, se os filhos tão precisando de assistência, se ela precisa de medida protetiva. A gente não consegue inserir essa mulher na rede de proteção e enfrentamento. Por isso que eu falo, o processo tem que sair dali já com um fluxo determinado, independente da representação ou não. Porque às vezes ela pode não querer que o processo siga adiante, mas ela precisa da proteção do Estado, mas ela precisa do acompanhamento psicológico. E a Lei Maria da Penha tem essa caráter que eu falo tridimensional. Um: rede de acolhimento, ela precisa ser inserida na rede de acolhimento. Fala ah você só vai ser inserida na rede de acolhimento se você falar que quer processar o autor dos fatos? Ela não vincula. Dois: a punição propriamente dita que aí sim é o processo 147

penal, os casos que exigem representação, e os casos que não vão exigir representação,

ou

os

casos

que

são

queixa-crime.

Mas

prevê

expressamente. E três: a ressocialização do agressor, isso eu acho fundamental, porque 65% dos casos são cometidos pro reincidentes. Eles voltam a cometer. A punição isoladamente nos crimes de violência contra a mulher não basta. Isso eu já tenho prova eu já pedi protetiva, eu já prendi, já ficou preso três anos e já matou a mulher. O que que eu fiz? Aplique a Lei Maria da Penha? Apliquei, lutei, pus essa mulher na rede, eu protegi a mulher, mas eu não tratei dele. Ele saiu de lá e matou a mesma mulher. E eu me senti a pior promotora do mundo. A Lei Maria da Penha ela tem esse caráter tridimensional, ela é maravilhosa, mas a aplicabilidade dela...Nós não estamos preparados pra aplicar a Lei Maria da Penha. Luisa – Uhum. Eu só não entendi uma coisa: você acha que para a mulher ser inserida na rede de proteção, na prática, ela tá vinculada ao início do processo? Gabriela – Se você vai na delegacia, se a delegacia entende que você precisa da representação, e você não fala isso. Você fala assim: ah eu só vim aqui comunicar. Ah você quer processar? Ou falam: você tem seis meses pra voltar. Nesses seis meses aquele boletim de ocorrência não vai pro Ministério Público, deveria ir, ele fica lá. Nesse ele ficar lá, ele não sai de lá pra outras portas de entrada pra rede protetiva, ele fica lá. Se ele sai de lá, tem o fluxo pré-determinado e tem todo o inquérito policial e ir pra Coordenadoria do Direito da Mulher, ou vá pro Ministério Público, aí os inquéritos são analisados por uma equipe multidisciplinar, pelo eu faço isso. Agora na Penha eu to fazendo menos, porque ainda não tá estruturado, mas no Taboão da Serra eu fazia. E aí você vê se essa mulher precisa ser inserida, inserida na rede protetiva.

Ah não to correndo risco, não quero

proteção. É, mas você precisa de trabalho?’’ Você não quer conversar com outras entidades?

Tem que empoderar. E o que é empoderar? É dar

autonomia pra mulher pra decidir. Porque naquele momento ela não tem essa autonomia. Então você vai fazendo parcerias...O juiz, o promotor, o delegado eles tem que conhecer quais são os serviços oferecidos na sua região. Não adianta só você ficar fazendo processo, tem que conhecer esses 148

serviços, mapear esses serviços, determinar o fluxo e atuar mão na massa. Porque senão você não vai conseguir ajudar aquela mulher. Agora você falou dos critérios de representação, então, tem delegacias que entendem que o simples fato da mulher ir lá, comunicar os fatos e falar que quer processar já basta, ele já faz e já encaminha pro Ministério Público. Tem locais que ficam esperando seis meses a mulher voltar, tem locais que entendem que essa representação não vale, então existe ainda essa distinção. Porém nós temos um grupo de estudos dentro da Secretaria de Segurança Pública, e a gente tá estreitando bastante o relacionamento entre Polícia, Ministério Público, Defensoria, Poder Judiciário e nós vamos ter uma recomendação para que nas Delegacias o simples fato da mulher ir lá comunicar já colhe no ato a representação dela, já instaura inquérito policial e já encaminha os autos pro Ministério Público. Então a gente vai determinar, o que eu falo, esse fluxo de atendimento: representou, vai pro Ministério Público. Só que mesmo assim essas mulheres ficam querendo tirar. Ai eu sei lá, com a audiência do 16, se ela pede. Luisa – Ah tem que pedir? Gabriela – A audiência do 16? Sim. Inclusive já tem vários julgados falando o seguinte: você não pode designar audiência do 16 em todos os crimes de ameaça pra saber se realmente você quer. Se tem a representação lá e ela não desistiu, denuncia. Agora se antes da denúncia ela quiser se retratar, ai ela vai na delegacia fala que quer se retratar, ou vai na Defensoria, ou constitui um advogado, ou vai diretamente no Ministério Público e fala eu quero me retratar. Ai você é obrigada a designar a audiência do 16, porque essa audiência você vai ver se ela tá sofrendo ameaça, se ela tá de livre e espontânea vontade desistindo. A lei permite que ela desista, a lei permite que ela desista nos crimes de estupro em que não há a situação de vulnerabilidade. É condicionada à representação ainda maior de idade com violência ou grave ameaça, sem ser violência presumida. Então nessa audiência do 16 é importante, eu participo de todas, porque aí você vê se a mulher realmente precisa de apoio, às vezes não é nem a proteção, é um apoio. Você vê que ela vai voltar a sofrer violência, porque você não tá trabalhando nem o homem e nem a mulher, aquela situação vai se 149

prolongar. É a fase da lua de mel, e depois vem a violência. Tem que tomar muito cuidado. Luisa – Sim. E Gabi, só ultima coisa. Pelo o que eu entendi você achou que foi importante a decisão do STF. Gabriela – Super importante. Luisa – Você acha que o STF poderia fazer mais em relação à violência de gênero no geral, ou violência doméstica? Ou não cabe? Gabriela – Não, eu acho. Eu acho que tem vários pontos devem ter uma resposta do STF, por exemplo questão dos danos morais. Tem várias questões, então eu vou te falar algumas. Luisa – Claro. Gabriela – A questão dos danos morais na sentença, é importante que eles fixem que pode, o STJ já deu essa decisão. Essa parte do estupro, uma passada de mão é só uma passada de mão? Eu acho que não. Então o STF pode se pronunciar a isso, ou seja, dar uma maior agilidade nos processos que estão sub-judice ainda. Porque isso trás uma guia pros promotores, pras promotoras, pros juízes que atuam na vara da violência contra a mulher. Outra questão: a autonomia das medidas protetivas. As medidas protetivas podem ser aplicadas independentemente da medida de um crime ou da vítima querer processar? Por exemplo, eu to sofrendo ameaça, eu não quero processar, mas eu preciso de proteção, eu preciso de uma medida protetiva. O descumprimento de medida protetiva causa crime de desobediência? Pode prender em flagrante? São questões que são atuais e que o STF ainda não se pronunciou em relação à isso. Talvez poderia ter um mês em que vamos analisar todos os processos de violência doméstica. A questão da subjetividade das qualificadoras do crime de feminicídio. A questão que tá agora sendo muito discutida é a necessidade ou não, mas acho que isso ele já se pronunciou não sei se foi o STF ou STJ, a questão da obrigatoriedade das audiências na conciliação da família se essa mulher tem processo de violência doméstica. Porque a violência doméstica, a Lei Maria da Penha impede qualquer tipo de conciliação. Qual que é o nome da conciliação na vara de família, mas que é obrigatória no Novo Código de 150

Processo Civil? Outra questão também que é muito atuante é esse caráter multidisciplinar da Lei Maria da Penha, ou seja, você não vai aplicar a Lei Maria da Penha só na vara criminal, você tem que aplicar na vara da família em que você tem que aplicar às vezes uma medida protetiva, a vara da infância, ou seja, que todos os juízes e promotores tenham uma rede de comunicação nos casos de violência contra a mulher. Porque eu já tive caso, Luisa, que houve estupro de menor, medida protetiva pra ele não se aproximar da filha, porque havia uma suspeita de abuso sexual. E ele entrou com a ação de regulamentação de visita e conseguiu. Então ele tava tendo direito de dormir, de visita com a filha que ele tava sendo acusado de ser abusador, olha que perigo. É que eu fico muito ligada, as vítimas me conhecem. Elas vão lá doutoura, eu fui lá... Isso porque eu trabalhava em fórum menor. Aqui na capital você não tem como fazer isso. Como é que eu vou sair da Penha e ir no Centro? Você entende? A vara da família é muito complicado. Então deveria ter um sistema de rede de cadastro, em que nesses casos, em qualquer vara de família você já pede no momento em que a pessoa entra com a ação pra ver se ele tem algum processo de violência contra a mulher naquele contexto familiar. Eu acho imprescindível isso. Luisa – Legal. Gabriela – São questões atuais essas. Luisa – Sim, muito legais. E eu acho que é isso Gabi. Muito muito obrigada mesmo. Eu adorei. Gabriela – Imagina, imagina. Luisa – Vai enriquecer demais a minha pesquisa. Gabriela – Imagina. Luisa – E já ta quase na reta final. Mas se você tiver... Gabriela – Você já tá há um ano fazendo? Luisa – Há um ano. Gabriela – Nossa...

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Luisa – Mas tá muito legal a minha primeira experiência de iniciação científica. Gabriela – Que legal, que legal. E você quer bem a carreira acadêmica? Luisa – Eu não descarto, eu gosto muito assim de pesquisa. Gabriela – Agora uma coisa que você falou só, da rede de enfrentamento. Eu acho que a gente tem que sempre chamar a atenção de que o Poder Público não investe muito nos equipamentos. As pessoas tem pouca estrutura, poucas pessoas trabalhando, você não consegue atender a demanda, e isso causa uma frustração. E às vezes você deixa de atender mulheres, você deixa de fazer um trabalho bacana. Eu acho que a gente poderia também partir pra parcerias público privadas, porque as empresas estão querendo investir nessa questão da igualdade de gênero, no fim da violência de gênero, trazendo ações positivas, e elas tem dinheiro pra investir, por que não fazer parcerias? Então sabe, estipular esses convênios. O Estados Unidos faz muito isso, a Europa faz muito isso, porque a gente Poder Público não dá conta dessas demandas. A gente precisa da parceria privada. Então são coisas que eu defendo aí, que eu to estudando um pouquinho sobre isso. Luisa – Ah muito legal Gabi, brigada. Gabriela – Magina, magina. Luisa – Vou desligar aqui.

Juíza Luisa – A pesquisa é muito mais no sentido de não provar que a representação é boa ou ruim, ou certa ou errada. É muito mais no sentido de pensar quais são os argumentos que sustentam o fato da lesão leve ser incondicionada. Até pra entender se essa decisão de 2012 ainda faz sentido pra realidade que gente vive. Acho que é um pouco nesse sentido, tudo por você ? Eu ia ficar super feliz de colocar seu nome na lista de entrevistadas, e agradecimentos. Mas se não for, também não tem nenhum problema, e fica ao seu critério. 152

Juiza – Ah eu vou...Depois eu posso? Luisa – Eu posso te mandar também a transcrição do áudio e com certeza a pesquisa antes da banca, se você quiser. Juiza – Ah pode ser. Luisa – Fica ao seu critério, de verdade. Mas a ideia não é ser comprometedor, ou nada do tipo, e nem expor nenhuma pessoa de nenhum modo. Tanto que a ideia não é falar mal das varas ou falar mal das delegacias, só tentar pensar mesmo quais são as vantagens e desvantagens da representação, e como é que ela acontece na prática. Juiza – Ah Luisa, você já ta gravando, né? Luisa – Eu to. Tudo bem? Juiza – Tudo bem. Se você pudesse depois me mandar o seu trabalho pra eu dar uma olhada, e dai eu posso depois resolver essa questão de autorizar? Luisa – Pode claro. Assim, eu precisava que você autorizasse o uso das informações e do áudio só pra pesquisa. Vai ter só a transcrição, e daí eu posso tirar seu nome no primeiro momento. E depois se você autorizar pra publicação oficial, se você gostar eu coloco o seu nome. Juiza – Ta bom. Luisa – Ta bom? Você quer assinar agora? Juiza – Pode ser. Luisa – Daí se você quiser ler. Fica à vontade. (momento em silêncio – assinatura) Juiza – Por enquanto então eu autorizei a divulgação do meu cargo. Luisa – Tá bom, muito obrigada. Ah se você quiser ficar com um, eu posso assinar. (momento de silencio – assinatura da segunda via) Juiza – Brigada.

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Luisa – Brigada você. Bom, eu acho que a primeira pergunta, assim central, acho que por ela que eu começo sempre...Na verdade, antes de começar por ela, se você pudesse só me explicar um pouco o seu trabalho aqui, a sua trajetória, não precisa ser tão pessoal, só pra eu poder entender melhor. Juiza – Claro, claro. Bom, eu ingressei na carreira em 2007, e trabalhei como juíza substituta em São Bernardo, depois trabalhei por volta de oito meses em vários lugares lá da circunscrição de São Bernardo. Depois me promovi pra cidade de Fartura fiquei lá durante um ano e oito meses, depois vim pra capital como juíza auxiliar cargo que ocupo atualmente, desde 2009. E aqui na capital eu trabalhei em varas comuns, criminais, principalmente na área criminal, trabalho há muito tempo na execução, na execução devo trabalhar mais de cinco anos, e fiquei um período de seis meses trabalhando lá na vara de violência doméstica lá do Butantã. E é isso. E atualmente faz um três anos eu trabalho na 2 Vara de Execuções Criminais e lido apenas com as mulheres, é uma vara que trabalha apenas com mulheres. Luisa – Ah aqui é só com mulheres? Legal Juiza – É. E é isso. Luisa – Muito, muito legal. E enfim, pensando em toda essa experiência incrível, acho que eu queria entender primeiro um pouco: qual a sua opinião pessoal sobre a representação em geral nos casos de violência doméstica. Você

acha

que

é

necessária,

ou

não,

ou



em

alguns

casos?

Juiza – Então, eu achei que essa mudança, não na verdade... Eu acredito que a maioria das varas até a decisão do Supremo, elas entendiam a ação relacionada a lesão corporal leve como uma ação pública condicionada à representação. Por isso mesmo, aquilo que eu tinha falado da minha experiência no interior, naquele momento em que eu tive que me posicionar e aplicar ou não a Lei 9.099, que estava vedado pela Lei Maria da Penha, essa questão da ação ser pública condicionada à representação era algo que eu não me questionei na época. Eu entendia que era condicionada à representação. Até porque tem um dispositivo...Na verdade, a própria lei

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ela gerou dúvida quanto a esse entendimento. Acho que até por isso houve a necessidade do STF se posicionar sobre essa questão, porque pelos dispositivos da lei dava pra fazer as duas interpretações. E no STJ prevalecia o entendimento no sentido contrário à decisão do STF. Então, naquela época, eu realmente não me questionava sobre a ação ser pública incondicionada no caso de lesão leve. Mas depois do incidente do STF, essa minha experiência na vara da violência doméstica foi posterior ao precedente do STF. Então a partir daquele momento ficou pacífico de que a ação era pública incondicionada no caso de lesão corporal leve. E eu acho que foi uma decisão acertada, porque eu acho que de fato essa questão da violência domestica é uma situação que antes da nossa entrevista eu até refletindo sobre o assunto. Até porque, já faz algum tempo que eu me distanciei da vara, então eu quis retomar essas questões. E eu tava estudando o tema no livro da Alice Bianquini, e ela diz que essa questão da vitimologia, estudo da vítima, que uma grande dificuldade que existe é a questão do medo que as vítimas tem do agressor. E isso foi uma coisa que, principalmente nessa experiência na violência domestica, eu vivenciei, pude vivenciar aqui. É uma vara especializada, então eu trabalhava só com aquilo, eu presenciei essas situações. E tem aquele círculo vicioso da violência. Então, eu acho que o fato da ação ser pública condicionada quando a violência acabou, aquela violência psicológica que também é muito nefasta, mas ela acabou indo pras vias de fato, na verdade, pra pessoa ter si efetivamente lesionada, eu acho que aquilo foi visto como uma gravidade maior e foi necessário que o Estado pudesse atuar naqueles casos pra conseguir combater essa violência domestica até pela dificuldade que as vítimas tem de denuncias esses casos em razão desse circulo vicioso e desse medo dos agressores. Então acho que aquilo fez muito sentido, e acho que tendo contato com aquelas vítimas eu acho que pra mim aquilo ficou mais claro.

Eu cheguei a ouvir em audiência a testemunha falando

que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, eu ouvi essa frase de uma testemunha. Luisa – Sério?

155

Juiza – E eu acho que isso é uma questão cultural no Brasil mesmo. E eu acho que o fato da ação ser pública e incondicionada eu acho que isso contribui pro enfrentamento diante dessa realidade. Contribuir pra enfrentar esse tipo de violência. Acaba acontecendo na prática de muitas dessas mulheres ficarem indignadas durante a audiência de não poderem encerrar aquela ação, elas ficam muito bravas, tem mulheres que mentem,sabe? Luisa – Sério? Juiza



Sim,

porque

elas

se

arrependem

de

terem

denunciado

o

companheiro, e dai não tem mais como voltar atrás como acontecia antes. Algumas como foi logo depois da mudança... a mais não podia voltar atrás? Eu achei que pudesse...Então era uma situação que a gente enfrentava nas audiências,

das

próprias

vítimas

que

também...Fica

numa

situação

complicada, elas depois mentirem como se elas na verdade denunciado falsamente aquela pessoa. Luisa – E você enxerga isso como uma desvantagem da representação incondicionada? Ou não necessariamente? Juiza – Uma desvantagem? Luisa – É, da representação incondicionada. Juiza -

Eu não enxergo, porque eu acho que é um tipo de crime que o

Estado precisa ter condição de atuar pra conseguir proteger aquelas pessoas. E até todos os efeitos da pena, o efeito pedagógico a esse tipo de violenia. Assim como a aplicação da Lei 9.099, aqueles benefícios nessas situações banalizou ainda mais a questão da violência doméstica. Então eu vejo como algo positivo. Luisa – Ah legal! E você também colocou, achei muito interessante, que num primeiro momento como a própria lei tem dispositivos que falam sobre a representação, se não me engano os artigos 12 e 16. E então que, no primeiro momento, era natural que a lesão corporal leve fosse condicionada à representação, isso não gerou um questionamento na aplicação. E pensando nisso, uma questões que eu coloquei aqui é: será que a Lei Maria da Penha dá um tratamento adequado pra essa questão da representação?

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Juiza- Eu acho que ela acabou gerando uma confusão, porque houve esses dois entendimentos. E os dois do ponto de vista técnico eram interpretações possíveis. Então eu acho que a redação da lei acabou gerando essa controvérsia. Mas do ponto de vista da vítima, tem vitimas que ficam muito revoltadas. E que mentem descaradamente, mesmo sendo advertidas. Eu lembro que a promotora sempre advertia, que se ela mentisse ela também estaria cometendo um crime. E elas sei lá sabe... Caiu da escada, elas... Luisa – E nesses casos em que elas mentem o que acontece depois? O agressor é absolvido? Elas são investigadas? Ou depende do caso? Juiza – Então, depende muito das outras provas, das circuncias, também pra gente chegar a conclusão que ela mentiu. Também acontecem casos, nem sempre a mulher, no calor do momento brigando ela na hora do boletim de ocorrência, ela também retrata os fatos de uma forma as vezes exclui alguns detalhes, que depois vem à tona, e que também nem sempre a situação aconteceu exatamente. Depende muito do caso contreto. Já aconteceu também deu absolver...Já aconteceu caso de mulheres que também, você acaba chegando a conclusão no final de que ela também fez aquela denuncia pra prejudicar a pessoa, a outra parte. Às vezes tem questão relacionada à guarda de filhos mal resolvida. É uma matéria muito complicada. Luisa – Sim, com certeza. Juiza – Já aconteceu uma vez de uma vítima que tinha uma deficiência física, e o companheiro dela era muito maior do que ela. Olhando os dois você percebia que ele era muito mais forte do que ela. E ela também tinha essa deficiência que tornava ela um pouco mais vulnerável, e durante a audiência, ela tava contando e tal...E ele começou a falar: isso é um absurdo, ela me deu uma facada naquele dia. No meio, nem poderia estar falando naquele momento. E daí ela olhou: dei mesmo a facada na perna dele. Então não tinha, não tava nos autos. Então algumas coisas depende da prova. Não é o que a pessoa relatou no inquérito que necessariamente vai se confirmar. O calor do momento é diferente da audiência de depois de ter passado algum tempo. Então é algo que não dá pra falar. Eu to falando

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das minhas impressões, mas cada audiência era única. Não existe um...A maioria dos casos eram de mulheres que estavam sendo alvo de violência, situações muito difíceis. Mas também aconteciam alguns casos como esse que eu to relatando. E cabe ao juiz tentar elucidar ao máximo o que aconteceu. Tinha alguns que às vezes o homem fazia um boletim de ocorrência no mesmo dia também falando sobre essa questão do que tinha acontecido. Chegou a ter caso que os dois estavam machucados, e ele também tinha feito exame de corpo de delito. E eu peguei o outro boletim de ocorrência e os dois estavam machucados, eu nem lembro do desfecho...Mas aconteceu. Então cada caso é um caso. Luisa – É. Bem complexo isso. Juiza – E por ser no âmbito doméstico, as vezes tem outras questões que estão...Questão de alienação parental. Então a gente tem que ser muito cuidadoso, e muito atento nesse tipo de delito, de conduta. Luisa – Sim, com certeza. É bem difícil. E pensando um pouco sobre isso também de ser complexo, e não necessariamente ter dois pólos, só a vitima e o agressor, achei muito interessante. No caso do JVD, principalmente, ele tava articulado com outros pontos da rede, com psicólogas, assistente social...Como é que isso funcionava? Juiza – Sim, lá no fórum...Agora tem vários outros projetos novos. Até a juíza que eu substituí ela tá com um projeto super legal relacionado a educação do agressor, então tem projetos muito bacanas. A gente sempre conversou,

eu

fazia

reunião

com

delegadas,

delegados

da

região,

conversava muito com psicólogas e assistentes sociais do fórum que faziam os laudos. E elas também, essa questão da representação, da possibilidade de se retratar até o recebimento da denúncia. Havia palestrar com o setor técnico pra que essas pessoas fossem esclarecidas sobre como ia funcionar, e tudo mais, tinha até uma cartilha pra explicar o que acontecia. Mesmo na Delegacia, até pra pessoa saber olha, você ta representando, e o que que vai repercutir. Porque às vezes na ação incondicionada a pessoa falava ai mas não me orientaram sobre isso. E também pra pessoa refletir sobre os direitos e deveres relacionados à questão. Então tinha sempre os grupos, as

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pessoas iam lá pra essa audiência relativa a retratação, e elas participavam de palestra. Então tinha muita gente que ia se retratar e depois da palestra até mudava de opinião, ou se encorajava pelo grupo. Um caso que me marcou bastante foi de uma vítima de ameaça, que ela várias vezes ia e se retratava, porque era ameaça, né? Então ela fazia e depois voltava. E ela foi ao fórum pra essa palestra e acabou se motivando e não se retratou. Ela ia se retratar e desistiu. E o setor técnico conversou comigo sobre esse caso e falaram que ela era uma pessoa até visualmente, você identificava ela como uma pessoa que tava sofrendo violência. Ela tinha muitas cicatrizes. E era uma pessoa muito sofrida assim. E ela dizia que ela guardava as intimações relacionadas as situações de violência doméstica, boletim de ocorrência, ela guardava num saco guardado numa árvore, porque ela tinha medo do companheiro dela saber disso e algo pior poder acontecer com ela, porque ele era muito violento. Então imagina que ponto chega pra pessoa ter que fazer isso. E ela é uma pessoa muito simples, tinha uma situação financeira muito difícil. E quando ela fez essa representação o pessoal falou olha se você quiser, você pode ser acolhida numa daquelas casa que recebem as vítimas de violência doméstica. Porque é algo que a pessoa tem um rompimento total com a vida dela, ela não volta pra mesma região. E assim pra aquela pessoa romper total. E é algo que assim eu vi duas pessoas, nesses seis meses, que quiseram essa...Porque é muito difícil pra uma pessoa abrir mão de tudo da vida dela. Ela tem que estar muito desesperada pra topar abrir mão da região que ela mora, dos amigos, de tudo aquilo. E dai no caso dela, quando ela tomou coragem de não se retratar, ela concordou em ir pra uma Casa Abrigo. Eu acho que eles tinham conversado com ela antes, eles tavam já acompanho, porque ela tinha muito essa coisa de voltar. E aí eles combinaram e ela veio pra não voltar mais. Ela veio com os filhos, porque ela não ia voltar nem pra casa dela pra pegar as coisas. Luisa – Entendi. Caramba. Nossa muito difícil. Juiza – É. Mas assim, foi um caso que a atuação da rede fez toda a diferença pra aquela pessoa conseguir romper o círculo de violência.

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Luisa – Sim, com certeza. E essas audiências ainda acontecem? Juiza – Essas de? Luisa – Essas de retratação, ainda acontecem? Juiza – Então, acho que seria bom você conversar com a Dra. X atual. Luisa – Eu vou tentar conversar com ela se der tempo. Juiza – É. Luisa – É que na verdade eu tentei me focar na região central até por causa de metodologia de pesquisa. Mas eu acho que eu vou sim conversar com ela, porque ela é muito legal. Juiza – E seria muito interessante, porque ela tá há muito tempo atuando nessa área, né? Luisa – Sim, seria interessante. E sobre isso da atuação na rede, conversando com eles você percebeu em algum momento que eles tinham alguma opinião sobre a representação? Ou isso não vinha necessariamente à tona? Juiza – Quem? As vítimas? Luisa – Não. Acho que não só as vitimas. Mas também as pessoas que trabalhavam nos equipamentos da rede e que você tinha contato. Juiza – Eu acho que tinha um pouco isso de falar ``ai sabe é bom ter a representação, porque as vezes a pessoa não está nem um pouco’’. Muitas vezes, as pessoas reconciliam. E depois se reconciliaram e dai tá tudo resolvido, pra quê dar seguimento a isso? A própria pessoa fica mal humorada, irritada, mentindo. Então tinha um pouco esse lado. Luisa – E você acha que ainda tem esse lado? Juiza – Eu acho que sim. Não to falando de todas as pessoas. Luisa – É óbvio. Juiza – Mas eu acho que tem um pouco esse outro lado também. Luisa – Entendi, legal. Eu acho que já tá acabando também, não quero tomar muito tempo. 160

Juiza – Imagina. Luisa – Bom, você conhece a decisão do STF... Juiza – Uhum. Luisa – E pelo o que eu entendi você considerou positiva a atuação dele? Juiza – Eu considerei. E foi algo, assim, na prática mesmo. Porque, num primeiro momento, não foi algo que eu tinha me questionado antes. Quando veio a decisão do Supremo eu falei ah a gente tem que aplicar. E eu achei que faz sentido. A minha experiência na área...Na minha opinião faz sentido. É uma questão muito importante no nosso país que precisa muito ser combatida, repensada, e isso afeta diversas cearas na nossa sociedade. Então eu acho que isso tá dentro desse contexto de combate a esse tipo de violência. Luisa – E talvez pensando nisso, como é positiva a representação incondicionada pra garantir o combate a esse tipo de violência, será que a incondicionalidade deveria ser estendida pra outros crimes? Como por exemplo, ameaça. Pensando também nessa história que você contou.

Eu

sei que é difícil especular. Juiza – É então, pensando nas situações. Eu acho que tem vários contextos. Num contexto mais gravoso desse, essa ação deveria ser incondicionada, porque olha essa mulher que passou anos sofrendo violência psicológica, que as vezes é até mais grave que a violência física. Mas também aconteciam de casos menores, sabe? Que as vezes, eu fico pensando também se no âmbito daquela família...É um peso muito grande uma pessoa ser processada, isso têm consequências. Então tem esse outro lado também. Luisa – Sim, claro. Juiza – Então eu não tenho uma posição formada, porque eu não tinha me questionado sobre isso. Mas eu consigo ver esses dois pontos de vista. Porque, não sei, acho que a violência física pela consequência, a lesão leve tem situações muito gravosas na vida da pessoa, de não poder trabalhar, sei lá, tomar um soco na cara. A questão do que aquilo acarreta também, 161

acho que é mais evidente. Mas não sei, eu teria que me debruçar mais. O que eu consigo pensar é nessas duas situações. Tem um pouco isso também do Estado entrar, não sei se você entendeu? Luisa – Acho que sim. Seria meio que pensar qual o limite do Estado? Juiza – Sim. Por isso eu acho muito importante também as pessoas ...É que as pessoas, às vezes, vão e elas não tem conhecimento da repercussão do que a atitude dela pode causar. E às vezes, não sei, um caso mais bobinho talvez...Não sei. As vezes a pessoa ficou brava, mas não é aquela coisa diária. Tem gente que fica o dia inteiro minando a autoestima da pessoa, ameaçando, e a pessoa fica apavorada. E as vezes assim numa briguinha de menos importância, a pessoa ficou meio não sei. Tinha esses dois tipos de coisa. Luisa – Então acontecia de aparecer coisas menores? Juiza – Também. Tinha esse tipo de coisa menor. Não sei. Luisa – E, eu acho que já tá bem no fim. Acho que só mais uma... deixa eu ver aqui (olhando o roteiro). Juiza – Mas eu assim, particularmente eu acho a tortura.. a tortura não, a violência, que as vezes vira até uma tortura, a violência psicológica algo muito muito grave. E acho que esse exemplo revela muito isso. Às vezes é pior do que...Nesse caso acho que também tinha, é que ela não fez boletim de ocorrência relacionado a isso, todos eram de ameaça. Mas ela era uma pessoa que também tinha cicatrizes pelo corpo. Claramente ela também era agredida fisicamente. Mas também tem casos de violência psicológica, essas ameaças muito graves, eu acho muito muito grave, tão grave quanto uma violência física. Luisa – Claro, não com certeza. É verdade. E... Juiza



Você



se

posicionou

aí?

O

que

vai

defender?

Luisa – Não. Nossa, eu não sei. É muito complicado. E outra coisa que eu fico pensando um pouco... Juiza – É que eu, assim, como juíza...Eu já sou juíza há nove anos. Então eu tenho muito isso de buscar uma solução mais justa, eu não gosto de 162

radicalismo, eu tento buscar sempre uma coisa juntas. Mas talvez algo mais rígido, acaba sendo necessário pra ter uma efetividade maior no combate. Só refletindo sobre o assunto. Luisa – Claro, com certeza. É uma escolha difícil, eu entendo. E pensando um pouco sobre as medidas protetivas. Mas, você percebe que as medidas protetivas elas podem aparecer desvinculadas do processo criminal? Elas já foram alguma vez pedidas sem a representação? Juiza – Então, com representação. Tanto que as vezes tinham umas situações que...porque a medida protetiva ia até o transito em julgado da decisão. E aí depois a pessoa falava mas e agora? É meio que um limbo dessa questão das medidas protetivas. Aí tem que ficar esperando ele de novo fazer alguma coisa? Então isso era uma questão. Mas não tinha, eu não via na época amparo legal. Porque elas tem a natureza cautelar, né? Então, na minha visão, teria que estar vinculado a um fato principal, a um delito que foi cometido. Luisa – É complicado essa parte da natureza das medidas. Juiza – Mas gerava às vezes...Eu lembro de uma vítima vir mas e agora? O que é que eu vou fazer? Ele continua indo atrás de mim. A gente falava: faz um boletim de ocorrência. Luisa – E ai teria que começar tudo de novo? Juiza – É...Mas também você restringir os direitos fundamentais de uma pessoa por prazo indeterminado sem vincular isso a uma forma cautelar, eu não sei. Acho complicado. Luisa – Você diz pro agressor? Juiza – É pro agressor. Você tá cerceando os direitos fundamentais dele por prazo indeterminado. Não sei. Luisa – Realmente eu não tinha pensando nesse ponto. É no sentido de liberdade de ir e vir? Juiza – Sim.

163

Luisa – Realmente é complicado. Ah Doutora, o Judiciário como instituição tem pacifico essa decisão do STF? Juíza – Nossa, eu não conheço quem não aplique esse entendimento. Luisa – É que nem sempre todas as entidades tem a mesma opinião consolidada. Mas se não tem a mesma opinião, talvez nem todos os juízes tenham a mesma opinião sobre o assunto... Juiza – Mas olha... Eu realmente desconheço que algum juiz não aplique isso. Seria algo contraproducente, né? Até o efeito prático...Os juízes, a gente tem um cuidado muito grande com a nossa vara. Então seria contraproducente ficar processando recurso pra depois voltar...Eu acho que...Pelo o que eu conheço da atuação, isso não acontece. Luisa – Sim. E aqui na sua vara? Juiza – Então eu recebo às vezes violência doméstica penas alternativas, os surci. Acompanho o cumprimento de surci pra suspensão da pena. Mas isso. Receber pra cumprimeito das penas. Às vezes tem caso de estupro de vulnerável também. Eu trabalho com as mulheres, então é muito raro pegar uma que tenha cometido algum crime no âmbito da violência doméstica. Luisa – Ah entendi. Então você trabalha com mulheres que cometeram crimes, não necessariamente vítimas. Juiza – Às vezes elas são vitimas de violência . Quando eu vou procurar algum processo, eu vejo que elas são também vitimas de processo na vara da violência doméstica. Mas eu também já trabalhei também no masculino e já peguei casos...Às vezes têm sentenciados que tem também alguns processos de violência doméstica. Luisa – Ah legal. Juiza – Mas aqui é o acompanhamento das penas alternativas e do cumprimento da pena, do surci. Luisa – Legal. Juiza – Mas o que eu observo nas minhas sentenciadas, quando eu vou conceder benefícios, em alguns casos especiais eu costumo pedir exame

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criminológico, que costuma ter avaliação psicológica e social. E muitas das sentenciadas são vítimas de violência domética, ou foram vitimas em algum momento da vida. A maioria. Luisa – Isso é bem significativo. Juiza – O perfil das sentenciadas que eu trabalho, eu observo muito isso. Luisa – Doutora, acho que é isso. Muito obrigada. Eu vou desligar.

Rute – Advogada no CDCM Casa Mulher Ação e Presidente da União de Mulheres Luisa – Bom, eu vou pra minha pesquisa formal mesmo agora, que eu tenho que entregar em novembro. Rute – Aiii (risos) Luisa –Então Rute, eu não sei se eu te contei direitinho, mas a minha pesquisa é sobre aquela polêmica da representação na Lei Maria da Penha. Rute – Aiii tá. (risos) Rute – Até você falou com a Carol, né? E ai a gente conversou um pouquinho, e a gente que ficou meio que nessa coisa também de pensar juntas e tal. Luisa – Sim, claro. E dai bom, o projeto de pesquisa é voltado pro STF, mas eu não queria ficar só nisso. Então eu decidi entrevistar as mulheres da Rede também. Rute



Ai

que

legal!

Luisa – Pra tentar meio comparar um pouco os argumentos e entender a diferença ou não do que os Ministros pensam e de quem tá na ponta. E aí Rute, ia ser muito legal se você pudesse me contar, vou pra perguntar a questão principal por causa do tempo, né. Qual a sua opinião pessoal sobre esse tema da representação em casos de violência doméstica e lesão corporal? Você acha que ela é necessária ou não? E sempre ou só em alguns casos?

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Rute – É...Então e aí fica desde a Rute que é feminista, a Rute que é gestora, a Rute que é sei lá muitas coisas, e ao mesmo tempo não é muita coisa não (risos). Mas eu fico pensando que se a gente tivesse de fato uma estrutura que contemplasse olhar essas mulheres como protagonistas, a gente não precisaria nem dessa previsão de que essa representação, não precisa de representação, precisa de uma coisa automática. Porque de repente quando essa mulher ela chega na Delegacia e ela é esclarecida nas suas dúvidas, e apesar daquela situação

traumática e dramática que vai

ser a que vai levar ela até a delegacia... Ela também teria uma capacidade maior de querer fazer aquilo ou não, de ter consciência sobre o que tá acontecendo, né? E aí pensando por um outro lado, se a gente discute que nas questões de violência contra a mulher o protagonismo é da mulher, ela deveria de ter esse manejo da vida dela e o manejo do que vai acontecer na história dela. Então assim, eu acho muito complicado, né? Acho que num dado

momento

é

importante,

ou

tem

uma

importância.

Mas

essa

importância ela vem em decorrência de mal serviço prestado. E ai eu acho que

é

muito

menos

responsabilidade

das

mulheres,

e

muito

mais

responsabilidade do Estado de não.. de fazer o papel que tem que fazer que é de informar. Uma pessoa que vai e leva uma situação pro Estado de ser informada das consequências daquilo, dos suportes que ela pode ter. Então, infelizmente por conta de uma falha do Estado, nós mulheres pagamos novamente.

Então a conta da questão da representação, ela cai sobre

essas mulheres que de repente... Quantas vezes eu já atendi mulheres que não entendem o que é representação. Quantas rodas de conversa a gente fez com as próprias promotoras aqui e na hora de explicar o mecanismo da Lei Maria da Penha ah então você tem representação não sei o que. Se você passar batido, ficou um termo que eu utilizei na minha fala, mas esvaziado de significado. E quando você pergunta: você sabe o que é isso? Não, não sei. Você chega na Delegacia, elabora lá o boletim, eles te leem, e ai você vai pra casa sem saber o que eles te leram, né. Então eu acho que é isso, sabe? Um pouco uma fragilidade do Estado, tentaram concertar dessa forma, mas de novo você culpabiliza as mulheres, você pesa na história das mulheres.

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Luisa – E pensando nisso que você falou agora das PLPs, e você trabalha no CDCM também, né Rute? Rute – Isso. Luisa – É a Casa Viviane? Rute – Não, é a Mulher Ação, que é vizinha da Viviane, é na mesma região Guaianazes. Luisa – Ah ta! E ai eu queria saber: aparece esse tema da representação no trabalho cotidiano? Ou esporadicamente? E se aparece, como ele é tratado? Queria entender um pouco se ele tá no cotidiano das mulheres também, sabe? Rute – Então, é aquela coisa a Delegacia ela tá... Pensando assim o que seria o meio pelo qual elas acionariam e teriam contato com a questão da representação, de ser importante ou não isso. Então é a Delegacia. Como é que a Delegacia tá inserida no cotidiano dessas mulheres? E a relação com a Delegacia é complicada, complicadíssima. Porque quando a mulher demanda ir pra Delegacia, elaborar um boletim de ocorrência, a gente tem que orientá-la de todas as violências institucionais que ela vai sofrer. Então, não são todas as mulheres que estão em situação de violência que acabam indo até uma delegacia. E as que vão, não necessariamente tem esclarecido o que que significou aquilo pra ela. Ou quando não, até a elaboração do relato ali não condiz com o que ela tá declarando. Por exemplo, eu atendi um caso essa semana de uma mulher que solicitava abrigamento, e abrigamento sigiloso e tal, e ai ela foi na Delegacia no dia sete, sexta feira, e ai veio, era ameaça e injuria eu acho. Então tinha necessidade de representação, eu não sei se ela foi bem esclarecida, era uma DDM que em teoria as pessoas, a gente conhece a Delegada, a Delegada pelo menos tem um discurso de que se esforça, e algumas mulheres que já foram lá dizem que é um pouco menos pior. E assim, desculpa todas essas palavras, a redundância, um pouco menos pior que as demais, porque a Delegacia ser boa é meio difícil, né. E ai ela foi, voltou na segunda-feira, pela narrativa dela eu entendo que ela representou, que até teve uma escuta das crianças, alguma coisa assim. Mas eles te deram um papel? Ah não, eu não

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sai com nenhum papel de lá. E ai, assim, essas falhas né também. E é uma Delegacia que em teoria é parceira e tal. E até depois o desfecho: a necessidade de um abrigo sigiloso que a Secretaria de Segurança Pública tem um abrigo sigiloso, não acionaram o abrigo da Secretaria de Segurança Pública. Então eu entrei em contato com o CREAS que é o da assistência, pra buscar uma alternativa no CREAS, sendo que eu sabia que o abrigo sigiloso da Secretaria de Segurança Pública tinha vaga. Então, assim, no final das contas é aquilo: mal serviço prestado. Então, a representação ela não tá inserida. O que acontece que quando ela chega lá com aquele boletim de ocorrência a gente pergunta você sabe o que é isso? E aí você se depara que não. Então ela não sabe que tem um período ali de seis meses, que ela teria de acionar ou não. Então a gente explica: isso aqui significa que você quer que vire um processo, que investiguem e tal. Então não sei, é complicado. E complicado mais ainda, por imaginar esse ambiente. E ai quando você fala das periferias ainda, as relações que tem ali, o poder paralelo, o quanto que essa mulher também buscar uma Delegacia é colocá-la mais em risco, potencializar o risco de morte delas. Então muitas não querem buscar a Delegacia, muitas não vão chegar na delegacia e menos ainda chegar nessa questão de representar ou não. O que é isso, né? E o quanto também das violências tão instaladas, esse insulto que está descrito ali como a injuria, é uma ação privada. Mas essa ameaça, ela entra quase que num cotidiano das relações. Por exemplo as gente vê a ameaça inserida nas relações das mulheres e suas crianças: eu vou te pegar, eu vou te bater, eu vou estourar sua cara. E é um trabalho também que a gente tá fazendo lá. Mas o quanto a ameaça elas entendem como um crime ou como algo que tá posto nas relações. Então de repente eu fui lá e relatei essa ameaça, eu quero que aconteça alguma coisa, mas e ai? Luisa – Rute, você quer dar um oi pra Janaina? Rute - Não sei se ela tá... Luisa – É? Rute – É.

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Luisa – Então eu só queria te perguntar um pouquinho isso da Rede também. O que significa representação e a importância dela pros outros lugares da rede? Porque assim, eu fiquei pensando, será que a opinião da rede sobre representação é uniforme? Como pensar isso? E como a rede constrói seus posicionamentos? Rute – Então, não sei se eu vou satisfazer. Quando eu penso na representação eu vou quase meio que associar com a Delegacia, tá? Porque essa representação só vai vir por conta ter acionado a Delegacia, ou ter elaborado o boletim de ocorrência. Sim, é tudo diferente. Não é porque a gente tá na mesma rede que as casas todas tem a mesma compreensão. Luisa – Mas todas conhecem o termo, você acha? Inclusive saúde, casa abrigo... Rute – Não. Acho que, por exemplo, uma UBS não sabe o que é essa representação. Eu acho que ela tá muito mais na esfera dos profissionais do direito mesmo. Eu acho que não chegou. E quando eu falo aqui que a gente conversa com as mulheres, e a gente tá discutindo o ano inteiro, de repente vem uma Promotora de Justiça e vem falar com ela sobre Lei Maria da Penha e fala de representação, e se a gente não explicar passa o termo batido. Então acho que não, não é conhecido isso. E ai além de não ser conhecido, a questão desse acesso, de acionar. E o boletim de ocorrência, as pessoas tem... Tem um fetiche atrás do boletim de ocorrência, né. Como se você registrasse um boletim de ocorrência mudasse a vida. Tinha uma mulher que eu atendi essa semana também e ela disse não, porque eu quero um encaminhamento pra fazer um boletim de ocorrência. E pra que? Ah porque querem construir uma grade na frente da minha casa. Ah mas o boletim de ocorrência não serve pra isso. Não, não, mas eu recebi a instrução de que sim servia. Não, ele tem uma outra função, né? Então acho que a gente parte de muito desconhecimento, de muita crença. Como você não é protagonista, eu vou e simplesmente faço a narrativa e deposito aquilo na Delegacia e aquilo vai funcionar, entendeu? Aquilo vai passar da gaveta. E eu acho que o nome representação talvez ele não tá inserido no cotidiano, mas existe a ideia de que não caberia representação pra nada,

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tudo que eu declarar tem que ser investigado. E ai talvez é isso, de que forma desmistificar e dizer que o botão que você aciona, de que tem de ser feito alguma coisa com aquilo, é o botãozinho da representação, se chama representação. Luisa – E só ultima coisa, não quero tomar seu tempo, isso que você acabou de falar: apertou botão da representação aciona. Achei muito legal. Rute – (Risos) Luisa – Pensando nisso do acionar, quando é ameaça ou é condicionada não aciona. E ai? Como é que faz? Tem que ser tudo incondicionada? Não tem? Pensar um pouco sobre isso, vantagens e desvantagens. Rute – Então, eu acho que de novo, se a gente faz o seguinte: observa a mulher quanto protagonista e não como objeto dessa relação, como sujeito, independe do que eu vou dizer. Porque de repente, por exemplo, se eu chegar lá e eu fizer a declaração ‘’eu fui ameaçada e não sei o que’’. Se eu, enquanto profissional, entendo que é um direito dela saber e decidir o que vai acontecer, eu tenho que explicar pra ela, se fosse incondicionada, a partir dessa momento que você tá me dizendo sobre essa ameaça, eu além de registar a gente vai investigar. E aí ela decide também, porque de repente ela fala não, eu só queria registrar, se porventura, outro dia... Alguma coisa assim, entendeu? Luisa – Uhum. Rute -

Mas, quando a gente tem a mulher como objeto é quando retira

dela a capacidade dela de decidir se isso dá sequencia ou não. E ai a gente inventa tanta coisa, porque no final das contas é isso, tanta coisa que precisar ter um conhecimento jurídico pra saber como dar sequencia aquilo. Mas se eu não tenho conhecimento jurídico, e a maioria da população não tem. Então, na verdade, é um engodo. Ela vai, ela faz o boletim de ocorrência, vai pra casa achando, na esperança de que aquilo vai virar alguma coisa. Mas não vai nada, né? Vira só um registro, ficou na gaveta. Eu sei que assim, eu sou muito...

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Luisa – Não, eu gostei muito. Mas eu também fico pensando assim do outro lado que tem muitos argumentos, eu também não sei o que eu penso sobre tudo isso, mas tem muitos argumentos que são utilizados da representação incondicionada no sentido de que a mulher não estaria em condições de fazer essa escolha. Rute – Mas é porque eu olho ela não como sujeito. Eu olho essa mulher.. como você já viu..ai essa gente simples. O direito tem muita gente que fala ai essa gente simples. Mas não é gente simples, é gente que não teve acesso ao conhecimento que você tem. E se você explicar ela vai ter capacidade pra dizer alguma coisa, né? Porque assim ela ta toda machucada, e tal. Ai se quer o registro? A gente registra né. E ai explicar... Mas assim é construir com ela. E se naquele momento ela tá machucada e ela quer que inicie, ai a gente poderia pensar prazos, entende? Poderia pensar outras coisas. Que quando existe interesse do capital a gente pensa, né? Você modifica, né? Ai o Código Comercial, você imagina tudo que se pode fazer e tudo que se pode desfazer. Mas você tá achando que ela é incompetente.Tem textos né que vinculam violência à pobreza, violência ao não acesso a escolaridade e tal. Então, eu já to dizendo que a pessoa que sofre violência é porque ela tem alguma questão cognitiva. Congela isso, porque assim é um absurdo. E é um absurdo ter profissionais que trabalham nessa lógica, e não que a violência é um fenômeno aí que tá inserido, que ela é bastante generosa, não depende de classe social, raça, sei lá, condições, acessos, escolaridade, não. Ela é farta. A violência ta em tudo quanto é canto. Eu acho, então, eu defendo que essa modificação ou não ela só tem sentido se eu olhar pra mulher enquanto protagonista. E entender que se ela não tem elementos agora pra decidir, eu vou ter de pensar em como oferecer esses elementos pra que a decisão seja dela. Assim, como por exemplo, uma mulher que vem nas casas, e ai a gente fala você identifica que você está em risco de morte? Não. Na narrativa ela simplesmente falou tudo, e eu sei que quando ela sair daqui, e eu fico com aquele coração, não sabendo se ela vai viver até o dia seguinte. Se ela disser que ela não identifica, eu posso conversar com ela, e ela continuar dizendo que não identifica, é a história dela. O serviço que protege mostra

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um termo pra ela assinar, dizendo que a gente falou, e a gente identificou, tal. Mas é ela quem vai decidir se ela quer ir pra casa e encontrar o agressor, a história é dela. E eu acho que assim, no direito penal é a mesma coisa, nesses mecanismos do processo. Quantas vão lá registram e são mais violentadas ainda, por terem ido a Delegacia. E ai saem de lá sem saber de nada, foram julgadas. Elas passam pelo juízo da delegacia, pelo juízo do vizinho, pelo juízo de tanta gente, que as vezes ela nem chega no juiz togado mesmo. E ai, assim, vamos inverter. A logica é assim, inverte: a mulher protagonista. A partir daí se vai ser condicionada ou incondicionada a gente constrói isso com ela. Tentar dizer: olha, e se você voltar daqui um tempo? E a gente não vai fazer nada agora com isso, a gente vai acionar só quando você voltar pela segunda vez aqui. Elas não saem com essa informação de pode decidir ou não. Então eu acho que é mais isso, de que forma que eu instrumentalizo ou organizo que essa mulher seja a protagonista. Porque tirar dela né, esvaziar... Não, mas ela não sabe, ela tá toda machucada. Não, ela sabe. As mulheres não querem viver em situação de violência, elas só não sabem e às vezes não tem recurso pra sair disso. E recurso na forma mais ampla, desde econômico, afetivo, relacional, enfim. Luisa – Uhum. Rute, só ultima pergunta, prometo. Rute – Pode ficar tranquila. Luisa – Já ta quase na sua hora do almoço né, sei la. Rute – Risos Luisa – Rute você conhece a ADI 4424? Aquela que decidiu, junto com a ADC 19 que é da constitucionalidade sobre a Lei Maria da Penha, pela representação incondicionada nos crimes de lesão corporal de qualquer extensão. Rute – Sim. Luisa – E ai, pensando um pouco nisso também da mulher que constrói, da mulher protagonista, e o papel do juiz, penando o STF. O quanto você acha que o STF tem que enfim tomar esse tipo de decisão? Você acha que ele é um protagonista dentro da luta do movimento de mulheres?

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Rute – Então, isso é complicado. Pelo menos pra mim, é complicado porque de repente a gente tá no movimento que a gente não quer que o Estado determine se isso é violência ou não, entendeu? Eu quero pensar em possibilidades sem que eu necessariamente tenha que recorrer ao Estado pra viver livre de violência. Só que a gente sabe que a elaboração de leis, e que você ter previsões e mecanismos que promovam a garantia e os direitos das mulheres é necessário. Então de repente a decisão, eu ter a Lei Maria da Penha sendo discutida, e eu ter uma decisão favorável em alguma medida, majoritariamente, não pra essa mulher específica que tem nome e tal, mas essa coisa assim no amplo decidir pela constitucionalidade da Lei. Então isso foi importante, porque é quando você pensa tem uma lei específica,

todo

mundo

falando,

todo

mundo

questionando...Só

que

também o que vai fortalecer essa lei é uma execução adequada. Então, por mais que o STF aqui em cima discuta, ta na mídia, não sei o que. Ela só vai mudar e modificar a vida se nós atores e atrizes dai da aplicação dela, se a gente fizer um bom trabalho. Então eu não sei. É quase sabe, a globo falar de casal lésbico na novela é bom ou ruim? É mais ou menos isso, sabe? Vai ter algo. Isso vai chegar em algum lugar, de repente chega nas faculdades, de repente chega em quem tá estudando direito, de repente você poder fazer o seu estudo e tal. Tem essa importância. Mas pra mulher que tá ali no cotidiano, talvez não. E é isso né. Ter duas lésbicas todas loiras que fazem publicidade de esmalte na novela das oito vai ser importante pra quem não tá discutindo outras coisas. Mas pra gente que já tá avançada ai no role, eu quero a lésbica negra, gorda, né? Ali discutindo outras coisas. Eu quero que essa novela não coloque a gente nos mesmos lugares, do cara que é o estuprador e o machão ser um protagonista e o principal. E ai eu acho que depende dos processos, e tem os processos internos, nossos e aí essa coisa artesanal, e tem o que é no macro. Então não sei. No final das contas, acho que é importante, mas ao mesmo tempo não tudo né. E eu acho que deveria ter uma esfera muito no macro mesmo. Agora sobre representação ou não, eu não sei se caberia. Eu acho que não caberia talvez, to pensando agora muito rápido com vocês. E sim caberia isso, é um trabalho que tem que ser feito cada vez que uma das mulheres buscar a

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delegacia, e a gente que ta discutindo aqui falar...Eu to pensando aqui, o estupro, o estupro de uma mulher acima de 18 anos ela não tá obrigada. O Estado não tá nem aí, né. Ele só vai ter alguma importância se ela for, se ela denunciar, e ela se expor, e ela sofrer essa violência que é levar pro Estado resolver isso, e com todos os problemas que a gente sabe de quando o Estado se mete. Então, assim não sei. Se o Estado entendesse que é realmente importante essa mulher sair de uma situação de violência, haveria um investimento em políticas públicas, que não necessariamente ia ficar no representa ou não e acionar a polícia. Mas eu pensar na prevenção, discutir gênero na escola...é...A gente pensar que eu tenho o auxilio moradia de uma forma muito mais acessível e não cortado do jeito que tá. Que essa mulher vai ter outros mecanismos. Vai trabalhar com o agressor, vai ter espaço pra trabalhar com o agressor, não só com os agressores, mas com os homens em geral. A gente tem muita dificuldade, às vezes, quando você quer mandar um homem que...Na verdade eu queria falar sobre masculinidade. Se o Estado, de fato, tivesse interessado numa vida sem violência pras mulheres, acho que haveria investimento em outras coisas. Tantas coisas que na prática daria pra fazer em outros espaços, na UBS, na escola, na própria assistência, mas em outros equipamentos. O equipamento onde eu trabalho, a gente trabalha muito em prevenção também. Então ter um maior investimento na prevenção, do que depois quando a mulher tá lá toda machucada e você diz que ela não tem pra fazer, pra decidir sobre a vida dela. Luisa- Ai Rute brigada.

E só te perguntar: tem alguém pra me indicar

assim? Pessoas que você acha importante pra conversar. Rute anotou num papel as referências. Fim da gravação.

Yasmin Pestana – Defensora Pública do NUDEM Yasmin - A gente aprende junto aqui a refletir Luisa - Eu fiz um roteiro de perguntas pra guiar a gente. Mas você tá bem aberta pra falar sobre tudo o que você quiser. 174

Yasmin - Tá bom. Luisa - E aí enfim, a primeira pergunta seria: como sua entidade trabalha com a mulher em situação de violência e com a Lei Maria da Penha? Yasmin – Tá. Explicar um pouquinho né? Bem, aqui na Defensoria.., Primeiro assim, na capital tem sete Juizados de Violência doméstica. Há dois anos, mais ou menos, a Defensoria designou, criou cargos específicos pra que defensores e defensoras atuem no Juizado de Violência Doméstica. Então antes não havia isso. Mais ou menos com o surgimento do Juizado de Violência Doméstica, a defensoria criou o que a gente pode chamar de Defensorias Especializadas. Então a gente tem: um Juizado de Violência Doméstica de São Miguel que abrange São Miguel e Itaquera e lá tem duas defensoras, que acho que você conhece uma que é a Thaís Nader e a outra é a Paulinha, Paula Machado. Aí tem o JVD de Santo Amaro, o JVD de Santo Amaro também tem mais duas defensoras. Tem o JVD central da Barra Funda, que tem mais uma defensora. E tem o JVD Santana com mais duas defensoras. Pra além

da capital, a gente só tem

essa Defensoria

Especializada em São José dos Campos, tem um defensor lá no juizado. Agora do Estado, eu não sei. Eu acho que a gente têm nove juizados salvo engano, não são muitos. Então, pra além desses defensores e defensoras especializadas, o que a gente aprovou recentemente dentro da instituição, até por uma recomendação da Corregedoria é: onde não tiver defensor especializado, ou Defensoria Especializada, a Defensoria vai ter atender a mulher pra concessão da medida protetiva de urgência. Então, por exemplo, se ela chegar no juizado, na Penha, na Defensoria da Penha que têm Juizado de Violência Doméstica, mas não tem defensoria especializada, o defensor independente se ele trabalha na família ou só no civil, ele vai ter que atender aquela mulher e fazer o pedido de medida protetiva. Então, é obrigação de todos os defensores e de todas as defensoras fazerem o pedido de medida protetiva. Agora, o acompanhamento depois vai ficar um pouco a cargo do Ministério Público, porque a gente tem esse problema né. E esse é um problema do sistema de justiça de forma geral, que é você vincular tudo em caixinhas. Então, você tem um defensor da família e do

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civil que atua pra duas alas, e aí um atua pro juizado de violência doméstica. Então, acaba que as atribuições são fixas. Uma discussão dentro da instituição é: quais são as atribuições dos defensores? Por quê? Porque antes se vinculava sempre a vara. Hoje em dia a Defensoria tem colocado muito as atribuições perante as demandas,. Então, por exemplo, lá em Itaquera, que eu sou do último concurso, as minhas atribuições eram família, civil, infância e JVD. Então, não teria como eu me recusar a fazer nada do JVD, se não tivesse o JVD específico em São Miguel. Deu pra entender? Luisa - Deu pra entender. Yasmin – Então é um pouco isso. Em Guarulhos, por exemplo, só pra trazer mais um exemplo, tem JVD, mas não tem Defensoria Especializada, e lá eles enfrentam um problema, porque o juiz é muito complicado, faz uma análise muito… Filtra, não acho que é bem filtrar, mas faz uma peneira do que é violência doméstica com um recorte da cabeça dele, sem grandes fundamentos, acaba não dando proteção pras mulheres, e isso prejudica. Só que lá não tem Defensoria Especializada, então, alguns defensores e algumas defensoras seguindo a regra da Corregedoria fazem os pedidos de medida protetiva. Mas depois, quem cuida é o Ministério Público, que vai tentar acompanhar. Luisa - Então se tiver, só pra entender um pouco Yasmin - Pode falar Luisa - Se tiver uma audiência depois… Yasmin - A defensoria não participa pela vítima. Então, esse é o problema. E tem outros, por exemplo, é um caso que eu to sendo responsável, que to acompanhando. Por exemplo: violência doméstica perpetrada por um adolescente vai pra vara da infância, e aí lá, na vara da infância, os defensores e as defensoras atuam em favor do adolescente e não tem defensor pela vítima na vara da infância, então de novo vai pro Ministério Público. E nesse Juizado de Violência Doméstica que a gente tem também, 176

só na Barra Funda que tem defensor público pro réu, nos outros então a defensora tá pela vítima, mas pro réu é advogado dativo, um advogado nomeado pelo Juiz, o que também é um problema dentro da instituição. Porque é isso, a instituição, a defensoria é muito consolidada pela defesa dos réus, dos acusados e das acusadas. E acho que o desafio da Lei Maria da Penha é entender a importância da defensoria também pela vítima. E diante de recursos escassos dos serviços públicos, o que priorizar? É uma disputa de dentro, de conseguir priorizar a vítima por entender que nessa relação ela tá numa situação de maior vulnerabilidade. Enfim, é um pouco isso.

Então é isso, nos Juizados a Defensoria tem atuado assim: têm

algumas defensoras especializadas, e tem essa obrigação de pleitear as medidas protetivas sempre que tiver uma situação de urgência. Mas a Defensoria tem também um recorte de renda, se a mulher tá em situação de urgência tem que ingressar com a ação, a medida protetiva. E depois se ela tiver passado o recorte de renda, aí ela vai ter que constituir um advogado. Na nossa deliberação que fala isso, se passar muito, na verdade, o defensor só orienta. Entendeu? Luisa – Entendi. Yasmin - Tem que ver, se não ta em situação de urgência, não entra. Outra coisa, só pra fechar. Luisa - Não não, muito legal Yasmin - No Juizado de Violência Doméstica a gente tenta fazer, os defensores e as defensoras que tão lá, a gente tenta fazer o atendimento integral, assim como a Lei Maria da Penha prevê. Porque a Lei Maria da Penha

prevê

que

o

Juizados

de

Violência

Doméstica

deveriam

ter

competência civil e criminal, mas às vezes acabam atuando como vara criminal. Aí as defensoras, o que é que elas fazem? Elas já fazem a medida protetiva lá, e já fazem, se for o caso, a ação de guarda, a ação de divórcio, etendeu? Pra que ela não tenha que ficar pipocando em várias defensorias. Luisa - E ela pleiteia no JVD?

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Yasmin: - Então esse é o problema, ela não pleiteia no JVD, porque os juizes, o Juizado de Violência Doméstica não aceitam. Então, por exemplo, lá em São Miguel, que você conhece, a mulher é atendida pela Thaís, ela faz o encaminhamento de medida protetiva pro JVD de São Miguel. Só que depois, a ação de divórcio, a ação de reconhecimento de união estável vai ser encaminhada pra uma vara de família. E como lá em São Miguel o JVD tem competência em São Miguel e em Itaquera, às vezes, a mulher tem a medida protetiva no fórum de São Miguel, mas a ação de guarda, a ação de divórcio tá correndo na vara de Itaquera. E isso é complicado pra mulher, porque ela vai ter dois deslocamentos. E mesmo que a Thais tente reunir tudo lá, querendo ou não, na hora da audiência, na hora de acompanhar vai ser outro defensor, então exige uma comunicação interna da defensoria muito boa. E isso é complicado, porque, às vezes, os juízes dão decisões conflitantes. Então, por exemplo, o que, às vezes, as defensoras do JVD conseguem é a concessão de uma medida protetiva mais ou menos com caráter civil, por exemplo, suspensão de visita, ou alimentos provisórios. Mas, às vezes, o juiz do JVD suspende as visitas, só que aí o juiz da vara de família fixa guarda compartilhada, por exemplo. São os desafios. Então, a gente sempre coloca aqui no Núcleo que a consolidação da competência híbrida do Juizado de Violência Doméstica, na verdade, seria um grande passo pra conseguir mitigar a revitimização das mulheres. Luisa – Sim. Yasmin – Eu acho que isso é complicado, porque envolve muita estrutura do judiciário, o judiciário é muito resistente. E ficam falando que magina, imagina tipo cumular toda uma vara de família, isso vai tardar a concessão das medidas protetivas. Mas o que hoje, é isso? A gente vê que não adianta conceder medida protetiva se não vai ter consequência nas outras esferas, se não vai resolver. Então é uma ilusão você achar que vai conceder medida protetiva à rodo sem resolver um problema que é mais complexo, que envolve outras áreas. Então é um pouco isso. O Núcleo, em si, da mulher ele é um núcleo de apoio. Então, ele orienta e dá apoio às defensoras que atuam na defesa das mulher em situação de violência doméstica. Mas a

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gente não só atua em violência doméstica, a gente atua em outros temas: violência obstétrica, direitos sexuais e reprodutivos, a gente atua sempre acompanhando casos, e casos muito do que aparece no dia a dia. Então, gênero e educação que tá em pauta, a gente acompanha, a gente acompanha muito a consolidação da rede de enfrentamento à violência doméstica aqui em São Paulo. Mas é isso, são duas pessoas pro Estado todo, então a gente fica um pouco limitadas, porque é muita demanda pra pouca estrutura, pouco braço. Luisa - Muito legal! E, assim, essa questão da representação nas ações penais, ela aparece no cotidiano do trabalho aqui do NUDEM ou não? Yasmin - Então, é isso eu não atuo diretamente no Juizado de Violência Doméstica. Mas a gente sabe que é isso, o Núcleo ele acompanha um pouco o que as defensoras do JVD vão mandando. E a gente sabe que essa é questão é muito importante pra defesa das mulheres. Por quê? Hoje o Núcleo ele defende que, as medidas protetivas independem do boletim de ocorrência. E a gente faz essa defesa, muito por entender, que é isso, a proteção da mulher não deve depender de nenhum processo criminal, até porque, é isso, muitas mulheres têm medo, muitas mulheres acham que o processo criminal pode ampliar a violência que elas tão vivendo, muitas mulheres, é isso, elas não querem ter envolvimento criminal, mas querem a medida protetiva. Luisa - Sim. Yasmin - É isso tá relacionado com a questão da representação, né? Às vezes, a mulher não representava, aí o processo criminal não continuava e a medida protetiva era arquivada. Então hoje o a gente tem feito no trabalho é isso: que independe, independe de representar. A medida protetiva, a gente defende que é uma tutela inibitória, que ela tem um caráter autônomo, de prevenção, de prevenir uma conduta violadora. Então acho que hoje o Núcleo caminha mais no sentido disso, de tornar independente do boletim de ocorrência, e respeitar muito a autonomia da vítima. Então nessa questão da representação, até o que eu ia te falar, a 179

minha tese de láurea foi sobre isso. Luisa - Sério? Yasmin - É, depois eu até posso te passar. Mas não é grande coisa. Luisa - Não, eu quero ler sim. Yasmin- Mas na minha tese de láurea foi um pouquinho antes da decisão da ADI, 4424 né? Luisa - Isso, de 2012. Yasmin – De 2012. Eu me formei em 2011, e em 9 de fevereiro de 2012 foi a decisão, que é o dia do meu aniversário. E eu lembro que nessa… Vou fazer várias digressões aqui. Luisa - Não, conta tudo. Yasmin – Mas, na minha tese, eu defendia muito que tinha que ser ação penal incondicionada. E muito na lógica, eu acho, que de como a Lei Maria da Penha foi pensada, e dentro do acúmulo do movimento de mulheres, que vieram muito numa lógica de combate a uma violência de gênero e com uma análise que essa violência de gênero tá imbricada no sistema patriarcal. E dentro dessa lógica, o reconhecimento do Estado de que essa violência doméstica é uma violação de Direitos Humanos é muito forte, então, e liga-se esse reconhecimento a uma medida penal, mesmo que não seja o objetivo primeiro da Lei. Eu não acho que o objetivo primeiro da lei é a punição, é a prevenção, é a proteção da mulher. Mas liga muito isso, né, reconhecimento de que a violência doméstica não tem que ficar em quatro paredes, que têm que se meter a colher, com o reconhecimento de que o Estado tem que processar criminalmente os autores da violência. Mas acho que hoje, depois de 10 anos da Lei Maria da Penha, a gente vê que as mulheres, elas criam diversas formas e seus caminhos pra enfrentar a violência e romper os ciclos e, que impor um único caminho, talvez, não seja o correto. Então por isso que a gente vem trabalhando nisso de que a medida protetiva tem que ficar à disposição da mulher, e à disposição da 180

mulher mesmo daquela que não quer o boletim de ocorrência, que não quer o processar criminalmente. E por isso também, não sei se você viu recentemente a gente tá com uma briga, não uma briga né, mas ta fazendo uma disputa pelo acolhimento sem boletim de ocorrência. Luisa - Eu vi. Yasmin - Então, eu acho que a gente vem depois desses dez anos, acho que essas mulheres tem atendido, eu acho que faz parte de um processo histórico, acho que precisou talvez ter esse empenho pra reconhecer que violência doméstica acho que é um crime, pra conseguir às vezes ter uma análise mais afastada do problema assim, não tão apaixonada. Porque é isso, eu acho a gente vem de um processo de que tem que sair da impunidade, de que se deixa impune os crimes e tudo mais. E agora acho que a gente entende que é isso, o fato de ser crime e ter uma punição criminal não significa necessariamente que a mulher tá sendo ouvida, que a mulher tá sendo acolhida, que a mulher tá sendo protegida, e que as duas coisas elas podem se ligar, como também podem não se ligar. Então é isso. Se antes na minha tese de láurea eu defendia que devia ser pública incondicionada. Eu acho que sim, eu concordo com a ADI que em caso de lesão corporal tem que ser mesmo incondicionada. Mas a gente não tem muita solução ainda, porque não tem um posicionamento do Núcleo fechado. E o que eu acho, é que as defensoras que tão no Juizado de Violência

Doméstica

enfrentam

arquivamento

de

alguns

casos,

principalmente, caso de ameaça, caso de calúnia, caso de injúria ainda é ação penal privada. Então tem a complicação de que é isso você tem que procurar em seis meses pra Defensoria entrar com uma ação penal privada. Enfim, o que eu acho, assim, são duas questões que são complicadas, porque era até o que eu ia te mostrar também. No site da Defensoria do Estado aparece por mês quanto que foram as ocorrências. E se você for ver, a ameaça, que é condicionada a ação, é o maior número. Mas geralmente ameaça vem combinado com lesão corporal, então acaba sendo, depois da decisão do Supremo incondicionada. Mas o que eu quero dizer com isso é, o desafio é: respeitar a autonomia da mulher tem com isso não dar resposta

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aos casos de violência que hoje são condicionados à representação. Porque acho que o grande dilema é: se você condiciona a representação a ideia é que o Estado não vai dar resposta a essa mulher,então pra responder a essa falha do Estado, a gente acaba tornando incondicionada. Mas é isso, será que essa é a resposta? Acho que esse é o questionamento. Enfim, vai falando que eu vou pensando mais sobre isso aqui. Luisa - Muito legal! Pelo o que eu entendi, a representação pra você ser incondicionada foi importante em um momento, e aí eu queria entender um pouco melhor assim...Eu achei muito legal sua fala. Mas daí você falou que no caso de lesão corporal, você acha que tem que ser incondicionada. Você podia me explicar melhor os motivos, por que você acha isso? Qual você acha que é a vantagem principal pra ser? Yasmin - Então, eu acho que a vantagem principal é que os casos chegam ao judiciário. Acho que essa é a grande dificuldade, quando você torna condicionada à representação infelizmente as delegacias não fazem o papel de esclarecimento, os centros de atendimento à mulher que hoje são portas muito importantes, que a Defensoria tem até discutido se não devem ser tão importantes quanto as delegacias, porque existe um enfoque muito grande nas DDMs, e a gente vê que sim tem que fazer um trabalho de capacitação das DDMs, mas tem que pensar se se deve dar todo esse peso as DDMs e não aos Centros de Defesa da Mulher que tem uma equipe de assistente social, psicólogo, de advogado de forma mais ampla. Então eu acho assim, o ideal seria, do meu ponto de vista, que tivesse todo esse trabalho de fortalecimento da mulher pra que caso ela escolhesse pela opção pela via do processo criminal ela soubesse o que é a representação, tivesse esse esclarecimento e optasse por isso. E aqui eu acho interessante colocar que não é um respeito à autonomia da parte da mulher do ponto de vista liberal assim, tipo vamos respeitar porque é um indivíduo tem livre arbítrio, acho que não é isso. Acho que é pensar também o que a representação, o que a ação pública incondicionada, quais os efeitos de você deixar todo os crimes de violência doméstica como ação pública incondicionada tem sobre a vida daquela mulher. Se tá tendo realmente um

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efeito positivo. Porque às vezes você vai ta colocando aquela mulher numa situação que naquele momento ela não consegue enfrentar, e que não vai ter ninguém pra ajudar ela né, se você não fizer esse papel de fortalecimento. E também, essa é uma questão, porque eu to misturando. Mas acho que a vantagem de ser incondicionada é isso: é você trazer à tona, muitos casos não chegam ao judiciário quando é condicionada à representação. Porque eu estudei lá na minha tese antes da decisão do Supremo, então, eu participei muito daquelas audiências do artigo 16 da Lei Maria da Penha que eram feitas tipo lá na Barra Funda. E eram feitas assim em massa, então, chamava tipo 70 mulheres, reunia-se 70 mulheres meio que tentavam a convencer elas a continuar o processo. E aí tipo tinha uma palestra, uma palestra sobre o que era violência, tinha uma palestra também, ia aquele, uma das vezes que eu fui, ia um cara que falava sobre masculinidade, aquele Sérgio Barbosa que tem um trabalho de educação pra homens autores de violência, e ai depois era uma audiência batidão: quer continuar, não quer continuar? e aí ia, entendeu? Pelo menos a que eu fui, eram juizas de cada lado, duas defensoras, e iam chamando as mulheres e, muitas vezes, as mulheres desistiam. Por quê? E ai eu entrevistei, eu acho que cinco mulheres, e elas desistiam porque elas falavam assim ah a medida protetiva já deu conta, tipo o cara já foi embora. Enfim, e elas não queriam continuar com o processo criminal. Aí a gente entre a outra questão, que é a função da pena?

Que é muito da

criminologia. Aí muitas feministas vão falar assim ah mas você não deu nenhuma resposta pra aquele sujeito autor da violência. Porque é isso, as mulheres muitas vezes desistem do processo criminal, porque já tiveram uma solução, algumas são pressionadas também, então teria que fazer essa análise por quais motivos as mulheres estão desistindo, e se elas tão tendo uma decisão livre sobre isso, e muitas vezes elas não tão tendo. É isso, é muito complicado. A vantagem eu diria que é essa: você poder ter essa certeza de que o caso vai continuar na justiça e também ter a possibilidade de uma denúncia por terceiro, porque quando é incondicionada um terceiro pode denunciar. Mas a desvantagem é esse questionamento que eu tenho: será que de fato, você criar meio que essa obrigação do processo criminal,

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você vai estar fortalecendo essa mulher? Enfim, é esse o desafio que a gente tem. Luisa - E sobre isso que você tava falando agora, que eu achei muito legal, da autonomia da mulher não do ponto de vista liberal né. Você podia me explicar um pouco melhor essa ideia? E por exemplo, é obvio que você conhece a ADI, tem muitos Ministros que falam sobre a autonomia da vontade da mulher ser viciada, e que estaria num momento em que ela não poderia escolher, e por isso o Estado teria que protegê-la. Enquanto Defensora, o que você pensa sobre isso? Yasmin- Eu acho que, primeiro né, a ADI é uma opção política que foi muito na linha do que os movimentos feministas defendem. A maioria dos movimentos feministas defendem, é isso, que é muito complicado falar em autonomia da mulher em situação de violência doméstica, eu também concordo. E eu acho que não pode ser, é isso, uma autonomia no sentido abstrato, no sentido idealista, que é muito liberal mesmo, que é a discussão que às vezes chega nos casos de prostituição né, tipo é isso: a mulher tem autonomia do corpo e no limite pode vender seu corpo, mas em que condições é isso? Quando eu falo aqui em autonomia da vontade da mulher é com muito cuidado de dar condições materiais pra mulher poder escolher, e ter compreensão do que ela ta escolhendo né. E fazer esse trabalho conjunto, eu acho que a ideia da Lei Maria da Penha até quando ela trás a ideia do Juizado de Violência Doméstica ter caráter híbrido é muito no sentido da justiça se adequar ao tempo da mulher e não o contrário. Porque o que a gente vê sempre na justiça é isso: os jurisdicionados, as pessoas que socorrem da justiça tem que se adaptar a uma série de caixinhas e exigências que o judiciário faz, então, violência doméstica é a mesma coisa, tem que ter testemunha, se não tiver testemunha então tem que tirar uma foto, enfim, e por isso que é tão difícil caracterizar a violência psicológica né que a Lei Maria da Penha trás. Então quando eu falo em autonomia da mulher, eu falo mais nesse sentido: de um trabalho de fortalecimento pra que a mulher possa demandar a justiça no seu tempo, na sua vontade, e de acordo com as suas condições. Mas é complicado, porque a gente sabe que

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do outro lado vão ter outras pressões, a gente sabe que o sistema de justiça não funciona assim, que na verdade, é, eu acho é isso que na verdade a opção política por ser ação pública incondicionada é uma opção diante do Estado que a gente tem, que é um Estado que não dá esse fortalecimento. E aí, só pra voltar, hoje tem um Projeto de Lei que é esse Projeto de Lei que tá no Senado que é 290 de 2010, que é pra tornar todos os crimes ligados à violência doméstica incondicionados. E é isso, ainda não tenho uma resposta, não sei. Mas.. E aí fazendo o paralelo né.. Por que eu acho que a ADI foi correta e por que eu acho arriscado tornar tudo incondicionada, porque ainda tem alguns que são incondicionados que é tipo casos de ameaça e tudo mais. Luisa - E ai, assim, pensando nessa Lei, nessa Proposta de Lei na verdade, eu sei que ainda não tem uma resposta, mas você acha que a Lei Maria da Penha e a forma como ela foi interpretada pelo Supremo, você acha que ela já dá uma resposta adequada, no sentido de que ela dá um tratamento adequado pra questão da representação, ou não? Yasmin - É eu acho que eu teria que… Agora eu não lembro se nos fundamentos pra construção da lei maria da penha, o por que optaram por deixar representação né? Eu não lembro. Talvez valeria a pena conversar com alguém que tava na construção da Lei, que eu realmente eu não lembro disso. Mas assim, me parece que a Lei Maria da Penha fez uma opção pela representação, ta escrito isso né? E por isso que deu toda essa discussão, e tudo mais. E acho que também, pensando esse processo histórico de reconhecimento pelo Estado de que é um crime grave, que tem que ser investigado, que tem que ter toda uma apuração, faz sentido ser incondicionada e também faz muito sentido dentro do processo histórico que antecedeu né, que foi da Lei 9.099, que é isso, não se fazia nenhuma investigação, não se colhia provas, não tinha esse papel de acolhimento da mulher, se resolvia tudo na base de cesta básica, tinha tipo uma advertência pra ele. Eu acho que o receio maior era esse né, de você acabar tornando a representação o que se fazia com a 9.099. Hoje o que a gente tem visto, é que é isso, muitos casos de violência doméstica não vão pro

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Juizado de Violência Doméstica, vão pras varas de família e acabando caindo nas conciliações. Então é isso, também não adianta forçar as mulheres, acho que elas dão as próprias respostas delas. Elas às vezes vão acabar não procurando o Juizado, vão procurar outros meios, então, talvez a questão que seja mais de criar esse fortalecimento, ambientes onde as mulheres possam escolher e fortalecer, do que propriamente tornar obrigatório o processo criminal. Mas acho que é isso, acho que a ADI de certa forma quando fala da lesão corporal leve ela já tornou obrigatório muitos casos, tipo, enfim, ela quase. Mas mesmo pensando tudo isso, eu ainda acho que foi correta a ADI, que tem que ser isso mesmo, porque senão muitas mulheres acabariam não seguindo o processo criminal. E o processo criminal, é isso, embora eu pense que a condenação nos casos de violência doméstica não vão alterar ali, não vão fazer com que o agressor não cometa mais atos, mas tem uma função simbólica, uma função pedagógica em alguns casos, mas é difícil mensurar isso ainda. É isso Luisa, eu tenho dúvidas, você vê que é meio bagunçado, mas eu tenho dúvidas, eu na minha opinião meio que deixaria como tá, nem ia estender pros casos de ameaça, embora seja um risco não estender pros casos de ameaça, porque a gente vê que foi o que eu te mostrei grandes partes do que é noticiado são casos de ameaça, e a gente enfrenta uma dificuldade muito grande do reconhecimento da violência psicológica, da violência moral como uma violência reconhecida, e uma violência que o judiciário acolhe, mesmo nos casos não criminais, então por exemplo, quando a gente pede suspensão de visitas com base numa violência psicológica, às vezes o juiz não dá uma medida protetiva, então.. Mas é isso, a gente teria que estudar pra ver se a relação de não reconhecimento de violência psicológica ta ligada com a ação penal ser incondicionada ou não, talvez não esteja, talvez seja mais a questão de, que se liga mais tipo a algo mais grave que violência física e não com a violência psicológica. Luisa - Mas a ideia por trás disso, da incondicionada, é garantir que esses casos de ameaça e violência psicológica comecem a ser reconhecidos? Yasmin - Acho que tá pro trás isso. Mas é isso também a gente vê que

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geralmente os boletins de ocorrência vem ameaça e lesão corporal. Mas e as mulheres, outra coisa que aparece muito, é que a lesão corporal vem como lesão corporal leve que incapacita pro trabalho, não cumpre aqueles requisitos do Código Penal, só que é isso é uma convenção do Código, em que medida aquilo não é grave pra elas? Então é isso, pra mim faz muito sentido manter da forma como tá, de fato ser incondicionada pros casos de lesão corporal leve, talvez não mexer nos outros, porque a gente ta numa fase talvez de sentir um pouco como que isso vai trabalhar na vida das mulheres né. Mas é dificil, é dificil, porque tem os casos de injúria..E também não adianta muito tornar tudo incondicionada, porque daí os juizes arquivam, aplicam as vezes prescrição virtual pra tipo absolver, então é isso também. Pra discutir isso tem que discutir muito função da pena nos casos de violência doméstica. Qual a função da pena? O que se pretende com isso? É pra não gerar impunidade, mas será que a gente tá conseguindo isso? Será que a condenação do autor da violência ta ajudando? Não sei. Tem toda a discussão que a gente ta vendo é que houve um aumento, acho que mais da metade do caso do homicídio de mulheres negras, então que medida ta funcionando a lei pras mulheres negras? É uma questão da lei ou de como ela está sendo aplicada? Eu acho que é isso, esse tema é muito importante pra se pensar política criminal pras mulheres em situação de violência doméstica, né enfim. É muito isso. Eu não tenho uma resposta Luisa. Quando você me chamou eu falei eu vou reler a minha tese, nem deu tempo de reler. Porque é isso, na minha tese eu defendo muito que tem que ser incondicionada. Mas quando eu vejo esse Projeto de Lei pra tornar tudo incondicionada, eu penso que não, melhor deixar como é que tá. Mas é um risco mesmo. É um risco, porque a gente vê que muitos casos às vezes não seguem pra frente, porque as mulheres não continuam. E em que medida as mulheres não continuarem é uma forma delas dizerem assim: aí tipo faz pra mim, se você continuar tudo bem, mas se depender de mim, talvez o risco que tá sobre mim não permita que eu continue né. Acho que tem que olhar tudo isso. Mas é muito dificil. Que mais? Luisa - É, eu acho que assim, a gente conversou sobre várias perguntas que eu coloquei. Foi ótimo! Meio que abarcou bastante coisa. Talvez, uma 187

pergunta sobre a rede. Você acha que a rede ela tem um posicionamento muito diferente sobre essa questão? Yasmin- Ah, eu acho que eu posso te passar alguns contatos, o contato de dois e-mails de pessoas que trabalham lá na rede leste. Acho que você tem que conversar com a Thaís que atua no JVD, que tem uma vivência mais prática, mais importante. Mas o que eu acho, que pelo menos a rede leste, com quem eu tinha mais contato, que eu trabalhava em Itaquera, ela tem uma visão de respeito muito grande a opinião das mulheres e a autonomia no sentido, disso, não abstrata, mas entender os conflitos que aquela mulher tá passando ali na realidade que ela se encontra e em que medida o judiciário pode ser um apoio, ou não pra ela romper com aquela violência. Então quem trás essa reflexão sobre a autonomia é a própria rede, pelo menos pra minha vivência é isso. Elas que discutiram a existência da não exigência do Boletim de Ocorrência, não exigência do Boletim pro acolhimento. Então eu acho que a rede vai muito num sentido de respeito, porque é ali, tá vivenciando todos os dias as dificuldades que as mulheres têm e, muitas vezes, pra se sentir protegidas por meio do processo criminal, e tem casos às vezes, é isso né, a mulher as vezes faz uma denúncia, mas depois não quer continuar e o Ministério Público fica brava com a mulher, porque não quer continuar, porque conta outra versão, e aí ameaça ela de que vai fazer uma denúncia sobre crime de denunciação caluniosa, então as próprias mulheres viram rés. Tem uma autora que me ajudou na minha pesquisa, não sei se você conhece que chama Elena Laurrauri. Luisa- Não, não sei. Yasmin- É da criminologia. Lá ela estudou, ela é espanhol, e na lei da Espanha parece que, pelo que eu meu recordo, já era incondicionada todos os casos. E ela é contra, a Elena Larrauri, porque ela vê casos de condução coercitiva da mulher vítima pra fazer a denúncia, então, em que medida isso é bom, arrastar a mulher? Então é um pouco disso, tem essa sensibilidade,

talvez

algo

intermediário

entre

você

tornar

tudo

incondicionada e meio que você deixar tudo nas costas da mulher. É isso, a 188

gente não quer deixar nas costas da mulher, sair com aquilo, mas ao mesmo tempo, tipo força-la a seguir ou fazer um depoimento que ela também não quer, talvez a gente não esteja servindo pra fortalecer, então talvez ter um intermediário, saber quando respeitar, saber casos de alternativas criativas né. Mas é isso, acho que tem que falar com a rede. Mas pelo que eu sei elas vão mais nesse sentido da autonomia. Luisa - E mesmo, por exemplo, assitência social, abrigos? É uma duvida que eu tive: vou perguntar sobre representação pra alguém que não é do direito. Yasmin - Olha, eu acho que é meio a meio. Eu acho que existem profissionais

da

rede

com

essa

visão

mais

autonomia,

e

existem

profissionais da rede que, principalmente de mulheres que tão no atendimento há mais tempo que vão focar mais nessa questão do processo criminal. Por quê? Porque vincula-se o processo criminal com uma forma de garantia processual pros profissionais da rede, que é o debate do boletim de ocorrência. Com o boletim de ocorrência, com um processo criminal, os abrigos tão assegurados de que, por exemplo o pai não vai falar ''ah vocês estão sequestrando meu filho'', eles estão assegurados de que existe procedimento jurídico é de que aquela mulher sofreu violência. Então, eu acho que deve ser meio a meio. E é isso, é um debate muito complicado. O processo criminal, em alguma medida, é proteção pras mulheres, então também tem que fazer esse debate né… Tudo bem vai se respeitar, mas aí não tem processo nenhum, vão falar você não fez denúncia, então, é complicado. Então, eu acho que vai ser meio a meio, não acho que vá ser consensual. Acho que não é consenso nem dentro do Núcleo, né. Eu quis trazer mais questões pra problematizar, porque é um desafio mesmo. E eu acho que pra quem não é do direito, tem muito medo das consequências de tomar uma decisão na vida da mulher sem o respaldo de direito, é isso que a gente presencia, entendeu? Eu acho que tá muito distante de desvincular o processo criminal, porque toda a estrutura de combate a violência doméstica ta calcada nas delegacias, nos procedimentos criminais, e eu acho que tem que ser mesmo, mas também é isso, um olhar um pouco

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mais inclusivo aí das dificuldades que as mulheres enfrentam pra acessar o sistema de justiça né. E não só o sistma de justiça funciona assim, você tem que se adequar assim, se não se adequar, acabou. Eu acho que é um pouco isso. Luisa - Legal! E ai você podia me indicar as pessoas? Yasmin- Pera ai vou pegar aqui. (Yasmin anotou os contatos em um papel). Fim do áudio.

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