Fitoterápicos: uma abordagem farmacotécnica

June 4, 2017 | Autor: Marilis Miguel | Categoria: Revista
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Revista Lecta, Bragança Paulista, v. 21, n. 1/2, p. 7-13, jan./dez. 2003

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Fitoterápicos: uma abordagem farmacotécnica Ana Cristina Oltramari Toledo 1 Lilian Lúcio Hirata1 Marilene da Cruz M. Buffon 2, 3 Marilis Dallarmi Miguel 4 Obdulio Gomes Miguel 4 Resumo: O artigo, de cunho informativo e crítico, propõe uma perspectiva do desenvolvimento de fitoterápicos sob a ótica da interdisciplinaridade, que envolve as inúmeras especificidades das diversas áreas que compõem o referido tema. Enumera-se a pesquisa de acordo com a antropologia botânica, a botânica, a agronomia, a fitoquímica, a farmacologia, a toxicologia, os aspectos de desenvolvimento e de estudo clínico do fitoterápico. Nesta perspectiva discute-se o fitoterápico inserido em uma proposta de construção de monografias nacionais de modo a contribuir com a indústria, com os centros estaduais, municipais de produção e distribuição de medicamentos, proporcionando dentre as opções da terapêutica um medicamento ético, seguro e eficiente. Palavras-chave: Fitoterápico; Plantas medicinais; Desenvolvimento.

Herbal medicines: Pharmacotechnique approach Abstract: The article, informative and critical in nature, proposes an overview on the development of herbal medicines from an interdisciplinary standpoint, involving the countless specifics of the various areas pertaining to the above-mentioned theme. The research work is described in accordance with Botanical Anthropology, Botany, Agronomy, Phytochemistry, Farmacology, Toxicology, and the aspects of development and clinical assessment of herbal medicines. In this perspective, herbal medicines are discussed within a proposition of creating national monographs to contribute with the industry and state and municipal centers of production and distribution of medicines, providing an ethical, safe and effective medicine among the therapeutic options. Keywords: Herbal medicine; Medicinal plants; Development.

A fitoterapia na prática da saúde pública A saúde, entendida como direito do cidadão e dever do Estado, leva todos os profissionais da área de saúde a refletir sobre as ações e ferramentas que possam ser usadas com vistas à promoção e manutenção da saúde primária e, conseqüentemente, uma melhor qualidade de vida. Ainda, considera-se que cada vez mais têm-se voltado os olhos à busca das plantas medicinais e/ou seus derivados como agentes terapêuticos naturais. O estímulo ao uso destes fitoterápicos tem como objetivo: prevenir, curar ou minimizar os sintomas das doenças, com um custo mais acessível à população e aos serviços públicos de saúde, comparativamente àqueles obtidos por síntese química, que são, em geral, mais caros, devido às patentes tecnológicas envolvidas. 1 Mestrandas

Estes produtos naturais podem ser tão eficientes quanto os produzidos pela síntese química, contudo a transformação de uma planta em um medicamento deve visar à preservação da integridade química e farmacológica do vegetal, garantindo a constância de sua ação biológica e a sua segurança de utilização, além de valorizar seu potencial terapêutico. Para atingir esses objetivos, a produção de fitoterápicos requer, necessariamente, estudos prévios relativos a aspectos botânicos, agronômicos, fitoquímicos, farmacológicos, toxicológicos, de desenvolvimento de metodologias analíticas e tecnológicas (Miguel e Miguel, 1999). Busca-se aliar o conhecimento científico à aplicação destes no desenvolvimento de fitopreparados. Entretanto, tem-se que perpassar inúmeros limites, os quais permeiam a produção do fitoterápico enquanto

do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade Federal do Paraná. assistente do Depto. de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Paraná. 3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Produção Vegetal da Universidade Federal do Paraná 4 Professores adjuntos do Depto. de Farmácia da Universidade Federal do Paraná – Curso de Farmácia/UFPR R. Lothário Meissner no 3.400 – Curitiba-PR E-mail: [email protected] 2 Professora

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medicamento. Para que se viabilize a inserção da fitoterapia nos pequenos centros de produção, bem como nas farmácias de manipulação, deve haver investimentos na elaboração de documentos oficiais para tal fim. Um grande fator limitante é que a maioria das plantas em uso não se encontra descrita em códigos oficiais (formulários e farmacopéias), não havendo inclusive estudos sobre as mesmas. Pode-se citar que dentre as inúmeras espécies de plantas, apenas 324 estão descritas na Farmacopéia Alemã, 60 na Cooperativa Européia Científica de Fitoterapia, 13 na Farmacopéia Americana, 60 na Organização Mundial da Saúde e 34 na Farmacopéia Brasileira (Evans, 2002; United States Pharmacopeia – USP XXIV, 2000). Deve-se destacar ainda, que o desenvolvimento de um novo medicamento envolve um processo complexo de alto custo, onde se requer investimentos em torno de 100-360 milhões dólares em um período de 10-12 anos para que um fármaco seja desenvolvido. (Yunes, 2001) A legislação em vigor, ainda incipiente, visa regulamentar e oficializar o desenvolvimento e o uso de fitoterápicos, de modo a contrapor a expressão que comumente se ouve tanto dos usuários quanto dos profissionais da saúde que, no momento da prescrição e dispensação, referem “...o que é natural não possui efeitos colaterais...”. Tal afirmação é enganosa e remete a inúmeros riscos à saúde da população. Diversos autores têm demonstrado que as plantas medicinais possuem efeitos indesejáveis e muitas vezes tóxicos (Brasil, 1996; Brasil, 2000) e consideram-se ainda as Resoluções da Anvisa, que regulamentam a coleta, o estudo farmacológico e toxicológico de drogas, incluindo a Resolução que regulamenta o registro dos fitoterápicos (Brasil, 2000). Também a polêmica lei de patentes (Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996), onde infelizmente as comunidades nativas possuem seu conhecimento explorado e discutido, mas não possuem direito ao lucro obtido dele. A menos que providenciem o registro em cartório da planta e do seu uso pela própria comunidade, para que esta, mesmo que indiretamente, possa ser beneficiada pelos resultados obtidos a partir da exploração de seu conhecimento. Por outro lado, somam-se a estas limitações o grande número de pesquisas desvinculadas umas das outras, onde as especialidades se sobrepõem às reais necessidades da Fitoterapia enquanto medicina tradicional aplicada. Constatam-se inúmeras plantas cujos estudos fitoquímicos e farmacológicos são potencialmente satisfatórios, contudo a espécie em questão não possui sequer pesquisas agronômicas e ecológicas que se preocupam com reprodução do vegetal ou sequer o extrativismo sustentável. Nesta perspectiva, investir nos códigos oficiais cuja finalidade é a construção de monografias que privilegiem desde o cultivo, perpassando pelo

manejo adequado, até chegar à determinação de doses clínicas poderá representar a saída para a indústria nacional e para os centros de produção institucionais, como aqueles programas mantidos por governos, prefeituras e demais organizações; além de atender às necessidades básicas em saúde, podem gerar trabalho no campo e nos centros industriais. Atualmente existem muitas pesquisas com inúmeras espécies vegetais, as quais são objeto de estudos nos programas de pós-graduação em todo o país. Das espécies Phyllanthus sellowianus e Phyllantus fraternus foram isolados e identificados inúmeros compostos de natureza química diferente, incluindo alguns taninos, esteróides e flavonóides com potente ação analgésica em diferentes modelos de dor de origem neurogênica e inflamatória em camundongos (Cechinel Filho, V. et al., 1998; Miguel, O. G. et al., 1994; Miguel, O. G. et al., 1995; Trentin, A. P. et al., 1997). Por outro lado, a indústria nacional de fitoterápicos possui inúmeras drogas comercializadas ao longo de décadas com base somente no uso popular, sendo atualmente alvo de interesse da indústria. Remete esforços na busca e isolamento de marcadores e estudos farmacológicos, pré-clínicos e clínicos, como o caso do xarope de guaco (Mikania glomerata), xarope de agrião (Nasturtium officinale) e tintura de agoniada Plumeria lancifolia, entre inúmeros outros, cujo uso pela população pode ser considerado quase secular (Miguel, O. G. et al., 1992). As interfaces da fitoterapia O desenvolvimento de fitoterápicos inclui várias etapas e envolve um processo interdisciplinar, multidisciplinar e interinstitucional. As áreas de conhecimento envolvidas vão desde a antropologia botânica, botânica, agronomia, ecologia, química, fitoquímica, farmacologia, toxicologia, biotecnologia, química orgânica até a tecnologia farmacêutica. A pesquisa tem início pelo levantamento em literatura científica e catálogos internacionais nas áreas específicas do referido conhecimento, seguindo em paralelo a pesquisa etnobotânica, a qual trata da observação do uso popular de plantas nas diferentes culturas (Camargo, 1999). Pode-se também selecionar uma planta por meio de pesquisa quimiotaxonômica (onde o aspecto morfológico pode revelar a presença de determinados grupos químicos que tenham atividade farmacológica). Seqüencialmente, coleta-se um espécime da planta, prepara-se uma exsicata e faz-se a identificação botânica e o registro em um museu ou herbário. (Di Stasi, 1996; Miguel & Miguel, 1999; Simões et al., 2001). A seguir remete-se o vegetal aos estudos botânicos, que têm como objetivo a identificação Revista Lecta, Bragança Paulista, v. 21, n. 1/2, p. 7-13, jan./dez. 2003

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inequívoca de uma espécie vegetal, por meio da análise de características anatômicas, procurando destacar aquelas consideradas peculiares de uma determinada espécie e que, em última instância, estejam presentes na matéria-prima vegetal. Da mesma forma, é importante o estabelecimento de características botânicas comparativas que permitam detectar, no controle de qualidade, a presença de uma ou mais espécies adulterantes. Quanto ao encaminhamento aos estudos agronômicos; objetiva-se à produção abundante e homogênea de matéria-prima, preservando, ao mesmo tempo, a espécie e a biodiversidade. Os principais aspectos a serem investigados visam à otimização da produção de biomassa e de constituintes ativos, por meio de estudos edafo-climáticos, de micropropagação, inter-relações ecológicas, densidade de plantio, de melhoramento genético da espécie, além dos aspectos sanitários de manejo e beneficiamento da espécie (Dallacosta & Miguel, 2001; Schefer, 1992). Os estudos fitoquímicos compreendem as etapas de isolamento, elucidação estrutural e identificação dos constituintes mais importantes do vegetal, principalmente de substâncias originárias do metabolismo secundário, responsáveis, ou não, pela ação biológica. Esses conhecimentos permitem identificar a espécie vegetal, conjuntamente com ensaios de atividade biológica, analisar e caracterizar frações ou substâncias bioativas. Ressalta-se ainda a importância para o desenvolvimento de fitoterápicos do estabelecimento de marcadores químicos, que são indispensáveis para o planejamento e monitoramento das ações de transformação tecnológicas aliado a estudos de estabilidade dos produtos intermediário e final. Para isso, o conhecimento da estrutura química tem especial relevância no caso de substâncias facilmente degradáveis por fatores tais como luz, calor e solventes, atrelados ao processo tecnológico. A avaliação da atividade biológica inclui a investigação da atividade farmacológica e toxicológica das substâncias isoladas, de frações obtidas ou extratos totais da droga vegetal. A necessidade de constatar e verificar a atividade biológica de uma planta e dos produtos derivados pode ser abordada sob dois pontos de vista. O primeiro, é investigar uma seqüência de aspectos, iniciando pela seleção das ações farmacológicas atribuídas à planta. Seleciona-se a atividade farmacológica específica a ser explorada, identificando-se o farmacógeno, e quais respectivas substâncias podem apresentar a atividade farmacológica propriamente dita. Seqüencialmente identifica-se a concentração e potência da substância ativa em questão, buscando inclusive a presença ou não de substâncias tóxicas na fração de interesse. O segundo diz respeito ao estabelecimento de estratégias de desenvolvimento tecnológico, no qual a sua validação exige a conservação da composição Revista Lecta, Bragança Paulista, v. 21, n. 1/2, p. 7-13, jan./dez. 2003

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química e, sobretudo, da atividade farmacológica a ser explorada. O conhecimento dos aspectos de atividade biológica do vegetal é requisito essencial para a transformação da planta medicinal no produto fitoterápico, havendo também interesse em estudos de desenvolvimento de metodologias analíticas. Esses métodos permitem a avaliação da qualidade do produto fitoterápico, promovem a garantia da constância da ação terapêutica, a segurança de utilização, sendo a eles atribuídas funções diferenciadas. Nesta ótica destaca-se a avaliação do teor de substância ou grupo de substâncias ativas e do perfil qualitativo dos constituintes químicos de interesse, presentes na matéria-prima vegetal, produtos intermediários e produto final; por meio de métodos espectrofotométricos, cromatográficos, físicos, físicoquímicos ou químicos, devendo possuir especificidade, exatidão, precisão e tempo de rotina analítica, viabilizando-se que o mesmo possa ser utilizado em estudos de estabilidade, permitindo, inclusive, a detecção de produtos oriundos da degradação das substâncias ativas ou dos marcadores químicos. Inclui-se a avaliação das características físicas e físico-químicas dos produtos tecnologicamente transformados, em razão de que estas características podem interferir sobre o perfil biofarmacêutico do produto fitoterápico. Além disso, a utilização de métodos analíticos visando à quantificação de substâncias ativas ou de referência bem como de aspectos relativos à forma farmacêutica são essenciais para a obtenção da homogeneidade dos lotes de produção. Produção e controle de qualidade de fitoterápicos A produção de fitoterápicos pressupõe que estudos de desenvolvimento tenham sido realizados anteriormente, estando os procedimentos e etapas de processamento devidamente estabelecidos. Cumprindo esse quesito, a obtenção de produtos fitoterápicos, quer seja em escala oficinal, hospitalar ou industrial, requer conhecimentos e habilidades específicas dos três pontos do ciclo de produção de medicamentos. Tais conhecimentos e habilidades devem relacionar-se, objetivando a produção de produtos farmacêuticos adequados, de acordo com os conceitos atuais de qualidade, que são o nível de satisfação do produtor e usuário do medicamento e o cumprimento de requisitos pré-fixados que conduzam à sua total adequabilidade ao fim a que se destinam. Portanto, o conhecimento do que se pretende fazer deve ser aliado às normas que permitam alcançar o objetivo traçado, para alcançar a qualidade total. O insumo é o conjunto de bens e serviços que permite, por meio das ações de transformação, a

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obtenção do medicamento. É indispensável que o produtor conheça profundamente as matérias-primas empregadas a fim de estabelecer, para cada uma delas, uma monografia completa, que vai servir como documento básico para o estabelecimento da ficha de especificações para aquisição, dos protocolos de controle de qualidade, das instruções para suas transformações, entre outras. De acordo com o tipo de matéria-prima, deverão ser deliniados os controles de qualidade e tomados os cuidados de conservação e manipulação. O conhecimento dos adjuvantes empregados deverá abranger, em primeiro lugar, as especificações adequadas de conservação e manipulação. A especificação correta do material de embalagem primária pressupõe, por sua vez, o completo domínio do material a ser acondicionado e da composição dos continentes. A sua reatividade, representada pela capacidade de absorver substâncias, de ser permeável a gases ou vapores no sentido do ambiente ou do interior da embalagem ou de ceder componentes para o produto, pode comprometer a qualidade do produto final. As técnicas de produção e de controle de qualidade devem ser precedidas de parâmetros para que as operações ocorram sob completo domínio. A área física da empresa, atendendo à escala de produção, objetiva a adequação de cada área ao tipo de ação que será desenvolvida. Na produção de produtos fitoterápicos, grande atenção deve ser dada no planejamento das áreas à preservação da qualidade físico-química e microbiológica, quer da matéria-prima ativa, quer dos produtos intermediários e final. A validação dos equipamentos, aqui entendida como o conjunto das ações que procuram verificar o correto funcionamento dos mesmos, e a manutenção preventiva complementam as atitudes necessárias de conformidade às boas práticas de produção. Nesta perspectiva se estabelece a montagem do Procedimento Operacional Padrão (POP), o qual deve fixar os parâmetros de operação a serem mantidos e determinar as técnicas de controle de qualidade a serem executadas. A obtenção de formas farmacêuticas derivadas de matéria-prima vegetal necessita de um planejamento inicial, com a finalidade de planejar o manejo da matéria-prima vegetal e demais adjuvantes de acordo com as especificações dos mesmos, além da determinação seqüencial das ações de transformação e monitoramento dos pontos e metodologias de controle mais apropriados. Normalmente o produto intermediário que inicia o processamento da forma farmacêutica classificase como preparação complexa, trata-se de um produto

oriundo da transformação da planta ou do farmacógeno. Dependendo da disponibilidade de mercado, a matéria-prima pode ser um extrato ou produto derivado, contendo adjuvantes farmacêuticos ou não. Este requer uma série de operações de transformação. A transformação do material vegetal para um produto tecnicamente elaborado, que pode ser intermediário ou acabado, implica a utilização de operações de transformação tecnológica. A complexidade do processo e o número de operações envolvidas estão determinados pelo grau de transformação tecnológica requerido, que pode ser mínimo, como é o caso de pós e drogas rasuradas destinados à preparação de chás; ou bem maior, quando o objetivo é obter frações purificadas ou fórmulas sólidas revestidas. Para cada uma das etapas do processo tecnológico, a escolha de uma operação específica é determinada pelas características físicas e físico-químicas do produto a ser obtido, pela natureza da matéria-prima a ser transformada e pelo volume de produção exigido. A garantia de qualidade do material vegetal a ser processado é fundamental na preparação de fitoterápicos, devendo considerar-se aspectos botânicos, químicos, farmacológicos e de pureza. Por esse motivo, além do teor de substância ativa e intensidade das atividades farmacológica e toxicológica, outros aspectos de qualidade a serem avaliados são a carga microbiana, contaminação química por metais pesados, pesticidas e outros defensivos agrícolas, e presença de matéria estranha, como terra, areia, partes vegetais, insetos e pequenos vertebrados ou de produtos oriundos destes (Brasil, 2000). Formas farmacêuticas A administração de agentes terapêuticos necessita da sua incorporação em uma forma farmacêutica, caracterizada normalmente pelo estado físico de apresentação, constituída de componentes farmacologicamente ativos e de adjuvantes farmacêuticos. A escolha da forma farmacêutica mais apropriada para um produto fitoterápico deve considerar a eficácia e a segurança do componente ativo e assegurar sua qualidade; facilitar a aplicação do medicamento, por meio da via de administração mais apropriada; permitir a administração de dose efetiva do componente ativo, com precisão adequada ao seu emprego seguro e sua adequação a casos específicos; contornar problemas de estabilidade, por meio da adição de adjuvantes primários conservadores, como conservantes, antioxidantes, tamponantes, etc.; adequar as propriedades da forma farmacêutica às necessidades fisiológicas da via de administração; direcionar a cedência dos componentes ativos, seja Revista Lecta, Bragança Paulista, v. 21, n. 1/2, p. 7-13, jan./dez. 2003

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quanto ao local mais apropriado de absorção ou quanto ao perfil de liberação e aumentar o nível de aderência ao tratamento, tais como os adequadores organolépticos, que conferem características sensoriais (gustativas, olfativas e visuais) aceitáveis ao produto. Dentre as necessidades de adequar-se a forma farmacêutica à via de administração com vistas à mais efetiva biodisponibilidade, tem-se as formas sólidas, onde se destacam os pós destinados a preparações extemporâneas, constituídos por drogas vegetais pulverizadas empregadas na obtenção de preparações medicinais aquosas extrativas, normalmente por infusão, ou preparações medicinais alcóolicas extrativas e/ou produtos secos para a dissolução, a quente ou a frio, em líquido adequado (água, misturas hidroalcoólicas, óleos, etc.). Os extratos secos são preparações obtidas pela eliminação de aproximadamente 96,5% – 99% da fase líquida, por meio de operação de secagem em pressão atmosférica ou reduzida, por liofilização ou, ainda, pela incorporação de solução extrativa em matriz sólida, com posterior secagem. Os granulados são obtidos pela aglomeração de matérias-primas em forma de pó e de outros adjuvantes farmacêuticos por meio de emprego de aglutinantes, são destinados a preparações extemporâneas, tais como soluções ou suspensões, preparadas a quente ou a frio, ou utilizados como preparações intermediárias para obtenção de comprimidos. As cápsulas, as quais representam 60% das formulações comercializadas nas farmácias de manipulação, são uma das formas farmacêuticas de maior aceitação. São destinadas à administração oral, vaginal ou retal (Miguel, M. D. et al., 2002). Os comprimidos, caracterizados por conter a dose de componentes ativos individualizada na própria forma, são obtidos pela compactação de matérias-primas sólidas. Em paralelo tem-se os comprimidos revestidos (drágeas), caracterizados pelo revestimento em camadas múltiplas, de composições heterogêneas, constituídos principalmente por sacarose, ou comprimidos peliculados (film tablets) em que o revestimento é de composição homogênea, de baixa espessura, formado por agentes filmógenos poliméricos sintéticos. Ao se considerarem as formas farmacêuticas semi-sólidas, têm-se os extratos espessos, que se apresentam com preparações viscosas em temperatura ambiente, obtidas por meio do esgotamento e concentração de soluções extrativas até o ponto de formar uma massa maleável contendo quantidades variáveis de umidade residual, quase que completamente substituída por extratos secos. As pomadas ou cremes de consistência elevada são destinados à aplicação sobre a pele. As matérias-primas vegetais incorporadas abrangem desde as sólidas, como Revista Lecta, Bragança Paulista, v. 21, n. 1/2, p. 7-13, jan./dez. 2003

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extratos secos e pós, até as líquidas, como soluções extrativas nos mais diversos sistemas de solventes. As emulsões contendo extratos vegetais e óleos são obtidas por meios das metodologias usuais de emulsificação, da dissolução ou suspensão de extratos líquidos, concentrados ou secos na fase mais adequada. Os supositórios podem ser preparados pela incorporação, dissolução, emulsionamento ou suspensão de extratos líquidos, concentrados ou secos na massa de base. As suspensões integrais de plantas frescas são obtidas pela moagem fina de plantas frescas congeladas a -50ºC, suspensas em etanol a 36º, em concentrações que variam de 30 a 35% (m/V) da droga. São destinadas à administração por via oral ou cutânea, geralmente após diluídas em água. Quanto às formas farmacêuticas líquidas, têm-se resinas, óleos e o sumo das partes frescas do vegetal, os quais são utilizados para uma ampla variedade de preparações fitoterápicas aquosas obtidas por diversos métodos. Os extratos podem apresentar-se líquidos, moles, espessos ou secos. Os aquosos devem ser preparados para uso imediato, em virtude de sua suscetibilidade de degradação e de contaminação microbiana, inerente à presença de água como solvente. As alcoolaturas são preparadas de plantas frescas, excepcionalmente de plantas secas ou de drogas, por maceração em temperatura ambiente com etanol. Os alcoolatos são obtidos por destilação da matéria-prima fresca em etanol. As tinturas, soluções extrativas alcoólicas ou hidroalcoólicas, são preparadas com base em drogas vegetais ou, ainda, como extratos de plantas, são preparadas com etanol, misturas hidroalcoólicas em várias concentrações, éter ou misturas destes, de tal modo que uma parte da droga é extraída com mais de duas partes, mas menos de dez partes de líquido extrator, isto é 10 ml de tintura devem corresponder aos componentes solúveis de 1 g de droga. Os extratos fluidos, que se caracterizam como preparações líquidas e diferenciam-se das tinturas por serem mais concentrados e por possuírem métodos diferenciados de obtenção do menstruo, normalmente são misturas hidroetanólicas em que 1 ml de extrato contém os constituintes ativos correspondentes a 1 g da droga. Os elixires, preparações líquidas, límpidas, hidroalcoólicas, apresentando teor alcoólico na faixa de 20 a 50% (V/V), os quais são preparados por dissolução ou diluição simples de extratos secos ou concentrados, atualmente foram retirados do mercado em razão de portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que proíbe formulações com alto teor alcoólico. E os xaropes, considerados preparações medicinais aquosas açucaradas, apresentam alta concentração de sacarose, normalmente superior a 40% (m/V).

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Conclusão A escassa fonte de informações que contemplam a industrialização e/ou manipulação de plantas medicinais é muito restrita. A fundamentação teórica sobre inúmeras espécies já comercializadas no país é muito limitada. Sem apoio dos institutos e fundações de fomento, as universidades e institutos de pesquisa seguem suas buscas de maneira disciplinar compartimentalizada dentro de especialidades. A informação que se tem, em boa parte compreende plantas européias e de uso universal. Existem muito poucas pesquisas agronômicas, farmacológicas, toxicológicas, de desenvolvimento de formas farmacêuticas e de estudos clínicos na fabricação de produtos fitoterápicos. Contudo, as feiras livres e ervanários, algumas pequenas indústrias e farmácias comercializam tais espécies mesmo havendo a Resolução – RDC 17 que propõe o estudo das mesmas para comercialização. Constata-se a ausência de políticas regionais e nacionais, sobre medicamentos fitoterápicos, em particular aqueles considerados essenciais. Falta por parte das indústrias maior colaboração junto às universidades tendo em vista financiar pesquisas nas diferentes áreas que compõem a fitoterapia. Há ausência de uma política de conservação que implemente o cultivo e manejo racional de espécies medicinais, atrelando-se financiamentos específicos para agricultura destas. Deve-se considerar inclusive a falta de qualidade do material vegetal, principalmente no que se refere a composição química, sendo esta totalmente irregular, sobretudo com a contaminação microbiológica, além da presença de herbicidas e agrotóxicos, os quais são provenientes de um manejo inadequado da matéria-prima destinada à produção de medicamentos. Para a investigação científica é importante

lembrar que a associação e a inter-relação entre os mais variados profissionais tornam-se atualmente uma prioridade diante das necessidades nacionais de terapêutica em atendimento à saúde primária. Deve-se ainda considerar os aspectos de preservação das reservas naturais dentro da perspectiva do desenvolvimento sustentável, pois o desmatamento indiscriminado e o extrativismo predatório podem acarretar o desaparecimento de plantas que têm um potencial medicamentoso e que ainda não foram pesquisadas sob o ponto de vista botânico, agronômico, fitoquímico e farmacológico. Falta apoio governamental com o objetivo de aproximar os grupos de pesquisa e privilegiar aquelas pesquisas que compreendem toda a cadeia de produção de determinada espécie de interesse até a determinação de doses e ensaios clínicos. Quanto às instituições de fomento à pesquisa em plantas medicinais, cabe viabilizar programas que privilegiem o estudo desde as questões agronômicas, perpassando a fitoquímica, a farmacológica e o desenvolvimento, até os estudos clínicos. De modo que possamos agregar grupos de pesquisadores interdisciplinares, multiprofissionais e interinstitucionais para contribuir com o desenvolvimento de novos fitoterápicos, de acordo com as exigências da legislação em vigor, possibilitando a construção de monografias que venham compor a nossa Farmacopéia. Falta apoio da classe médica no reconhecimento da importância de nossa Farmacopéia e na criação de um Formulário nacional, com as quais muito poderia beneficiar-se. Faltam ações administrativas efetivas que garantam a confecção e a regularidade desses códigos oficiais, podendo viabilizar-se, nesta perspectiva, políticas públicas efetivas de produção e distribuição de medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS).

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Ana Cristina Oltramari Toledo, Lilian Lúcio Hirata, Marilene da Cruz M. Buffon, Marilis Dallarmi Miguel, Obdulio Gomes Miguel

Revista Lecta, Bragança Paulista, v. 20, n. 2, p. 143-152, jul./dez. 2002

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