Flaubert e Ema Bovary: A Paixão pela Arte

July 5, 2017 | Autor: Eliane Fittipaldi | Categoria: Literatura Francesa, Teoria da literatura, Construção Da Personagem
Share Embed


Descrição do Produto

FLAUBERT E EMA BOVARY: A PAIXÃO PELA ARTE

Eliane Fittipaldi

Embora Flaubert tenha as mesmas restrições ao modo de ser burguês que um escritor assumidamente vinculado ao Realismo, como é o caso de Eça de Queirós, e embora tais restrições façam parte da temática de sua obra, nenhuma doutrina apriorística nela é imputada. Nenhuma intenção moral ou pedagógica a inspira. Flaubert não propõe a reforma social, porque não acredita que haja solução para os problemas de sua época. Princípios puramente estéticos alimentam sua ótica que se volta para a realidade para conferir-lhe uma dimensão simbólica e irônica. De fato, o discurso de Madame Bovary é todo ele irônico, mas não assume o registro valorativo: o trabalho com a descrição busca uma representação asséptica do real, como se a realidade se mostrasse pela palavra tal como se manifesta empiricamente, como se não houvesse nenhuma interferência do olhar, como se não passasse por uma subjetividade. Daí a ilusão de que a ironia é um atributo do referente, e não um recurso de fora: é na apresentação mesma das características que as coisas e os seres revelam sua própria crítica (como o fiacre de Rouen, cuja "fureur de locomotion" substitui a cena suprimida da relação sexual). De modo geral, o "eu" enunciador se apaga diante da referencialidade, deixa-se penetrar pelo objeto e se dilui no mundo representado, tornando-se a ele imanente. Não chama a atenção para si, nem tampouco volta para si próprio o olhar que faz a mediação do real. Porém, esse "eu", como já observamos, não está totalmente ausente desse discurso: não deixa de impregná-lo, aqui e ali, com

índices de perplexidade, conjecturas e até mesmo marcas emotivas em relação às personagens ("Et le pauvre garçon [Charles], par làdessus, avait des inquiétudes d'argent!"): Porque, assim como é quimérico pensar que um autor pode criar prescindindo totalmente de sua experiência, não o é menos presumir que um homem de carne e osso, com uma vida intelectual e emocional determinada, pode, no momento da criação, abolir suas ideias, paixões, instintos, obsessões, para converter-se em uma impessoalidade relatora, em uma máquina comunicadora de dados. A impassibilidade e a objetividade são, unicamente, maneiras astutas e sub-reptícias de despejar essa subjetividade no narrado, uma estratégia na qual conclusões, demonstrações e reações sentimentais ante o que ocorre na realidade fictícia parecem transpirar naturalmente o contado para o leitor e não lhe serem impostas por um narrador ditatorial. Em lugar de opinar diretamente, o autor o faz da invisibilidade, sinuosamente: organizando a matéria de uma certa maneira, encadeando de certo modo os episódios, iluminando e escurecendo as condutas dos personagens nos instantes oportunos, escolhendo certos instrumentos reveladores, provocando certos diálogos, efetuando certas descrições. Muitos anos depois de haver publicado Madame Bovary, Flaubert assim o entendeu e fez com que George Sand o soubesse através de uma fórmula incomparável: "Je ne crois même pas que le romancier doive exprimer son opinion sur les choses de ce monde. Il peut la communiquer, mais je n'aime pas à ce qu'il la dise". Com efeito, graças ao relator invisível, não a diz: comunica-a por osmose, contaminando com ela a matéria narrativa, convertendo seu mundo subjetivo no mundo objetivo da ficção.1

Por intermédio de sua arte, Flaubert trava a luta contra o romantismo que é dele próprio, contra a burguesia, que reconhece ser sua classe social, contra a realidade que abomina. A propósito de Madame Bovary, diz a Madame Roger des Genettes: "On me croit épris du réel, tandis que je l'exèrce; car c'est en haine du réalisme que j'ai entrepris ce roman".2

1 2

Llosa, Mario Vargas. A Orgia Perpétua, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979, p. 143-144. Carta sem data, de outubro ou novembro de 1856. Apud Llosa, op. cit., p. 181.

Mas de que espécie de realismo é capaz um homem que volta as costas à vida mundana e se enclausura numa casa de campo para dedicar-se exclusivamente à literatura? Duas

paixões

antagônicas

subjazem

à

elaboração

dos

romances de Flaubert: o ódio à realidade e o amor à arte ("Voilà pourquoi j'aime l'Art. C'est que là, au moins, tout est liberté dans ce monde de fictions."3). E o elemento que aglutina essas duas paixões é a ironia, que aponta para um intransponível abismo entre a verdade de uma e a de outra: enquanto a realidade se apresenta em sua vaidade e hipocrisia, a arte faz a denúncia disso tudo: Cómo sería en realidad el mundo, el mundo de los "sensatos", nunca nos lo dice Flaubert: en su libro el mundo consiste en pura estupidez, que deja escapar la realidad auténtica, de modo que ésta no puede encontrarse en parte alguna. Y, sin embargo, está ahí, en el lenguaje del escritor, que desenmascara la necedad por el mero modo de contarla. El lenguaje viene a ser, pues, una piedra de toque de la estupidez, y participa, por lo mismo, en aquella realidad de los "sensatos", que en ninguna otra forma aparece en este libro.4

O desencanto com a realidade é o fator mesmo que faz o escritor melhor observá-la. O mergulho na literatura, a monumental erudição e a tendência para a paciente documentação são os recursos que lhe permitem aprofundá-la. A clausura e a misantropia lhe possibilitam o cultivo da imaginação. A teimosia da forma e a consciência do bem dizer obrigam-no a torturar-se pelo "mot juste" – pela sonoridade correta, pela perfeita adequação entre a palavra e o conceito expresso. Assim integrando paixões antagônicas, a obra de Flaubert instaura-se como um modelo artístico no qual as funções referencial e 3 4

Flaubert, Gustave. Carta a Louise Collet, 15-16 de maio de 1852. Apud Llosa, op. cit. p. 193. Auerbach, Erich. Mimesis: la realidad en la literatura, México, Fondo de Cultura Económica, 1975, p. 461.

estética se fundem de tal modo que a linguagem e a realidade cognoscente acabam por constituir-se, ambas, meio e fim, como no quadro de Magritte em que o mundo exterior se cola à vidraça que lhe serve de acesso. A transfusão das paixões do criador para a personagem são, nesse contexto, evidentes: também Ema abomina a sua realidade, vira-lhe as costas e vive vicariamente por intermédio da literatura. Incapaz, porém, de apreciação estética e de espírito crítico, não consegue tornar essa experiência libertadora. O gosto pelo detalhe que ela exibe na escolha da indumentária, dos enfeites para a casa e nos presentes para os amantes (ironizado no texto), também Flaubert o demonstra na descrição minuciosa, na abundância vocabular, no estilo adjuntivo. A relação entre Flaubert e Ema é uma relação de amor e ódio: de amor pela personagem e pela arte que a instaura, e de ódio ao tipo de mulher que ela representa, ignorante e romântica. Como fingimento

resultado realista,

desse

traduz-se

investimento em

passional

impassibilidade

que,

no

narrativa,

o

paradoxo acaba por prevalecer no retrato e na própria atitude do escritor diante do real: profundamente humana na duplicidade que fundamenta sua formação, Emma é produto de uma visão que nega denominar-se Realista, mas que se aproxima do realismo mais puro – visão que se distancia do objeto para tornar mais nítida sua focalização e que, ao mesmo tempo, dele se aproxima e mergulha em sua essência para torná-lo emocionalmente verossímil e verdadeiro. Se "Madame Bovary c'est moi", a paixão que a anima é a de Flaubert, paixão essa que busca o rompimento de limites e a liberdade:

nela convergindo para a morte, nele criando vida por

intermédio da palavra.

Realismo, aqui, significa olhar para si mesmo e para seu tempo, e transformar em arte tanto o desgosto da própria condição como a paixão pelas potencialidades do ser e do mundo em que vive.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.