Flexibilidade competitiva e precariedade laboral. Ensaio de conceptualização.pdf

May 23, 2017 | Autor: Nuno Miguel Alves | Categoria: Sociology of Work, Flexible working, Precarious Work, Precarity
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Flexibilidade competitiva e precariedade laboral: ensaio de conceptualização Nuno Miguel Madeira Beato Alves

A reconfiguração do mercado de trabalho e de emprego que se observa há mais de duas décadas tem sido campo fértil para controvérsias sociais, políticas e académicas, às quais não é obviamente alheia a Sociologia do Trabalho e do Emprego. Um dos argumentos de discussão, de cariz marcadamente (neo)liberal, refere-se à rigidez do mercado de trabalho (e de emprego),

classificando-o

como

principal

fator

bloqueador

da

competitividade da economia e do aumento do emprego, pelo que é colocada a tónica na desregulação das relações de trabalho e de emprego, bem assim como na flexibilização dos seus eixos tradicionais. A problemática deste ensaio consiste em conceptualizar a noção de flexibilidade competitiva, estabelecendo a sua conexão com o conceito de precariedade laboral, no contexto do desenvolvimento atual do regime capitalista, também chamado “capitalismo flexível”.

A globalização neoliberal e o paradigma da flexibilidade competitiva: o caso do Memorando de Entendimento (2011-2014). Encontramo-nos hoje confrontados com a crise do modelo de trabalho e de emprego dominante durante longos anos, mais precisamente, desde os anos cinquenta do século XX. Esta “crise de modelo” teve como consequência a rarefação do emprego estável e a proliferação de novas formas de emprego cujo denominador comum é a flexibilidade: trabalho a termo parcial, falso trabalho independente, trabalho temporário, estágios profissionais, etc. A expansão industrial, o crescimento económico e a relativa estabilidade social do pós-guerra, que durou quase um quarto de século, só foi possível [1]

em virtude da expansão crescente da procura decorrente do consumo em massa, do aumento da produtividade, da racionalização técnico-produtiva e do contrato social explicitamente firmado entre capital e trabalho. Tal estabilidade social encontrava-se garantida pelo Estado-Providência. A relação salarial assentava numa base estável e o mercado de trabalho funcionava de acordo com regras bem definidas e uniformes, dando origem à integração através do consumo de massa. A rigidez técnico-organizacional e socioinstitucional eram caraterísticas do modelo de produção tayloristafordista. Tal modelo permitiu, nos países desenvolvidos, substanciais poupanças económicas, acumulação de lucros, expansão da produção, mas também o aumento do emprego, logo, do poder aquisitivo e de consumo das famílias, sobretudo das classes médias. (Kovács, et al. 2006: 29). Mas este modelo começou a dar sinais de crise a partir dos inícios dos anos 70 do século passado. A expansão da procura tornou-se cada vez mais difícil devido à saturação das necessidades que impulsionaram o crescimento económico, à redução do poder de compra dos assalariados (especialmente a partir da década de 80) e do desmantelamento do Estado-Providência. O mercado em expansão dá lugar ao mercado em estagnação, com as suas repercussões do domínio da concorrência (Kovács, et al, 2014: 86). A resposta a uma procura cada vez mais incerta e multifacetada passou a exigir das empresas maior flexibilidade, isto é, capacidade de mudar rapidamente de produtos, de processos e de mercados. Passa-se de uma economia de escala para uma economia de gama ou flexível, associada a um mercado cada vez mais instável e segmentado. (ibidem: 86-87). Á produção de massa característica

do

modelo

taylorista-fordista

sucede

o

modelo

da

racionalidade flexível da economia pós-industrial.1 O trabalho remunerado com base num vínculo estável e duradouro, espelho do compromisso laboral taylorista-fordista, entra definitivamente em crise. Nas últimas décadas, a 1

Os “trinta gloriosos” foram importantes para a generalização do trabalho assalariado (salariato), isto é, o contrato de trabalho por tempo indeterminado, regulado juridicamente e objeto de negociação coletiva, fator que permitiu estabilidade de emprego para a vida. As classes trabalhadoras apenas deviam preocupar-se com o trabalho, pois que os sindicatos e o Estado zelariam pelo seu bem-estar e pela sua segurança (Kovács, et al, 2006: 31).

[2]

crise tende a agudizar-se em virtude do aumento do desemprego - sobretudo nas camadas jovens -, do declínio do emprego seguro em prol dos empregos desregulados (inseguros e informais), da diferenciação e individualização das

relações

laborais

e

das

condições

de

vida

em

geral.

A

desregulamentação do trabalho e do emprego inscreve-se nas prioridades atribuídas à competitividade e rentabilidade de curto prazo das empresas. Os direitos sociais ligados ao trabalho são agora vistos como autêntico obstáculos à competitividade à escala global. Os fatores que se encontram no centro desta crise do modelo de trabalho (e de emprego) são: a globalização, ou seja, a preponderância das políticas económicas (neo)liberais; a difusão das tecnologias de informação e comunicação (TIC); os processos de racionalização empresarial numa lógica de racionalização flexível (reengenharia, lean production, subcontratação, externalização de serviços fora do core business, etc.) e o desequilíbrio de forças no contexto internacional e também nacional na regulação do trabalho e do emprego (Kovács, et al, 2006: 32-33). O trabalho é hoje o principal fator de ajustamento das economias mundiais, sobre o qual se joga a competição no plano nacional e internacional.2 A questão é que a “globalização hegemónica” (da economia e da sociedade) está a implodir um dos principais pilares do Estado-nação: o mercado nacional.3 O espaço nacional está sendo substituído pelo espaço económico global. Sucede que a “globalização hegemónica” não é uma consequência da evolução linear da economia, antes foi promovida ativamente pelos principais players internacionais: países mais ricos (G-7, sobretudo EUA), instituições económicas e financeiras (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio), em estreita coordenação com as 2

3

“A subordinação da sociedade às leis do mercado e à lógica da globalização competitiva implica a redução da empresa a uma máquina de lucro, a crescente precarização do trabalho, a degradação da qualidade do emprego e o enfraquecimento do potencial integrador do trabalho” (Petrella, 1994: 28). A competição entre países/regiões para atrair o investimento estrangeiro com subvenções e benefícios fiscais, melhores infra-estruturas e recursos humanos mais baratos leva a uma espiral descendente dos salários e das condições de trabalho (ibid, cit Kovács, Casaca et al, 2006: 35). O conceito de “globalização hegemónica” é de Boaventura Sousa Santos e pretende definir a prevalência do princípio do mercado sobre o princípio do Estado, e além disso, a “financeirização” da economia, a subordinação do trabalho aos interesses do capital e a perda de peso do espaço nacional e da democracia representativa.

[3]

principais multinacionais. A aceleração da globalização hegemónica deve-se a três fatores relacionados: a desregulação da economia (sobretudo dos mercados financeiros), a liberalização do comércio e dos investimentos internacionais e a privatização dos serviços públicos (alienados, em regra, a investidores estrangeiros). Estas políticas, iniciadas nos finais dos anos 70 do século XX nos EUA, e nos inícios dos anos 80 no Reino Unido, foram a partir de meados dos anos 80 adotadas pela generalidade dos países ocidentais, tendo-se expandido à escala global. Ao mesmo tempo, assistiuse ao avanço das políticas e da ideologia neoliberal, que se tornaram hegemónicas após o colapso do muro do Berlim (Kovács, et al, 2014: 9596). A aceleração da globalização efetuou-se tanto por via da pressão dos governos, como, sobretudo, através da imposição unilateral das instituições supranacionais, com o objetivo de homogeneizar as condições de acumulação do capital, como refere Castells: “o mecanismo para levar o processo de globalização à maioria dos países era simples: pressão política, tanto através de pressão governamental, como da imposição pelo FMI/Banco Mundial/OMC. Apenas após as economias serem liberalizadas, o capital poderia fluir” (Castells, cit. Kovács et al, 2014: 96).4

A reconfiguração das relações laborais no sentido da flexibilização do trabalho e do emprego foi precisamente o propósito principal da intervenção da Troika (FMI, CE e BCE), no contexto do “resgate financeiro”, e do “Memorando de Entendimento sobre as Condicionantes de Política Económica”, celebrado com Portugal, a 17 de maio de 2011. As políticas de austeridade levadas a cabo pela Troika, com o apoio ativo do executivo português5, “atacaram em todas as frentes e em todas as dimensões as bases institucionais da igualdade e inclusividade do mercado de trabalho, nos 4

A título de exemplo, no final da década de 90 o FMI “aconselhava” políticas de ajustamento em mais de 80 países à volta do mundo. Política semelhante foi seguida pela OMC no domínio do comérciol. É ainda de notar que, em meados dos anos 90, 90% das transações internacionais não estavam relacionadas com o financiamento do comércio e do investimento de longo prazo, mas eram especulativos visando obter lucro imediato (neste sentido, consulte-se Kovács, Casaca et al, 2014: 96). 5 XIX Governo Constitucional, que iniciou a sua legislatura em 21 de junho de 2011 e terminou no dia 30 de outubro de 2015.

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domínios da contratação coletiva, da proteção no emprego e da proteção no desemprego, reconfigurando os regimes de emprego numa ótica liberal” (Lima, 2015: 7). Em suma, promoveram, como nunca tinha sucedido antes a flexibilização das relações de trabalho e emprego, ou, por outras palavras, incrementaram a desvalorização salarial competitiva e a desregulação competitiva da legislação social.

67

O quadro infra dá-nos uma síntese das

medidas adotadas no contexto do “Memorando de Entendimento”8: Quadro 1.1 – Medidas do Memorando de Entendimento no plano laboral: Medidas do Memorando de Entendimento, ou em linha com os seus objetivos:

Forma de implementação:

Descentralização da negociação coletiva

Acordo tripartido 2012 – Código do Trabalho 2012

Bloqueio da emissão de Portarias de Extensão e introdução de critérios restritivos para extensão de convensões coletivas (exigindo que as associações de empregadores representassem 50% do emprego ou, em alternativa, que representassem 30% de PME´s)

Decisão unilateral – Resolução do CM n.º 90/2012, de 10 de outubro

Redução do período de caducidade e sobrevigência das convenções coletivas

Acordo tripartido ad hoc 2014 – Lei n.º 55/2014, de 25/09 (alteração ao Código Trabalho)

Congelamento do salário mínimo nacional

Decisão unilateral do governo

Redução da compensação por despedimento (20

Acordo tripartido 2012 – Código do Trabalho 2012

Acordo informal tripartido ad hoc 2014 – Resolução do CM n.º 43/2014, de 25 de outubro

6

A intervenção das instituições internacionais junto dos Estados-membros da União Europeia adotou basicamente 3 formas: o intervencionismo externo através dos memorandos de entendimento entre governos nacionais e a Troika, no quadro de programas de resgate (casos da Grécia, Irlanda e Portugal); a intervenção informal do BCE, condicionando o suporte financeiro à implementação de reformas estruturais com incidência nos salários e na negociação coletiva (casos de Espanha e de Itália); e ainda as recomendações adotadas no âmbito do Semestre Europeu. Ao mesmo tempo, nos países com programas financiados apenas pelo FMI, foram impostas condições restritivas em matéria salarial e de negociação coletiva (Lima, 2015: 9). 7 O Memorando de Entendimento assinado a 17 de maio de 201, marcou economica, politica e socialmente a toda a legislatura do XIX governo constitucional. Na verdade, foram assinados dois memorandos e não um só em maio de 2011. O primeiro deles com o Fundo Monetário Internacional e o segundo com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. Os dois estabelecem essencialmente os mesmos objetivos, mas o documento firmado com as instituições europeias é o mais detalhado e aquele que é designado por Memorando de Entendimento. 8 Foram ainda adotadas outras fora do Memorando de Entendimento, mas que seguiram a mesma lógica, quer no setor público (ex: congelamento dos salários e redução dos salários nominais, aumento do horário de trabalho de 35h. para 40h, redução da compensação por horas extraordinárias, sistema de requalificação - facilitação do despedimento, adesão individual a convenções coletivas e bloqueio das convenções coletivas de trabalho celebradas na Administração Local estipulando o horário de trabalho semanal em 35h), quer no setor privado (regime de compensação por despedimento imperativo em relação às convenções coletivas, corte de quatro feriados e três dias de férias - regime imperativo em relação às convenções coletivas, corte na compensação por horas extraordinárias regime imperativo em relação às convenções coletivas, possibilidade de suspensão das convenções coletivas em situações de crise empresarial).

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dias) Redução da compensação por despedimento (12 dias) Facilitação dos despedimenentos por inadaptação e extinção do posto de trabalho

Decisão unilateral – Lei n.º 69/2013, de 30/08 (alteração ao Código do Trabalho) Acordo tripartido 2012 – Código do Trabalho 2012

Introdução de novos critérios para a seleção dos trabalhadores a despedir (extinção do posto de trabalho)

Decisão unilateral – Lei n.º 27/2014, de 08/05 (alteração ao Código do Trabalho)

Redução da compensação por horas extraordinarias

Acordo tripartido 2012 – Código do Trabalho 2012

Possibilidade de acordo individual entre empregadores e trabalhadores no que se refere ao banco de horas

Acordo tripartido 2012 – Lei n.º 38/2012

Redução da duração e montante do subsídio de desemprego e alargamento da sua base de incidância

Acordo tripartido 2012 – Código do Trabalho 2012

Fonte: Lima, 2015.

O conjunto de medidas levadas a efeito durante a intervenção da Troika (2011-2014) exprimem esta estratégia de “flex(in)segurança” (Lima, 2015: 10), quer dizer, uma política deliberadamente conducente à redução salarial, à desagregação da negociação coletiva, à flexibilização da legislação laboral (maxime, dos despedimentos) e, simultaneamente, de desregulação competitiva da legislação social (downsizing das garantias de proteção social). Se é verdade que todas estas medidas, tendentes à chamada “desvalorização interna”, radicalizaram o protesto social, não é menos verdade que este não teve quaisquer efeitos práticos quanto à reversão das medidas adotadas.910 De acordo com a generalidade dos indicadores disponíveis, este movimento de re-regulação laboral está na origem da queda acentuada do emprego e dos salários, da redução da proteção social no desemprego (da sua cobertura), da criação de emprego precário e de baixos salários, do surto massivo de emigração (sobretudo de jovens e 9

Durante 5 anos (2010 a 2014) tiveram lugar cinco greves gerais, isto é, o mesmo número de greves que ocorreram ao longo de 35 anos (1974 a 2009). Em conjunto, CGTP e UGT convocaram três greves gerais (24/11/2010, 24/11/2011 e 27/06/2013), quando na história da democracia portuguesa tal só tinha sucedido uma única vez (1988). Todavia, este período viu emergir movimentos sociais de grande escala, que incluiriam na sua agenda questões laborais convergentes com a agenda sindical, unindo-se mesmo em algumas das manifestações anti-auteridade, caso do movimento “Que se lixe a Troika” (14/11/2012 e 19/10/2013). 10 O Tribunal Constitucional travou algumas delas, mas a sua ação também não obstou à transformação do regime de emprego e das relações laborais no sentido mais (neo)liberal.

[6]

trabalhadores qualificados), da enorme transferência de rendimentos provenientes do trabalho para o capital, para não falar do aumento das desigualdades sociais (designadamente de rendimentos) e da pobreza (Lima, 2015: 25). Será previsível no futuro próximo a reversão das “políticas de exceção”, restituindo os direitos sociais e laborais eliminados, garantindo, desta forma, maior coesão social e melhor democracia? Trata-se de uma questão ainda em aberto, mas cuja resposta (negativa) é quase previsível.

Flexibilidade competitiva (quantitativa) e precariedade laboral: o acesso dos trabalhadores jovens ao mercado de emprego O conceito de “flexibilidade” tem sido amplamente utilizado no campo académico, mas também nos campos sindical e da comunicação social, como forma de definir a realidade do mercado de trabalho e do emprego atualmente. De acordo com as conceções gestionárias dominantes, o termo “flexibilidade” encontra-se associado à liberdade e autonomia do trabalhador e aos conceitos de empreendedorismo e empregabilidade. É ainda classificado como “the one best way” das empresas se adaptarem às variações de atividade (quer conjunturais, quer estruturais), decorrentes das flutuações dos mercados, dos produtos, das tecnologias e da clientela (Guelaud e Lanciano, cit. Kovács et al, 2014: 34), acabando por dar suporte teórico às políticas neoliberais que sustentam a inelutabilidade e irredutibilidade do mercado. Em vez de criticar as dinâmicas atuais do capitalismo, este tipo de discurso legitima-as, advogando a desregulação do trabalho e do emprego a partir dos seus princípios-base. Paradoxalmente, a generalidade dos estudos sobre os mercados de trabalho e de emprego têm demonstrado o contrário, isto é, que a flexibilidade competitiva induz diretamente a precariedade laboral (remunerações baixas e irregulares, ocupações pouco qualificadas e desinteressantes, ausência ou escassez de formação profissional, conflito entre trabalho e vida familiar, insegurança laboral

e

aumento

das

desigualdades [7]

sociais,

especialmente

de

rendimento).11 Importa, por isso, analisar os sentidos que são atribuídos a este conceito polissémico. Para alguns, a sua classificação passa pela distinção entre dois conceitos-base: o de flexibilidade produtiva e o de flexibilidade de trabalho. A flexibilidade produtiva englobaria o conjunto das transformações tecnológicas e organizacionais que visam a adaptação das organizações empresariais às variações do mercado, sendo flexíveis as empresas que se afastam do clássico modelo de produção taylorista-fordista, estando em condições de responder de forma rápida e maleável a todas as variações

exógenas

do

mercado,

designadamente

da

procura.

Diferentemente, a flexibilidade de trabalho compreenderia as alterações relativas às condições de emprego e de trabalho, tais como os modos de recrutamento, contratação e remuneração, o conteúdo das tarefas, o tipo de remunerações, os tempos de trabalho e o nível de proteção social. Outros autores centram a sua análise noutro tipo de distinção: entre flexibilidade numérica (ou quantitativa) e flexibilidade funcional (ou qualitativa). A primeira refere-se á capacidade de uma empresa variar qualitativamente a mão-de-obra ou as horas trabalhadas em função das variações da procura, estando desta forma muito associada à segmentação do mercado de trabalho12, pois dependerá sobretudo do trabalho temporário, independente, a tempo parcial, horários flexíveis e da subcontratação das atividades secundárias. A flexibilidade quantitativa obtém-se sobretudo através de formas atípicas de emprego (trabalho temporário). A flexibilidade funcional, pelo contrário, refere-se à capacidade da empresa responder às exigências do mercado de consumo através do enriquecimento das tarefas, das funções 11

Neste sentido, entre outros, “O desemprego jovem em Portugal e na Europa” e “A situação contratual dos jovens em Portugal e na Europa, Observatório das Desigualdades, disponíveis em https://observatorio-das-desigualdades.com/ 12 Os diferentes segmentos denominam-se primário (independente, dependente) e secundário. Cada um deles possui diferentes critérios de recrutamento, seleção, formação e promoção, bem como diferentes formas de supervisão, condições de trabalho e níveis salariais. Os empregos que compõem o mercado de trabalho primário são, regra geral, em tempo integral, com relativa estabilidade nas condições de trabalho, possuindo salário relativamente elevado. Os empregos compreendidos no segmento secundário do mercado de trabalho requerem qualificação mínima, propiciam a mínima formação e não têm perspetivas de promoção. Os salários e produtividade são relativamente baixos, o trabalho não é estável, a rotatividade emprego é elevada e as mudanças de emprego não possibilitam melhoria salarial. O contrato formal de trabalho é quase uma raridade.

[8]

e das qualificações dos seus trabalhadores. Tal capacidade baseia-se essencialmente na memória coletiva das organizações, na estabilidade de emprego e em esquemas de ação suficientemente experimentados, não coexistindo, ou dificilmente coexistindo, com a constante rotação de mãode-obra (Kovács et al, 2006: 9).13 Sucede que as práticas de flexibilidade qualitativa constituiem a exceção, pois, em regra, as empresas utilizam práticas de flexibilização competitiva (quantitativa), alegando que só elas dão resposta rápida, eficaz e eficiente à volatilidade dos mercados, permitindo ainda reduzir custos salariais.14 Neste sentido, a flexibilidade quantitativa promove ativamente a precariedade do trabalho (trabalho pouco interessante, mal remunerado, pouco valorizado profissionalmente) e a precariedade do emprego (instabilidade e insegurança laboral, ausência de perspetivas de progressão, forte vulnerabilidade económica e forte restrição dos apoios sociais), sendo, talvez, a causa principal da segmentação do mercado de emprego.15 As formas “atípicas” de emprego relacionadas com a flexibilidade competitiva (quantitativa) são minoritárias, mas constituem hoje a via de acesso normal ao mercado de emprego, sobretudo entre a camada jovem, estando a sua difusão mais relacionada com as preferências dos empregadores do que com as dos trabalhadores. Dois estudos ilustrativos relativos à realidade portuguesa e comparada (Kovács, 2013 e Oliveira e Veloso, 2011), refutam claramente a tese segundo a qual as oportunidades aumentam graças à flexibilização do mercado de emprego, demonstrando o precisamente o inverso, que em vez de abrir novas oportunidades, a flexibilidade competitiva terá conduzido ao aumento do 13

Ao contrário do que sucede com a flexibilidade quantitativa, a lógica da flexibilidade qualitativa baseia-se nas novas formas de trabalho, bem assim como no conjunto de práticas relativas à lógica das organizações qualificantes e “aprendentes”. 14 Vejamos apenas o caso da flexibilidade de tempo de trabalho, ela pode assumir várias formas: o trabalho a tempo parcial, job sharing, semana comprimida, horários flexíveis (horários com variação diária, semanal, mensal ou anual), trabalho por turnos, horários antissociais (trabalho aos fins-desemana ou à noite), bancos de horas, isenção de horário de trabalho, etc. Sucede que quanto mais uma empresa aposta em práticas quantitativas mais se afasta da lógica da flexibilidade funcional. 15 Nas organizações ditas “flexíveis” coexistem dois grupos de trabalhadores, um núcleo estável de trabalhadores-chave e um grupo de trabalhadores periféricos. No grupo dos trabalhadores-chave, o regime de emprego corresponde ao modelo da solidariedade social, ao passo que o grupo dos periféricos estrutura-se de acordo com o modelo (flexível) de adaptação ao mercado (Atkinson, cit, Kováks et al, 2006: 13).

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desemprego e à precariedade laboral.16 E o mesmo se diga quanto às desigualdades, e aos fenómenos de pobreza e exclusão social que tais “metamorfoses no trabalho” desencadeiam (Antunes, cit. Soeiro, et al, 2012: 6). Mas paradoxalmente, nos meios empresariais como nas instâncias públicas de regulação, predomina o prisma da flexibilidade competitiva. Segundo esta lógica, trabalho e emprego deverão ser desregulados. A desregulação é encarada como condição sine qua non do crescimento económico e do emprego. Perante a ideia generalizada da “rigidez” do mercado de trabalho e de emprego, não se estranha que as práticas de flexibilização competitiva (quantitativa) estejam a crescer nos países da UE28 (Kovács et al, 2006: 46; Oliveira e Veloso, 2011: 34-42), sobretudo no ingresso (ou regresso) ao mercado de emprego.17 Mais uma vez, a realidade mostra-se deveras paradoxal: as mais recentes perspetivas de emprego (OIT, 2016: 3-13) indicam que a taxa de desemprego global da juventude está a crescer (13,1% em 2016, face a 12,9% em 2015), atingindo valores próximos do pico histórico (em 2013 a taxa era de 13,2%). Grande parte dos jovens, apesar de estarem a trabalhar, correm o risco de caírem em situação de pobreza.18 Na Europa (EU-28), cerca de 29% e 37% dos jovens trabalham hoje, respetivamente, em part-time ou de forma temporária, mas involuntária.19 Estes dados são secundados pelos do Observatório das Desigualdades20, segundo os quais, o peso dos contratos temporários21

16

Kovács, 2013: 33-37 e Oliveira e Veloso, 2011: 31-42. Tal significa ainda a crescente transferência de riscos e custos dos empregadores para o Estado, logo, para os indivíduos. Todavia, do ponto de vista estritamente organizacional os custos também não são dispiciendos: problemas de formação da mão-de-obra, baixa produtividade, insatisfação, falta de lealdade organizacional, grande absentismo e turnover, não devem ser negligenciados, sobretudo quando o principal objetivo é a competitividade. Por outro lado, este ambiente de flexibilidade competitiva é ainda suscetível de desencadeiar atitudes individualistas, que podem colidir com as necessárias exigências de coesão organizacional. E se as empresas ultrapassam os “desiquilíbios” do mercado colocando em competição trabalhadores permanentes e periféricos, a verdade é que correm riscos importantes em termos de coesão e de dinâmica social internas (Kovács et al, 2006: 50). 18 Os jovens trabalhadores exibem hoje uma taxa de incidência de pobreza mais elevada do que os adultos (37,7% vivem em extrema ou em moderada pobreza, comparativamente com 26% dos adultos). Para além dos baixos salários, os jovens trabalham frequentemente em situação de grande instabilidade, coisa que não acontecia com os seus pais. 19 World Employment Social Outlook, Youth, 2016: 8-11 (dados de 2014). 20 https://observatorio-das-desigualdades.com/ 21 De referir que o EUROSTAT inclui na categoria de “trabalho temporário” quaisquer contratos celebrados a termo. Na categoria de “contrato de trabalho involuntário” estão, por seu turno, todos os 17

[10]

celebrados com os jovens tem vindo a aumentar, sendo este padrão seguido por todos os países da UE28. No caso específico de Portugal, e no período compreendido entre 2002 e 2015, a percentagem de jovens detentores de contrato temporário foi sempre superior à média da UE28. No que se refere aos contratos temporários involuntários, a situação é ainda mais dramática, situando-se os jovens portugueses muito acima da média da UE28. A título de exemplo, no último ano (2015), 67,9% dos jovens portugueses com contrato temporário encontravam-se nesta situação de forma involuntária, contra apenas 37,3% na UE2822.

Figura 2.1 – Evolução dos contratos temporários entre os jovens e proporção dos indivíduos nessa situação de forma involuntária, em Portugal e na UE28 (2002 e 2015):

Fonte: Observatório das Desigualdades.

trabalhadores que declaram ter contratos temporários porque não conseguiram encontrar um trabalho com caráter permanente. 22 Isto apesar da diminuição de 9,2 pontos percentuais entre 2011 e 2015 (de 77,1% para 67,9%).

[11]

Figura 2.2 – Proporção de jovens entre os 15 e os 24 anos com contratos temporários involuntários na UE28 (2008, 2013 e 2015):

Fonte: Observatório das Desigualdades.

Conclusão Se olharmos com atenção os dados oficiais conhecidos, verificamos que os jovens são o escalão mais afetado pela generalização das práticas de flexibilização competitiva (quantitativa), quer na Europa quer em Portugal, as quais se traduzem na escassez de empregos estáveis e permanentes e na expansão das formas flexíveis (atípicas) de emprego, tipicamente com baixos salários e com escassa proteção social. Com a crise financeira e a expansão das políticas (neo)liberais, verifica-se que o desemprego global dos jovens particularmente - sofreu um aumento significativo. Para além disso, as condições laborais objetivas e subjetivas (Soeiro et al, 2013: 5) registaram alterações profundas, devido sobretudo às políticas de downsizing social que foram adotadas. Tais políticas afetam não apenas os rendimentos dos mais jovens, como também os mecanismos de integração que o trabalho proporciona como fonte de identidade. A condição de precariedade, não raras vezes apresentada como oportunidade e condição de autonomia e liberdade dos indivíduos, pode constituir-se (constitui-se) em

[12]

fonte de identidade negativa e em “condição de não liberdade” (Bauman, cit, Soeiro et al, 2013: 6), colocando perturbadoras interrogações à realidade social em transformação.

Referências bibliográficas Kovács, Ilona (2006), Flexibilidade e crise de emprego: tendências e controvérsias, working paper n.º 8/2006, SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das

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http://www.repository.utl.pt/handle/10400.5/1996 Kovács, Ilona (2013), Flexibilização do mercado de trabalho e percursos de transição de jovens: uma abordagem qualitativa do caso da área metropolitana de Lisboa, working paper n.º 1/2013, SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações,

Lisboa,

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http://www.repository.utl.pt/handle/10400.5/5689 Kovács, Ilona (coord.) et al (2014), Temas Atuais da Sociologia do Trabalho e da Empresa, Coimbra, Editora Almedina Lima, Maria da Paz Campos (2015), “A reconfiguração do regime de emprego e de relações laborais em Portugal na ótica liberal”, Cadernos do Observatório, Observatório das Crises e Alternativas, CES–Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Universidade de Coimbra, disponível em: http://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/?id=6522&pag=9331 Organização Internacional do Trabalho (2016), Worl Employment Social Outlook – Youth. Trends for Youth 2016, disponível em: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/--dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_443480.pdf Oliveira, Luísa, Helena Carvalho e Luísa Veloso (2011), “Formas atípicas de emprego juvenil na União Europeia”, Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 66, 2011, disponível em http://www.scielo.mec.pt/pdf/spp/n66/n66a02.pdf Soeiro, José, Ricardo Sá Ferreira e João Mineiro (2012), “Juventude, precariedade e desigualdades: as classes contra o fim da história. Uma reflexão a partir do contexto europeu”,

Revista

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de

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https://ras.revues.org/198.

[13]

n.º

10,

2012,

disponível

em

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