FLEXÕES DA LÍNGUA PORTUGUESA — A GUINÉ EQUATORIAL NA CPLP

June 5, 2017 | Autor: A. Milhazes | Categoria: CPLP
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FLEXÕES DA LÍNGUA PORTUGUESA — A GUINÉ EQUATORIAL NA CPLP Ana Catarina Milhazes fevereiro de 2015

No ano em que se comemoraram 800 anos da língua portuguesa, a CPLP integrou a Guiné Equatorial como membro da comunidade. Esta decisão polémica talvez possa ser observada à luz do que deve um aniversário da nossa língua festejar. Pode parecer demasiado evidente, mas porventura não será demais recordar que o que se deveria festejar no aniversário da língua portuguesa é o modo como a proximidade linguística promove uma memória comum ligada à superação das dissidências supressoras e trabalha no sentido do reconhecimento da dignidade de cada um dos povos e de cada indivíduo singular das diversas comunidades. A CPLP tem dado sinais de estar a converter-se num grupo de negócios, que prefere privilegiar interesses económicos aos direitos humanos. Só por esta razão se compreende que se passe agora a falar português, na Guiné Equatorial, apenas por decreto. Uma língua que se começa a falar por decreto pode ter bom efeito demagógico, mas faltar-lhe-á (e por isso mesmo) espírito humano. Do balbuciar pode muito bem passar-se ao linguajar – mas isso não é falar uma língua. Nos Estatutos da CPLP, o artigo 5ª, relativo aos princípios orientadores, prescreve que “a CPLP é regida [...] pelo primado da Paz, da Democracia, do Estado de Direito, dos Direitos Humanos e da Justiça Social”; e acrescenta-se ainda que “a CPLP estimulará a cooperação entre os seus membros com o objectivo de promover as práticas democráticas, a boa governação e o respeito pelos Direitos Humanos”. O artigo seguinte, relativo aos membros da CPLP, determina que “qualquer Estado, desde que use o Português como língua oficial, poderá tornar-se membro da CPLP”, desde que adira “sem reservas” aos Estatutos. Torna-se manifesto que, somando alguns factos demasiado notórios, a Guiné Equatorial não cumpre os artigos referidos. Embora possam ter sido cumpridas as condições do Plano de Adesão, estabelecido no Conselho de Ministros da CPLP em Maputo, em 2012 – que objectivamente não foram – teremos na CPLP um membro que viola os estatutos da organização. Por



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outro lado, não se pode compreender com facilidade que um Plano de Adesão se sobreponha aos Estatutos. Organizações como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch continuam a denunciar erros crassos, na Guiné Equatorial, no cumprimento dos Direitos Humanos e não dão conta de qualquer aperfeiçoamento no sentido das práticas democráticas e da organização de um Estado de Direito. A Guiné Equatorial tem um sistema jurídico que mantém a pena de morte; à margem desse sistema, detém e executa arbitrariamente os seus cidadãos; não respeita a separação dos poderes: o presidente acumula os poderes presidencial, executivo, judicial e militar; é considerado um dos países mais corruptos do mundo; ostraciza deliberadamente a liberdade de expressão e a divergência de opinião; tem 80% da sua população abaixo do nível da pobreza, pese embora seja o país com o maior PIB per capita dos países africanos e beneficie de elevadas receitas provenientes dos recursos naturais. A Guiné Equatorial tem, de longe, o maior fosso mundial entre a riqueza per capita e a taxa de desenvolvimento humano (estima-se que metade da população não tem acesso a água potável e a condições básicas de saneamento; a esperança média de vida é de 51 anos). A promessa de continuidade desta tirania parece ter longo-prazo, uma vez que o filho mais velho de Teodoro Obiang Nguema, Teodoro Mangue Obiang, é apontado como sucessor do pai. Teodoro-Pai chegou ao poder por um golpe de estado; Teodoro-Filho (ou Teodorín) tem o caminho facilitado, apesar de procurado pela justiça internacional por alegados crimes de fraude fiscal, de corrupção, de branqueamento de capitais e de apropriação indevida de bens públicos. A corrupção da família Obiang está a céu aberto. Apesar de algumas alegações terem sido suspeitosamente suspensas, as investigações da França e dos Estados Unidos continuam e há um mandato, com extensão europeia, com directiva de França – o filho de Obiang tem mandato de captura, em Portugal. Os progressos notados pelo Secretário Executivo da CPLP, Murade Murargy. ficam pouco esclarecidos e, tudo indica, demasiado dependentes de critérios subjectivos. A integração da Guiné Equatorial como membro da CPLP denuncia claramente a língua como instrumento de negócio. É sabido que as origens da escrita não são exactamente honráveis: a invenção da escrita está directamente ligada às invenções e formalizações de ordem económica. No mundo ocidental, a difusão da escrita foi imposta pelo comércio. A relação escrita-poder é essencial. Esta essência dá bem conta da sua presença. Só que a escrita tem já uma História sua: entretanto,

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serve também para denunciar o poder. É muito mais esta possibilidade que se espera que uma organização como a CPLP possa privilegiar e defender. Seria também uma posição inabalável na defesa dos Direitos Humanos o que uma língua deveria honrar – deveríamos desejar que o aniversário da nossa língua assinalasse a resistência dos valores morais que se preservam na língua, quer quando ela nos permite falar, quer quanto ela nos permite escrever. Seria bom que o centenário da língua portuguesa nos recordasse que, se a língua é um instrumento para a formalização do poder – do poder capital (em todos os sentidos sugestivos do termo) –, é também um grande instrumento de denúncia, um forte antídoto – talvez o melhor, porque funciona a longo-prazo. A CPLP devia lembrar isto aos mais de 250 milhões de falantes da língua portuguesa. Ao contrário, tem-se afirmado progressivamente como uma organização do mercado consumidor e dos investimentos, atraindo países tão díspares como a Austrália e a Indonésia, pela significativa reserva de recursos que representa. A CPLP não tem somente um potencial diplomático e político; naturalmente, tem também um potencial económico e comercial. Mas isso não significa que as duas dimensões não se possam e devam distinguir – a CPLP está a colaborar para o erro mais crasso das democracias actuais: reduzir a política ao mercado. É claro que é normal, é claro que era até espectável; mas, ainda assim, não devemos tratá-la como a coisa mais natural. A naturalidade de que falou, em 2010, o agora ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Luís Amado (actual chairman do Banif, onde Obiang depositou 133 milhões de euros) só pode ser assim entendida por uma elite com vantagens directas. Há outra coisa associada que a língua nos devia lembrar: para que alguns corrompam, alguns outros têm que se deixar ser corrompidos. A forma mais extrema da redução da política ao mercado leva, no limite, à cooperação com países tiranos. É justamente do que se trata com a adesão da Guiné Equatorial. Além do mais, se, nos estatutos da CPLP, os seus membros se dividem entre membros-oficiais e membros-observadores, os países sem relações directas e substanciais com a língua deveriam apenas poder ser reconhecidos como membros-observadores, uma vez que se movimentam apenas na ordem da influência e da colaboração política internacional. A língua tem todas as virtudes ecuménicas – mas que o ecumenismo não se torne o mesmo que cooperação de mercado! Um pouco mais de rigor semântico e algum tento na língua talvez possa ser bom socorro. A ausência de um bom e completo dicionário da língua portuguesa parece estar a fazer uma prejudicial

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diferença... As flexões da língua podem resultar em férteis figuras de retórica, mas sempre devemos ter em muita conta que retórica é poder – e serve o bem e o mal. Podemos ter uma CPLP tendente para o humanismo, mantendo conformidade com o ideário dos seus criadores, ou podemos ter uma CPLP estratégica, ou pior, estratega. São minuciosidades semânticas que podem fazer diferença.



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