FLORA E NAÇÃO: UM PAÍS NO ESPELHO (2009)

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* Artigo publicado no livro Flora Brasileira: História, Arte e Ciência, organizado por Ana Cecília Martins. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009.

FLORA E NAÇÃO: UM PAÍS NO ESPELHO José Augusto Pádua Qual a palmeira que domina ufana Os altos topos da floresta espessa Tal bem presto a de ser no mundo novo O Brasil bem fadado José Bonifácio de Andrada e Silva “Ode aos Baianos” 1

A importância da flora brasileira não está apenas na riqueza incontestável e tão amplamente divulgada de sua biodiversidade. Ela penetra com força nos espaços objetivos e também subjetivos da própria formação do Brasil, de sua sociedade, território e identidade. Falamos de uma relação estreita do país com sua flora, que se revela desde o batismo; afinal, o Brasil é o único país do mundo que traz no nome a referência direta a uma árvore. Mas engana-se quem pensa que se trata aqui de uma homenagem à beleza ou ao valor biológico do Pau-Brasil. O que a adoção do nome nos mostra, na verdade, é uma clara indicação do desejo europeu de explorar lucrativamente a abundância natural da América. O Pau-Brasil representou o primeiro elemento da natureza local passível de ser explorado pelo mercantilismo europeu. Sua extração nas áreas costeiras da Mata Atlântica foi intensa para os padrões da época. Calcula-se que cerca de dois milhões de exemplares foram cortados já no primeiro século da colonização.2 Podemos afirmar, assim, que essa dinâmica inaugurou a destruição sistemática dos recursos florísticos do país, já que se avançou na direção dos estoques naturais sem qualquer preocupação real com a sua conservação ou recomposição através do plantio. A semântica do nome “Brasil” está diretamente associada ao uso voraz e descuidado das riquezas do território. As implicações do nome da nova terra não passaram despercebidas para alguns observadores da época, especialmente os que anteviam a possibilidade daquele 1

mosaico de colônias portuguesas se transformar, no futuro, em uma nação consolidada. Frei Vicente Salvador, que em 1627 publicou a primeira História do Brasil, criticou o mal estado da região após cem anos da sua fundação. Para o religioso, a culpa era dos colonizadores que “usam da terra não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída”. 3 Para Frei Vicente Salvador, o pano de fundo simbólico desse comportamento encontrava-se justamente no fato do nome sagrado de “Santa Cruz”, que inicialmente foi utilizado para designar a nova terra, ter sido abandonado por influencia do demônio, que “trabalhou para que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha”.4 Dois séculos depois, em 1822, no momento da constituição formal do país independente, unificando sob um mesmo estado todos os territórios da antiga América Portuguesa, o nome Brasil já estava consolidado no imaginário geográfico, servindo para designar o novo corpo político que se consolidava. As riquezas da flora nacional continuavam a assumir significados culturais e políticos amplos e significativos. Na própria alegação em favor da emancipação política brasileira, a grandeza do território foi utilizada como um argumento de grande relevância estratégica, o que pode ser confirmado nas cartas de instrução do governo enviadas em 1824 aos diplomatas brasileiros que negociavam em Londres o reconhecimento da independência por Portugal e Inglaterra: “um império tão dilatado e extenso, fornecido pela natureza dos melhores portos do mundo… e de muitos variados e ricos produtos da natureza, exige o ser uma potência separada e independente”. 5 É politicamente relevante, nesse sentido, o fato de que no mesmo ano de 1824, com base na longa viagem que realizou pelo interior do Brasil entre 1817 e 1820, na companhia de Johann von Spix, o naturalista Carl von Martius tenha apresentado em Munique um discurso acadêmico sobre “A fisionomia do reino vegetal no Brasil”, representando um dos primeiros esforços no sentido de visualizar os grandes conjuntos em que se dividia a vegetação brasileira. O autor percebia que, apesar do território apresentar de maneira geral a “benção de uma zona feliz”, onde “em toda a parte resplandecia a pompa das terras tropicais ou a abundância salutar das terras mais temperadas”, existiam diferenças marcantes na vegetação das diferentes regiões do território. Essas diferenças podiam, inclusive, relativizar o elogio genérico da natureza local. É verdade que o texto afirmava que a “Mata Geral”, o que chamaríamos hoje de 2

Mata Atlântica, era um “baluarte da terra contra o oceano”, representando “como que o apogeu de toda a força criadora e toda a luxuria do continente”. Já algumas partes da caatinga nordestina, de solo quase arenoso, eram descritas como paisagens “áridas, pobres em fontes e cujos rios secam durante o verão”. A própria Floresta Amazônica gerou certo pavor no estrangeiro, que descreveu a região como um cenário “escuro como o inferno”, com “formações grotescas” e “emanações entorpecentes” que faziam o viajante “medrosamente sentir saudades da serena majestade das florestas da Serra do Mar”. 6 O ponto central é que a ciência da época, tanto produzida por viajantes quanto por acadêmicos nativos, começava a construir uma visão mais realista da riqueza florística do território, observando sua variedade regional e sua diversidade de paisagens. A construção concreta do Estado e domínio oficial sobre seu território, inclusive no sentido de avançar na sua ocupação econômica efetiva, interagia com esse movimento de conhecer e cartografar as realidades regionais. O próprio von Martius, na seqüência dos seus estudos, elaborou em meados do século XIX um primeiro mapa fitogeográfico do país, o “Provinciae Florae Brasiliensis”. Valendo-se da sua própria experiência e das observações botânicas de vinte viajantes, cujos itinerários também estão indicados no mapa, ele dividiu o país em cinco domínios, regidos por cinco tipos de deusas da Antiguidade Clássica. Uma classificação, aliás, surpreendentemente próxima da atual divisão em seis biomas formulada pelo IBGE. 7 A imagem do Brasil no período da sua formação como país independente foi fortemente marcada pela presença das grandes matas do litoral atlântico, onde se concentrava a maioria da população. As florestas se destacavam como “um timbre do solo brasileiro à admiração do estrangeiro”, segundo as palavras do renomado médico e botânico Francisco Freire Alemão, em carta de 1851 enviada ao naturalista e viajante francês Augustin de Saint-Hilaire 8. Não é difícil entender o porquê desse destaque. Desde o fim do século XVIII, as florestas estavam sendo valorizadas na cultura européia. Vários naturalistas e economistas políticos argumentaram em favor de sua importância para o equilíbrio climático (especialmente através da garantia da renovação da umidade, das chuvas e das fontes de água). A produção artística romântica, por sua vez, as descrevia como exemplos de beleza e sublimidade. Na medida em que a elite social e intelectual brasileira tinha a Europa como referência da verdadeira civilização, almejando que o novo país fosse reconhecido nos quadros desse patamar simbólico, era preciso buscar os elementos nacionais que fossem 3

capazes de se revelar atrativos e dignos de admiração. Por outro lado, em um jogo complexo de identidade e diferenciação, era preciso afirmar as peculiaridades das novas nações americanas, e do Brasil em particular, justificando sua emancipação dos laços políticos europeus. Nesse contexto, a natureza, assim como os índios, seus primitivos habitantes, serviam como símbolos escolhidos para representar o país, que, assim, se apresentava afinado com o cânone artístico do Romantismo, tão fortemente presente no período. As representações da flora, em especial, inundaram o imaginário do Brasil monárquico, ornamentando a imagem de uma monarquia sólida, pacífica, civilizada e grandiosa. Em 1858, um texto exemplar publicado na revista “A Ilustração Luso-Brasileira” apresentava o reino de Pedro II como um “império imenso recortado por rios caudalosíssimos e constantemente coberto por uma vegetação maravilhosa”. Nesse território florescia, em uma clara metáfora botânica, “um novo ramo da antiga e transplantada árvore dos Bragança”. Uma ordem monárquica que contribuía, por certo, para que o país fosse então “considerado o ponto central da civilização do Novo Mundo (...) salvo da anarquia que pouco a pouco devora os outros estados da América do Sul”. 9

Essa dupla idealização da natureza e da ordem política, que se fortaleciam mutuamente, deu origem a inúmeras manifestações culturais. Foi comum a produção de imagens do imperador e do império adornadas com árvores, frutas e produtos tropicais, seja em impressos, objetos ou esculturas. A elaboração de quadros e cenas literárias, que promoviam um sentido de identidade histórica da nação e do estado, dialogavam seletivamente com elementos do ambiente natural, realçando a beleza e fertilidade do território. Os museus enfatizavam a riqueza da fauna e da flora, difundindo a visão de uma natureza espetacular, pitoresca e de valor científico universal. Os estandes brasileiros nas exposições internacionais focalizavam a riqueza das florestas, em conjugação com o artesanato indígena, buscando estimular, pelo recurso ao exotismo, a admiração cultural e o interesse econômico dos estrangeiros. Nesse mesmo período de afirmação cultural do Brasil através de sua natureza, algumas vozes apontaram para aspectos menos idílicos da atitude da sociedade em relação às florestas nacionais. Através delas é possível inferir a existência na época de uma situação que podemos chamar de “esquizofrênica”: o elogio artístico-cultural da natureza convivendo com uma impiedosa devastação na economia. Essa crítica se desenhava desde o final do século XVIII, mas consolidou-se conceitualmente na obra 4

do próprio líder do processo da independência, José Bonifácio. Em um texto escrito pouco depois do seu retorno ao Brasil em 1819, ele denunciava: “destruir matas virgens, nos quais a natureza nos ofertou com mão pródiga as melhores e mais preciosas madeiras do mundo, além de muitos outros frutos dignos de particular estimação, e sem causa, como até agora se tem praticado no Brasil, é extravagância insofrível, crime horrendo e grande insulto feito à mesma natureza. Que defesa produziremos no tribunal da Razão, quando os nossos netos nos acusarem de fatos tão culposos?”. 10 Já no contexto pós-independência, em uma representação contra a escravatura enviada em 1823 à Assembléia Legislativa e Constituinte do Império, Bonifácio voltava a alertar: “nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo” 11. Os anseios de Bonifácio não foram escutados, ainda mais diante da sua derrota política e do seu exílio no fim do ano de 1823. Mesmo assim, ao longo do período monárquico, foram muitos os que continuaram a pregar em vão contra a devastação da flora nativa. O médico e botânico Francisco Freire Alemão, que cuidava da saúde pessoal do imperador Pedro II, bradava em um discurso na Academia Imperial de Medicina em 1836 que “os madeiros seculares sucumbiam aos golpes do machado e as florestas desapareciam da superfície do país com uma imprevidência deplorável e, o que não é menos deplorável, até hoje nenhuma medida vigorosa se tem posto em prática para regular o corte das matas e opor-se ao seu total aniquilamento”.12 Diante do desalento com a falta de uma ação política concreta, ele chegou a percorrer as florestas da província do Rio de Janeiro no sentido de escrever a sua história e “conservar alguma noticia do que em bem pouco tempo estará aniquilado, entregue como tudo se acha a mais lastimosa imprevidência”

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Somente na segunda metade do século XIX algumas propostas mais concretas de conservação florestal começaram a ser formuladas, ainda que com aceitação bastante limitada por parte do estado.

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É o caso do famoso projeto de reflorestamento do Maciço da Tijuca, realizado entre 1862 e 1887. A iniciativa resultou no plantio de cerca de 95.000 mudas de árvores nas encostas da capital, ajudando a reconstituir matas que haviam sido fortemente destruídas nas décadas anteriores por conta da plantação do café e da produção de carvão. Ao contrário do que muitos pensam, a iniciativa não foi decisão pessoal de Pedro II e sim de alguns intelectuais e políticos que faziam parte do seu círculo de amizades. É o caso de Luiz Pedreira do Couto Ferraz que, quando ocupava a posição de ministro do império entre 1854 e 1856, deu início às desapropriações dos terrenos necessários ao reflorestamento. Mais tarde, na condição de presidente do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, Couto Ferraz apoiou as etapas iniciais do programa de reflorestamento, que foram dirigidas pelo Major Manoel Archer entre 1862 e 1874. Em alguns dos seus escritos é possível observar uma visão mais ampla do significado do reflorestamento para o futuro da nação. Em um relatório de 1873, ele afirmava que o sucesso do projeto na Tijuca deveria “em pouco tempo ser seguido de outros, nas províncias, em cujas capitais convém que desde logo se comece a criação de semelhantes florestas”. A motivação mais profunda ligava-se à consciência de que não era possível “a geração presente descuidar-se por mais tempo do futuro, continuando a deixar progredir a destruição de nossas florestas e abandonando o estudo do cultivo de madeiras de lei”.14 Mas o fato é que tal política abrangente nunca foi colocada em prática. Diante do risco de falta de água na capital, devido à destruição das nascentes que vinham das montanhas florestadas, o governo concordou apenas em fornecer um apoio mínimo ao projeto. Mesmo assim, com os sucessivos cortes de orçamento e de mão de obra, o próprio Major Archer pediu demissão e abandonou a direção dos trabalhos em 1874.

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Um apoio ainda menor obteve a primeira proposta de criação de parques nacionais no Brasil, formulada em 1876 pelo engenheiro e líder abolicionista André Rebouças. A idéia era generosa e abrangente, centrando-se inicialmente em regiões de especial beleza como o “Salto do Iguaçu” e as “Sete Quedas do Guaíra”, no rio Paraná, e a “Ilha do Bananal”, no rio Araguaia. O autor defendia: “a geração atual não pode fazer melhor doação às gerações vindouras do que reservar intactas, livres do ferro e do fogo, as duas mais belas ilhas do Araguaia e do Paraná. Daqui a centenas de anos poderão nossos descendentes ir ver dois espécimes do Brasil, tal qual Deus o criou; e encontrar reunidos, no norte e no sul, os mais belos espécimens de uma fauna variadissima e, principalmente, de uma flora que não tem rival no mundo!”. Os parques, segundo a proposta, ainda poderiam estimular o desenvolvimento regional através do turismo e da atração de imigrantes. 15 As sugestões de Rebouças foram ignoradas e o primeiro parque nacional brasileiro seria criado apenas em 1937. Esta incapacidade dos governos para agir diante da devastação, mesmo quando os alertas partiam de personagens influentes na ordem imperial, deve ser entendida no registro de uma sociologia histórica mais geral. De fato, não existiam nesse cenário forças sociais e políticas que pudessem transformar as críticas dos intelectuais em ações coletivas relevantes em favor de uma mudança no tratamento do mundo natural. A sociedade civil, no contexto do escravismo, era muito pouco desenvolvida. Os canais comunicativos eram restritos e excludentes. O estado, por sua vez, era fraco e relativamente pobre, até pelo fato de sua base tributária ser tão limitada (não se taxava a propriedade da terra, por exemplo, fonte maior da riqueza no período). Na prática, portanto, a máquina estatal limitava-se quase sempre a gerir as estruturas mínimas necessárias para a existência do país (forças armadas, judiciário, legislativo etc). Os governos eram muito dependentes do apoio de elites regionais que calcavam seu poder em rotinas produtivas devastadoras. Eles não tinham força ou vontade política para enfrentar as elites e forçar uma mudança no modo de produzir, mesmo quando funcionários, ou até ministros, reconheciam que as práticas de relação com a natureza eram irracionais.

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O quadro permaneceu basicamente o mesmo, ou até pior, durante a República Velha. A descentralização política fortaleceu o controle das elites regionais sobre a economia de cada província, incentivando a exploração dos recursos naturais. O uso descuidado e imprevidente das florestas foi uma prática constante no período, fato agravado pelo avanço das ferrovias sobre áreas ainda pouco ocupadas do território. Assim como ocorreu no período monárquico, algumas vozes se levantaram contra a devastação. É conhecido o protesto de Euclides da Cunha, publicado em 1901, contra os “fazedores de desertos”. Os brasileiros, segundo o escritor, atuavam como “um agente geológico, nefasto, e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia”. Os índios começaram a destruição com suas queimadas que “inscreviam, depois, em cercas de troncos carbonizados a área em cinzas onde fora a mata vicejante”. Inaugurou-se então a rotina de “novas roças, novas derribadas, novas queimas e novos círculos de estragos” A colonização européia, na seqüência, agravou ainda mais o impacto: “afogada nos recessos de uma flora que lhe abreviava as vistas e sombreava as tocais dos tapuias, dilacerou-a, golpeando-a de chamas”. No início do século XX, a exploração predatória da vegetação continuava em avanço. O uso da madeira como combustível único das locomotivas diluía a cada dia “no fumo das caldeiras alguns hectares da nossa flora”. Os agricultores, por sua vez, promoviam “o desnudamento rápido das derribadas em grande escala”. 16 Muitos anos depois, em 1915, outro pensador importante do período, o jurista e filosofo político Alberto Torres alertou para a situação de destruição. Segundo ele, “os brasileiros são, todos, estrangeiros na sua terra, a qual não aprendem a explorar sem destruir”. A solução estava na promoção de uma política de reflorestamento e conservação das fontes naturais da água.17

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Apesar do prestígio desfrutado por esses intelectuais, as ações políticas concretas para enfrentar a devastação da flora nativa foram praticamente nulas no período. Mesmo com o apoio do presidente Epitácio Pessoa - que manifestou em 1920 o incômodo com o fato do Brasil ser naquele momento o único país de grandes florestas sem um código florestal -, e com a criação de comissões no parlamento para redigi-lo, a legislação federal continuou omissa diante do tema. A Constituição republicana de 1891, por exemplo, ignorou o problema das florestas. Um Serviço Florestal instalado em 1925 cumpriu uma função meramente decorativa, com pouquíssimos recursos e capacidade de atuação legal. Foi apenas com a revolução de 1930, que rompeu com a chamada República Velha, que se inaugurou uma preocupação política mais efetiva com o uso descontrolado dos recursos naturais. Essa nova postura estava inserida na proposta geral de aumentar o poder do estado e organizar melhor as atividades produtivas do país. As idéias de Alberto Torres, que atribuía um valor essencial à conservação da natureza, influenciaram diretamente vários líderes do período varguista. Dessa forma, em 1934, foram chanceladas várias leis com o objetivo de disciplinar a exploração do território. Nesse conjunto se destacam o Código de Águas, o Código de Caça e Pesca e o Código Florestal. Esse último representou um expressivo avanço, na medida em que colocava limites aos direitos de propriedade em nome da conservação. Algumas áreas florestais foram consideradas protetoras, uma vez que preservavam mananciais, evitavam erosão etc. Da mesma maneira, foram colocados limites na quantidade de matas que podiam ser retiradas de cada propriedade (um máximo de ¾). Na seqüência foram criados os primeiros Parques Nacionais do Brasil: Itatiaia (1937) e Serra dos Órgãos (1939), no Rio de Janeiro, e Iguaçu (1939) no Paraná.

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Nas décadas que se seguiram à revolução de 1930 ocorreu um crescimento significativo da população, das cidades, da produção industrial e também da capacidade de arrecadação do estado. Em tese, apesar dos problemas ambientais gerados pelo próprio crescimento econômico, teria sido possível inaugurar uma era de maior cuidado e racionalidade em relação ao uso dos recursos naturais. A forte presença da ideologia do crescimento a qualquer custo, porém, acabou obscurecendo a importância dos temas ambientais. A força tradicional dos grandes proprietários e do mandonismo local, por outro lado, trabalhou contra uma atuação mais consistente do estado na preservação da

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flora nativa. A Guarda Florestal, prevista na lei de 1934, não se instalou e inúmeras brechas na legislação foram utilizadas para evitar que os devastadores fossem legalmente enquadrados. Nos governos subseqüentes, por mais diferentes que tenham sido entre si, muito pouco foi feito no campo da conservação. A situação começa a mudar apenas nas décadas de 1960 e 1970, com a emergência de uma nova consciência ecológica em escala internacional. Essa transformação está diretamente ligada a um processo histórico mais profundo de aproximação entre ciência e política, colocando em questão os próprios modelos de desenvolvimento e de civilização. Mesmo na década de 1960, durante a vigência do regime militar, alguns avanços técnicos foram registrados no campo da política ambiental. Um exemplo relevante é foi elaboração em 1965 de um novo Código Florestal que definiu de maneira mais clara os conceitos de preservação permanente (áreas de floresta que prestam serviços ambientais relevantes e não podem ser destruídas) e reserva legal (percentagem das florestas que devem ser conservadas, mesmo em propriedades privadas). Dois anos depois, foi criado o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Este órgão, entre outros objetivos, deveria “executar as medidas necessárias à utilização racional, à proteção e à conservação dos recursos naturais renováveis". 19 Mas fica claro que naquela conjuntura, como o próprio nome IBDF já indica, o desenvolvimento da economia florestal tinha prioridade absoluta sobre qualquer visão conservacionista. Além disso, na ausência de uma ordem democrática, a sociedade encontrava canais muito limitados para atuar publicamente na defesa da qualidade de vida e da saúde ecológica do território. Os avanços mais relevantes ocorreram a partir da década de 1980, no contexto da redemocratização do país. Foi o momento em que a questão ambiental tornou-se, em escala global e nacional, um fenômeno multissetorial que está presente na cultura, na mídia, nas negociações internacionais, nas instituições estatais, nas organizações empresariais e sindicais etc. Os movimentos brasileiros em defesa das florestas, inclusive envolvendo populações que delas se beneficiam diretamente (índios, seringueiros, castanheiros, pescadores etc.), adquirem uma presença inédita na opinião publica. Um símbolo desse destaque foram as repercussões do assassinato do líder seringueiro acreano Chico Mendes, ocorrido em 1988.

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Naquele mesmo ano, a nova constituição apresentou um capítulo avançado sobre problemas ecológicos, declarando, inclusive, algumas regiões exemplares da vegetação nativa – como a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica e o Pantanal Mato-Grossense – como patrimônios nacionais cuja preservação deve ser assegurada. Apesar de positiva, essa decisão acabou sendo omissa ao excluir outras importantes regiões ecológicas do país. Mas é significativo do ponto de vista institucional o fato de um ano depois o IBDF ter sido extinto e incorporado a um novo órgão voltado para uma gestão mais abrangente do ambiente nacional – O IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Apesar de suas grandes limitações, ainda hoje evidentes, não resta dúvida de que a medida representou um avanço conceitual e político, mais adaptado aos novos tempos do ambientalismo global. A própria idéia de biodiversidade ganhou força a partir da década de 1980, valorizando o que de mais notável existe na natureza brasileira: a variedade de genes, espécies e ecossistemas. Em 2004, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou um Mapa dos biomas brasileiros que agregou a diversidade da flora nativa em seis categorias básicas: Floresta Amazônica, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa. O uso desse conceito possui uma série de vantagens em termos de comunicação, educação e política de desenvolvimento sustentável. A vida social e cultural dos seres humanos, de fato, não se desenvolve no abstrato e sim em espaços regionais concretos, dotados de características ecológicas específicas. Não se trata de determinismo ecológico, mas sim de uma simbiose necessária entre a realidade biofísica e a condição humana. Os modelos de desenvolvimento, por sua vez, devem acompanhar essa territorialidade definida e buscar uma harmonização inteligente entre as práticas econômicas e a realidade ambiental. Hoje fica evidente que a valorização da vegetação nativa precisa ser entendida como aspecto essencial de um Brasil sustentável. É necessário construir nosso caminho para o futuro a partir de uma reavaliação positiva do contexto geográfico da nação. O grande território brasileiro, com sua biodiversidade extremamente rica, água doce e luz solar, deve ser visto como um trunfo na construção de uma sociedade com alto grau de desenvolvimento humano. A variedade e o esplendor da nossa vegetação, especialmente das grandes florestas, não devem ser considerados um entrave ao desenvolvimento, mas, sim, um passaporte para a economia limpa do futuro. Vivenciamos nesse contexto contemporâneo uma situação potencialmente nova, onde a confluência entre um estado mais poderoso, uma sociedade mais educada e 11

diversificada, uma esfera pública mais dinâmica e uma difusão múltipla da questão ambiental pode embasar uma política realmente abrangente de cuidado e gestão sustentável do território. Torna-se necessário, dessa maneira, a realização de uma alquimia conceitual onde o nome “Brasil” deixe de significar um indicador de uso imediatista e perdulário dos recursos da natureza, da falta de amor pela terra, e passe a identificar uma nação consciente de que a natureza e o território constituem um elemento essencial e inescapável da sua mais bela identidade e do seu melhor destino.

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Silva, José Bonifácio de Andrada e, “Ode aos Baianos” in Bandeira, Manuel, Poesia do Brasil, Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1963, p.83. 2 Dean, Warren, A Ferro e Fogo, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 64 3 4 5

Salvador, Frei Vivente, História do Brasil [1627], São Paulo, Melhoramentos, 1965, p.: 42 Salvador, Frei Vicente, Op. Cit., p. 42

Ministério das Relações Exteriores, Arquivo Diplomático da Independência, Brasília, 1972, Vol. 1: 47.

Citado por Valle,Cid Prado, Risonhos Lindos Campos, Rio de Janeiro, Senai, 2005, p. 156.

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Martius, Carl von, “A Fisionomia da Vegetação no Brasil” [1824], Arquivos do Museu Paranaense, vol. 3, 1943, ps. 244, 253-254, 246-247.

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O mapa foi incluído no volume 1 da Flora Brasiliensis e pode ser visto em A Viagem de von Martius, Rio de Janeiro, Index, 1996, p. 21. Para a classificação atual dos biomas brasileiros, ver Capobianco, João Paulo, “Biomas Brasileiros” in A. Camargo, J. Capobianco e J. Puppim de Oliveira, orgs., Meio Ambiente Brasil, São Paulo, Estação Liberdade, 2002. 8 Cisneiros, Francisco Freire Alemão, “Carta a Augustin de Saint-Hilaire em 23 de Novembro de 1851”, Anais da Biblioteca Nacional, Vol. 81, 1961. A Ilustração Luso-Brasileira, 1858: 258. Citado por Schwarcz, Lilia, As Barbas do Imperador, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 125. 10 Silva, José Bonifácio de Andrada e, “Necessidade de uma Academia de Agricultura no Brasil” in Obra Política de José Bonifácio, Brasília, Senado Federal, 1973, p. 41 9

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Silva, José Bonifácio de Andrada e, “Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura” in Obra Política de José Bonifácio, Brasília, Senado Federal, 1973, p. 103 12 Cisneiros, Francisco Freire Alemão, “Discurso no Aniversário da Academia Imperial de Medicina”, Revista Médica Fluminense, n. 4, p. 291 13 Cisneiros, Francisco Freire Alemão, “Apontamentos que Poderão Servir para uma História das Árvores Florestais do Brasil, Especialmente do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, Trabalhos da Sociedade Vellosiana, 1851, p. 53 14 Ferraz, Luiz Pedreira do Couto, “Relatório do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura” in Relatório apresentado à Assembléia Legislativa pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, Anexo E, Rio de Janeiro, 1870, p. 24 15 Rebouças, André, Excursão ao Salto do Guaíra: O Parque Nacional, Rio de Janeiro, 1876, p. 73 16 Cunha, Euclides da, Obra Completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, vol I, p. 205-207 17 Torres, Alberto, As Fontes da Vida no Brasil [1915], Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1990, ps. 3, 4 e 12 18 19

Dean, Warren, Op. Cit., p. 276. Medeiros, Rodrigo, “Evolução das tipologias e categorias de áreas protegidas no Brasil”, Ambiente e Sociedade,

Vol. 9, n.1, 2006.

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