Flora Gomes e o uso de alegorias no cinema de Guiné-Bissau

June 15, 2017 | Autor: Morgana Gama | Categoria: African cinema, Flora Gomes, Allegory Studies, Lusophone Cinema
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Flora Gomes e o uso de alegorias no cinema de Guiné-Bissau1 Flora Gomes and allegorical applications in Guinea Bissau cinema 2

Morgana Gama de Lima (Mestre – Universidade Federal da Bahia)

Resumo: Como parte do conjunto de filmes produzidos em língua portuguesa, feitos em regime de coprodução, e considerando a influência dos movimentos diásporicos na constituição das narrativas audiovisuais contemporâneas, esta comunicação propõe um olhar sobre a obra do cineasta guineense Flora Gomes na perspectiva de compreender como a utilização de recursos alegóricos na narrativa fílmica indica novas possibilidades de circulação e análise das obras.

Palavras-chave: Cinemas em português; cinema africano; alegoria.

Abstract: As part of the set of films produced in Portuguese made in a co-production system and considering the influence of diasporic movements in the constitution of contemporary audiovisual narratives, this communication proposes a reflexion about the work of the Guinean filmmaker Flora Gomes from the perspective of understanding how use of resources in allegorical film narrative indicates new movement possibilities and analysis of the these works.

Keywords: Portuguese movies; african cinema; allegory.

Diante da variedade de filmes produzidos pelos cinemas africanos de língua portuguesa e da relevância de seus autores para pensar a influência de movimentos diásporicos na constituição de narrativas audiovisuais, esta comunicação tem a proposta de

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Trabalho apresentado no XVIII Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão: CINEMAS EM PORTUGUÊS: aproximações - relações. 2 Mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia, atualmente pesquisa sobre cinemas africanos de língua portuguesa.

comentar parte da obra do cineasta guineense Flora Gomes no sentido de compreender como a utilização de recursos alegóricos na narrativa fílmica indica novas possibilidades de circulação e análise dos filmes africanos para além das particularidades históricas ou geográficas do seu contexto de produção. O presente trabalho também é fruto da necessidade em se construir investigações voltadas para a linguagem cinematográfica de filmes africanos, especialmente a partir de uma avaliação das estratégias empregadas na construção de suas narrativas, utilizando como suporte metodológico os procedimentos da análise poética (GOMES, 2004) e a noção de alegoria (BENJAMIN, 1984) enquanto um elemento que, ao tempo que constitui essas narrativas, produz um efeito de transnacionalização da obra cinematográfica permitindo o seu trânsito nas diferentes esferas de recepção que compõem essa espécie de cosmopolitismo lusófono aqui compreendido como efeito resultante das produções provenientes de países de língua portuguesa.

Do cinema africano de língua portuguesa Mesmo com o pouco tempo de existência – aproximadamente 50 anos – os cinemas africanos têm demonstrado trazer grandes contribuições para o cinema contemporâneo mundial, tanto do ponto de vista temático, ao trazer em suas narrativas questões políticas complexas, como os efeitos do pós-guerra; quanto pelo aspecto da produção, ao apresentar novas poéticas fílmicas a partir da experiência diásporica de seus realizadores. Porém, na medida em que foram firmados regimes de coprodução, o cinema dos países africanos também se fortaleceu ganhando um suporte em questões de infraestrutura de produção, distribuição e circulação de seus filmes, esta última, principalmente em festivais e mostras de filmes. Integrando essas novas formas de agremiação do cinema mundial, muitas vezes a familiaridade linguística acaba servindo como estratégia de articulação entre os países, a exemplo dos cineastas provenientes de países africanos de língua portuguesa que realizam produções em parceria com Portugal. Especialmente após a adesão de Portugal à

Comunidade Europeia em 1986, houve uma vasta parceria cinematográfica transnacional com países como o Brasil (1985), Cabo Verde (1989), Moçambique (1990), Angola (1992) e São Tomé e Príncipe (1994). De acordo com Paulo Cunha (2013, p. 75) como parte dessas políticas de reaproximação “[...] o cinema português tem tido como prioridade na sua internacionalização, a ideia de lusofonia, procurando estreitar relações com os países africanos de língua oficial portuguesa”. Nesse sentido, desde 2001, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), em Portugal realiza um programa de promoção da coprodução com países de língua portuguesa no qual diversos filmes africanos foram realizados. Um exemplo disso se encontra na própria trajetória do cineasta guineense Flora Gomes que de cinco longasmetragens realizados, quatro – os filmes que compõem o corpus desta pesquisa – foram financiados com fundos majoritariamente portugueses. Apesar disso, para Carolin Ferreira (2012, p. 151) as coproduções com Guiné-Bissau, devido a uma série de razões relacionadas à história, dimensão e situação geográfica, mas principalmente porque eles foram feitos por um cineasta nacional com assinatura autoral, diferem dos filmes transnacionais realizados por outros países africanos, a exemplo de Moçambique. Assim, se em um primeiro momento, as narrativas produzidas por cineastas africanos se concentravam em preocupações relativas a buscas identitárias e resgate de valores nacionalistas, no entanto, na medida em que há a articulação de novos meios de produção, as narrativas também se transformam fazendo emergir questões relacionadas tanto à cultura de origem do realizador, quanto à cultura que o acolhe. Cresce também o número de produções de ficção e a possibilidade de trazer narrativas outras, criar outras realidades, fantasiar, sonhar, divergindo de uma tendência outrora voltada apenas para o documentário. Segundo o pesquisador Mohamed Bamba (2011), é um cinema que ao se transnacionalizar “(...) decreta de um lado a obsolescência da ideologia das identidades nacionais fixas, bem como, promove debates sobre todos os ‘modos de identificação emocional’ e sua mise en scène nos filmes (...)” (BAMBA, 2011, p. 173). Nesse sentido, vale pensar: quais seriam então, as estratégias empregadas na constituição das narrativas fílmicas de modo a negociar com esse movimento de “transnacionalidade”?

A partir desse contexto de cooperação internacional, alguns filmes dos cinemas da chamada África Lusófona (que inclui países como Moçambique, Angola, Cabo Verde e GuinéBissau), merecem ser observados com detalhe. E é dentro desse universo que destacamos o trabalho desenvolvido pelo cineasta de Guiné Bissau, Flora Gomes.

O cinema de Flora Gomes Flora Gomes, de nome Florentino Gomes, é natural de Cadique, cidade da GuinéBissau, e ao longo da sua trajetória realizou quatro longas-metragens em regime de coprodução: Os olhos azuis de Yonta (Udju Azul Di Yonta, 1991); Árvore de Sangue (Po di sangui, 1996); Minha Fala (Nhá Fala, 2000) e República de meninos (República de mininus, 2005). Destes, daremos destaque a Po di sangui (1995) e Nhá fala (2000). Po di sangui (Pau ou Árvore de Sangue, 1996), terceiro longa-metragem de Gomes, a narrativa apresenta a história dos de uma aldeia ficcional Amanha Lundju (que significa “Amanhã Longe” ou “Amanhã distante”) em que uma árvore é plantada para o nascimento de cada novo integrante da aldeia. De acordo com a lenda, a relação do indivíduo com a árvore vai além de uma representação simbólica, mas cresce com a criança e se torna sua alma. Uma ligação que se torna clara no interior da narrativa quando há um grande desmatamento na aldeia. Em tal período o número de árvores cortadas supera ao de árvores plantadas, desencadeando em uma série de conflitos de relacionamento entre os membros da aldeia. Ainda que a questão do desmatamento florestal tenha um impacto para a rotina daquela tribo, visto que afeta uma tradição vigente – a ligação espiritual das pessoas com as árvores – quando o cineasta Flora Gomes traz uma questão global como o desmatamento para a narrativa, acaba construindo uma ponte de significação para que mesmo o espectador alheio às particularidades culturais daquela tribo retratada seja capaz de compreender a mensagem central ali retratada: o conflito entre os valores de uma tradição e os impactos gerados quando esses valores são afetados. Como em reforço ao tom de fábula da narrativa, enquanto a personagem Dou retorna para a aldeia – sua terra de origem e onde seu irmão gêmeo Hami acabara de morrer – uma

mulher conta uma história um grupo de crianças, cena intercalada pela imagem de fios que se entrelaçam em uma máquina de tear, manuseada por outras duas pessoas próximas ao grupo (Figura 1). Uma composição imagética que remete ao próprio ato de contar histórias, na medida em que o narrar, também é reunir os fios soltos dos fatos e acontecimentos dentro de uma lógica e sequência. Em relação à obra do cineasta, o ato de contar histórias é um elemento que se apresenta através de personagens específicas não só revelando a importância da cultura oral, mas usando as personagens como narradoras da própria história.

Figura 1: Durante a narração da história, o tear em primeiro plano Fonte: PO DI, 1996. (Les Matins Films)

Após essa cena inicial, de chegada de retorno de Dou, em pouco tempo, diante do desmatamento do terreno – ocasionado pela morte de várias árvores, almas – misteriosamente a aldeia é tomada por um incêndio. A comunidade tenta de todas as formas de apagar o fogo, no entanto, as chamas só cessam por completo após a intervenção de Calacado, personagem apresentada como o guia da aldeia. Depois, é ele mesmo que confia a Dou a missão de apoiar a aldeia no exílio e acompanhar Saly, jovem prometida a seu irmão, e que agora poderia guiálo na direção do sol, por quem ela havia se apaixonado. Como se pôde observar por esses breves relatos baseados na narrativa apresentada pelo filme, o simbolismo é um elemento recorrente na obra de Flora Gomes. O roteiro, escrito em parceria com Anita Fernandez não mostra uma aldeia africana realista, mas uma aldeia possível. Razão pela qual o filme também é considerado como etnoficção. Tal “fuga” da realidade, não só permite ao cineasta considerar questões históricas e tradicionais por meio de deslocamentos, inversões, mas também uma ampliação da margem de interpretações,

possibilitando o alcance da obra para uma diversidade maior de públicos. Por fim, não menos importante que os elementos já apresentados, o filme traz uma cena de comemoração em que o nascimento de crianças marca o retorno da comunidade para a aldeia e traz novas expectativas para o futuro. Tal momento é celebrado com uma música entoada pelos próprios personagens. Já Nhá Fala (Minha Fala, 2002), uma de suas produções mais conhecidas, apresenta a história de Vita, uma jovem da Guiné que ganha bolsa para estudar na França, mas tem em sua família uma tradição segundo a qual as mulheres eram proibidas de cantar e caso o fizessem morreriam. A história contada em forma de musical – o que poderia ser um paradoxo diante da proibição – se desenvolve com a viagem de Vita a Paris, onde se apaixona por Pierre, músico jovem e talentoso. Tal envolvimento faz com que Vita não só quebre a tradição da família, ao se tornar cantora, como a faz retornar para o seu lugar de origem para encenar a sua própria morte e ressureição. Em síntese, vemos aqui como a protagonista é confrontada com suas tradições ao visitar outro país (França). Conflito que no filme se resolve, quando a personagem retorna para o seu país de origem operando uma releitura da sua tradição. A partir dessas duas produções somos então levados a fazer algumas questões: como os recursos da linguagem cinematográfica são utilizados nos filmes de modo a constituir essas alegorias? Como o uso de alegorias contribui para pensar a inserção e trânsito dos filmes africanos de língua portuguesa? Questões cujas respostas ainda estão por emergir, visto que requerem uma incursão na obra fílmica, mas que podem servir tanto para pensar acerca do cinema produzido por Flora Gomes, quanto para outros filmes realizados em coprodução com Portugal.

Alegoria e transnacionalidade Os filmes do cineasta Flora Gomes, apresentados nessa comunicação, pelo caráter simbólico de suas narrativas, trazem implícita ou explicitamente uma construção alegórica, ou seja, uma narrativa cujo significado vai além do aparente. Apesar das diversas formulações acerca desse conceito, Ismail Xavier, em seu ensaio A alegoria histórica (XAVIER, 2005) segue

a perspectiva de Walter Benjamin (1985), e defende a ideia de alegoria como um fragmento da ação do tempo sobre a cultura, um discurso que embora não se reporte a um tempo presente, lembra uma condição futura. Assim, consideramos que o uso de alegorias enquanto estratégia empregada na constituição

das

narrativas

fílmicas

possibilita

meios

de

negociação

com

essa

transnacionalidade, resultante dos regimes de coprodução, ao trazer construções cuja interpretação se abre para temas mais amplos como o conflito entre tradição e modernidade, como exemplificado nos dois filmes aqui citados. Em contraponto a análises territorializantes, que insistem em uma reflexão voltada para a condição pós-colonial ou periférica dos filmes africanos, acreditamos que a utilização de recursos alegóricos nas narrativas indicam possibilidades de uma análise do cinema africano para além das idiossincrasias históricas ou geográficas do seu contexto de produção e descortina novas formas de fazer e pensar esse cinema, não restringindo ele a abordagens/interpretações nacionalistas.

Referências BAMBA, M. Do “cinema com sotaque” e transnacional à recepção transcultural e diaspórica dos filmes. In: Palíndromo – Processos artísticos contemporâneos, n.5, 2011. Florianópolis: EDUSC, 2011. (p. 165-193). BENJAMIN, W. Origem do Drama Barroco Alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. CUNHA, P. Coproduzir em português: da política e da prática. In: DENISSON, Stephanie. World cinema: as novas cartografias do cinema mundial. Campinas, São Paulo: Papirus, 2013. (Série de Estudos Socine). (p. 75-89). FERREIRA, C. O. Identity and Diference: Poscoloniality and Transnacionality in Lusophone Films. Berlin: LIT Verlag, 2012. (p. 143-173). GOMES, W. La poética del cine y la cuestión del método en el análisis fílmico. In: Significação: Revista de Cultura Audiovisual. V. 31, n. 21 (2004). (p. 85-105). NHÁ Fala. Direção: Flora Gomes. Produção: Luís Galvão Teles; Jani Thiltges; Serge Zeitoun. Roteiro: Nhá Fala. Portugal: Fado Filmes; França: Les Filmes de Mai; Luxemburgo: Samsa Films, 2002 (85 min.), 1 DVD. PO DI sangui. Direção: Flora Gomes. Produção: Les Matins Films (Jean-Pierre Gallèpe). Coprodução: Arco Iris (Guinée Bissau); MK2 Productions (France); Cinetelefilms (Tunisie); SP

Filmes (Portugal); Lucie Films. Roteiro: Flora Gomes e Anita Fernandez. Música: Pablo Cueco. França: Films sans frontières, (Galeshka Moravioff). 1996 (90 min), 1 DVD. XAVIER, I. A alegoria histórica. In: RAMOS, Fernão (Org.) Teoria contemporânea do cinema: pós-estruturalismo e filosofia analítica (vol. I). São Paulo: SENAC. 2005.

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