Fluência cultural na obra de Claire Denis

July 8, 2017 | Autor: Andy Malafaia | Categoria: Direitos Humanos, Claire Denis, Imigração, Intercultural Cinema
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UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL COMUNICAÇÃO SOCIAL – CINEMA E VÍDEO

ALEXANDRE MALAFAIA RIBEIRO FLUÊNCIA CULTURAL NA OBRA DE CLAIRE DENIS

Niterói 2013

UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL COMUNICAÇÃO SOCIAL – CINEMA E VÍDEO

ALEXANDRE MALAFAIA RIBEIRO FLUÊNCIA CULTURAL NA OBRA DE CLAIRE DENIS

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau Bacharel em Comunicação Social – Habilitação Cinema.

ORIENTADOR: Profa. Dra. Elianne Ivo Barroso Rio de Janeiro 2011

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por terem sempre acreditado nos meus sonhos. À Elianne Ivo, pela paciência na minha orientação, e Ana Enne e José Carlos Monteiro, pela participação na banca de defesa. Aos meus amigos de turma e de faculdade, que fizeram deste ciclo algo especialmente divertido. À todos os professores, pelas discussões estimulantes sobre o cinema e a vida. Por fim, ao Eraldo, por estar sempre ao meu lado.

“Aos olhos dos gregos, o mar era violeta.” Paul Veyne

RESUMO

A obra de Claire Denis é um dos destaques do chamado cinema intercultural. Na presente monografia, analisa-se 4 obras por ela dirigidas sobre a temática da imigração, visando identificar a representação nestas do conceito de “fluência cultural”. Palavras-chave: Claire Denis; cinema intercultural; imigração; fluência cultural.

ABSTRACT

Claire Denis’ work is one of the major highlights of the so called intercultural cinema. In this monograph, we analyze four of her movies wich deal with the theme of immigration, in order to identify how the concept of “cultural fluency” is represented in those movies. Keywords: Claire Denis; intercultural cinema; immigration; cultural fluency.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

07

1 MIGRAÇÃO E FLUÊNCIA CULTURAL

09

1.1 O INTERCÂMBIO CULTURAL

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1.2 A FLUÊNCIA CULTURAL

11

1.3 O ESFORÇO COGNITIVO

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1.4 GRADAÇÕES EM FLUÊNCIA CULTURAL

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1.5 O ETNOCENTRISMO

15

1.6 UMA NOVA IDENTIDADE

16

2 O IMIGRANTE NA FRANÇA

17

2.1 POLÍTICA E IMIGRAÇÃO

19

2.2 S’EN FOUT LA MORT OU A DESUMANIZAÇÃO DO IMIGRANTE

20

2.2.1 SOBREVIVENDO À MARGEM

20

2.2.2 A POSIÇÃO ETNOCÊNTRICA

21

2.2.3 O FIM E O RECOMEÇO

22

2.3 O DESCONFORTO EM NOITES SEM DORMIR

23

2.3.1 CULTURA LEGAL E COMUNIDADES ÉTNICAS

24

2.3.2 MARGINALIDADE E DISCRIMINAÇÃO

26

2.3.3 IMIGRANTE CONTRA IMIGRANTE

27

3 O IMIGRANTE NA ÁFRICA

29

3.1 CHOCOLAT E AS RELAÇÕES NO PERÍODO COLONIAL

30

3.1.1 O COLONIZADO ATRAVÉS DO OLHAR INFANTIL

31

3.1.2 DESEJO E RELAÇÕES SERVIS

33

3.1.3 OUTROS PERSONAGENS EM CHOCOLAT

34

3.1.4 SEM PASSADO, SEM FUTURO

37

3.2 AS TENSÕES PÓS-COLONIAIS EM MINHA TERRA, ÁFRICA

37

3.2.1 PROPRIEDADE EM JOGO

38

3.2.2 ISOLAMENTO AOS COLONOS

39

3.2.3 REVANCHE E CISÃO

40

CONCLUSÃO

41

REFERÊNCIAS

44

7"

INTRODUÇÃO

Após ser assistente de diretores como Jacques Rivette, Wim Wenders, CostaGravas e Jim Jarmusch, Claire Denis iniciou com Chocolat (1988) uma bemsucedida trajetória como cineasta. Filmes como Bom Trabalho (Beau Travail, 1999), O Intruso (L’Intrus, 2004) e Desejo e Obsessão (Trouble Every Day, 2001) amealharam fãs, apesar de que ela, em seus mais de 25 anos de carreira como realizadora, ainda ser relativamente desconhecida do grande público1. Nascida em Paris, Denis teve a sua infância compartilhada entre o país natal e o continente africano, onde o seu pai fora administrador colonial. Suas experiências em Burkina Faso, Somália, Senegal, Camarões e em um subúrbio francês, para onde se mudou adolescente, moldaram o seu olhar e desenvolveram os dois elementos-chave de sua filmografia: a identidade e a alteridade, geralmente com ênfase na perspectiva do migrante. As migrações são um dos grandes fenômenos da contemporaneidade. No último século, o mapa geopolítico do mundo foi novamente retraçado e um enorme contingente de pessoas deslocou-se – e continua a deslocar-se –

pelo globo

terrestre, a maioria em busca de melhores condições de vida. Estes migrantes, ao ingressarem em um território desconhecido, precisam se familiarizar com esta sociedade que lhes é estranha, em um processo cognitivo chamado aquisição de “fluência cultural”. Quanto mais fluência cultural um migrante obter, mais adaptado ele estará neste novo ambiente social. Este trabalho se propõe a investigar, dentro da filmografia da cineasta francesa Claire Denis a abordagem de personagens em situações de migração, e como estes se relacionam com os nativos na aquisição de maior fluência cultural.

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Segundo MAULE (2010, p. 367), o pouco alcance dos filmes de Denis se deve “em parte pelo assunto particular de seus filmes, em parte por seu estilo visualmente desafiador e narrativamente não-tradicional, em parte por seu compromisso com um discurso transnacional e multicultural que recusa ajustes e posturas fáceis;

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De certo, este cinema dito intercultural, do qual Denis é um dos expoentes máximos, é provindo de realizadores que abandonaram a cartilha de um cinema mais convencional para abarcar novos olhares advindos de novas realidades. Esses novos olhares se passaram a captar novas realidades longe das antigas propostas eurocêntricas e descartam os clichês habituais das produções de rotina. Os filmes emergentes tentam quebrar as amarras do cinema de gênero, que por décadas vem aprisionando e impedindo temas como a migração e a colonização, e estabelecer uma real e complexa noção do tema da interculturalidade nas telas. A estereotipagem do migrante pelo cinema clássico influencia na maneira, por exemplo, de como pensamos os conceitos de interculturalidade ou de exílio. (MOURA, 2010, p. 59)

Dentro deste cinema destacam-se, portanto, as questões sobre imigração e os relativos choques culturais, apropriadas por alguns dos mais relevantes cineastas da atualidade, como Fatih Akim, Abdellatif Kechiche e a própria Claire Denis que, por terem sido eles mesmos imigrantes ou filhos de imigrantes, tornam-se, naturalmente, interlocutores com propriedade nestas questões. Em sua obra, Claire Denis trabalha, via de regra, com a imigração entre países com grande diferença de desenvolvimento socioeconômico e com laços coloniais – passados ou presentes -, o que torna o tema ainda mais relevante, em um momento histórico no qual cresce o sentimento de xenofobia na Europa e intensificam-se as imigrações devido às constantes crises econômicas e humanitárias que afetam as regiões mais sensíveis do mundo. O primeiro capítulo deste trabalho fará um breve apanhado sobre a história da mobilidade humana, do significado de ser estrangeiro e desenvolverá a conceituação de “fluência cultural”. O segundo capítulo se concentrará nos filmes S’en Fout la Mort (1990) e Noites Sem Dormir (J’ai pas Sommeil, 1994), abordando aspectos de “fluência cultural” de personagens estrangeiros habitando a França contemporânea. O terceiro e último capítulo se detém em personagens europeus no território africano, tendo como base os longas-metragens Chocolat (1998) e Minha Terra, África (White Material, 2009).

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1 – MIGRAÇÃO E FLUÊNCIA CULTURAL

O homo sapiens, considerado a primeira anatomia humana moderna, era originário do continente africano e, supostamente, a partir de seus deslocamentos, é que o restante do planeta foi povoado, no primeiro processo maciço de migração de que se tem notícia, reforçando o caráter primordial deste fenômeno. Posteriormente, povos conquistadores invadiram – e invadem – territórios alheios, tendo como exemplo maior as Grandes Navegações, nas quais os colonizadores europeus dominaram outros continentes até então desconhecidos. O termo migração, cuja acepção atual data do século XIX, quando, com o surgimento dos Estados-nação no mundo ocidental, passou a ser usado

“para

descrever o cruzamento, por estrangeiros, de suas fronteiras, que passaram a ser definidas por linhas contínuas e precisas” (SILVA, 2010, p. 15), representa um dos fenômenos mais relevantes da contemporaneidade, pois, em um mundo globalizado, mais pessoas estão dispostas a deixar suas raízes em busca de uma vida diferente, ou são impelidas a tal feito. Os números relativos aos migrantes são impressionantes –“estima-se que no início do século XXI 120 milhões de pessoas vivem num país diferente do de origem; projetam-se 230 milhões para 2030” (TEDESCO, 2006, p. 41). A mobilidade humana abrange muitos atores sociais de um sem número de classes, etnias, culturas e religiões. As causas e motivações que levam ao deslocamento são variadas, e dependem dos contextos socioculturais. Estes deslocamentos territoriais podem ser oriundos das mais diversas necessidades, como fuga de condições naturais adversas, perseguição política, conflitos étnicos, busca por melhores condições de vida, movimentos de conquistas de territórios, questões religiosas, dentre uma infinidade de outros interesses.

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1.1 – O intercâmbio cultural

Derivadas do direito de ir e vir, consagrado no artigo XIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as migrações têm aspectos bastante positivos, basicamente relativos à melhoria das condições de vida do migrante, que tem novas oportunidades para o seu enriquecimento pessoal, decorrentes do encontro com novos povos. Enriquecimento que também ocorre com o povo receptor, que tem a oportunidade de contato com uma cultura diferente. Mas esse intercâmbio cultural não se estabelece da mesma forma como outras relações realizadas entre membros de uma mesma origem social. Cada sociedade partilha um somatório de valores, crenças, mitos, rituais, comportamentos etc. que formam um sistema simbólico: a cultura. Cada cultura “é uma gramática que delineia e gera os elementos que a constituem e lhe são pertinentes, além de atribuir sentido às relações entre os mesmos” (RODRIGUES, 1989, p. 132). Portanto, aos olhos do estrangeiro, todo esse conjunto de elementos pode parecer-lhe obscuro, desprovido de significados, e a ele caberá, com um olhar externo, tentar apreendê-lo. SIMMEL (2005, p. 270), filósofo e sociólogo alemão pioneiro nos estudos sobre o estrangeiro, sinalizava que este seria sempre considerado alguém de fora, um não-membro do grupo e que, portanto, as relações entre o nativo e o estranho se dariam a partir de um certo parâmetro de distanciamento objetivo. Esta visão já representa uma grande evolução, eis que, “em Roma o estrangeiro não tinha direitos, pois estes derivavam exclusivamente da religião, da qual o alienígena era excluído” (DOLINGER, 2008, p. 127). A relação entre nativos e imigrantes é historicamente tensa, marcada por avanços e retrocessos, em regra, influenciados pelo desenvolvimento econômico e pelas necessidades do mercado de trabalho, que, em última análise, afetam sobremaneira o conjunto social.

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1.2 – A fluência cultural

Em suas digressões sobre comunidade emocional, MAFFESOLI (2010) entende que toda sociedade possui sentimentos em comum vividos intensamente, mas que a energia disposta na própria criação acaba por se esgotar, provocando um laço entre ética comunitária e solidariedade. Solidariedade esta que pode, e deve, se estender a um novo elemento, no caso o imigrante, criando uma nova relação cultural que é benéfica a ambos. Entretanto, para o imigrante, o desenraizamento cultural, a desestruturação da identidade e a própria dificuldade de inserção social no destino são questões que devem ser enfrentadas e que muitas vezes se tornam catalizadoras de um mal estar. O indivíduo, ao transpor a fronteira de um Estado, se defronta com uma sociedade com cultura, economia e jurisdição diferentes, para além de uma simples mudança de território. Ao se aventurar, o imigrante deixa para trás muitas coisas; as certezas que construiu no decorrer de sua vida são deslocadas, realocadas, e é preciso que ele construa todo um novo gabarito para as novas relações sociais que se formarão com os indivíduos nativos, criando-se assim um contato intercultural inerente ao fenômeno da imigração. Para MELLO (2012), existe todo um aprendizado que resulta no entrecruzamento de experiências subjetivamente reconstruídas a partir da linguagem e da comunicação exercitadas na transposição de valores, de crenças, fórmulas de compreensão, tipificações, estereótipos, generalizações e mais uma variada gama de recursos de conhecimento mobilizados pelos sujeitos expostos diretamente ao contato interpessoal. A imigração, de certo, seria catalizadora de fenômenos de cognição e comunicação, nos quais o indivíduo migrante (e também o nativo) tentará apreender aquele novo ambiente como seu. Ao efetuar um esforço cognitivo para entender o outro – de absorver, de negar, de desconstruir, de reconstruir – o ser humano constitui um fenômeno sociológico de transação de subjetividades que desencadeia novos valores culturais. Ao desenvolverem este esforço incessante para se inserirem neste novo território, os imigrantes experimentam sensações ambíguas, de choque e até de

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crise. É um processo gradual, no qual muitos indivíduos o fazem parcialmente, outros amplamente, alguns totalmente. É sobre este processo que MELLO (2012) desenvolve o conceito-chave para este trabalho, o de “fluência cultural”, com o qual se compreende as maneiras como o imigrante recepciona criticamente os valores e as crenças da nova sociedade da qual passa a participar ativamente.

1.3 – O esforço cognitivo

A fluência cultural é resultado dos esforços de compreensão dos recursos cognitivos utilizados nos contatos interculturais, que permitem imigrantes e nativos, com históricos culturais diferentes, se compreenderem, trocarem informações e construírem a base de uma realidade comum onde se realiza a própria sociedade. As realidades compartilhadas decorrem de um esforço cotidiano de dois ou mais indivíduos em se fazerem apreender. Através do conceito de fluência cultural é possível compreender as diversas gradações de incorporação de conhecimento pelo imigrante da cultura que o recebe. Para que aconteça uma naturalização desta cultura estrangeira, é preciso que o imigrante traga estes novos códigos para si, “é necessário ao imigrante encontrar uma tradução para estes códigos que o permita estabelecer uma zona de conforto cognitivo para conviver senão em harmonia ao menos pacificamente com estes novos códigos culturais e morais com os quais passa a conviver cotidianamente” (MELLO, 2012, p. 22). O imigrante, ao se posicionar dentro desta sociedade receptora, passa então a um processo progressivo de apreensão desta nova cultura, que culmina com a capacidade de ter visão crítica deste novo sistema, bem como conhecer o seu próprio lugar nesta sociedade. Com uma fluência cultural mínima, este imigrante poderá construir um cotidiano que lhe permitirá desfrutar de uma vida como a de todos os demais. Obviamente, este processo não se dará sem empecilhos; muitas adversidades decorrentes do contato com o diferente deverão ser enfrentadas pelo imigrante, tais como as hostilidades e recusas da sociedade receptora em incorporá-lo.

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É importante ressaltar que o processo de aquisição de fluência cultural em nada significa a perda total das referências culturais prévias, nem a adesão irrestrita do imigrante à nova cultura. A manutenção de crenças e valores prévios permite ao imigrante seguir na nova cultura sem abrir mão daquilo que ele julga serem suas referências primas. Os elementos culturais adquiridos no novo território se juntarão aos preexistentes, inclusive cabendo ao imigrante recusar elementos que julgue não caberem em sua ética ou moral. A religião é um dos principais fatores impeditivos de assimilação cultural total do imigrante. JAYME (2012) chama a atenção para a situação de indivíduos oriundos de Estados islâmicos, que devem seguir o Corão, mesmo quando conflitante com a legislação do país receptor. Como exemplo, cita o fato de imigrantes tunisianos na Espanha continuarem se valendo da figura do kafala 2 , como alternativa à adoção por ser esta proibida pelo Corão. Para MELLO (2012), a fluência cultural significa algo para além que o da simples utilização funcional da língua e de expressões que permitam o desempenho de atividade profissional e demais ações instrumentais da vida cotidiana. Da perspectiva aqui trabalhada, a cognitivista, a fluência cultural se relaciona intrinsicamente aos fluxos de transação, a troca de acervos culturais entre entes de culturas diferentes. Ao imigrante, estas trocas significam ter a capacidade de viver melhor num ambiente potencialmente hostil; é transformar o estranho em familiar ou, pelo menos, em reconhecível; é, basicamente, comunicar-se, permitindo-lhe viver e permanecer na cultura receptora.

1.4 – Gradações em fluência cultural

De certo, o imigrante pode se deparar com uma sociedade altamente regrada, portanto, de maior complexidade, que o pautará de forma muito mais exigente e que lhe trará muitas incertezas a mais sobre o próprio destino. O imigrante habitualmente precisa realizar operações difíceis que muitas vezes não estão no dia-a-dia do nativo, como driblar leis que lhes dificultam a permanência, a autorização para o """""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""" 2

Processo de adoção específico do direito muçulmano, que proíbe a adoção plena, mas que permite que uma criança seja recebida por uma família adotiva, sem criar vínculos de filiação ou direitos hereditários.

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trabalho, o reconhecimento de diplomas escolares, a vigilância policial, dialogar com autoridades de controle de imigração, entre outras. O conceito de fluência cultural permite, portanto, a criação de uma escala gradativa entre a situação de completo estranhamento do imigrante, passando pela progressiva incorporação dos dados da cultura receptora – quando, aos olhos do nativo, ele passa a ser visto como alguém que se estabelecerá naquele território - , até o momento em que ele, ao adquirir plena fluência, se naturaliza completamente àquele ambiente, apesar de toda a sua história pessoal jamais poder ser descartada. A partir de suas pesquisas, MELLO (2012) identificou, em relação às questões cognitivas e que dizem respeito à aquisição e desenvolvimento da fluência cultural, as posições possíveis para o imigrante na cultura que o recebeu, que são integração, semi-integração e não-integração. Para ele, “elementos como tempo de permanência no país, cor, religião, educação formal, domínio linguístico, habilidades profissionais, cidadania e não-cidadania, gênero, não são decisivas” para a fluência cultural por não serem questões ligadas à cognição. O imigrante integrado à cultura receptora seria aquele que usualmente é envaidecido por participar da cultura receptora, porém tem orgulho em guardar seus hábitos e costumes. Tendo muitas vezes o trabalho como principal elemento de inserção na nova cultura, adquire a fluência necessária para viver em conforto cultural. Ainda que muitas vezes seja visto em escala inferior pela nova sociedade, é exaltado por amigos e familiares, visto como exemplo para aqueles que também desejam emigrar. Já a situação do semi-integrado é um pouco diferente, pois as dificuldades de integração com a cultura receptora – o status inferior, o idioma, as discriminações – lhe causam maior sofrimento. MELLO (2012), através da sua pesquisa, identifica que este tipo geralmente trabalha em empregos não-legalizados, como venda ambulante, comércio de drogas, prostituição, serviços temporários etc. O grupo dos não-integrados se constitui por aqueles que estão no país receptor de passagem, aguardando oportunidade melhor em outro. São, em sua maioria, refugiados humanitários e políticos, em regra originários do chamado Terceiro Mundo. Portanto, não se programaram para estar neste país que os acolheu.

São

geralmente

bastante

desconfortáveis neste país estrangeiro.

hostilizados

e,

portanto,

totalmente

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1.5 – O etnocentrismo

Foi construído um imaginário utópico nas nações empobrecidas de que os países do chamado Primeiro Mundo seriam lugares de benesses, de culturas abertas, de tranquilidade política e da abastança. A realidade, entretanto, é distópica. Para RODRIGUES (1989), a apropriação de um espaço é uma das maneiras mais nítidas através das quais uma sociedade exibe sua organização, fazendo com que o imigrante possa a vir a ser considerado um intruso em dado território de dinâmica peculiar. Deste fenômeno, derivam as mais variadas formas de racismo, exclusão e segregação do imigrante. A ideia de etnocentrismo, peculiar ao ser humano desde a antiguidade, é o bastião de toda sociedade que, “no fundo, no fundo, não aprecia os estrangeiros e os diferentes, censurando-lhes a maneira de ser e exibindo sentimentos de hostilidade em relação a eles” (RODRIGUES, 1989, p. 145). O etnocentrismo faz com que as sociedades tenham propensão a achar a sua própria cultura a mais correta, a mais natural, enquanto a experiência do outro lhe soa “muitas vezes como verdadeira monstruosidade, despertando a tendência a repudiar pura e totalmente os preceitos éticos, estéticos, religiosos, gastronômicos etc.” (RODRIGUES, 1989, p. 146). As sociedades receptoras têm dificuldade em reconhecer direitos e garantias ao estrangeiro, tratando a imigração como matéria de segurança nacional, e não como direito humano que o é. O mundo contemporâneo, anunciado como globalizado e tolerante, mantém-se como um coletivo de Estados isolados, culturalmente protecionistas, que se valem de pesados preconceitos inerentes aos próprios vocábulos utilizados para designar o imigrante (estrangeiro, alienígena, forasteiro etc.) para, em situação de conflito cultural, estender as tensões ao máximo, ressaltando as contradições existente entre os elementos antagônicos neles existentes. TEDESCO (2006) afirma que “imagens, imaginários, símbolos, rótulos e desejos vão sendo produzidos pelo mundo globalizado tanto no sentido de atração quanto de resistência à inserção”. Por certo, tais imagens, imaginários, símbolos,

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rótulos e desejos são refletidos na produção cultural do Estado receptor, imprimindo a esta uma marca única, individualizada. Nesta mesma linha, BAUMAN (2012, p. 43) afirma que A sociedade e a cultura, assim como a linguagem, mantém sua distinção – sua “identidade”-, mas ela nunca é a “mesma” por muito tempo, ela permanece pela mudança. Além disso, na cultura não existe “agora”, ao menos no sentido postulado pelo preceito da sincronia, de um ponto no tempo separado de seu passado e autossustentado quando se ignoram suas aberturas para o futuro. (grifo do autor)

Assim, a produção cultural de um dado Estado reflete invariavelmente seus valores e sua história, marcas por certo também presentes quando abordada os fenômenos migratórios e a situação do imigrante no país receptor. O conceito de cultura remete imediatamente à ideia da construção de um conjunto de características instituídas pelo homem. A cultura de uma determinada sociedade é identificada através da repetição de fórmulas, costumes e ideias partilhadas por um mesmo grupo social, que originaria uma espécie de “ordem” a ser seguida por seus partícipes para manutenção e perpetuação do status quo. A maioria das sociedades contemporâneas encontra-se estruturada em torno da sua quase imutabilidade. Para BAUMAN (2012), a contradição lógica da ideia de construção da ordem é reflexo da genuína contradição social constituída pela prática dessa construção. Se o que se deve ordenar é um conjunto de seres humanos, a tarefa consiste em incrementar a probabilidade de certos padrões de comportamento, ao mesmo tempo que se restringe, ou se elimina totalmente, a possibilidade de outros tipos de conduta.

1.6 – Uma nova identidade

O imigrante, ao se inserir neste contexto preestabelecido, se depara com um sistema que lhe é contra, que lhe evita. Ele seria o catalizador de tudo aquilo que a ordem rejeita – uma língua diferente, outros hábitos, outro histórico cultural, portanto, um elemento desestabilizador. Ao ir adquirindo fluência cultural, ele vai se apoderando de instrumentos que o farão assimilar esta cultura.

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Para o imigrante se aproximar da cultura alheia, lhe será exigido coragem, engenhosidade, aprendizado de regras que lhe são estranhas e que serão dominadas através de muitos erros. A distância entre ele e a cultura que agora o acolhe se torna um elemento social a ser superado. O imigrante se vê constantemente cruzando a divisória imaginária entre o pertencimento e o nãopertencimento, sob uma certa supervisão não muito simpática por parte da sociedade receptora. “Dentro” é uma extrapolação de “estar em casa”, caminhar num terreno que se domina, conhecido até a evidência ou mesmo a invisibilidade. “Dentro” envolve seres humanos e coisas que são vistos, encontrados e tratados, ou com os quais se interage diariamente, interligados à rotina habitual e às atividades do dia a dia. “Dentro” é um espaço em que raras vezes, se é que alguma vez, alguém se sente prejudicado, em que lhe faltam palavras ou no qual se fica inseguro como agir. “Fora” – “lá fora” –, por outro lado, é um espaço onde se vai apenas ocasionalmente, ou nunca se vai, em que tende a acontecer coisas que não se podem reagir, caso elas acontecessem – um espaço onde estão coisas das quais pouco se sabe, de que não se espera muito e do qual ninguém se sente obrigado a cuidar. (BAUMAN, 2012, p. 33)

Ao imigrante cabe moldar uma nova identidade para si, uma nova identidade compatível com o seu novo ambiente. O conceito de identidade não é muito lembrado quando o pertencimento é natural, quando é algo que não precisa ser buscado, reivindicado e defendido. Quando o ser humano simplesmente pertence, esta ligação se torna um tanto óbvia. O imigrante, porém, precisa se reinventar para se tornar parte de um grupo, para ser endossado neste novo contexto; ou ficar à margem, ser reconhecido apenas como um elemento marginal. Estes processos de assimilação cultural e dificuldade de aceitação do estranho por parte de uma sociedade só reforçam que a cultura é usada, através dos tempos, como álibi para discriminações, mas “o diálogo e a negociação também são elementos culturais – e como tal ganham, em nossa era de pluralidade, uma importância crescente, talvez decisiva” (BAUMAN, 2012, p. 81). Ao que se chama humanidade é esperada essa capacidade de diálogo.

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2 – O IMIGRANTE NA FRANÇA

O êxodo de milhões de indivíduos dos países mais pobres do mundo para a Europa, em busca principalmente de trabalho digno e uma vida melhor, é uma realidade geopolítica contemporânea. Ex-colônias da América, Ásia e, principalmente, África, dominadas durante séculos pelas metrópoles, tornaram-se centros de exclusão e desemprego, e “a fúria neoliberal, deflagrada nos anos 80, agravou ainda mais este cenário, estagnando as economias das nações periféricas em função da dívida externa e da desidratação de seus Estados” (BORGES, 2013). Se, no passado, as imigrações ocorriam basicamente das nações desenvolvidas para os países periféricos, hoje acontece o inverso. Pesquisas

realizadas

pela

INTERNATIONAL

ORGANIZATION

FOR

MIGRATION (2013), relevante organização intergovernamental, constataram que há, atualmente, cerca de 214 milhões de imigrantes ao redor do planeta, número consideravelmente superior aos estimados 150 milhões no ano 2000, que corresponde a 3.1% da população mundial3. Em outras palavras, uma a cada 33 pessoas no mundo de hoje é imigrante. A França é um país receptor de imigrantes ao menos desde a segunda metade do século XIX, visto que, “de 1850

1900, a população do país não

aumentou, enquanto que a dos outros países europeus foi triplicada, fazendo com que os vizinhos suprissem a falta de mão de obra” (DAMÁSIO, 2013), sem que houvesse, contudo, efetivo esforço em promover a integração dos migrantes. Como resultado

desta

separação,

atualmente

a

maior

parte

dos

problemas

socioeconômicos franceses é imputada à questão migratória, ao ponto de esta ser """""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""" 3

De acordo com PAPADEMETRIOU (2008), os países industriais avançados registram os mais elevados números de imigrantes per capita. O pelotão da frente é constituído por Luxemburgo, que tem cerca de 35 a 40% de imigrantes, seguido por Austrália e Suíça, com cerca de 25%. O segundo grupo tem entre 17 e 12%, e é composto por Canadá, Alemanha e Estados Unidos. Segue-se o terceiro grupo, formado por Suécia, França, Holanda, Bélgica, Rússia e Grécia, no qual a proporção dos naturais de outros países encontra-se entre os 8 e os 11%.

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considerada por ampla gama da sociedade francesa como a responsável pelo déficit público e pelo crescente desemprego.

2.1 – Política e imigração

Segundo LAMRANI (2013), na recente campanha eleitoral para as eleições parlamentares de 2012, a direita e a extrema-direita concentraram o discurso no tema da imigração e do medo do estrangeiro. A candidata Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, partido representante da extrema-direita fundado por seu pai, JeanMarie Le Pen, acusou a imigração, avaliada em 200 mil novas entradas ao ano, de ser responsável por todos os males, e comprometeu-se, durante a campanha, em reduzir este número em 95%. Já o candidato presidencial da União por um Movimento Popular, da direita conservadora, Nicolas Sarkozy, adotou também um discurso de extrema-direita ao denunciar a migração proveniente da África. Se as fronteiras exteriores da Europa não forem protegidas contra as concorrências desleais, contra o dumping, contra uma imigração descontrolada, não haverá mais um modelo francês, não haverá mais uma civilização europeia. Se nós construímos a Europa, o fizemos para nos proteger, e não para deixar que destruam nossa 4 identidade e nossa civilização . (SARKOZY, 2013)

A retórica xenófoba que estigmatiza o imigrante não sobrevive a aprofundamentos, visto que a imigração, longe de ser um problema para a sociedade francesa, é uma necessidade econômica vital. LAMRANI (2013), ao analisar um estudo do Ministério de Assuntos Sociais francês, relacionado ao custo da imigração sobre a economia nacional, revela que os imigrantes, “longe de sobrecarregar o orçamento dos benefícios sociais, atraem anualmente para as finanças públicas a soma de 12, 4 bilhões de euros, contribuindo assim para o equilíbrio do orçamento nacional e para o pagamento das pensões”.

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No original: “Si les frontières extérieures de l’Europe ne sont pas protégées contre les concurrences déloyales, contre les dumpings, contre une immigration incontrôlée, alors il n’y aura pas de modèle français, il n’y aura plus de civilisation européenne. Si nous avons fait l’Europe, c’est pour être protégés, par pour laisser détruire notre identité et notre civilisation.”

"

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É dentro deste contexto que Claire Denis desenvolve dois de seus primeiros longas-metragens, S’en Fout la Mort (1990) e Noites Sem Dormir (1994), que lidam com questões envolvendo a integração multicultural em Paris.

2.2 – S’en Fout la Mort ou a Desumanização do Imigrante

Claire Denis, em seu segundo longa-metragem, S’en Fout la Mort (algo como “quem se importa com a morte”), acompanha a rotina de dois imigrantes em um subúrbio francês que trabalham no submundo das rinhas de galo. Dah (Isaach De Bankolé) é beninês e vê as brigas entre os animais simplesmente como um negócio que lhe permite ganhar dinheiro rapidamente. Jocelyn (Alex Descas), originário das Antilhas, tratador e treinador das aves, por outro lado, praticamente as cultua. Negros e grandes amigos, eles se amparam um no outro na busca da sobrevivência em um país que lhes é hostil e que não lhes dá melhores oportunidades. A violência que permeia a luta entre os galos adquire um paralelo com essas vidas. “Homens, galos... mesma coisa”, conclusão que Deh chega em determinado momento do filme. A vida de ambos não é muito diferente daquelas dos animais que cuidam. Moram em quartos minúsculos e improvisados, se alimentam mal e permanecem praticamente à margem do convívio social.

2.2.1 – Sobrevivendo à margem

O filme não explicita há quanto tempo os dois imigrantes estão nesta condição, mas é possível apreender que ambos já possuem suficiente fluência cultural e experiência no território francês para sobreviverem por si mesmos, sem, contudo, terem conseguido se inserir socialmente entre os nativos, ficando relegados à margem e sobrevivendo às custas de um negócio ilegal. Segundo TEDESCO (2006, p. 101), “é possível inferir a grande predisposição desse

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contingente em ser absorvido e explorado pelas redes criminais e sua consequente propulsão à expulsão.” E, nesta margem, a luta dos cidadãos é somente pela sobrevivência, numa rinha na qual o adversário é a própria condição social. Não por acaso, a epígrafe do filme, “Todo ser humano, independentemente de sua raça, nacionalidade, credo ou ideologia, é capaz de qualquer coisa”, é uma citação do escritor norte-americano Chester Himes que, cansado do racismo de sua terra natal, imigrou para a França nos anos 1950. O “ser capaz de qualquer coisa”, no caso dos protagonistas de S’en Fout la Mort, é um conjunto de ações – abandonar o território de origem, se aventurar em um país desconhecido, se submeter a condições desumanas, entrar na ilegalidade – que podem se findar tragicamente. E, ao se afastarem de um convívio harmônico com a sociedade receptora, esses imigrantes desviados, longe de completarem o ciclo de fluência cultural, isto é, longe de conseguirem a integração com a comunidade-destino, se predispõem ao imponderável.

2.2.2 – A posição etnocêntrica

Pierre Ardennes (Jean-Claude Brialy), proprietário do negócio escuso e empregador de Jocelyn e Dah, é o antagonista natural destes dois personagens, pois, para além de explorar a condição frágil dos seus subalternos, encarna uma visão etnocêntrica que é um retrato de como parte da população nativa encara estes imigrantes. Em uma de suas falas, “vocês merecem ser sacaneados pelos brancos”, ele se posiciona muito claramente em relação aos protagonistas. Segundo COTESTA (2012, p. 78), o etnocentrismo conduz a uma depreciação sistemática do outro. “Quando o senso de superioridade do grupo eleito atinge os picos mais altos e, ao mesmo tempo, comporta a degradação intelectual e moral dos outros, se cria condições para que haja violência gratuita para com eles5”.

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No original: “Quando il senso di superiorità del gruppo eletto raggiunge le più alte vette e, nello stesso tempo, comporta la degradazione intelletuale e morale degli altri, su pongono le condizioni per fare violenza gratuita verso di loro”.

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Ardennes, porém, não tem plena consciência do papel que representa para estas pessoas. Na concepção de Denis e do co-roteirista Fargeau, este personagem até mesmo se coloca na posição de bem feitor. Quando, por exemplo, apresenta um de seus empregados, também imigrante, diz: “Este é François, meu cozinheiro. Nós somos grandes amigos. Ele tem trabalhado dez ou quinze anos para mim. Atualmente, até mesmo pago a providência social dele”. Na concepção de Ardennes, o direito à providência social para os conterrâneos é algo básico; já para os imigrantes é uma benesse extraordinária. Ardennes também não tem escrúpulos ao humilhar o imigrante quando contrariado. Um dos conflitos da narrativa é que ele, patrão, quer incrementar a briga dos galos, tornando-a mais violenta e, para isso, quer que os animais usem esporas de metal, tal como feito em outros países. Jocelyn, que tem grande apreço pelos animais, se recusa, o que dá margem ao patrão vexá-lo. “Tal mãe, tal filho, bons na cama, mas nascidos para perder. Eu a conhecia desde antes de você existir. Se você não fosse tão preto, poderia ter algum sangue meu em você”. Desta forma, Ardennes, para além de uma atitude discriminatória, relata a Jocelyn, de forma a humilhá-lo, que outrora teve relações sexuais com a mãe e, ainda, de forma quase explícita, informa ao espectador que Jocelyn e ele também tiveram algum tipo de relação carnal, o que, de certa maneira, explica o comportamento disfuncional do imigrante e sua afeição além da normalidade para com os animais. Comportamento este que, a partir desta revelação, chega às raias da loucura, com Jocelyn cada vez mais perturbado na sua relação com os galos, e desencadeando um alcoolismo extremamente autodestrutivo.

2.2.3 – O fim e o recomeço

As atitudes erráticas de Jocelyn se agravam tanto que, durante uma rinha, ele se desespera ao ver seu animal apanhar em combate, invade o certame, ofende os frequentadores em crioulo e acaba com o combate, para desespero do patrão e dos apostadores. É, então, esfaqueado e morto, encerrando o paralelo de Denis entre imigrantes e animais.

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Jocelyn morre de forma brutal, como um galo na rinha, naquele ambiente de apostas. À Deh, que vinha tentando fazer o papel de intermediador do conflito entre o patrão exasperado e a insanidade de Jocelyn, cabe limpar o corpo do amigo enquanto em voz off, reflete sobre a impossibilidade do amigo falecido de voltar à idílica terra natal e se reconciliar com a família deixada para trás. “Eu não gosto destes seus olhos. Eles estão vazios. Eles nunca me mostrarão a sua casa. Da varanda, sobre a árvore de fruta-pão, eu vejo as bananeiras se balançarem. Verdes e calmas. Logo abaixo, um riacho. Na sombra, por cima de uma mesa grande, tem cocos e um facão. Eles são tão gostosos após uma manhã de trabalho. São pesados e cheios de água. Os galos estão cantando, mas não posso vê-los. Sua mãe está lá dançando ao som da fita de Stevie Wonder. Ela parece tranquila. Ela cozinhou arroz e feijão. Ela vive sozinha agora. Seus irmãos e irmãs a ajudam. Ela está feliz sem um marido. Ela lhe repreende quando você diz que está indo para França. O que você fará lá, filho? A cabana de seu avô está perto. Ele também vive sozinho. Sua mãe leva a ele suas refeições. Ele é difícil de agradar. Vive junto aos seus galos. É tudo que ele tem agora”

O sonho de uma vida melhor para Jocelyn terminou abruptamente. Porém, para Deh, ainda há um longo caminho. Ele recolhe as suas coisas e, com um galo debaixo dos braços, parte para a estrada. Estrada da vida, na esperança de que o futuro naquele país estrangeiro lhe seja melhor.

2.3 – O desconforto em Noites Sem Dormir

O terceiro longa-metragem de ficção da carreira de Claire Denis, Noites Sem Dormir (J’ai pas sommeil, título original), apresenta duas linhas narrativas sobrepostas, focadas em imigrantes em níveis de fluência cultural opostas, que, unidas, montam um panorama da situação do imigrante na França no início da década de 1990. O filme inicia com a apresentação da personagem Daïga Bartas (Yekaterina Golubeva), provinda da recém-independente Lituânia. Jovem e bonita, ela chega a Paris dirigindo seu velho automóvel soviético, que ostenta um portentoso adesivo com o nome de seu país inscrito colado no vidro traseiro. Do aparelho de som do carro é ouvido que há um assassino em série atacando pessoas idosas na capital francesa.

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O primeiro ponto de parada de Daïga na nova cidade é em um bistrô, no qual, gesticulando bastante, pede “café grande”, demonstrando dificuldade no uso da língua francesa, impressão confirmada em seguida, quando tenta entender o garçom no momento do pagamento da conta e, mais uma vez, quando ela liga para alguém de um telefone público e nitidamente não consegue entender a mensagem da secretária eletrônica. O quase total desconhecimento da língua francesa é, para ela, um grande empecilho, assim como para todos os imigrantes de fluência cultural mínima. SPENCER (2008) informa que, em alguns países da Europa, como Dinamarca e Holanda, têm havido uma ênfase crescente nos programas de ensino da língua e de educação para cidadania, destinados aos imigrantes recém-chegados, cuja frequência é, por vezes, obrigatória. Já fora do bistrô, Daïga é abordada por policiais que a repreendem por ter estacionado o carro em local proibido. Neste momento, o filme pontua a relação que parte dos nativos tem para com os imigrantes: os policiais zombam do estado do veículo da lituana e a advertem, informando-a que “a regra é para todos”, num claro aviso de que ela precisa se “ajustar” ao padrão socialmente aceitável daquela comunidade.

2.3.1 – Cultura legal e comunidades étnicas

O conhecimento da cultura legal é um dos requisitos mais importantes para a fluência cultural do imigrante. Para MELLO (2012), cultura legal se refere à “compreensão difusa entre os diversos grupos na sociedade sobre que é o direito, qual é o papel do Estado e sobre como se dá o funcionamento das instituições legais”. O autor afirma que não se trata de conhecer profundamente as leis, mas sim saber dos comportamentos habituais das pessoas, diferenciar o que é legal e o que não é, para não ferir as regras mais elementares do convívio social. O autor afirma ainda que o imigrante só adquirirá cultura legal com aprendizado prático do convívio diário com a lei materializada. Daïga chega então até o apartamento de sua tia-avó, Mina (Irina Grjebina), que há anos reside em Paris e, portanto, com um grau consideravelmente superior

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de fluência cultural, o que resulta numa boa articulação desta com a sociedade local. “A vida é bem diferente aqui”, avisa a senhora, em russo, à sobrinha-neta, para logo depois dizer que não poderia hospedar a parente em sua casa. Esta recusa em hospedar uma parente, por parte da personagem da tia-avó, se aproxima à conduta dos locais, indo de encontro às práticas de acolhimento de sua cultura originária, ao ponto de uma outra personagem interpelá-la, lembrandolhe que “nós nos ajudamos, somos eslavos”. A tia-avó deixava, assim, de exercer importante papel do migrante fluente na expansão do fluxo migratório. A existência de comunidades étnicas sedimentadas e influentes nos países de destino serve habitualmente de âncora e contribui para facilitar substancialmente a expansão dos fluxos migratórios quando se verifica uma acentuada deterioração das circunstâncias com que se deparam os seus correligionários ou os indivíduos da mesma etnia presentes noutro país. (PAPADEMETRIOU, 2008, p. XXVII).

Apesar da recusa de Mina em hospedar Daïga,

ela a apresenta a outro

personagem, Vassili (Tolsty), para que este a hospede. O homem prontamente pergunta se a moça veio à cidade de férias, e lhe é respondido “Não. Como todos, quer ficar aqui”. Vassili informa que também não pode acolhê-la. A tia-avó suplica, afinal Daïga “não tem dinheiro nem fala francês”, mas não considera, por um momento sequer, alterar o seu próprio posicionamento e hospedar a nova imigrante. Daïga não consegue se fixar em sua própria comunidade étnica. Ela acaba sendo acolhida e empregada como copeira pela simpática Douska (Line Renaud), a proprietária de um hotel vagabundo bastante frequentado por homossexuais. A partir deste fato, Daïga, estabelecida em uma residência, passa a buscar maior contato com a cidade que vive, principalmente em caminhadas à noite. Em uma dessas perambulações, é abordada por um desconhecido e, ao fugir do assédio deste, acaba adentrando, sem saber, em um cinema pornográfico. Apesar de inevitáveis desvios momentâneos como este, Daïga continua a desbravar novos territórios.

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2.3.2 – Marginalidade e discriminação Dentre os hóspedes do hotel

de Douska está Camille Moisson (Richard

Courcet), imigrante advindo de Martinica – ilha das Antilhas de possessão francesa – que trabalha como drag queen em uma boate gay. O jovem Camille tem muita dificuldade de relacionamento com seus familiares, principalmente com o irmão Théo Moisson (Alex Descas), aspirante a músico que sustenta sua família fazendo bicos. Tanto Camille quanto Théo demonstram ter bastante fluência cultural, porém, não estão completamente adaptados àquele ambiente. Camille é um personagem errático, disfuncional, que acaba se revelando o maníaco da trama, ao lado do comparsa namorado. Claire Denis desenvolveu o personagem Camille a partir da verídica história do assassino em série de idosos Thierry Paulin6, martinicano que aterrorizou a França na década de 1980, repetindo, na ficção, o confronto entre dois grupos – idosos e imigrantes - considerados como um fardo pela sociedade, na medida em que implicam um aumento nos gastos com os serviços públicos e benefícios sociais. A relação entre estes dois grupos se torna mais relevante a cada dia, sendo o aumento do número de idosos uma das causas do aumento da imigração, visto que [...] a recente tomada de consciência de que o envelhecimento demográfico requer a adopção de políticas mais liberais de imigração laboral veio provocar uma inversão de 180 graus no pensamento tradicional sobre a relação entre a imigração e o estado-providência: considera-se agora comummente que são necessários mais trabalhadores estrangeiros para sustentar o crescimento económico e os níveis de protecção social proporcionados pelas sociedades europeias. Esta nova abordagem enfatiza o papel desempenhado pelos imigrantes enquanto produtores de protecção social. (sic) (BROCHMAN, DÖLVIK, 2008, p. 184)

Já Théo tem de conviver com sua família desestruturada – a mulher Mona (Béatrice Dalle) já não vive mais com ele –, e com o preconceito racial por parte da população francesa. Seus vizinhos de prédio sequer o cumprimentam. Uma sequência de Noites Sem Dormir sintetiza seu drama: Théo é contratado por uma senhora francesa para montar uma estante. Após a realização do serviço, a contratante informa que só pode pagar com cheque, em desacordo com o acertado """""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""" 6

Depoimento de Claire Denis a Thierry Jousse e Fréderic Strauss, Cahiers du Cinéma, 479-480, maio de 1994. Tradução de Ruy Gardnier. Disponível em . Acesso em 05 de julho de 2013.

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previamente. Théo recusa. A senhora então lhe dá dois mil francos em dinheiro, que novamente são negados por Théo. “São três mil francos, senão desfaço tudo”, diz ele. A senhora, resignada, paga o combinado, não sem antes proferir um “a este preço eu poderia ter contratado um profissional” para este “trabalho de negro”. A discriminação, inclusive a de natureza racial, é um dos grandes empecilhos para o imigrante obter fluência cultural. Os imigrantes que forem tratados de forma injusta em virtude de sua raça ou religião, ou a quem seja negada a oportunidade de prosperar e participar, nunca poderão nutrir os sentimentos de pertença e de empenhamento para com o seu novo país [...]. (SPENCER, 2008, p. 29)

COTESTA (2012) identifica, ainda, o etnocentrismo de uma sociedade como o maior responsável pela violência cometida nesta contra o imigrante, eis que, ao considerar os seus valores e sua cultura como superiores, tal sociedade tende a rejeitar de forma contundente qualquer interação com aqueles que não se encaixam nos padrões por ela pré-estabelecidos. Os estrangeiros, por muitas vezes, são vistos como bárbaros, provenientes de uma cultura inferior, causadora de todos os males da sociedade receptora. Tal situação, por certo, é agravada quando, além das questões culturais, há elementos físicos distintivos, como o tom de pele diverso do predominante no local.

2.3.3 – Imigrante contra imigrante

O grande desejo de Théo é voltar para suas origens, um lugar quase idealizado depois de tanto tempo de ausência. Ao ser questionado pela mãe sobre o porquê de querer voltar a Martinica, ele responde: De manhã, pego minha canoa para pescar. Mona machucará a mandioca para fazer minha comida. Retirará a água de uma ravina, a um quilômetro da casa. Vê? Teremos tudo às mãos. Cabana de bambu, banana, abacate. Para quê roupa? Lá viveremos nus o tempo todo. Dinheiro? Não vale a pena. Farei truques. É o paraíso, não?

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Mona, porém, é firme na decisão de não acompanhar o marido em seu retorno às origens. “Aqui vivemos na merda, em outro lugar também”, diz ela. A inocência de Théo é reafirmada quando este, na delegacia, observa com pesar o seu irmão sendo preso, após ser descoberto como o serial killer da trama. “Meu irmão era um estranho para mim”. Curiosamente, fora Daïga quem descobrira que Camille era o assassino em série, ao ver um retrato falado pendurado na parede de uma delegacia de polícia. A lituana, que já tinha adquirido alguma fluência cultural – dominava a língua, conhecia as instituições e o espaço geográfico etc. – não só o denunciou, como também furtou todo o dinheiro fruto dos crimes que Camille guardava no hotel, para logo em seguida deixar a cidade. Claire Denis, no desfecho do seu filme, coloca imigrante prejudicando imigrante na tentativa de se dar bem na vida, ressaltando a inexistência de um sentimento de compaixão entre indivíduos que se encontram em igual situação de isolamento social. Mesmo dentre o grupo dos imigrantes há a compartimentalização cultural e a falta de identificação com o semelhante.

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3 – O IMIGRANTE NA ÁFRICA

Os estudos de MELLO (2012) sobre fluência cultural estão focados exclusivamente em casos de imigração que ocorrem na Europa, em regra no padrão clássico Sul-Norte. É preciso ampliar este conceito para outras esferas, em especial ante a relevância histórica da imigração Norte-Sul. Desde o período das Grandes Navegações até o movimento de independência das nações africanas, o fluxo migratório Norte-Sul foi marcado pela exploração colonial, isto é, os migrantes tinham, em regra, o único interesse de auferir lucros consideráveis para, em seguida, retornar à metrópole, onde gozariam de melhor padrão de vida. A migração era temporária, não havia, ao menos inicialmente, o objetivo de criar raízes no país receptor. O europeu das colônias pode também, é claro, amar essa nova região, apreciar o pitoresco dos seus costumes. Mas, mesmo repelido pelo seu clima, mal à vontade no meio de suas multidões estranhamente vestidas, saudoso do seu país natal, o problema doravante é o seguinte: deve aceitar esses aborrecimentos e esse malestar em troca das vantagens da colônia? (MEMMI, 1977, p. 22)

A relação entre o europeu colonizador e o país colonizado era sempre guiada pela ótica utilitarista – independentemente da escolha feita, permanecer e se “integrar” na colônia, ou retornar à metrópole, o objetivo era sempre maximização dos seus benefícios. Em ambos os casos, a relação não deixava de ser de exploração, com poucos benefícios ao país receptor. Os exploradores, ao se apossarem de um país, trazem com eles a suposta superioridade científica, tecnológica e econômica, que lhes proporcionam condições de domínio e controle territorial. Montado o sistema colonial, surgem os dois polos de interação, o colonizador e o colonizado, que devem conviver um com o outro. A colônia, portanto, passa a se articular em função desses polos, que se implicam e se opõem reciprocamente, porque representam línguas, raças, religiões e culturas diferentes, em distintos estágios de desenvolvimento.

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Há de se pensar que o colonizador, no passado, pouco ou quase nada sabia do que encontrar verdadeiramente na colônia. Tinha vaga ideia dos colonizados graças aos livros, algum documentário ou filme de ficção que os romantizava. Os colonizados pertenciam aos domínios da imaginação ou do espetáculo. Até o momento, Claire Denis visitou a África em seus filmes em duas ocasiões, Chocolat (1988), baseado em suas memórias de infância, e Minha Terra, África (2009), se debruçando sobre como o colonizador europeu se coloca neste continente7 . O primeiro se desenrola em Camarões, ainda sob domínio colonial francês; o segundo, em um país que nunca é identificado, cuja tensão entre imigrante e local cresce em uma nação já independente, no período pós-colonial.

3.1 – Chocolat e as relações no período colonial

Os primeiros planos de Chocolat são de uma praia africana cinzenta, onde pai e filho, negros, brincam, sob olhar de France Dalens (Mireille Perrier), que retorna ao país onde viveu quando criança, ainda no período de colonização francesa, na tentativa de compreender as relações sociais que se conjecturaram em sua infância. France é a própria representação do seu país de origem - até em seu nome -, cuja avaliação do passado se faz necessária para o entendimento do próprio presente. Este olhar dela para pai e filho brincando é certamente um olhar diferente de quando era colonizadora. Enquanto dominante, o olhar é de superioridade, inclusive racial, nas quais as relações sociais se dão apenas em um nível hierárquico. O olhar de France, adulto e no período pós-colonial, já é um olhar de tentativa de entendimento, e até um certo deslumbramento tardio com o que a cultura local a oferece. No passado, a família de France não tinha qualquer interesse em ter grau mínimo de fluência cultural, visto que a relação fora estabelecida de modo hierarquizado, com todo o aparato social, cultural e tecnológico do europeu sendo considerado como o mais avançado, tornando qualquer troca irrelevante. O """""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""" 7

Há ainda um terceiro filme dirigido por Claire Denis ambientado em Djibuti, Bom Trabalho (1999), que problematiza questões envolvendo a Legião Estrangeira francesa. O longa-metragem aborda primordialmente relações de poder e masculinidade entre os soldados, portanto não cabendo neste trabalho.

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presente, todavia, mostra France muito mais disposta à compreensão do outro. Para além, mostra um deslumbramento do olhar de France para com aquela cultura. Denis, porém, se atém ao passado de France e família, quando as relações raciais e de classe entre colonizador e colonizado deixavam transparecer nítida tensão. Através do recurso de flashback, uma combinação do que a adulta France se lembra e do que reconstrói em retrospecto, vemos a família Dalens chegando a Mindif, extremo norte de Camarões, nos anos 1950. O pai, Marc (François Cluzet), oficial do distrito – como o próprio pai de Claire Denis –, sua esposa Aimée (Giulia Boschi) e a pequena France (Cécile Ducasse) se alojam em uma grande casa, sob cuidados de Protée (Isaach De Bankolé), nativo educado, fluente em francês e que tem a responsabilidade de zelar pelo bem-estar dos patrões, servindo de garçom, babá, faxineiro, segurança, jardineiro e o que mais lhe ordenarem. Enquanto o patriarca se ausenta em razão de sua rotina como administrador do território, Aimée e France vão tentando se adaptar ao clima quente e úmido, à grande quantidade de mosquitos e ao isolamento. Protée se torna, com esta ausência, o catalizador de trocas culturais destas duas personagens. À ele é designado o papel de responsável, pelo próprio Marc, enquanto este está ausente. “Deixo-as com você. Cuide bem deles”, diz o Sr. Dalens antes ao se despedir a caminho de mais uma missão de gestão do território. Protée (ou Proteu, em português), na mitologia grega, é um deus marinho que,

de acordo com MERLET (2006), representa um indivíduo que muda

continuamente de papel. Ele, colonizado e subalterno, assume o papel de defensor da família europeia, quando as duas mulheres, acuadas dentro de um quarto pelo uivo de uma provável hiena, convocam o empregado, lhe entregando uma espingarda e munição. Protée ali, sentado à beira da porta, sentado numa cadeira como um sentinela, assume o papel patriarcal enquanto o verdadeiro está ausente.

3.1.1 – O colonizado através do olhar infantil

Para France, Protée é a possibilidade de descoberta de um mundo totalmente novo. Com toda a abertura cognitiva que tem, possibilitada pelo olhar ainda em formação, France vê Protée com curiosidade e desprendimento. A construção do

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relacionamento entre estes dois personagens é iniciada com uma troca, símbolo da relação que os dois manterão ao longo do filme. A garotinha dá a Protée uma fruta, e recebe em troca um pedaço de pão com uma pasta entranhada de formigas comestíveis capturadas pelo empregado. O ato de France de comer as formigas sinaliza uma disposição até incomum, por parte de uma criança, de avançar no desconhecido. Na verdade, France é a personagem colonizadora de todo o filme com maior disponibilidade em conhecer a cultura nativa. Em outro momento, France pula a janela de seu quarto e vai para a área externa onde os criados se encontram. Uma das empregadas da casa a vê e exclama “Você não está na cama? Você vai ver, você vai ficar preta!”, em tom ríspido. O “ficar preta” seria então castigo para a menina que, ao se aproximar de um lugar que não a pertence, um lugar destinado apenas aos “pretos”, estaria burlando o acordo social firmado entre as classes. France, porém, não deixa de utilizar sua posição privilegiada quando lhe convém. Em uma sequência na qual ela, sobre um burro, observa várias crianças no vilarejo brincando e fazendo algazarra, ela, impedida socialmente de fazer o mesmo, ordena a Protée que ambos voltem para casa. A ele, resta obedecer às ordens da “madame patroa”. Este não é o único momento em que a criança France subjuga Protée, seu único amigo naquele lugar. Ela, por exemplo, ordena a ele que lhe dê comida na boca, agachado à mesa. A leitura desta relação aos olhos de France é compreensivelmente dúbia. Afinal, seus parâmetros são basicamente seus pais, e a ela cabe repetir as ações deles, como, por exemplo, se colocar superiormente aos colonizados. Mas há uma sensibilidade, aliada à solidão que ela sente ali, sozinha, que fazem com que ela desenvolva algum tipo de afeto pelo empregado. Chocolat, vai construindo esta relação com cada vez mais intimidade, cada vez mais carinho. Protée a carrega nos ombros pelas paisagens locais ao amanhecer, e também a ensina a sua língua nativa em um dos momentos mais belos do filme, quando a garota vai tocando suas partes do corpo e ele vai dizendo as palavras em seu dialeto. Ao fim, France – cujo relacionamento com Protée já se rompeu, por conta de um incidente no qual ele a deixa se queimar – corre livre pelo local. Uma demonstração de compreensão não só geográfica, mas uma prova de total

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apreensão do ambiente que a rodeia. Enfim, a garota goza de uma liberdade que antes só tinha em seu ambiente natural, no caso, a França. Uma prova de assimilação local e de bastante fluência cultural.

3.1.2 – Desejo e relações servis

Já a personagem Aimée tem um arco dramático que não lhe permite alcançar tal estágio de cognição cultural e fluência. Devido a sua fragilidade e insegurança ao chegar à África, ela se coloca na posição clássica de superioridade ante aos nativos. Protée, para ela, é o serviçal que carrega suas malas, que fecha as suas portas e que lhe serve as refeições. Aimée tem muitas dificuldades de adequação à África, principalmente por causa da ausência de seu marido em casa. Um dos diálogos do filme que mais esclarecem esta relação dela com o ambiente é em uma sequência em que ela discute com o cozinheiro. “Eu quero culinária francesa! Variedade! Tortas, saladas... Entende?”, apresentando ao empregado nativo um enorme livro de culinária. O que ela não sabe é que o cozinheiro sequer sabe ler, quanto mais entendê-la em francês. Para ela, a culinária francesa, bem como todos os elementos de sua própria cultura, são superiores àqueles que lhe são apresentados nos Camarões. Portanto, a culinária francesa, para ela, é melhor que a culinária local, assim como todo o resto. Aimée também se sente superior a Protée, apesar de que esta relação se desenvolva para além da simples ligação patrão-empregado. Protée mal consegue disfarçar seu encantamento pela bela e frágil colonizadora, e a tensão sexual atinge seu cume quando ela pede a ele que amarre seu vestido. Protée pode observar o pescoço da patroa a poucos centímetros, em uma intimidade que nunca antes tinha alcançado. Aimée pressente que a proximidade de Protée avançou por certos limites e, ao encontrá-lo arrumando suas gavetas, o proíbe de mexer em seus pertences. “Eu não quero ninguém bisbilhotando o meu quarto. Saia!”, diz ela, furiosa. Protée se irrita com a reação da patroa. Logo depois, ao tomar banho, ele chora. Chora por

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estar emocionalmente ligado à ela, por admirar sua cultura, seus valores, seu modo de ser. Convencido da superioridade do colonizador e por ele fascinado, o colonizado, além de submeter-se, faz do colonizador o seu modelo, procura imitá-lo, coincidir, identificar-se com ele, deixar-se por ele assimilar. É o momento que poderíamos chamar da alienação. Ocupado, invadido, dominado, sem condições para reagir, nem ideológicas nem materiais, não pode evitar que o colonizador o mistifique, impondo-lhe a imagem de si mesmo que corresponde aos interesses da colonização e a justifica. (CORBISIER, 1977, p. 8)

A conturbada relação entre Aimée e Protée tem seu ápice quando ela, extremamente fragilizada, decide se entregar a ele e, agachada, o acaricia na perna, enquanto este está fechando as cortinas. A reação dele é imediata e, contra as expectativas, a segura pelos braços e a levanta. Naquele momento, Protée não aceita se transformar também em objeto sexual e, muito menos, de catalizador de fraquezas alheias. À Aimée, agora extremamente humilhada por ser recusada por um colonizado, só resta pedir ao marido que o despeça do emprego; este, sem entender o que acontece na relação entre os dois, recoloca Protée trabalhando na garagem da propriedade. Portanto, neste momento há a ruptura no relacionamento entre Aimée e Protée e, consequentemente, a personagem feminina perde o único elemento que ela tinha de troca cultural, já que ele passa não mais a atuar em seu convívio. Resta a ela a interação social com sua própria família europeia, a filha e o marido Marc, que nada têm a lhe oferecer neste âmbito.

3.1.3 – Outros personagens em Chocolat

Marc é o personagem que possui maior fluência cultural da família Dalens por um detalhe: ele está há mais tempo no território, chegando antes ao Camarões que o restante de sua família. Apesar de não saber a língua local, ele já conhece algum repertório cultural dos camaroneses e já tem o território mapeado. Ainda que possua bastante fluência, Marc é um personagem que se coloca acima dos nativos, que se apresenta como um típico patrão. Logo no princípio do filme ele percorre uma estrada sobre seu cavalo, e seus funcionários andam a pé –

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alguns carregando os enormes pertences do superior. Outro momento que tipifica a relação de Marc com seus empregados é quando ele, ao retornar de uma longa viagem e adentrar sua casa, chama pela filha e pela esposa aos gritos, mas é incapaz de cumprimentar Protée, que está no mesmo ambiente que ele. Marc tem uma sequência no filme bastante interessante que ilustra com propriedade as desconfianças e diferenças culturais entre o povo nativo e os colonizadores. Há uma conversa entre ele e um ancião local a respeito de leões que têm causado transtornos ao atacarem rebanhos nas redondezas. Para Marc, a solução é organizar batidas. O ancião o adverte, dizendo que as batidas do homem branco são ruins, que ele “deve caçar com uma lança e flechas”. Neste ponto, temos exemplo da inadequação do pensamento colonizador para a realidade colonial, pois carece de subsídios essenciais, fornecidos pela vivência e pela troca de experiência realizada há gerações naquela localidade. Alguns personagens coadjuvantes também merecem certas considerações. O personagem Luc Segalen (Jean-Claude Adelin), por exemplo, é um europeu, exseminarista que tenta, de toda forma, ser igual aos africanos no âmbito dos costumes, gerando desconforto e estranhamento nos outros europeus e possivelmente também nos próprios nativos. Segalen anda em caçambas de caminhões junto a trabalhadores africanos e toma banho na mesma área que os empregados da família Dalens. É uma forma de Luc se posicionar de forma superior tanto aos nativos quanto aos europeus, emulando um conhecimento pleno de ambas culturas, o que MEMMI (1977) define como colonial: O colonial seria o europeu vivendo na colônia porém sem privilégios, e cujas condições de vida não seriam superiores às do colonizado de categoria econômica e social equivalente. Por temperamento ou convicção ética o colonial seria o europeu benevolente, que não teria em face do colonizado a atitude do colonizador. Muito bem! Digamos desde logo, malgrado o aparente exagêro da afirmação: o colonial assim definido não existe, pois todos os europeus das colônias são privilegiados. (sic) (MEMMI, 1977, p. 26)

Importante relatar que Denis faz questão de mostrar dois personagens distintos, no caso Segalen e Protée, tomando banho de formas distintas na área dos empregados. Enquanto o africano apresenta todos os pudores ao se banhar nesta área, descoberta e visível aos moradores da casa ao longe, Dalens faz questão de agir ao contrário, não tendo qualquer constrangimento em ficar nu. Protée se irrita ao

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ver o europeu em sua área de banho. Para ele, é inadmissível invadirem um espaço seu que ainda não foi lhe tomado. Outro personagem coadjuvante que merece atenção é o intragável Joseph Delpich (Jacques Denis), produtor de café que precisa se hospedar na casa dos Dalens enquanto seu avião é reparado. Apesar de possuir todos os preconceitos de cor possíveis, Delpich possui uma mulher negra que apresenta como empregada, com quem se relaciona sexualmente e a quem chama de “meu passarinho” quando não há ninguém por perto. Ao ocultar a verdadeira ligação que tem com a empregada, ele exterioriza o comportamento que é esperado do colonizador, que deve sempre ser superior e jamais admitir qualquer vínculo emocional com o colonizado. Delpich também protagoniza outro momento revelador da personalidade europeia no continente africano. Desejando sair o mais rapidamente possível daquela propriedade, ele oferece dinheiro a africanos que possuem automóvel. Quando o transporte lhe é negado, fica confuso e profere a seguinte frase: “eles mandam nas qualquer que seja a ação em prol de um colonizador. Todo personagem europeu em Chocolat, em algum momento do filme, apresenta algum tipo de preconceito racial. O preconceito é um dos maiores elementos impeditivos para os colonizadores obterem fluência cultural. Há um outro personagem, Machinard (Laurent Arnal), que precisa de cuidados médicos para sua esposa, que está sofrendo algum mal. Marc Dalens convoca o médico da família, Prosper (Jean Bediebe), negro e nativo, “que cuidou de todos nós”. Machinard não aceita o médico oferecido e pergunta a Marc se ele não tem ninguém mais para tratá-la, afinal a esposa “precisa de um médico de verdade”. À Prosper, só resta ir embora, enquanto Machinard prefere que sua esposa fique sem tratamento a ser cuidada por um nativo. Os personagens coadjuvantes africanos não têm muito espaço no desenvolvimento da narrativa, mas há pelo menos dois momentos dignos de menção. No primeiro deles, fica bastante claro que, quando distantes dos patrões, são mais relaxados e utilizam a língua materna para se comunicarem. No segundo momento, tentam imitar os europeus jogando bocha, utilizando batatas em substituição às bolas.

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3.1.4 – Sem passado, sem futuro

A Protée, cabe então a figura do homem africano lutando para manter sua identidade e dignidade apesar da terrível condição de oprimido. Criado por missionários brancos que lhe retiraram sua herança cultural e racial, tutelado a ser um serviçal, ele basicamente vive numa espécie de equilíbrio entre a sua cultura e a do colonizador. A Protée cabe, ao menos, um pequeno triunfo contra os que o massacraram, ainda que seja contra a pequena France. Ele fez com que ela se queime em um cano metálico, mesmo que, para isso, ele próprio também tenha que se queimar. Já no presente, France adulta, que ainda possui as cicatrizes do passado, apresenta a palma de sua mão a um outro estrangeiro, ainda na África, que estranha a ausência de linhas. “Não consigo ver nada. Sem passado, sem futuro”, diz o homem, sintetizando a delicada situação dos antigos colonizadores em relação a suas ex-colônias, eis que não é possível a construção de uma relação viável entre Europa e África, sem a compreensão mútua do passado colonial.

3.2 – As tensões pós-coloniais em Minha Terra, África

O feixe de luz de uma lanterna percorre o interior de uma casa em busca de algo. Ele ilumina paredes, objetos e homens fardados, que fazem a varredura do local. Finalmente o feixe se concentra em um cadáver. É o corpo do Boxeador (Isaach De Bankolé), o líder de uma revolução que ocorre em um país qualquer da África. Claire Denis volta ao continente africano depois de mais duas décadas para retratar uma nação envolta no caos político instaurado após sua independência colonial, consequência da desastrosa ocupação francesa, e a significativa escalação de Isaach De Bankolé como um personagem diametralmente oposto ao Proteu interpretado por ele em Chocolat faz com que crie a ideia de um fluxo político, central na carreira da cineasta.

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O território explorado por Denis em Minha Terra, África não mais é aquele povoado por pessoas subservientes aos colonizadores. Há agora uma tensão latente entre nativos e os outrora colonos, completamente estabelecidos no local e presumidamente fluentes na cultura na qual se inseriram. Minha Terra, África discorre essencialmente sobre as posses materiais, como o título original, White Material, deixa claro. ANDRADE (2013) bem define que, na comparação com Chocolat, “a ênfase sai da relação racial cândida da infância, e ganha uma franqueza de interesses: material de branco, coisas de branco. A relação entre as duas raças é, sobretudo, comercial”.

3.2.1 – Propriedade em jogo

O que está em jogo neste novo filme é o sítio onde Maria Vial (Isabelle Huppert) produz café. Esta propriedade, que pertence à sua família desde os tempos coloniais, pode lhe ser tirada e ela expulsa do país que, após tanto tempo, praticamente é também o seu. Não há como evitar a comparação com a história recente de Estados africanos como o Zimbábue, no qual, no início da década de 2000, foi determinado pelo presidente Robert Mugabe, no poder desde o início da década de 1980, que todos os agricultores brancos deveriam deixar suas terras sem indenização, para a redistribuição entre os negros. A situação de Maria Vial e sua família é, pois, bastante comum para imigrantes europeus na África. Há, no país onde transcorre a

trama, uma situação política bastante

conturbada. O exército francês está saindo, o prefeito local formou uma própria milícia para se proteger, e os ditos rebeldes estão prestes a tomar o poder. Dentro deste emaranhado de interesses estão os imigrantes. Para os rebeldes, os brancos são um dos maiores causadores do caos em que está o país. “Por causa de gente como você que este país é sujo”, diz um nativo a Marie que, diante de todas as circunstâncias, parece se preocupar apenas com a sua plantação e com o apático filho Manuel (Nicolas Duvauchelle), que passa os seus dias vadiando ou deitado na cama.

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3.2.2 – Isolamento aos colonos

Em Minha Terra, África, também há nítidos problemas de fluência cultural, mas, desta vez, não apenas causados pelo imigrante que se mantém afastado da cultura local, mas também pelos nativos, que os isolam, por associá-los ao traumático passado colonial, ainda presente no imaginário coletivo. O personagem Manuel é talvez o mais conturbado de todo o filme e com maiores dificuldades de fluência cultural. Filho de colonos nascido na África, o rapaz, por ser branco, é tratado como estrangeiro em sua própria terra. E, por ausência de identificação com o ambiente à sua volta, bem como sem referências da França que originou sua família, passa por uma crise de identidade. Manuel também teria problemas caso decidisse ir para a França, pátria de seus pais. Colonos repatriados foram frequentemente vistos com desconfiança, como portadores de ideias de extrema-direita e como recordações incômodas do entusiasmo colonial que muitos preferiam esquecer. Na tentativa de se tornarem novamente “franceses iguais aos outros”, rejeitavam o rótulo de colonos e reivindicavam sua nacionalidade. Estes retornados acreditavam pertencer à comunidade francesa, ideia questionada quando chegavam à metrópole. O colonialismo nunca imaginou que um dia os assimilados poderiam chegar à metrópole,

quanto

mais

que

pudessem

chegar

reivindicando

espaço

e

reconhecimento de direitos de pertença à mesma realidade cultural, política e econômica dos europeus” (PEIXOTO, 2010, p. 15)

Os traços físicos do rapaz também se tornam um problema na antiga colônia. O prefeito Chérif (William Nadylam), em um diálogo, exemplifica bem esta questão. “Cabelos louros trazem má sorte, como se pedisse para ser atacado. Olhos azuis são fonte de problema. Este é seu país, ele nasceu aqui, mas este lugar não gosta dele”, diz o prefeito. Não há o que Manuel possa fazer para se integrar. Manuel é um personagem tão esquizofrênico que não consegue obter fluência cultural nem em sua própria pátria. Como resultado, vai à loucura, raspando os próprios cabelos. Também tatuado, se transforma em uma espécie de neonazista

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incoerente que, de espingarda em punho, é capaz de tanto atacar uma mulher negra como distribuir alimentos para os rebeldes que invadem a sua casa.

3.2.3 – Revanche e cisão

Aos rebeldes, há sede por uma revanche que lhes saciará décadas de servilismo. “Esses brancos, esses brancos sujos nos desprezam. Não merecem esta terra maravilhosa. Não sabem como apreciá-la”, reflete um dos paramilitares sobre os antigos colonos, advindos de países responsáveis pela situação à qual a antiga colônia se encontra. O ódio étnico contra os antigos colonizadores é nítido. “O Boxeador está escondido entre os estrangeiros, que querem nos expulsar e usar nossa terra, para cultivar um café ordinário que nunca bebemos”. À Maria, cabe usar todo o seu conhecimento para salvar a si, a sua família e a sua propriedade. A sua fluência cultural permitiu-lhe criar uma rede social e política que pode garantir-lhe a sua continuidade em solo africano, afinal, como ela diz em dado momento, “não conseguiria me acostumar a outro lugar”. A África, para ela, é o lugar onde pertence, e a França não lhe é mais familiar. “Como eu poderia mostrar coragem na França?” Depois de todos anos, vive em um conforto cultural que só será rompido à força. Assim como em Chocolat, “sem passado, sem futuro.” Em Minha Terra África, contudo, o futuro que se desenha é de cisão profunda, ante a impossibilidade de superação do traumático passado colonial. “Quanto ao material branco, a festa acabou. Sem coquetéis na sombra das varandas, enquanto nós usamos água e sangue”

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CONCLUSÃO

Ao abordar as delicadas relações de poder que se estabelecem tanto nos caldeirões multiculturais das periferias das grandes cidades, quanto no choque entre colonizadores e colonizados, Claire Denis, a partir de sua experiência pessoal, construiu uma representação de identidade

fragmentada, friccionada, na qual a

alteridade é o elemento desestabilizador. Esta alteridade, o pressuposto básico das relações humanas, revela-se essencial para o conceito de fluência cultural, que decorre do acúmulo de experiências em território estrangeiro por um imigrante. Quanto mais este souber da sociedade na qual tenta se inserir, mais fluência cultural obterá e, desta forma, será mais capaz de compreender e ser compreendido em relações com os nativos. Para a melhor análise do conceito de fluência cultural nos filmes de Claire Denis, optou-se por compartimentar a filmografia selecionada da cineasta em dois momentos. Um se deteve aos filmes que se transcorrem na França, protagonizados por personagens advindos de países pobres. O outro, em um caminho inverso e pouco habitual em se tratando de questões relativas à imigração, trabalhou com personagens europeus em países africanos. Da análise de S’en fout la Mort e de Noites sem Dormir, filmes que compõem o panorama do imigrante na França, conclui-se que, em ambos os casos, a discriminação, por parte dos nativos, e a resistência do imigrante em abrir mão de seus valores em prol de uma maior aceitação são os maiores impeditivos da inserção social do estrangeiro e, portanto, na obtenção de fluência cultural pelo mesmo. Impedidos de se apropriarem culturalmente do ambiente social em que estão inseridos, cabe aos imigrantes buscar meios de burlar o etnocentrismo que os repelem e resistirem no território por uma vida melhor. Esta procura por inclusão e por uma vida melhor não necessariamente passa por meios tradicionais, por vezes beirando a ilicitude, arriscando a segregação

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definitiva da sociedade na qual o imigrante tenta se incluir ou até mesmo a expulsão do país estrangeiro, encerrando-se abruptamente a experiência migratória sem que os objetivos de melhores condições de vida sejam alcançados. Ao fim de S’en Fout la Mort, por exemplo, enquanto o personagem Dah continua em sua jornada por melhores condições de vida, o outro personagem, Jocelyn, é morto, sem jamais ter conseguido fazer parte da sociedade francesa. Os personagens de Noites Sem Dormir, da mesma forma e cada um à sua maneira, também não conseguem se inserir na comunidade de destino. Enquanto Camille se entrega à marginalidade e termina preso, Daïga se aproveita do ocaso para fugir da inóspita França e, talvez, ir em busca de um outro país que a acolha melhor. Já Theo, apesar de ter seu final em aberto, objetiva retornar ao país de origem. Este desejo de retorno também permeia os dois filmes analisados, pois há sempre uma relação idílica com os países de origem. Diante da rejeição por parte da comunidade de destino, tanto Jocelyn quanto Theo aspiravam esta volta. A diferença entre ambos é o tempo em que isso deveria ocorrer. Jocelyn, que ainda não tinha conseguido qualquer sucesso em sua condição de vida tinha o desejo de retorno no futuro, com algum ganho material. Para Theo, personagem com mais tempo na França, a necessidade de retorno é imediata, pois já se encontra saturado diante de tanta rejeição pelos nativos franceses. Em ambas as obras, o imigrante na França não conseguiu atingir a fluência cultural, permaneceu marginalizado, verdadeiro forasteiro. A visão de Claire Denis é pessimista – alguns diriam realista -, retratando a sociedade francesa como extremamente etnocêntrica, fechada a interações com o estrangeiro. Pessimismo que também dá a tônica nos filmes Chocolat e Minha Terra, África, que compõem a divisão dos imigrantes europeus na África. Da ocupação no primeiro até a pós-colonização apresentada no segundo, o que vimos foi o nãoentendimento como tônica, causado por etnocentrismo e ressentimento colonial. A recusa etnocêntrica por parte dos europeus em obter fluência cultural no território africano em Chocolat acaba tendo consequência no rompimento completo em Minha Terra, África, desta vez por parte dos africanos, que ainda têm o passado colonial claro em mente e enxergam o europeu como o colonizador, responsável por todas as mazelas locais.

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Claire Denis trabalha com extremos nos filmes analisados, se afastando da imigração de pessoas que se aproximam dos valores da sociedade receptora – por certo, um imigrante branco altamente qualificado é melhor recebido na França, assim como um não-europeu, sem vínculos coloniais prévios o é na África. Nas obras analisadas, fica clara não só a importância da fluência cultural para o imigrante, mas também a dificuldade de superação do passado colonial, que prejudica sobremaneira o relacionamento entre imigrantes e locais, seja na África, seja na França. “Sem passado, sem futuro”.

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