Folha de São Paulo, Rubicão, Tom Holland

September 19, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Historia Antiga, Literatura, Usos Do Passado
Share Embed


Descrição do Produto

São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros Em "Rubicão", dirigido a um público não-especializado, o britânico Tom Holland critica as potências militares de hoje ao explicar como a Roma Antiga, para se pacificar, foi obrigada a abrir mão da liberdade

O preço do império PEDRO PAULO A. FUNARI ESPECIAL PARA A FOLHA

Em tempos da série "Roma", da HBO, e de tantos filmes sobre o mundo antigo, fica claro o interesse, renovado e crescente, na Antigüidade. Houve quem previsse o fim do interesse pelo passado, o fim da própria história, mas tais previsões se mostraram, como tantas outras vezes, enganosas. Não só a história continuou como o mundo antigo nunca esteve tão presente e relevante em nosso cotidiano. Um dos formuladores da política externa americana é o helenista Victor Davis Hanson, assessor

do secretário de Defesa americano Donald Rumsfeld e autor de diversos best-sellers sobre o modo ocidental de guerrear. O Brasil, em particular, nunca teve tantos livros publicados sobre a Antigüidade, inúmeras são as traduções e muitos os livros de pesquisadores brasileiros. As revistas mensais dedicadas à história vendem como água nas bancas e a Antigüidade figura com proeminente destaque. Tom Holland é um autor britânico, ficcionista de talento, com muitos best-sellers em sua algibeira. Erudito e bem versado na literatura antiga, assim como nas discussões historiográficas, Holland aceita a missão, sempre difícil, de contar para um público leigo a história da Roma Antiga. As dificuldades estão na necessidade de contar os meandros da história política de uma época distante mas também aparecem na resolução do dilema de mostrar que os antigos eram diferentes de nós, mas que podemos compreendê-los. Para resolver esse desafio, Holland recorre a um estilo leve e agradável e à certeza de que a trama do final da República romana encanta, mais do que nunca, os leitores. O livro trata de um tema: a liberdade. Iniciada com a derrubada dos reis de Roma, no fim do século 6º a.C., a República é caracterizada como o predomínio da liberdade no trato da coisa pública. A crise da República, a partir das lutas civis nas décadas de 130 e 120 a.C., com os irmãos Tibério e Caio Graco, é tratada como uma sucessão de

contraposições entre os líderes militares, em detrimento das antigas liberdades públicas. Ressalta, por essa razão, os líderes que limitaram os direitos e impuseram seu jugo à sociedade, com destaque para o poder discricionário de Sula, na década de 80 a.C., mas pinta, também, belos retratos de Pompeu, Cícero, Catão, Júlio César, Marco Antônio e, por fim, Otávio, que põe fim à República livre, em 27 a.C. O grande herói, como não poderia deixar de ser, é Cícero, em sua luta, quase solitária para salvar as liberdades republicanas. Nesse percurso, outros grandes episódios tratados são a revolta dos escravos, liderada por Espártaco (década de 70 a.C.), a luta de Pompeu contra os piratas (década de 60 a.C.), a conquista da Gália por Júlio César (década de 50 a.C.), a relação de Cleópatra com César e, depois, com Marco Antônio. O Rubicão do título do livro era o rio, no norte da Itália, que César cruzou, ilegalmente, em 49 a.C., para conquistar Roma e pôr fim à República livre, nas palavras de Holland. O relato do passado, para ser aproximado do leitor, não pode deixar de usar idéias, conceitos e mesmo sentimentos que os leitores conheçam. Aproximar realidades históricas e culturais diversas é sempre um desafio. Holland usa e abusa do vocabulário de jornais para tratar de Roma. Favelados e turistas Menciona os "favelados", os "mártires" pela liberdade,

os "turistas" que visitam a cidade de Roma, a "luta contra o terrorismo" e os "esquadrões da morte", as "guerras-relâmpago", a "missão civilizatória" romana, a "globalização" do mundo romano e, até mesmo, "garrafas" de vinho e "férias" de César e Cleópatra! Augusto tornou-se um "superstar"! Claro, nada disso compromete a narrativa, mas causa certa estranheza no leitor, pois Tom Holland procura, em sentido contrário, mostrar, em diversas passagens, como os romanos eram diferentes de nós, como tinham tradições e costumes próprios. A mensagem geral, no entanto, se volta para o público ocidental e, em particular, para os leitores angloamericanos, como uma espécie de advertência: o principal valor de nossa civilização, assim como era para os romanos da República, é a liberdade. O preço de um império imenso, pacificado, foi a perda da liberdade. Como dizia o historiador romano Tácito, era a paz dos cemitérios. Holland, assim, alerta que as aventuras do modo ocidental da guerra, tão querido por Davis Hanson e Rumsfeld, podem levar à perda do bem mais precioso: a liberdade. Os prisioneiros de Guantánamo, as escutas telefônicas e o controle dos e-mails, tudo em nome da guerra ao terrorismo, aparecem, de forma sutil, por detrás das descrições da luta dos romanos. A tradução apresenta uma série de probleminhas que devem ser corrigidos na reimpressão, como palavras com gênero trocado e nomes próprios que se tornam até mesmo engraçados como Aventina (para o

Aventino). No final das contas, "Rubicão" constitui leitura não só agradável como faz pensar, maior mérito de uma obra de divulgação.

Pedro Paulo A. Funari é professor titular de história antiga da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Rubicão 448 págs., R$ 52,90 de Tom Holland. Trad. Maria Alice Máximo. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).

Texto Anterior: Ode ao patriarca Próximo Texto: Roma em cinco datas Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.