Fome de onça: um estudo comparativo sobre aldeamentos fluminenses e paulistas no século XVIII. 2005. Monografia final de curso. UFPR.

Share Embed


Descrição do Produto

MARCIO MARCHIORO

Fome de onça: um estudo comparativo sobre aldeamentos fluminenses e paulistas no século XVIII

Monografia de Conclusão de Curso apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica do Departamento de História do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, sob a orientação do Prof. Carlos Alberto Medeiros Lima.

Curitiba 2005

Para Gabi, minha afilhada querida, do seu “Padinho”.

Agradecimentos

Aos meus pais e a minha irmã, pelo eterno incentivo. Aos colegas, em especial a Carmem, Izabella, Karen, Rafael, Maria Rosangela, Rogério, Leonardo e Rafael F. Benthien, pela amizade.

Sumário

Introdução............................................................................................................1 1. Os aldeamentos no período colonial: legislação e conflitos ...........................2 2. Dançando conforme a música: índios e capitães..........................................13 3. “Cavalo amarrado também come”: índios e padres .....................................28 4. Patrimônio e matrimônio em ameaça: índios, colonos, negros escravos e libertos...............................................................................................................42 5. Identidade e parentesco nas aldeias: índios aldeados, “índios bravos” e “administrados” .................................................................................................58 Conclusão ..........................................................................................................72 Fontes: ...............................................................................................................73 Referências bibliográficas:.................................................................................73

1 Introdução

2 1. Os aldeamentos no período colonial: legislação e conflitos Por conta da realização de um estudo comparativo entre os aldeamentos indígenas das capitanias de São Paulo e Rio de Janeiro com enfoque no século XVIII, faz-se necessário, primeiramente, discorrer sobre as implicações do processo de contato entre europeus e nativos ao longo do período colonial. Tendo em vista esta temporalidade, neste capítulo, nossa análise priorizará os territórios da América portuguesa em termos mais gerais sem, no entanto, deixar de pontuar os caminhos diferentes ou iguais tomados pelas duas capitanias escolhidas para análise. Se atendo sobretudo aos entraves das relações entre padres, colonos e índios, por vezes, faremos ponderações a respeito da legislação indigenista portuguesa e suas conseqüências práticas. Cabe ponderar, então, inicialmente sobre como surgiu um sistema prescrito de contato com os diversos grupos indígenas aqui residentes. Conforme o desenrolar da conquista, já em meados do século XVI, os portugueses começam a se apropriar da mão-de-obra nativa no intuito de alavancarem seus engenhos de cana-de-açúcar. Os índios num primeiro momento não viram empecilho algum em trabalhar junto aos invasores desde que recebessem instrumentos de ferro como recompensa. Entretanto, como defende Alexander Marchant (1980: 64-70), com o tempo o número de ferramentas disponíveis já era suficiente e, com isso, os índios entenderam não ser mais necessário travar relações com os recém-chegados. “Os índios eram livres de fornecer mantimento e braços em troca de mercadorias, por conseguinte, eram livres de se recusar a fornecer aos portugueses” (ibid.: 58). Em face da dificuldade de se angariar braços voluntariamente, os colonos passaram a tomarem os nativos pela força, escravizando-os. Insatisfeitos com este novo regime de recrutamento, as reações não foram nada amistosas, dessa forma, várias capitanias se tornaram palco de guerras prolongadas. Em meio a toda discussão despertada pelos inúmeros ataques indígenas contra os portugueses, Tomé de Sousa – o primeiro governador-geral – decide estabelecer as premissas fundadoras da legislação indigenista portuguesa. Na tentativa de manter relações de troca mais intensas entre nativos e colonos, Tomé de Sousa passa a doar sesmarias aos primeiros. Havia, contudo, critérios básicos para a efetivação dessas concessões (ibid.: 70). A primeira prescrição, além das outras que serão tratadas mais detalhadamente a seguir, era a necessidade de transferir os indígenas para junto dos entrepostos coloniais. Os índios que aceitavam essas condições passaram a serem considerados colaboradores dos lusitanos. Com

3 isso, fundou-se na América portuguesa uma política de aldeamento da populações indígenas que muito agradou, sobretudo, aos padres jesuítas. Agora os índios passariam a estar fixados em uma região determinada, princípio básico para que uma disciplina cristã possa ser instalada entre populações infiéis. O principal esforço dos jesuítas, por isso, passou a ser convencer os índios a se aldearem. As expedições designadas de “descimentos”, incentivadas desde o Regimento de Tomé de Sousa até o Diretório Pombalino de 1757, possuíam justamente esta incumbência. Lideradas por missionários, por seus representantes, por brancos em viagem ou mesmo por índios aldeados, os descimentos consistiam na principal modalidade de se obter acréscimo na mão-de-obra disponível nos aldeamentos (Perrone-Moisés 1998: 118). Um aspecto importante nos dá uma idéia das dificuldades presentes na organização dos descimentos. Estas expedições implicavam grandes dispêndios financeiros na medida em que era necessário convencer os índios por meio de uma farta distribuição de presentes, incluindo muitos instrumentos de ferro (Almeida 2003: 928). A noção inicialmente trabalhada com os índios era de que a cristandade significava acesso as ferramentas. Nóbrega, nesse sentido, querendo atrelar ainda mais as duas questões sugeria para a Bahia que os brancos só comerciassem com os índios convertidos (Marchant 1980: 86-7). A própria documentação utilizada por nós neste trabalho comprovaria a permanência dessa estratégia portuguesa na visão inicial dos índios. Em 1801, por ocasião de um possível aldeamento de nativos na capitania do Rio de Janeiro, são solicitados os seguintes instrumentos: 400 anzóis, 400 foices, 200 machados, 200 enxadas, 500 facas e 100 tesouras (RIHGB 1852: 488). Havia na legislação vigente durante o período colonial, ao contrário da política de aldeamentos descrita acima, dois itens que buscavam definir maneiras possíveis as quais justificariam a escravidão de indígenas: a guerra justa e o resgate. Em relação à guerra justa, pode-se dizer que foi instituída inicialmente por Tomé de Sousa, sendo que seus termos nunca geraram muitas concordâncias. Alguns defendiam a perpetração da guerra justa a todos os gentios descrentes da fé católica, enquanto outros não cogitavam a idéia da imposição da religião por meios coercitivos (Farage 1991: 27; Alencastro 2000: 119). O canibalismo praticado pelos Tupinambá no século XVI, consistia, segundo alguns, em modos reprováveis que justificavam também a feitura de guerras justas (Marchioro 2002: 20-52). “Havia unanimidade, no entanto, em

4 relação à guerra justa defensiva, ou seja, em caso de ataques dos índios aos portugueses” (Monteiro 1995: 26-7). Quanto à instituição do resgate, podemos dizer que representava uma modalidade de angariar cativos por meio da compra de prisioneiros das guerras perpetradas pelas sociedades nativas. Neste item, incluíam-se também os célebres prisioneiros feitos pelos Tupinambá da costa normalmente destinados à devoração (Monteiro 1995: 28; Marchioro 2002: 20-52). Tomé de Sousa, além disso, proibiu os chamados saltos que consistiam em ataques diretos as aldeias indígenas sem motivação considerada justa, apenas no intuito de obter mão-de-obra escrava (Schwartz 1988: 46-7). Mesmo assim, o período que abrange os anos 1540 a 1570 ficou caracterizado por representar o apogeu da escravidão do gentio no litoral brasileiro, muitas vezes apanhado de maneira ilícita tendo em vista os regimentos dos governadores gerais. Pressionada pelos padres da ordem jesuíta, a Coroa portuguesa só tomará a iniciativa de legislar restringindo as formas de escravidão em 1570. Em meados do século XVII, precisamente em 1639, a publicação de uma bula papal determinava, a princípio, a proibição irrestrita da escravidão indígena, sendo que quem já vivia sob este regime deveria ser deixado em mãos dos jesuítas. A reação contra esta prescrição não demorou a acontecer (Almeida 2003: 116). Em São Paulo, em decorrência da bula de 1639, pressionada pelos principais moradores da vila, a câmara municipal determinou “a expulsão incondicional dos padres, o confisco de suas propriedades e a transferência da administração dos aldeamentos para o poder público” (Monteiro 1995: 145). Os jesuítas só foram readmitidos treze anos mais tarde, porém, foram proibidos de darem declarações públicas para manifestarem qualquer discordância em relação a escravidão e o controle efetivo dos aldeamentos já não estaria mais em suas mãos (ibid.: 146-7). Na capitania do Rio de Janeiro, em contraposição, uma solução pacífica foi possível graças a intervenção do governador Salvador Correia de Sá e Benevides (Almeida 2003: 116). Segundo consta, um dos principais objetivos dos aldeamentos seria combater a escravidão de índios na América portuguesa (Petrone 1995: 72). A concepção de catequese dos jesuítas, no entanto, colocava o trabalho como uma virtude. O ócio, para os padres, era um campo fértil para a ação do Demônio, pois ele abre o precedente para que as tentações acabem influenciando sobremaneira o indivíduo. Como diz Luiz Felipe Baêta Neves (1978: 88), há na teologia jesuítica

5 uma clara “antinomia entre Deus e Diabo: Trabalho/Ócio”.1 Em aldeamentos baianos do século XVI, a título de exemplificação, os jesuítas trataram de romper com a dita indisciplina de horários típica das sociedades indígenas. Agora, ainda no fim da noite, o sino da igreja tocava chamando as mulheres jovens e casadas para tomarem novas lições de catequese e, feito isso, eram liberadas para o trabalho agrícola e de tecelagem. Depois de um novo badalar, eram chamados os meninos índios que, além das lições da doutrina, também aprendiam a ler e a escrever. Os mais velhos só eram chamados ao cair da noite, pois, do contrário, a dinâmica de trabalho do aldeamento poderia ser prejudicada (Marchant 1980: 96-7). Não eram, entretanto, os aldeados submetidos apenas a feitura de trabalho dentro da própria instituição. O regime das jornadas eram bem mais amplo e perdurou por todo o período colonial. Os índios dos aldeamentos “deviam tornar-se força de trabalho a ser repartida entre autoridades, missionários e colonos, mediante sistema de rodízio e pagamento prévio” (Almeida 2003: 72). No livro As muralhas dos sertões da antropóloga Nádia Farage (1991: 31), encontramos uma tipologia mais ou menos fixa das aldeias conforme a repartição de sua mão-deobra. Existiriam as aldeias do serviço das ordens religiosas as quais eram voltadas para o complemento das rendas percebidas pelos missionários; as aldeias do Serviço Real em que os serviços dos índios eram focados mais para o Estado; as aldeias de repartição cujo os índios preferencialmente trabalhariam para os colonos; e as missões sertão adentro que eram espécies de “unidades autônomas de produção”. Os trabalhos feitos pelos índios aldeados para os colonos, deve-se deixar claro, sofriam sérias restrições, isto é, só poderiam ser realizados mediante o pagamento de um salário, pois a legislação isentava-os de qualquer escravidão. “O pagamento de salário é afirmado desde a Lei de 1587, reafirmado no Alvará de 1596, na Lei de 1611, no Regimento do governador do Maranhão e Grão-Pará de 14/4/1655, no Diretório de 1757, para citar apenas os documentos mais importantes” (Perrone-Moisés 1998: 120). A historiografia mais atual, costuma relativizar a eficácia desses serviços prestados aos colonizadores pelos índios. A dispersão dos índios nas terras dos aldeamentos, desse modo, representaria uma estratégia de fugir do assédio dos brancos necessitados de mão-de-obra (Almeida 2001: 232). Sugere-se, além disso, que haviam recusas declaradas ou índios que não respeitavam os termos tratados abandonando o serviço logo depois

1

Não se deve esquecer, entretanto, que Baêta Neves, como boa parte da historiografia de seu tempo, tende a ver os aldeamentos como um lugar onde a disciplinarização dos índios se daria por completo.

6 de perceberem certa quantia do pagamento (Monteiro 1995: 46). O desrespeito dos contratos, contudo, parece ter sido mais sério por parte dos colonos: A liberdade é violada, o prazo estipulado desobedecido e os salários não pagos; há vários indícios de que os índios das aldeias acabavam ficando em situação pior do que os escravos: sobrecarregados, explorados, mandados de um lado para outro sem que sua “vontade”, exigida pelas leis, fosse considerada (PerroneMoisés 1998: 121)

Cientes disso, outra questão pode ser suscitada: quem administrava as entradas e saídas dos índios nas aldeias? Com relação à administração das aldeias, primeiramente os governadores gerais se encarregaram de atribuir poderes temporais aos jesuítas na condução dos grupos sob tutela da ordem. Em 1595, um Alvará real ratificará as posturas dos governadores, dando mais poderes seculares aos padres (Carvalho; Dantas; Sampaio 1998: 436). Uma lei de 1611, contudo, limita a atuação dos jesuítas ao domínio espiritual, instituindo um cargo de capitão de aldeia, morador responsável pela administração temporal das aldeias (Perrone-Moisés 1998: 119). A partir de meados do século XVII, a ambigüidade concernente ao sistema administrativo dos aldeamentos passa a dominar com mais afinco, pois ora os jesuítas são considerados administradores espirituais e temporais das aldeias, ora a administração é dada a particulares ou as câmaras municipais. Somente em 1691, porém, ocorre a proibição da administração secular de aldeamentos (ibid.: 119-20). Com o processo de união das Coroas ibéricas (1580-1640), os aldeamentos da América portuguesa, segundo Rafael Ruiz Gozález (2002: 21), passam a ser influenciados pela política construída na América espanhola. Assim, surgem as figura dos ouvidores gerais e dos procuradores dos índios, que deviam visitar as aldeias algumas vezes no ano. A preocupação em reforçar o regime de trabalho salarial dos aldeamentos aparece justamente em 1609. Não poderia agora haver exceção no que diz respeito ao pagamento sendo até os religiosos submetidos a esta prescrição. O principal reflexo da união das Coroas estaria ocorrendo principalmente nos arredores de São Paulo, que seria a única cidade portuguesa na América voltada para o interior (ibid.: 28). Principalmente por volta de 1580, os colonos paulistas iniciaram suas atividades de preação de índios por meio de expedições dirigidas ao sertão. Oriundos de terras cada vez mais remotas, estes nativos, trazidos em número cada vez maior, passaram a ocupar um espaço muito importante dentro do contexto de produção da sociedade paulista. Na hipótese trabalhada por Monteiro (1995: 56-61), contrapondo-se a uma historiografia regional apologética, por mais que

7 os paulistas declarassem outras justificativas para suas expedições, não há como duvidar do caráter de empresa para aumentar a oferta de escravos e, consequentemente, os rendimentos da lavoura comercial paulista, dado às bandeiras (Monteiro 1998: 494). Nas décadas iniciais do século XVII, as expedições de apresamento dos Guarani se concentraram nas regiões conhecidas como sertão dos Patos - região do interior das delimitações do atual estado de Santa Catarina – e sertão dos Carijós – as áreas ocupadas além das margens do rio Paranapanema. A região do sertão dos Carijós, alvo principal dos bandeirantes, apesar de não ser bem delimitada nos documentos de época, certamente correspondia à região do Guairá. O ciclo jesuítico nesta região, numa proposição de Melià (1988: 72), foi dividido em três momentos: o primeiro seria de 1610 a 1622, com a fundação das reduções de Loreto e Santo Inácio; o segundo período abrange a expansão para as regiões do vale do Paranapanema (1622-27); já o terceiro compreende as demais fundações posteriores a 1627. No entanto, as primeiras expedições paulistas nesta região, não objetivaram um embate direto com os jesuítas espanhóis. Assim, até meados da década de 1620, a maioria dos Guaranis ainda viviam em suas aldeias tradicionais. Com o tempo, a lavoura comercial de São Paulo passou por uma vultuosa expansão e, por isso, as técnicas de obtenção da mão-de-obra nativa se modificaram sobremaneira, sendo a escravidão utilizada de forma desregrada. A maioria dos cativos aprisionados eram mulheres e crianças e, por isso, as mulheres passaram a ter a incumbência de levar adiante as lavouras comerciais, enquanto os homens iam para o sertão estimulados pela necessidade de adquirir mais escravos indígenas. Baseado em Sérgio Buarque de Holanda, Monteiro (1998: 496) aponta outras importantes adaptações dos paulistas a elementos provenientes da cultura tupi-guarani: (…) a pesca por tingui, a agricultura itinerante, as práticas sertanistas, a divisão do trabalho, a língua geral, entre outros traços marcantes que, em muitos casos, vigoraram até este século entre as populações rústicas.

Após todo o processo de mudança ocorrido na região do Guairá, provocado pelos ataques das expedições paulistas, pelas reduções jesuíticas e pelas doenças contagiosas; as aldeias guaranis tradicionais já não estavam mais aptas a fornecer tantos cativos quantos os bandeirantes precisavam. Os apresadores, tendo em vista que sua atividade foi afetada pela baixa densidade demográfica dos grupos locais, passaram a perpetrar ataques contra as áreas da reduções paraguaias. Segundo boa parte da historiografia que se debruçou sobre as bandeiras paulistas, as justificativas para as expedições de apresamento terem em vista, a partir de 1628, as missões,

8 seriam pelo motivo de elas oferecerem mão-de-obra aculturada e pacificada pelos jesuítas. Esta tese deixa de lado, no entanto, elementos importantes, pois esquece que os Guarani antes da chegada dos europeus já tinham domínio da técnica agrícola de certos produtos tropicais, além de valorizar demais a eficiência do trabalho dos jesuítas (ibid.: 490). No ano de 1628, então, uma bandeira comandada por Antônio Raposo Tavares se dirige a área das missões espanholas no Guairá para empreender uma ataque que solaparia três reduções. Em 29 de janeiro de 1629, os bandeirantes conseguem entrar nas delimitações da missão de Santo Antônio, aprisionando cerca de dois mil cativos guaranis. Em 20 e 23 de março deste mesmo ano, mais duas missões serão atingidas, respectivamente, Jesus Maria e São Miguel (Melià 1988: 84). Depois do sucesso dessa empreitada, as reduções do Guairá foram sendo destruídas aos poucos, até o ano de 1632, no qual a depopulação da região atingiu limites insustentáveis, milhares de Guarani foram retirados das missões e se transformaram no motor principal da lavoura comercial paulista em franca expansão. O Guairá, em sua totalidade, era composto por quinze missões jesuíticas espanholas. Dentre elas, treze foram completamente destruídas e duas deslocadas para regiões do atual Uruguai. “A grande maioria delas – em número de doze – tinha sido estabelecida menos de quatro anos antes da invasão” (Monteiro 1995: 74). Ao fazer um balanço da queda abruta da população do Guairá, Melià (1988: 89) faz a seguinte consideração: El ciclo bandeirante, ségun los testemonios más inmediatos, muestra que los paulistas pueden haberse llevado del Guairá, en sus diversas entredas, no sólo de las reduccines jesuíticas, como dan a entender algunos textos, sino contando también a índios de encomienda e índios independientes en su vida tribal, unos 60.000 individuos.

O resultado final do processo de ataque às reduções foi o seu deslocamento para localidades mais à oeste e sudoeste. As bandeiras que tentaram seguir os mesmos rastros dos jesuítas acabaram se deparando com um exército de guaranis bem estruturado, de modo que todos as tentativas de ataque foram ineficazes (Pastore 1991: 156). Em 1641, houve várias batalhas em canoas no rio Mbororé, afluente do Uruguai, em seguida, a luta se tornou direta e a derrota dos paulista determinou o fim de suas pretensões nesta localidade. Além do mais, as vitórias do exército guarani imporiam delimitações mais claras entre a América portuguesa e a espanhola (Hemming 1999: 433). A principal mudança angariada por estas expedições iniciadas em 1580 teria sido sobretudo a transição da utilização da mão-de-obra indígena aldeada para o índio escravo nas lavouras paulistas (Monteiro 1995: 106).

9 Com o passar dos anos setecentos, em contraposição, a legislação insistia cada vez mais na necessidade de manter os índios livres da escravidão. Mesmo os escravos capturados em guerra justa já começam a ser deixados de lado, criando um panorama paulista dominado por índios ditos “forros”. Esta designação, entretanto, parece ser mais uma das estratégias tomadas pelos colonos para continuarem a possuir índios para trabalharem em seus empreendimentos. “São forros, porém passam de pais para filhos da mesma forma como, com a maior naturalidade, são dados em dotes de casamento ou em pagamento de dívidas” (Petrone 1995: 82). O indígena administrado se torna justamente esta espécie de figura intermediária entre o escravo e o aldeado. Tutelado por um administrador obrigado a dar-lhe sustento, veste e condições para se tornar cristão, em troca os administrados deveriam trabalhar para os seus senhores. Somente em 1696 a Coroa portuguesa tentará definir melhor as normas referentes ao sistema de administração. Os paulistas e seus descendentes masculinos ou femininos poderiam agora formalmente usufruir da mão-de-obra indígena trazida do sertão. Uma série de limitações e regras, entretanto, foram instituídas para tentar dar fim aos abusos. Segundo constava, os aldeamentos seriam prioritariamente os lugares onde deveriam permanecer os índios administrados, sendo que uma semana trabalhariam para seus administradores e outra para si. Também poderiam ser levados para o sertão somente se não ultrapassasse metade da população de um aldeamento, deixando metade de seus salários para o sustento de seus rebentos. Não poderiam trabalhar para os seus administradores crianças com menos de 14 anos e adultos com mais de 60 anos e as índias só poderiam sair dos aldeamentos acompanhadas pelos parentes ou quando fossem amas-de-leite (ibid.: 85-6) Deve-se ressaltar, contudo, o caráter meramente formal das medidas que instituíam a presença dos administrados nos aldeamentos. Com estas medidas muitos outros aldeamentos foram criados e a associação entre administração e aldeamentos se tornou bastante presente, porém, os administrados, em sua maioria, continuaram a servirem seus senhores em uma regime muito semelhante ao escravocrata. Os paulistas em 25 de setembro de 1727 decidem tentar prescrever suas próprias regras em relação à administração com a participação de representantes beneditinos, carmelitas, franciscanos, jesuítas e outros. Decidiu-se que haveria um protetor dos índios, geralmente um padre, encarregado de julgar para quem o administrado iria trabalhar depois do falecimento de seu administrador, sem deixar de dar prioridade aos filhos dos mesmo.

10 Outra grande preocupação foi traçar algumas regras relativas ao casamentos dos administrados, como vemos no item sete, oito e nove transcritos por Petrone (1995: 89): 7. Os casamentos dos administrados seriam livres, os contraentes passando a viver juntos, sem que os pudessem impedir seus administradores; 8. Casando um administrado com habitante dos aldeamentos, o casal teria que viver na aldeia; 9. Casando um administrado com pessoa livre, não mais seria obrigado à administração.

Alguns anos depois, em 1732, pelo fato de muitas pessoas convencerem os administrados a saírem de suas casas para casarem com escravos, instituiu-se uma multa de duzentos mil-réis para quem agisse dessa forma, sendo que metade dela iria para o delator. Apesar de toda a regulamentação, os paulistas continuaram a tratar seus administrados como bens de herança. Quando havia alguma contenda com relação à posse do administrado geralmente ele era recolhido num aldeamento até tudo se resolver. Somente em 1758, com as reformas pombalinas, decretou-se a extinção irrestrita da administração (ibid.: 90-2). No Rio de Janeiro, a administração particular, diferentemente, teria sido bem esporádica, pois, com defende Almeida (2003: 114), a Câmara de São Paulo acabou cedendo mais as pressões dos colonos do que no Rio de Janeiro. No período pombalino, ocorreram mudanças significativas na política indigenista da Coroa portuguesa e, com isso, acaba-se por incentivar “a presença de brancos nas aldeias” (Perrone-Moisés 1998: 119). O chamado Diretório Pombalino de 1757, contudo não deixou os índios a esmo, tomando a medida de reafirmar seus direitos sobre as terras concedidas anteriormente. Até o iniciar do século XIX, em conseqüência direta do Diretório, as disputas pelas terras dos índios acabam se tornando bastante intensas (Almeida 2001: 227-9). Os títulos das terras consistiam no principal instrumento de manutenção dos direitos legais indígenas sobre as terras doadas séculos anteriores. Então, em uma época de intensa apropriação de suas terras por colonos, “os índios aprenderam a lançar mão dos títulos para dar um embasamento legal às suas reivindicações, conforme os padrões portugueses” (ibid.: 229). Com a publicação do Diretório em 1757, inicialmente apenas para as missões do GrãoPará e Maranhão e posteriormente estendido para a colônia como um todo, alterou de forma significativa toda a dinâmica dos aldeamentos coloniais.2 Agora a atuação dos padres estaria

2

De acordo com Almeida (2003: 168), a Amazônia era prioridade na política indigenista pombalina na medida em que constituía na única área de colonização portuguesa onde o elementos indígenas ainda era preponderante. Por

11 definitivamente limitada apenas ao domínio espiritual e os encargos de administração do aldeamento seriam delegados para chefes indígenas tradicionais ou principais. No concernente as aldeias que tinham atingido uma população já bastante elevada, nesse momento elas passaram a categoria de vilas e municípios, sendo as terras indígenas distribuídas da maneira portuguesa, ou seja, agora cada família possuiria seu lote de terras bem delimitado. “Essas novas disposições culminariam com a expulsão dos jesuítas de Portugal e de todos os seus domínios, por força da Lei de 3/9/1759” (Carvalho; Dantas; Sampaio 1998: 444). No Rio de Janeiro, já desde o século XVII, muitos índios começaram a negociar suas terras, fato este que estimulou uma série de invasões das terras pertencentes a aldeamentos. Durante o século XVIII, a expansão das terras cultiváveis no Rio de Janeiro fica cada vez mais limitada em conseqüência do aumento da demanda e de sua escassez. A partir da expulsão dos jesuítas, determinada pela política pombalina, os índios acabam perdendo importantes defensores e a pressão sobre suas terras intensificou-se. Com isso, o período pombalino ficou caracterizado no Rio de Janeiro como um momento de invasões e vulnerabilidade das terras indígenas graças as brechas abertas na legislação no sentido de incentivar a presença de não-índios nos aldeamentos (Almeida 2003: 238). Especialmente no final do século XVIII e início do XIX, o patrimônio coletivo dos índios é objeto de brigas entre os moradores, os próprios índios e a câmara municipal. Nesse momento, uma parte bastante significativa da documentação provém da justiça (ibid.: 246).3 Apesar de todas as alterações na configuração física e social dos aldeamentos, a política do período pombalino, na perspectiva de Almeida (2003: 175), se mostrou bastante ineficiente no item da tentativa de assimilação dos grupos indígenas ao sistema colonial. A introdução de moradores brancos, negros e mestiços, ocasionou apenas o aumentar da intensidade dos conflitos jurídicos. Quando as aldeias foram oficialmente transformadas em vilas ou freguesias o patrimônio pertencente aos indígenas foi rapidamente secionado e, por isso, a distinção entre índios e não-índios perdurou século XIX adentro, “contrariando os sonhos assimilacionistas do marquês” (ibid.: id.).

isso, a leis deste período sempre formam elaboradas inicialmente para o Grão-Pará e Maranhão e depois estendidas para o Brasil todo. 3 Na perspectiva de Almeida (2001: 244), inseridos em uma sociedade hierárquica, os índios de aldeamento possuíam uma ampla vantagem em relação a maioria da população despossuída na medida em que eram possuidores legais de terras concedidas pela Coroa.

12 Além disso, conforme Farage (1991: 43), a prática de casamentos inter-étnicos foi também incentivada, com maior afinco no período pombalino.4 Contudo, a maioria dos autores que se debruçou sobre a documentação oriunda dos aldeamentos coloniais parecem concordar com a existência de uma taxa bem modesta de intercasamentos. No caso específico de Goiás, a título de exemplificação, como nos relata Ravagnani (1996: 237), durante a colonização existiam espécies de castigos formais prescritos que previam açoite para negros e mulatos e prisão para brancos, no caso de moléstia sexual contra índias aldeadas. “Por isso, a mestiçagem com o índio parece ter sido puramente ocasional durante o período colonial em Goiás, e de proporções muito modestas” (ibid.: id.). Ao contrário das reduções jesuíticas do Paraguai – projeto político com nítida intenção de separar os índios tanto dos colonos espanhóis como dos portugueses –, a

instituição do

aldeamento, como vimos durante todo este breve texto, apresentava-se com um modo de aumentar a intensidade dos contatos entre índios e colonos, sempre na expectativa de angariar novos súditos cristãos. Por meio de uma política de associação da Igreja com a Coroa, os aldeamentos foram implantados, tendo em vista a necessidade de se integrar os povos do Novo Mundo ao projeto de colonização. A sua proximidade com áreas de núcleos habitacionais da colônia era uma das características da estrutura de implantação dos aldeamento. Evitava-se, entretanto, distâncias muito reduzidas porque acreditava-se que elas poderiam ocasionar atritos constantes. E, por fim, as aldeias normalmente eram configuradas no sentido de se manterem juntos grupos aliados, “de modo que o horror da convivência com inimigos não leve os índios a fugirem de suas aldeias, retornando à barbárie” (Perrone-Moisés 1998: 119).

4

Em seu livro intitulado Muralhas do sertão, Farage defende a tese da importância dos aldeamentos pombalinos na Amazônia como muralhas que impediriam o avanços do holandeses e o tráficos de escravos na fronteira com a Guiana

13 2. Dançando conforme a música: índios e capitães A aldeia de São Pedro em Cabo Frio na capitania do Rio de Janeiro, durante a década de 1800, vive uma contenda que envolve várias de suas autoridades, incluindo um padre. As madeiras usadas tradicionalmente pelos índios para a feitura de canoas estavam sendo extraviadas por colonos.5 Também acusado de extraviar madeiras, seu capitão de nome Miguel Soares Martins se envolve de forma violenta numa disputa interna. A índia de nome Rita, de acordo com o relatado, teria ido à casa da índia Rosaura para cobrar uma dívida pendente. Nessa ocasião, apareceu Inácio Dias que pouco quis saber da justiça do pedido de Rita e “entrou em disputas com a dita índia velha com palavras tão injuriosas que a obrigou a retirar-se para sua casa (…)” (RIHGB 1852: 433-4). Um tempo depois, não satisfeito em ficar apenas nas ofensas verbais, Inácio Dias correu atrás da índia e passou a dar-lhe bofetadas e puxou seu cabelo com força no intuito de derrubá-la. E, de uma forma não bem explicada, ao se levantar, Rita feriu Inácio Dias no pescoço. Encarregado dos castigos,6 o capitão Miguel Soares Martins tenta intermediar a história tomando as dores de Inácio Dias: (…) resultou disso mandá-la buscar presa por três índios o capitão Miguel Soares Martins e trazendo-a agarrada, a mandou castigar com 8 dúzias de palmadas, até que se deslocou uma mão, e depois lhe mandou botar nas mãos água fervendo para a mortificar mais, e por fim a mandou conduzir presa para a cidade de Cabo Frio (RIHGB 1852: 433-4).

Os índios de S. Pedro, observando esta situação, em um requerimento, questionam a patente e a autoridade do dito capitão Miguel Soares Martins. Compadecidos do drama da índia de nome Rita com mais de 70 anos, pobre e sem filhos, os aldeados de Cabo Frio pedem a nomeação de Eugênio de Almeida para capitão-mor. Apesar de Eugênio de Almeida ser acusado de abusar algumas vezes da bebida, ele é confirmado como o mais apto para o cargo de capitãomor, pois parece ser um dos únicos principais da aldeia não envolvido no roubo das madeiras. Dentro da nossa documentação, entretanto, a aldeia de S. Pedro não era uma exceção no que diz respeito a existência de problemas com o capitão da aldeia na capitania do Rio de

5

O caso do roubo das madeiras em S. Pedro será analisado mais detalhadamente numa seção destinada exclusivamente às relações entre índios e padres nos aldeamentos. 6 “Se na tradição tupi, os chefes não tinham poder de coação, passaram a tê-lo nas aldeias pois (…) castigos e punições eram por eles aplicados” (ALMEIDA 2003: 159-60).

14 Janeiro.7 Cargo instituído precisamente por uma lei de 1611, o capitão-mor deveria ser, inicialmente, um morador da aldeia sem o requisito de ser índio. Mais tarde, em 1655, proíbe-se erigir um capitão oriundo de fora da aldeia. As lideranças indígenas, dessa forma, passam a ocupar o cargo, tendo como incumbência a administração temporal dos índios. Os missionários, a partir da década seguinte, ficam restringidos à administração espiritual dos aldeados e as questões temporais passam a ser de responsabilidade única do capitão-mor. Somente com o Diretório de 1757, os índios são declarados incapazes de se autogovernarem e, por isso, o cargo de diretor da aldeia é criado (Perrone-Moisés 1998: 119). A política de nomear índios principais como autoridade em aldeamentos não era extraordinária dentro do contexto das colônias ibéricas em todo o mundo. Assim como na América espanhola, a tentativa de cristianizar os índios e de fazer com que eles se submetessem as ordens da Coroa portuguesa observava as lideranças nativas como chave no trabalho de negociação com seus grupos. Os presentes destinados aos chefes, dessa maneira, foram muitos, dentre eles se destacam os títulos, os salários e as vestimentas (Almeida 2003: 154-7). As intenções dessa política de enobrecimento, como deixa claro Almeida, era fazer dos chefes grandes aliados da colonização: A política de enobrecimento de parte das lideranças indígenas fazia-se com a concessão de privilégios e títulos que visavam introduzir hábitos, costumes e valores do mundo mercantilista e cristão para envolver esses homens na ordem colonial, de forma a que conduzissem seus liderados à obediência e disciplina nas aldeias (ibid.: 161).

No caso do México, a título de fazermos uma comparação, Gruzinski apresenta em sua obra intitulada A colonização do imaginário argumentos que fazem do colégio de Santa Cruz – fundado no México por franciscanos – chave para a criação de uma aliança entre elite local e colonizadores.8 Muitos filhos da nobreza nativa, neste local, foram educados com valores

7

Não devemos, no entanto, cair no erro de considerar o conflito entre índios e capitães como predominante nas aldeias do Rio de Janeiro. Nossa documentação deve ser vista como caso excepcionais, pois ela é produzida justamente, e somente, em momentos de conflitos. É um pouco difícil para nós, nesse sentido, tecer comentários sobre a anormalidade das aldeias em quase todos os casos que analisaremos a seguir. Para São Paulo, porém, há uma série de listas oriunda de censos nas aldeias que nós permitem sim fazer algumas sugestões mais exatas sobre o cotidiano dos aldeamentos de uma forma mais geral. Nessas listas, como veremos ainda neste capítulo, um série de indícios apontam para uma permanência dos chefes no cargo de capitão-mor. 8 Esta obra procura, dentro de uma temporalidade macro (séculos XVI, XVII e XVIII), sintetizar os diferentes tipos de reação frente à empresa evangelizadora no México colonial. Com a pretensão de avaliar três séculos de “ocidentalização” das sociedades indígenas mexicanas, Gruzinski, por vezes, cai no equívoco de diferenciar segmentos mais puros de outros mais “ocidentalizados” ou “aculturados” em seus objetos de análise. Os diferentes tipos de alianças entre índios e colonizadores, nesse sentido, são avaliadas e por vezes confundidas com o exercício

15 cristãos, fortalecendo ainda mais os privilégios dos antigos comandantes do mundo indígena. Aliada cada vez mais próxima da Coroa e decrescente em termos numéricos – a mortes por doença eram avassaladoras –, a elite mexicana teve de compactuar com a extinção total da curiosidade que ainda existia por parte dos espanhóis em relação à cultura indígena. A partir da abdicação de Carlos V (1556) e do fim do Concílio de Trento (1563), a Espanha assinou em baixo nos itens constantes na Contra-Reforma e baniu formalmente qualquer tipo de manifestação pagã de seus domínios (Gruzinski 2003: 104-9). Para contribuir ainda mais com essa desagregação, as mortes nas gerações mais velhas fez com que saberes locais fossem perdidos graça a quase inexistência de informantes (ibid.: 121-7). Para atingirem o objetivo de controle dos aldeados os responsáveis pela política indigenista da Coroa portuguesa, por sua vez, acharam por bem romper com a tradição indígena de erigir líderes apenas pelo critério do prestígio. Nos aldeamentos o cargo de capitão-mor passou a ser hereditário, ou seja, o direito de suceder o líder era normalmente delegado a um filho seu (Almeida 2003: 154). O número de interferências dos capitães-mores nos aldeamentos fluminenses, conforme notaremos, ao contrário do que ocorre em São Paulo, é bastante grande e o prestígio que eles mantinham perante a população depende muito da circunstância. Em S. Pedro, como já foi visto, podemos evidenciar a dificuldade de se achar um capitão para aldeia na medida em que todos os principais tinham tomado para benefício pessoal as madeiras utilizadas pelos demais índios. Em Itinga, também localizada na capitania do Rio de Janeiro, por outro lado, há um capitão que consegue incorporar as reivindicações seus índios sem esquecer das suas necessidades de manutenção e extensão dos seus privilégios. A aldeia de São Francisco Xavier de Itaguaí, também chamada de Itinga, teria se originado a partir da transferência de índios carijós da ilha de Marambaia para suas terras. Encarregados de converter índios vindos da lagoa dos Patos, padres jesuítas decidiram reuni-los próximos à fazenda carioca pertencente à ordem jesuíta e designada Santa Cruz (ibid.: 87). Dado esta proximidade estratégica, uma das principais atividades dos índios foi servir aos religiosos, até sua expulsão, e capturar escravos em fuga. Como veremos a seguir, na nossa documentação o que acabou gerando conflitos em Itaguaí foi a tentativa de manter a aldeia em pleno funcionamento, pois ela foi declarada extinta por três vezes (ibid.: 122).

efetivo da dominação. Conforme o andar da obra, entretanto, Gruzinski nos mostra que às vezes a aliança com o colonizador pode representar mais liberdade no campo cultural do que uma resistência ativa.

16 A situação de Itaguaí parece ter chegado no limite quando, na década de 1800, seu capitão-mor, o índio José Pires Tavares decidiu ir para Portugal reivindicar a restituição da aldeia. Chegando ao reino, o capitão redigiu um documento endereçado a rainha Dona Maria I contendo sete súplicas. O mais interessante deste pedido consiste na particularidade contida em seu discurso que aponta vários indícios para o estudo das lideranças indígenas em situações limites dentro dos aldeamentos. A petição contém basicamente dois tipos de reivindicação, a primeira tendo um caráter mais coletivo enquanto a segunda buscava manter e reforçar os privilégios concedidos ao capitão-mor (RIHGB 1852: 327-32). Em primeiro lugar, como dissemos, surgem os pedidos com caráter mais coletivo. A igreja da aldeia é citada logo no início, pois a preocupação dos índios parece ser devolvê-la ao seu estado original anterior a expulsão dos mesmos do aldeamento.9 Indenizar às famílias que perderam suas casas e roças durante a expulsão também é outra preocupação do líder. E, como, caso a restituição fosse confirmada, os índios se mudariam para um local sem as mínimas condições de sustento inicial, o Estado deveria assisti-los “com a farinha, e feijão necessário para o sustento de um ano, visto que antes dele findo, por mais que trabalhem não poderão colher frutos de suas lavouras” (RIHGB 1852: 327-32). Outro pedido está relacionado com a proximidade do aldeamento com a fazenda de Santa Cruz, até a década de 1750, pertencente aos jesuítas. Três décadas depois, quando o caso ocorre, o capitão pede que as terras da fazenda sejam doadas aos índios de Itaguaí, pois com a expulsão dos padres todo o patrimônio da Companhia havia sido destituído. A intenção manifestada é estender as terras do aldeamento para as plantações dos índios e, além disso, se beneficiar do arrendamento das mesmas para particulares. Segundo as averiguações feitas a dita “expulsão” dos índios teria ocorrido graças à ausência dos jesuítas (ibid.: 335-7). Quando os padres saíram da fazenda os índios teriam ficado sem a administração exercida pelos religiosos. Posteriormente, um oficial e um soldado do Rio de Janeiro assumiram os postos de diretores da fazenda, entretanto, “principiaram por privar os índios de algumas comodidades, a que juntaram suas violências” (ibid.: id.).

9

De acordo com a autora de Metamorfoses indígenas, era difícil separar as aldeias de suas igrejas, pois normalmente o santo padroeiro da igreja dava o nome também à aldeia. A fundação de uma igreja, além do mais, era imprescindível na constituição de um aldeamento – espaços que tinham como o objetivo principal a conversão dos nativos. Salvo, então, aldeamentos mais voltados para interesses particulares, a manutenção da igreja atestava a continuidade da aldeia. (ALMEIDA 2003: 242)

17 As próximas solicitações são mais direcionadas ao benefício do próprio capitão José Pires Tavares. Primeiramente, o chefe pede a confirmação formal de sua patente de capitão-mor, assim como o recebimento de soldos os quais ele teria direito ao ocupar o posto. Para ratificar seu merecimento, Tavares relata que o capitão da aldeia de São Barnabé chamado João Batista percebe os mesmos rendimentos.10 Durante cerca de quinze anos a aldeia tinha ficado ao seu encargo e, segundo ele, estava mais do que provado sua competência para o cargo. A ida ao reino, além disso, teria consumido todas as economias do capitão e, por isso, entre outras coisas, ele solicitava o pagamento de sua viagem de volta ao Rio de Janeiro. Para viajar, o capitão gastou “não só algum dinheiro que com muito trabalho ia juntando para o dote de uma filha única, e tudo mais que pôde apurar da venda de alguns móveis, e ainda de vestidos de seu uso” (RIHGB 1852: 327-32). A seguir o líder pede, então, uma ajuda para que o casamento seja realizado normalmente. Sua filha, “a qual ele tem educado com muito cuidado, ensinando-a a ler e escrever”, precisava ter um bom dote para casar com um branco, conforme o desejo do capitão (ibid.: id.). A vontade do capitão-mor índio em casar sua filha com um branco nos sugere uma atitude destoante das alianças normalmente traçadas por uma sociedade indígena. Como defende Louis Dumont em sua obra intitulada Homo hierarchicus,11 o comportamento do capitão José Pires Tavares seria tipicamente comum numa sociedade complexa tradicional. A tentativa do chefe em “arranjar” para sua filha um casamento com um indivíduo situado num estatuto hierárquico superior é uma estratégia perfeitamente aceita dentro de uma sociedade dividida em estamentos como acontecia no Antigo Regime. O exemplo indiano de Dumont (1997: 193) nos esclarece muito, pois num casamento hipergâmico se exige que o pai da noiva doe “bens materiais a uma família de um estatuto superior”. O pai da casada, além disso, “estabelece como um ponto de honra o não receber nada em troca, nada além da consideração que a família de seu genro, de um estatuto superior ao seu, faz recair sobre ele” (ibid.: id.). A decisão de José Pires Tavares fortalece a hipótese de que uma ideologia hierárquica típica do Antigo Regime penetrou ainda 10

Ausente da nossa pesquisa por motivo de falta de documentação, São Barnabé consistiu em uma importante aldeia colonial que não deve ser desprezada. Fundada por jesuítas, a aldeia abrigou índios das mais diversas etnias como os Goitacá, os Moromomi, os Temiminó, os Tupiniquins e os Tupinambá. Seus índios se destacavam, já no século XVIII, por terem o artesanato como atividade principal. São Barnabé, além disso, após o Diretório foi a única aldeia fluminense erigida vila. (ALMEIDA 2003: 71-2; 171; 176) 11 Esta obra de Dumont têm objetivos bastante claros: ao traçar um panorama sucinto da sociedade indiana de meados do século XX em seus diferentes aspectos, o pesquisador pretende criticar a ideologia igualitária existente

18 mais no cotidiano das aldeias colônias, assim como já comprovava o fato de agora as lideranças serem hereditárias, como afirma Maria Regina Celestino de Almeida para o Rio de Janeiro. É difícil precisar ainda as dimensões da introdução da ideologia hierárquica entre os índios dado o caráter irrisório da nossa documentação. Porém, tendo em vista o número de conflitos que encontramos no Rio de Janeiro, algumas pistas de investigação já nos são fornecidas, basta investigar mais profundamente. Quanto a solução do caso, ela parece ter sido positiva tanto para os índios com para a administração da capitania. Os índios recuperaram a aldeia e a capitania continuou a contar com seus úteis serviços de localizar escravos ou criminosos em rota de fuga. O capitão de Itaguaí, ao contrário do ocorrido em S. Pedro, parece ter conseguido conciliar interesses seus e dos índios aldeados. Na aldeia fluminense de Mangaratiba, em contraposição, predominavam sérios desentendimentos com o capitão-mor que não comandava a aldeia conforme as vontades dos índios. Criada por Martim de Sá, a aldeia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba foi o primeiro aldeamento da capitania do Rio de Janeiro a não ser fundada por padres jesuítas. Sua composição étnica, pode-se dizer, foi bastante heterogênea, porém, no princípio, “estabeleceu-se com índios tupiniquins trazidos de Porto Seguro por Martim de Sá” (Almeida 2003: 87-8). A aldeia de Mangaratiba, como se supõe, deve ter sido freqüentada por índios com liberdade de costumes, pois até meados do século XVIII não havia religiosos em seu interior. Justamente por isso, os índios vão se manifestar de forma aguerrida após a designação de padres capuchos, “os mais rígidos deles”, para comandá-los (ibid.: 165). Os trabalhos feitos à particulares pelos índios de Mangaratiba eram destinados sobretudo à família Sá. A proteção recebida pelos aldeados em Mangaratiba dos Sá, nesse sentido, incluía a permissão da liberdade de costumes com a ausência de padres (ibid.: 206).12 Em 1764, seguindo parâmetros do Diretório, Mangaratiba se tornou freguesia, após o estabelecimento de uma igreja

nas sociedades modernas ocidentais. Esta ideologia, no entender de Dumont, mascara uma realidade hierárquica e acaba culminado na formulação das teorias biológicas racistas como uma espécie de compensação. 12 Na opião de Almeida (2003: 191), os aldeados de Mangaratiba eram incentivados pela família Sá a não aceitarem intervenções maiores do Estado na política da aldeia. Pelo fato dos Sá terem doados as terras e ajudarem no perdurar do aldeamentos, construi-se uma relação de patronagem bastante forte. A aldeia de Mangaratiba, dessa forma, é, talvez, a única localidade fluminense onde o interesse dos colonos prevaleceu no que diz respeito a utilização da mão-de-obra indígena. Em São Paulo, como veremos mais detalhadamente no decorrer deste trabalho, a situação parece ter tomado um sentido oposto demostrada pela criação do sistema de administração particular no final do século XVII.

19 paroquial em suas terras. E, como era comum, a presença de brancos como moradores se tornou constante, sendo que em 1806 eles já representavam a maioria (ibid.: 171-2). A documentação sobre conflitos com brancos e com o capitão-mor da aldeia é numerosa, iniciando em 1775. É difícil determinar a causa exata, mas, a partir desta data, os índios de Mangaratiba passaram a demostrar uma grande insatisfação com situação da aldeia. Segundo os próprios índios, o capitão-mor da aldeia, que paira a dúvida se era ou não índio – as informações constante nos documentos são antagônicas –, abusava dos castigos contra os aldeados: (…) deu tanta pancada com um pau em uma mulher, casada, que quase a deixou por morta, e outras tantas palmatórias que lhe ficaram as mãos inchadas (RIHGB 1852: 396-7).

Os índios, além do mais, acusavam o vigário da aldeia de estar associado ao capitão de nome José de Sousa Vernek, por isso suas palavras não deveriam ser levadas em crédito. O caso dura mais de trinta anos e um vigário da aldeia só é ouvido em 1806, sendo lacunar a informação de se era o mesmo padre citado pelos índios anteriormente. A posição do padre nomeado Joaquim José da Silva Feijó é intermediária, só tomando partido dos índios quando diz respeito à necessidade da troca do capitão. Para entender as opiniões do pároco, entretanto, é preciso descrever o caso em mais detalhes (ibid.: 407-9). Na versão do capitão, que exclui a agressão à índia, os aldeados tinham a intenção de matá-lo. Queriam, também, expulsar todos os brancos da aldeia para se apropriarem de suas moradias e, com isso, se isentarem de qualquer atividade nos cultos católicos realizados na freguesia (ibid.: 398-403). A ameaça de banimento dos brancos da aldeia, alguns dias mais tarde se torna realmente efetiva e várias casas récem-instaladas são postas ao chão.13 Algum tempo depois, em outra representação, vários índios da aldeia continuam a reclamar dos desmandos do capitão José de Sousa Vernek. Além dos já relatados castigos infringidos à índia, o líder era também questionado por retirar parte da terra dos índios para dar aos brancos ingressos na aldeia. Se apossar dos rendimentos da aldeia e seu “vício de embriagarse”, na visão dos índios, eram outros motivos que tornavam ainda mais justo o pedido de afastamento do capitão. Na maioria dos relatos analisados parece haver, no entanto, um ponto de concórdia em relação ao mau comportamento do capitão José de Sousa Vernek (ibid.: 403-6). Tendo também esta evidência em mente, as autoridades encarregadas do caso acham por bem que o índio Pedro

20 da Mota passe a ser o novo encarregado do posto de capitão, sustentado pelo parentesco, porém, não pelo critério da hereditariedade: (…) entre os índios o mais capaz para capitão-mor é Pedro da Mota, capitão das entradas, irmão do defunto capitão-mor, o qual tem probidade e bom comportamento (ibid.: id.).14

Antes da confirmação de Pedro da Mota como capitão-mor de Mangaratiba, surge a já comentada carta do vigário Joaquim José da Silva Feijó. O padre, como já foi dito, não toma as dores nem do capitão e nem dos índios, mas parece negar qualquer má conduta por parte dos brancos ingressos na aldeia (ibid.: 407-9).15 No entender do padre, os índios viviam em desacordo entre si e contra os brancos. O capitão-mor, por sua vez, realmente “tem vivido com péssima conduta entregando-se continuamente à bebida” (ibid.: id). Seria falso, no entanto, na visão do padre, o relato dos índios, que dizia estar o capitão associado aos brancos no sentido de entregar as terras dos aldeados para eles. Quando Pedro da Mota assumiu o cargo de capitão, alguns índios se rebelaram (Luiz da Costa, João Ribeiro, Manoel José e Valério) e foram presos. O caso, neste momento, reforça uma de nossas hipóteses, pois poderia haver na aldeia uma disputa entre lideranças, parentelas e/ou grupos étnicos que colaboraram para a situação de caos apresentada anteriormente, como ficou claro na ruptura com o sistema de liderança erigida pela legitimidade do parentesco, mas não da hereditariedade. Em São Paulo, generalizando a análise da documentação utilizada, podemos dizer que os capitães das aldeias normalmente não eram os desencadeadores das querelas entre os aldeados como acontecia no Rio de Janeiro, mas sim intermediários dos mesmos em questões judiciárias. Os exemplo disto se sucedem em nossa documentação e sugerem uma ligação no que diz respeito ao papel de intermediário da colonização dado aos capitães fluminenses e, como veremos melhor no capítulo sobre índios e colonos, dado aos diretores de aldeia em São Paulo. É preciso ter em mente, entretanto, o caráter ainda insuficiente de nossa documentação e, por isso, as conclusão 13

Analisaremos mais detalhadamente esta “revolta” na seção intitulada “Índios e colonos”. O caráter particular deste pequeno trecho da documentação é extremamente relevante para fazermos algumas considerações preliminares. O que vemos na aldeia de Mangaratiba é a tentativa de retomada da sucessão de capitães-mores conforme o parentesco. Por algum motivo, não constatado em nossa documentação, José de Souza Vernek assume o posto de capitão-mor sem a legitimidade da hereditariedade defendida por Almeida (2003: 154). Quando Pedro da Mota é indicado para o cargo uma das justificativas presente, além da sua capacidade, é o fato de ele ser irmão do antigo capitão-mor. Sugerimos, então, que a presença de Vernek no cargo pode-se ter dado na tentativa de controlar um choque de interesses claramente existente em Mangaratiba que provavelmente envolvia núcleos parentais ou, quiçá, grupos étnicos em oposição dentro da aldeia. 15 Como veremos na seção “Índios e colonos” há uma acusação de violência sexual praticada contra algumas índias do aldeamento de Mangaratiba por parte dos brancos recém-chegados. 14

21 tiradas em nosso trabalho ainda consistem em somente em indícios iniciais para investigação futura. Além disso, como já foi ressaltado, o estudo das aldeias de São Paulo contribuirá muito em relação à formulação de hipóteses sobre a “anormalidade” das aldeias, como veremos nas listas analisadas mais ao fim deste capítulo. Já no caso inicial, como podemos ver, na aldeia do padroado real de Barueri, a intervenção do capitão é decisiva no condizente a busca pelo respeito dos direitos adquiridos pelos índios aldeados. Por volta da década de 1770, o capitão-mor dos índios da aldeia denuncia o caso mais grave identificado por nós de não pagamento do jornal obrigatório e da rotina de jornadas sertão adentro de risco elevado as quais eram submetidos os aldeados (BDAESP 1948: 64-6). O capitão Antônio Cardoso Pinto conta que para fazerem os trabalhos para particulares era muito comum se arregimentarem índios casados. Suas mulheres não percebendo nenhum recurso dos salários de seus esposos acabavam sofrendo duras penas na aldeia, além de necessitarem dos seus cônjuges para o provimento diário realizado através de pequenas plantações e, talvez, como acontecia em alguns aldeamentos, da caça e da pesca.16 Em 1788, os índios da aldeia paulista de Itaquaquecetuba, estabelecida dentro da vila de Mogi das Cruzes, intermediados por seu capitão-mor, pedem o afastamento do diretor João Pereira Vidal graças à “incapacidade do dito diretor que é o flagelo do povo” (ibid.: 76). O cargo de diretor de aldeia, segundo já comentamos, foi criado a partir do estabelecimento do Diretório. A necessidade deste cargo teria surgido logo após à perda definitiva de qualquer atributo de administração temporal dos índios por parte dos padres residentes nas aldeias. Os principais ou capitães-mores eram legalmente subordinados aos diretores das aldeias (Petrone 1995: 171). A atribuição de apaziguamento da aldeia, uma das funções dos diretores, conforme denunciam os índios, não estava sendo cumprida por João Pereira Vidal. Muito pelo contrário, de acordo com o constante em um informe do capitão-mor da aldeia de Itaquaquecetuba, (…) o atual diretor da aldeia dos suplicantes (…) com seu mau gênio não cessa de continuamente inquietar a dita aldeia movendo nela dúvidas com os suplicantes, introduzindo-se em o que lhes não pertence e vexando aos mesmos que são uns miseráveis (…) (BDAESP 1948: 78).

Cabe destacar no transcrever do relato dos índios na documentação a presença da expressão “introduzindo-se em o que lhes não pertence”. Isto indicaria que os índios de Itaquaquecetuba estariam se defendendo de uma postura de interferência do diretor em assuntos 16

Este caso será mais detalhadamente tratado no item intitulado “Índios e seus ‘parentes’”.

22 que diziam respeito somente a eles. Verifica-se o caso através de uma investigação junto aos vizinhos do aldeamento que confirmam as acusações dos índios. Com isso, a alternativa restante ao juiz é autorizar a nomeação de um outro diretor para a aldeia de Itaquaquecetuba, visto a inadaptação de João Pereira Vidal.17 Há ainda, na capitania de São Paulo, um outro caso intermediado pelo capitão dos índios, o qual se envolve por completo na situação. Na segunda metade da década de 1730, esta situação coloca frente à frente o capitão Bartolomeu da Fonseca e os demais índios da aldeia de N.S. da Escada contra o frei Calixto de Santa Helena – padre superior do aldeamento naquele momento –, que se contradizem em seus argumentos (BDAESP 1948: 10-8). O padre queixasse da interrupção do fornecimento de víveres por parte dos índios, os quais eles seriam obrigados a dar conforme legislação, e um irrupção violenta do capitão. Os índios, por sua vez, relatam que o fornecimento só teria sido interrompido graças ao fato de os padres (a aldeia possui mais um padre além de Calixto) estarem em mancebia com algumas índias do aldeamento.18 Além desses casos esparsos, a documentação de São Paulo é composta também por uma série de listas. Conforme analisamos é bastante comum aparecerem nestas listas os capitãesmores e demais cargos da aldeia ocupados por índios em distinção. O objetivo destas listas, cabe ressaltar, feitas em sete aldeias durante o período de 1798 e 1803, eram enumerar detalhadamente todos os moradores residentes na localidade. Tendo isto em vista, a breve análise que faremos dessa documentação se restringe, num primeiro momento, apenas a esmiuçar os diversos cargos existentes nas aldeias de São Paulo, a variação de número de cargos de aldeia para aldeia, a média de idade dos cargos, dentre outra situações possíveis. O cargo mais comum nas aldeias de São Paulo é o de capitão-mor que aparece em todas as sete aldeias para as quais há uma lista. Em seguida, o cargo de sargento-mor é o mais recorrente, aparecendo em todos as sete aldeias. O maior número de cargos relatados é encontrado na aldeia de Itapecerica que possui um capitão-mor, um sargento-mor, um capitão, um alferes, um sargento, segundo à própria ordem hierárquica da lista. As aldeias de Itaquaquecetuba e Embu, no mesmo item, também se destacam, pois possuem ambas quatro 17

Segundo consta, a título de informação, em uma das hipóteses existente, Itaquaquecetuba teria se originado a partir de uma doação particular de uma fazenda que fora concedida aos padres jesuítas (Petrone 1995: 121). Outra tese, atribuí ao padre João Álvares a construção em 1624 de uma capela no local em homenagem a Nossa Senhora da Ajuda, após sua morte a propriedade teria engordado ainda mais o patrimônio da Companhia de Jesus (ibid.: id.). A população original de Itaquaquecetuba teria sido heterogênea com uma leve predominância dos Carijó (ibid.: 12930).

23 cargos. As outras aldeias – Peruíbe, Escada, Pinheiros e Barueri – possuem todas dois cargos (capitão-mor e sargento-mor). Exceto o caso de Barueri, a aldeia mais populosa tendo se em vista as listas, que possui apenas dois cargos, as outras aldeias tem um número de cargo mais ou menos correspondente ao seu valor populacional, em fins do século XVIII e começo do século XIX, conforme podemos evidenciar na tabela a seguir: Tabela 1 Cargos em São Paulo19 Aldeamento Barueri Itapecerica Embu Itaquaquecetuba Escada Peruíbe Pinheiros

N.º de habitantes 580 332 261 247 210 201 160

N.º de cargos 2 5 4 4 2 2 2

Fonte: BDAESP 1948: 101-224

Além disso, parece haver na distribuição dos cargos um certo padrão de idade facilmente identificado por nós. A média de idade dos indivíduos que ocupam o cargo de capitão-mor é de aproximadamente 50 anos. O capitão-mor mais idoso é da aldeia de Barueri e possui 58 anos de idade, enquanto o mais novo é Paulo Correia da Guerra representante da aldeia de N.S. da Escada com apenas 34 anos. Os dois cargos da aldeia da Escada, cabe notar ainda, são ocupados por indivíduos relativamente jovens, sendo o seu sargento-mor detentor de apenas 36 anos de idade. Paulo Correia da Guerra, no entanto, destoa dos demais capitães-mores, pois dentre as sete aldeias analisadas quatro possuem capitães-mores com mais de 52 anos. Os cargos de sargento-mor, por outro lado, normalmente estão distribuídos entre indivíduos na casa dos 40 anos de idade; cinco dentre sete estão situados neste padrão encontrado por nós. O mais velho sargento-mor possui 46 anos, enquanto o mais jovem têm os seus 27 anos. A média de idade dos sargentos-mores consiste em aproximadamente 40 anos e dos demais cargos existentes (capitão, sargento, capitão de infantaria, ajudante e alferes) juntos de 35 anos. O mais velho dentre o cargos secundários é o capitão Bento Ribeiro da aldeia de Itaquaquecetuba com 46 anos; e o mais jovem é o alferes Miguel de Matos da aldeia de Itapecerica com 26 anos.

18 19

A análise minuciosa deste caso se feita na seção “Índios e padres” Os dados foram extraídos de listas feitas entre os anos de 1798 e 1803.

24 Todos os cargos constantes nas aldeias são ocupados por homens casados, exceto o ajudante Francisco Ribeiro da aldeia de Itapecerica que é viúvo – possuindo 44 anos e um filho com 15 anos de idade – e o sargento-mor Francisco de Moraes de Pinheiros que é solteiro e possui 41 anos. Tanto Francisco Ribeiro com Francisco de Moraes, cabe observar, moram com suas mães viúvas. Entre os casamentos dos líderes a maior diferença identificada ocorre em Itaquaquecetu, onde o sargento João da Cruz possui 42 anos sendo casado com Angélica de 22 anos. Talvez por mera coincidência, é justamente em Itaquaquecetuba em que diferença de idade nos casamentos aparecem mais nitidamente. O capitão-mor Timóteo da Silva Mota de Peruíbe tem, morando em sua residência, um neto de 9 meses; possuindo três filhas (30, 16 e 10 anos) e um filho (28 anos) considerados solteiros na classificação da lista. O mesmo fato também ocorre com o capitão-mor Ângelo de Itapecerica que possui duas filhas solteiras (31 e 29 anos) em sua residência e dois netos (9 e 1 ano de idade). Este dado pode indicar, como já vimos nas intenções do capitão-mor de Itaguaí no Rio de Janeiro, uma interação entre brancos e índias também presente nas famílias dos chefes em São Paulo. No entanto, devemos estar atentos também para outras hipóteses que possam dar conta da presença de netos nos fogos dos dois capitães. A primeira delas, e, ao nosso ver, a mais improvável, pode ser o motivo da morte ou da ausência dos pais. Já a segunda, e mais interessante das hipóteses alternativas, é a possibilidade da existência de poligamia ou concubinato nas aldeias. Porém, ainda é cedo para fazermos sugestões mais abalizadas nesse sentido, deixamos isso para capítulo sobre índios e seus parentes. Com relação às ocupações dos líderes, podemos dizer que a maioria cultiva produtos com milho, mandioca, feijão e/ou algodão. Neste item, no entanto, há algumas curiosidades. Na aldeia de Itapecerica, onde havia uma banda organizada conforme tradição jesuítica para tocar em festas religiosas, por vezes, fora do aldeamento (Petrone 1995: 289), há três músicos entre os chefes e um deles têm um filho músico num total de sete músicos citados na lista. Na aldeia de Embu de quatro chefes listados dois são músicos (capitão-mor e capitão de infantaria) – num total de seis músicos – e um é carpinteiro (sargento-mor). Este fato é bastante curioso, sugerindo uma participação da banda na distribuição de hierarquias de prestígio dentro da aldeia e, quiçá, influindo na eleição dos prováveis capitães-mores. Já na aldeia de Peruíbe, além de lavradores, os chefes se ocupam da venda de tucum e o sargento-mor também vende chapéus. Em Pinheiros os dois chefes são jornaleiros e a mulher do capitão-mor e a mãe do sargento-mor solteiro vivem da confecção de potes de barro.

25 Assim, ao se comparar a documentação oriunda da capitania do Rio de Janeiro com a de São Paulo identificamos uma disparidade bastante grande. Em São Paulo, nos três casos analisados, os capitães-mores servem de intermediários dos índios em apelações contra um padre, um diretor de aldeia e contra colonos que exploram a mão-de-obra aldeada. No Rio de Janeiro, por outro lado, a situação é bem distinta. Existem também três casos que envolvem mais diretamente os capitães, porém, em dois constam conflitos que colocam frente à frente líderes e seus comandados, além do caso de Itaguaí, conforme vimos, é bastante singular. Tanto o capitão Miguel Soares Martins da aldeia fluminense de São Pedro em Cabo Frio que aplica duros castigos à índia Rita de 70 anos quando o capitão José de Sousa Vernek da aldeia de Mangaratiba, também acusado de abusar dos castigos, assumiram de forma extrema o novo papel destinado às eles pela legislação e acabaram rompendo com seus índios, os quais suplicavam a destituição imediata dos dois. Nestas duas quedas-de-braço os índios saem fortalecidos, pois tanto Miguel Soares Martins como José de Sousa Vernek são afastados de seus cargos. Isso se dá graças a peculiaridade do Estado europeu da época que se propunha a redistribuir justiça entre os seus súditos. Como, no entender da Coroa portuguesa, o aceitar da condição de aldeado era um sinônimo de submissão ao rei, os índios teriam seus diretos de súditos – sempre com forte caráter hierárquico – traçados em legislação. Os dois capitães, segundo os argumentos aceitos dos índios, teriam, então, causado uma desonra aos súditos de S. Majestade e, por isso, foram destituídos. Em São Paulo, em oposição, vemos capitães afinados com seus índios, lutando pelas reivindicações cotidianas do aldeamento. Tanto o capitão Bartolomeu da Fonseca da aldeia de N.S. da Escada – que determina a interrupção do fornecimento de víveres para os padres do aldeamento –, o capitão de Itaquaquecetuba que pede afastamento do diretor da aldeia, quanto o capitão Antônio Cardoso Pinto da aldeia de Barueri – queixoso do abuso nos serviços prestados por seus à particulares –, entram em conflito somente com agentes “externos”. Ou seja, grosso modo, aqui os capitães não são mais os “acusados” e, simultaneamente, os “culpados” de infligirem mal os índios, mas sim os “advogados de defesa” dos mesmos. Há no Rio de Janeiro, entretanto, o caso do capitão-mor José Pires Tavares da aldeia de Itaguaí que se encaixa numa terceira modalidade. Ao navegar em direção ao Reino para solicitar diretamente à rainha D. Maria I a restituição de sua aldeia declarada extinta pelas autoridades da Colônia, Tavares, segundo seu argumento, arrisca um patrimônio construído a duras penas.

26 Assim, em sua petição, o capitão de Itaguaí consegue de uma forma bastante peculiar reunir junto dos tipos de reivindicação; algumas destinadas aos índios desabrigados e outras ao seu próprio interesse. A mais curiosa das solicitações do capitão ao seu próprio favor é o pedido de uma quantia que o possibilitasse de reconstituir seu patrimônio e ter algo para dar como dote no casamento de sua filha com um branco. Continuando nossa reflexão anterior, podemos dizer que José Pires Tavares é uma espécie de “advogado de defesa” que arrisca seu patrimônio no objetivo de beneficiar seus índios. Mas não é só isso. Ao ir ao reino em busca da restituição de Itaguaí, Pires Tavares quer também dar a sua filha um novo estatuto social, barganhando o máximo possível na intenção de reproduzir sua casa. Ou seja, é um “advogado de defesa” que arrisca seu patrimônio na intenção de ganhar uma “bolada” ainda maior no final. Em geral, então, comparando a documentação referente a capitania de São Paulo com a oriunda do Rio de Janeiro, vemos uma diferença no que diz respeito a atuação dos capitães-mores nas aldeias. No Rio de Janeiro, os chefes indígenas, talvez mais prestigiados que seus colegas paulistas, acabaram ficando em uma situação complicada: ser o principal colaborador da colonização no interior dos aldeados. Os abusos de poder, nesse sentido, demostram a tentativa de passagem de uma relação de chefe tributário dos índios para uma relação semelhante a de senhor e escravo. Em linhas gerais, uma tentativa de transição do chefe sempre em dívidas com seus comandados para um chefe com poderes coercitivos típicos de senhor de escravo e/ou dono de uma posição hierárquica dentro da sociedade de Antigo Regime que precisava ser reproduzida. Seja para o bem e/ou mal dos índios. Sobre São Paulo, a reflexão ser feita por nós deve avançar ainda o capítulo referente a relação entre aldeados e colonos. Mas, o que podemos adiantar, é que em São Paulo a situação dos capitães parece ser a oposta do que ocorria no Rio de Janeiro. As listas nos indicam que os capitães paulistas também se diferenciavam de seus comandados por meio, por exemplo, da ampla participação na banda de dois aldeamentos. Porém, esta diferenciação não tomou a via, pelo menos nos três casos analisados, do fortalecimento da chefia coercitiva. Muito pelo contrário, os capitães passaram a usar os seus novos atributos em benefício dos seus comandados. Em resumo, no Rio, exceto o caso de Itaguaí, os chefes tomaram para si a permissão da violência contra os seus aprovada pela colonização, mas abusaram dela e, por isso, forma destituídos. Já em São Paulo, os principais se apropriaram mais do papel de “advogados de defesa” dos índios, outro atributo que a Coroa portuguesa permitia ser feito por eles.

27 Outra conclusões se referem mais diretamente a São Paulo. Podemos identificar, através de sete listas, a existência de espécie de categorias de idade as quais determinado cargo era ocupado. Geralmente, capitães-mores estavam situados na casa do 50 anos de idade, enquanto os sargentos-mores – segundo cargo em importância – estavam na casa dos 40. Isso pode implicar, uma continuidade bastante forte em São Paulo dos modos como se erigiam um líder antes do processo de aldeamentos. Líderes com idade avançada consiste em um padrão das sociedades indígenas notado tanto entre os índios contemporâneos como entre os Tupinambá do século XVI. Essa tese colabora em muito com os pressupostos anunciados acima do capitão-mor paulista com sendo um “advogado de defesa” dos índios, pois indica a permanência de uma relação amistosa entre comandante e comandados. Entretanto há uma outra hipótese a considerar neste caso. Pode ser que, por um motivo desconhecido por nós, os colonizadores exigiam que os cargos nos aldeamentos fossem ocupados gradualmente pelos principais da aldeia. Explicando melhor, pode ser que um princípio de promoção reinasse na distribuição dos cargos. Assim, conforme esta sugestão, com a morte ou a incapacidade de um capitão-mor assumia o segundo em importância na escala de cargos, em São Paulo, na maioria das aldeia, o sargento-mor.

28

3. “Cavalo amarrado também come”: índios e padres Fundado no início do século XVII, pelo capitão-mor de Mogi das Cruzes denominado Gaspar Cardoso, o aldeamento de N. S. da Escada na capitania de São Paulo teria sido inicialmente um reduto particular que abrigava 800 índios capturados numa expedição (Petrone 1995: 122). Sua população era composta em sua maioria por Carijós, assim como acontecia nas demais aldeias da capitania. A especialidade dos aldeados da Escada era confeccionar potes, cuias e vasos por meio da argila (ibid.: 289). Na segunda metade da década de 1730, há um caso ocorrido em Escada que, em confronto com mais três outros casos (dois do Rio de Janeiro e um outro de São Paulo), nos ajudará a tecer algumas considerações sobre a relação entre índios e religiosos nos aldeamentos. Esta contenda, pautada em argumentos contraditórios, reúne o tenente-coronel Sebastião Siqueira e o capitão dos índios Bartolomeu da Fonseca contra o frei Calixto de S. Helena e frei Antônio – ambos reverendos da aldeia.20 Na versão contada pelo padre Calixto, os filhos e escravos do tenente-coronel são acusados de serem os “perturbadores das almas da dita aldeia”, pois noite e dia adentravam a localidade (BDAESP 1948: 10). Além do mais, haveria também um trânsito contrário que preocupava o frei na medida em que índias da aldeia estariam freqüentando quotidianamente a fazenda próxima pertencente ao tenente-coronel. Calixto teria ficado a par deste fato justamente durante uma noite em que duas índias moças acompanhadas do capitão da aldeia e de um outro índio teriam sidos flagrados ao se afastarem de Escada em direção à fazenda. Logo em seguida, o padre teria advertido os filhos do tenente-coronel e ensinava nas lições de catequese que tal comportamento era reprovável. A reação teria vindo com a interrupção de fornecimento de serviços prestados pelos aldeados aos reverendos: Vendo pois os ditos moços queixava-me eu destes distúrbios, e não menos apartava as índias na doutrina sobre a mesma matéria, tendo ido o dito seu pai para à vila começaram a induzir aos índios e índias, para me não obedecerem; de sorte que nem quem me cozinhasse quiseram tivesse, e nem um índio que tinha vindo de fora, e recolhido à cozinha até esse o mandarão induzir pelo capitão, e me puseram de semana sem ter quem me dê nada, esperando por algum passageiro para me dar alguma água e lenha (ibid.: 10).

20

Este caso já foi brevemente comentado no capítulo anterior.

29 Desprovido de braços nativos para angariar o seu sustento, o padre Calixto manifesta aos administradores da capitania de São Paulo sua vontade de fechar a igreja do aldeamento e retornar ao seu convento graças às alegadas hostilidades dos índios. O padre, além do mais, em favor da sua teses, alega ter ocorrido no Dia da Ascensão de Cristo daquele ano de 1736 uma série de fatos reprováveis: Dia de Ascensão de Cristo estando de tarde na igreja encomendando-me a Deus, que sabe Deus que se encomenda, vi ao padre companheiro com vozes alteradas na porta da casa, ao que acudindo perguntei-lhe o que tinha ou que era sucedido? Disse-me o dito padre, padre superior, vamo-nos embora, fechemos a porta pois aqui nos não querem (ibid.: 11).

E a querela não para por aí. Uma índia havia alertado o padre assustado que o capitão da aldeia estava em vigília para impedir a aproximação das índias. Um indivíduo de nome José, o qual não temos mais referências, havia proibido “que entrassem dentro desta casa a levar alguma coisa, com pena de serem açoitadas” (ibid.: id.). A ajuda dos aldeados no sustento dos padres seria, segundo as justificativas de Calixto, um costume muito corrente em todas as aldeias de São Paulo. O frei Calixto, no entanto, teria tentado apaziguar o ânimo exaltado do seu companheiro sem, porém, obter qualquer sucesso: (…) como a cólera do padre ainda estava alterada, começou a gritar contra o capitão e a chamar-lhe alguns nomes, que é o desafogo que podemos ter, por nesta aldeia nem tronco nem prisão haver, e ser o que mais me tem desobedecido sem fazer caso algum do que lhe dizia acerca da aldeia (ibid. id.).

Descontente das injúrias do reverendo, o capitão põe-se junto ao padre “com dois paus de lenha por disfarce, e com uma faca de ponta boa na mão” (ibid.: 11-2). O frei Calixto avisa seu companheiro, num grito, da ameaça do capitão e, neste ínterim, o padre auxiliar entra em sua moradia para buscar um “faconete sem ponta” para se defender. O pequeno arranca-rabo, no entanto, não terminou em agressão. O capitão parece argumentar, nas palavras de Calixto, que sua arma era apenas um instrumento de trabalho (ibid.: 12). Mas, o padre justifica seu medo contando um causo mais antigo: (…) já me tinha entrado em casa com a mesma faca entre um gibão, tendo mandado a pegar em uma índia para a castigar, e foi visto do companheiro; e eu pelo visto achei ser arma defesa, vestido, e com a gineta na mão, perguntando-lhe o que queria, foi se saindo (ibid.: id.).

As histórias do frei não param por aí. Segundo uma conversa que corria entre os moradores de Escada, numa passado não muito distante, a aldeia teria sido comandada por um capelão de nome Salvador Correia. O tal padre teria passado por tantos percalços na mão dos

30 índios “que vendo Deus as desatenções que lhe fizeram de tal sorte os castigou” (ibid.: 13). Os índios da aldeia, com isso, começaram a morrer em grande quantidade sem que ao menos puderem se confessar. Os moradores atuais de Escada seriam agora outros que teriam repovoado a aldeia depois da extinção dos seus habitantes antecessores. Estes novos moradores, como defende Calixto, puseram para si a seguinte premissa: (…) eles dizem agora, como disse um morador, ouvira dizer a um, que não queriam aqui religiosos. Isto é o que querem para viverem como gentio (ibid.: 13).

A disputa entre religiosos e índios na aldeia de N.S. da Escada se torna mais intensa na medida em que, na mesma data da carta escrita por Calixto, os aldeados nos fornecem sua perspectiva da querela em um requerimento à justiça da capitania. A rejeição completa de autoridade religiosa católica, no entanto, ao contrário do argumento do padre não é feita pelos índios, pois, em meio ao alegado descaso, seus pedidos são apenas de “mandar se lhe ponham novo superior para sua aquietação”. As reclamações dos aldeados em relação aos religiosos giram em torno de duas questões principais: (…) de presente estão vivendo muito escandalosamente com o superior que de presente os administra, pois estão vivendo com muita inquietação principalmente os casados pelos não querer consentir vivam bem com suas mulheres como Deus manda. (…) frei Calixto e frei Antônio (…) vivem mandando-os trabalhar tudo para sua conveniência e não deles próprios (ibid.: 15).

Os acusados de imporem aos índios uma jornada de trabalho injusta e totalmente voltada para os seus benefícios próprios, impedindo o desenvolvimento de suas roças tradicionais, eram justamente o frei Calixto e o frei Antônio. A principal revolta dos aldeados, contudo, parece estar relacionada com o estabelecimento de uma separação no aldeamento dos homens casados e suas mulheres. Um funcionário do juiz da Vila de Jacareí, Domingos Nunes Paes, – localidade próxima ao aldeamento de N.S. da Escada – é incumbido de tomar o depoimento dos vizinhos da aldeia que sob juramento fazem várias inferências na tentativa de se elucidar as contradições inerentes aos depoimentos de padres e índios. Num primeiro momento depõe João Lopes do Prado dando novos elementos os quais acordam com as posturas dos índios: (…) pelo que lhe perguntei da petição, disse que sabia por lhe dizer um índio casado com uma escrava sua que o Reverendo Padre Superior e seu companheiro, não davam descanso aos índios, porque perpetuamente os mandavam trabalhar e que lhe não dá dia algum para eles trabalharem para si (…). (ibid.: 16).

31 Em seguida, Amaro Correia de Sá dá o seu relato tentando explicar algumas das atitudes do filho do tenente-coronel Sebastião de Siqueira de nome José Correia de Siqueira. Conforme se apreende do seu depoimento, as ordens dadas aos índios para a suspensão do fornecimento de qualquer item aos padres devem-se a alegada tentativa do padre Calixto ter “forçado uma rapariga, ou que a queria forçar e esta é índia da mesma aldeia” (ibid.: id.). As denúncias de relações libidinosas das índias do aldeamento com os padres vão adiante. Um dos frades, além disso, estaria “mal encaminhado” com uma aldeada casada com o índio de nome Amaro e, por isso, “os ditos índios andam todos desgostosos” (ibid.: 17). A investigação de Domingo Nunes Paes tem seqüência com uma entrevista feita com Manoel de Abreu também residente nas contigüidades do aldeamento. No depoimento, Manoel diz saber que os índios realmente não obedeciam aos padres, somente dando ouvidos ao tenentecoronel Sebastião de Siqueira que figura neste relato como sendo o administrador dos índios da aldeia (ibid.: id.). Pode-se sugerir, a partir disso, que Escada teria preservado seu caráter de aldeamento particular desde sua função, contada anteriormente. Ou seja, os índios permaneciam na aldeia aos cuidados dos padres, mas eram incumbidos de trabalharem conforme a vontade do tenente-coronel. Manoel de Abreu, como podemos ver abaixo, fala tanto dos desmandos dos padres como do tenente-coronel que parecem nitidamente envolvidos em uma disputa ferrenha: (…) lhe dissera um homem Antônio da Costa chamado que lhe pedira o padre superior que lhe fosse mandar colher uma roça de milho, e que indo não se achara no tal serviço senão com índias, porque não haviam índios, porque todos andavam alugados por ordem do administrador, que ouvira dizer o dito padre superior corria com os índios e índias, por não lhe obedecerem e sim, obedecerem ao seu administrador o tenentecoronel Sebastião Siqueira e também sabia por ouvir que só querem servir os ditos padres com as índias moças e não com as velhas porque são pouco asseadas, e que o dito administrador o não quer consentir por ordem do reverendo padre visitador (…) (ibid.: id.).

João Leme da Silva, depoente seguinte, adota uma perspectiva mais próxima à dos padres graças ao fato de ter tido contato mais direto apenas com eles. Em relação à jornada de trabalho dos índios, conta que os padres diziam dar uma semana para os índios fazerem suas roças e na outra semana os aldeados deveriam trabalhar em favor do sustento dos religiosos. Sabia também por observar tal fato que os padres costumavam reclamar muito das índias do aldeamento, as quais muitas vezes se negaram a trazer água e lenha para eles (ibid.: 18). Por último, depõe José Correia de Siqueira o filho do tenente-coronel Sebastião de Siqueira. O relato transmitido por José C. Siqueira vai de encontro com o de João L. da Silva, reafirmando algumas questões já levantadas anteriormente por Amaro C. de Sá:

32

(…) sabia por ouvir dizer a uma índia rapariga chamada Marta, que o padre frei Calixto superior da aldeia que acometera querendo a violentar, e que sabia mais que o dito padre andou mal encaminhado com uma índia casada mulher do índio Amaro, causa de correr com os ditos índios e que sabia por ver que o dito padre superior não dava semana alguma aos ditos índios, e que na semana que de próximo lhe dá os ocupa mandando-os a viagens e que a causa do dito superior correr com o dito capitão dos índios é porque quis impedir a que não entrasse as índias que lhe não convinha fosse ao recolhimento dos padres pois assim o havia recomendado o padre provincial (…) (ibid.: 18).

Consciente das ambigüidades dos relatos, os quais adotam diferentes perspectivas, não temos elementos necessários para discorrer sobre quem está dando a versão mais próxima do real desta situação. Podem ser levantados já, entretanto, neste único caso, alguns indícios sobre a aceitação de religiosos em aldeamentos, sempre tendo em vista as particularidades da situação na aldeia de N.S. da Escada apontadas anteriormente. A separação dos casados e as alegadas relações libidinosas dos padres para com as índias aldeadas, altera o panorama de aparente estabilidade vigente na aldeia. E, além disso, a também alegada jornada de tarefas inteiramente voltada para a vontade dos padres, parece quebrar com a aparente indiferença dos índios em relação à presença dos padres. A aparente disputa de comando entre os padres e o tenente-coronel Sebastião Siqueira parece ser um ponto comum que podemos extrair dos diversos relatos apresentados. Um pequeno indício presente na documentação, porém, nos faz concluir sobre a possível existência de ordens de um padre superior em relação ao frei Calixto (no relato de José Correia de Siqueira o filho do tenente-coronel Sebastião de Siqueira é chamado de padre provincial e no de Manoel de Abreu de padre visitador) no sentido dele manter um afastamento das índias moças. Num outro caso, relatado numa petição sem data, do período de vigência do Diretório, frei José da Visitação, relata mais um caso de padres de um aldeamento que estão passando por dificuldades de provisão. O instrumento de não fornecer água, lenha e alimentos para os padres, mais uma vez, parece ser utilizado como alternativa para resistir aos desmandos das autoridade espirituais inseridas nas aldeias, além, é claro, da serventia da justiça para tentar solucionar esses casos: (…) não querem mais os índios fazer, a obrigações de que são encarregados pelo Diretório, que é fazerem roça de milho, feijão e arroz, darem água e lenha, uma cozinheira, e um rapas para lhe ajudar a missa. Os superiores nada cobram deles, e por isso é impossível sacerdote algum aqui subsistir por não ter com que se alimentar (ibid.: 29-30).

33 Ao analisar estes dois casos oriundos da capitania de São Paulo nos saltam aos olhos uma maneira recorrente de ação por parte dos índios: cessar o fornecimento de víveres, água, lenha e serviços para os padres em determinados momentos de conflito. Como enfatizam o frei Calixto de S. Helena e o frei José da Visitação nos queixume apresentados por eles, parece haver em São Paulo, desde um tempo remoto, uma legislação que obrigava os índios a executarem certas tarefas em benefícios dos padres. A citação acima, por exemplo, responsabiliza os índios de “fazerem roça de milho, feijão e arroz, darem água e lenha, uma cozinheira, e um rapaz para lhe ajudar a missa” (ibid.: id.). Investigando de forma minuciosa estes dois casos e se atendo cuidadosamente aos seus mínimos indícios, achamos existir aqui um entendimento diferenciado de um prática imposta pela colonização. Os índios de São Paulo colonial enxergam a prática de fornecer víveres e serviços aos padres dos aldeamentos de forma bastante antagônica dos seus beneficiados. O antropólogo Marshall Sahlins (1974: 117-48) ao traçar três modelos de “transações econômicas” possíveis, nos fornece instrumentos melhores para analisar esses casos. A “reciprocidade generalizada” seria a primeira delas, envolvendo normalmente parentes muito próximos e “aparecem nos relatos etnográficos como ‘compartilhar’, ‘hospitalidade’, ‘presentes simbólicos’, ‘ajuda mútua’ e ‘generosidade’” (ibid.: 129). Já a “reciprocidade equilibrada”, além de possuir um intervalo diminuto entre a dádiva e a contra-dádiva, seria típica “em certas transações matrimoniais entre os noivo e da noiva, em certo pactos de irmãos de sangue e acordos de paz” (ibid.: 130).21 O outro tipo de transação existente se pautaria na “reciprocidade negativa”, como regra afastadas do parentesco e “conduzidas em direção a claras vantagens utilitárias. Em outras palavras, o que poderíamos considerar sólidos princípios de negócio” (ibid.: id.). Tendo em mente os conceitos de Sahlins, podemos analisar os dois casos ocorridos na capitania de São Paulo de uma forma mais abalizada. Ao fornecer uma roça de milho, água, lenha e alguns serviços para os padres, os índios enxergavam esta transação com uma espécie de troca. Nada era cobrado diretamente dos padres, a não ser em forma de lealdade para com os agentes da dádiva. O pagamento, nesse sentido, poderia vir em forma de ajuda para os índios em caso de disputa judicial, em forma de serviços religiosos para os índios crentes (missa, confissão, batismo, etc.) ou em forma de generosidade nas atividade cotidianas. Por isso, a ajuda dos índios

21

O possível casamento da filha do capitão-mor José Pires Tavares de Itaguaí, ao nosso ver, se inseriria neste tipo de transação.

34 aos padres – apesar de ser uma obrigação de legislação – era vista como uma transação inserida numa lógica típica de “reciprocidade equilibrada”. A interrupção do fornecimento dos serviços, dessa forma, ocorria graças ao rompimento do acordo que índios e padres teriam sustentado numa troca hierarquizada. Há no livro Transformando os deuses organização do antropólogo Robin M. Wright um artigo intitulado “O templo profanado: missionários salesianos e a transformação da maloca tuyuka” dados que nos possibilitam também fazer algumas analogias com os dois casos oriundos de São Paulo. Aloisio Cabalzar, o autor do artigo, se refere a mudança de atitude dos padres salesianos ao longo da catequese dos Tuyuka durante as últimas década do século XX. Muito duros no começo com os costumes culturais dos índios, os padres passaram até aceitar a mudança do rito católico para adaptá-lo aos pressupostos tuyuka: As estratégias para fomentar esta atual política pastoral é a de utilizar objetos e procedimentos rituais dos índios nas celebrações católicas; por exemplo, no ofertório levar o breu e a cera de abelha benzidos (elementos rituais tradicionais); na consagração trocar a hóstia por um pedaço de beiju e o vinho por sumo de alguma fruta silvestre, e assim por diante (Cabalzar 1999: 372)

Os índios, contudo, ainda resguardam junto aos padres uma atitude de bastante resignação. As primeiras atitudes violentas dos padres em relação aos seus costumes não foram esquecidas. O discurso crítico dirigidos aos religiosos se pauta não só nisto, mas também na aparente “incoerência dos padres” (ibid.: 373). Segundo consta, os salesianos são muito bem tratados pelos índios que os oferecem hospitalidade e víveres nos momentos de visitas. Quando, porém, os índios se aproximam da missão salesiana a indiferença dos padres em relação à eles torna-se facilmente identificada. Esta aparente falta de reciprocidade por parte dos salesianos, como acontecia em São Paulo, leva a formação de um discurso crítico à atuação dos religiosos. No aldeamento de Escada, o frei Calixto argumenta a existência de uma atitude de repúdio geral à presença de padres na localidade. Já, entre os Tuyuka do século XX, as opiniões eram diversas, dependendo do grau de carisma mantido por cada padre. Na documentação analisada no Rio de Janeiro, como veremos, a situação muda um pouco de figura. Em um caso, o padre aparece como o principal intermediário dos índios e suas posturas frentes os colonos e, em outro, ocorrido na aldeia de S. Pedro, e já parcialmente relatado no capítulo anterior, o padre junta-se aos colonos e até líderes da aldeia na pilhagem das madeiras utilizadas pelos índios na confecção de canoas.

35 Pertencente à administração da Companhia de Jesus, a aldeia de São Pedro, em Cabo Frio, foi estabelecida para impedir que o pau-brasil fosse contrabandeado pelos franceses, com a devida ajuda dos Tamoios, nessa área (Almeida 2003: 85). Assim, em 1617, foram conduzidos a Cabo Frio cerca de quinhentos Goitacá oriundos da capitania do Espírito Santo. Algum tempo depois, das imediações de São Pedro, outros Goitacá e Guarulho passaram a habitar a aldeia. Graças ao fato de ter sido fundada com funções de defesa, São Pedro nunca chegou a servir as populações próximas no que diz respeito ao trabalho dos aldeados. A grande eficiência alcançada pelos índios em suas funções de proteção, além disso, fez com que eles possuíssem uma significativa capacidade de negociação com as autoridades. O caso mais propalado, nesse sentido, foi quando mataram oitocentas cabeças de gado pertencentes à São Bento e ficaram impunes, apenas ameaçados por alguma repressão se o fato voltasse a ocorrer (ibid.: 117). Depois do Diretório, a aldeia de São Pedro se tornou uma freguesia sob a administração de padres capuchos (ibid.: 171). Todo o patrimônio pertencente à Companhia de Jesus, desde terras até edifícios, passou a ser dos índios. O Diretório, em termos mais gerais, representou grandes mudanças na política indigenista portuguesa. Dentro da políticas pombalinas voltadas para a eliminação de resistências internas que atravancavam o Estado absolutista português, a nova política destinada aos nativos do Novo Mundo tinha como principal pretensão minar as intenções dos padres jesuítas (ibid.: 168). Em 1795, os capuchos se retiraram de S. Pedro que agora contava com párocos próprios. Neste período, havia 1.173 pessoas na aldeia e seus índios mantinham uma forte “coesão aguerrida”. O comportamento dos índios de S. Pedro seria resultado da residência na aldeia dos Goitacá e dos Guarulho, índios da família lingüistica puri do tronco macro-jê (ibid.: 49). No condizente às práticas culturais, os índios de Cabo Frio também demostravam afinidade, pois se recusavam a plantar qualquer tipo de alimento, sempre sobrevivendo da caça e da pesca (ibid.: 227). A documentação oriunda da aldeia de S. Pedro versa sobre vários casos que sustentam um denominador comum: o descontentamento com autoridades inseridas no aldeamento. Todos os litígios provêm do início do século XIX, e o primeiro, dentre outros, diz respeito ao vigário da aldeia. Segundo o relato, o padre tinha se apropriado do salário de mestre da aldeia sem dar lição nenhuma aos índios (RIHGB 1852: 427). O ordenado foi confiscado, nesse sentido, para servir aos reparos que precisavam ser feitos na igreja:

36

Por ser necessário reparar a igreja nesta aldeia, se tirou o ordenado de mestre ao vigário, que a salvo tinha tomado isto em benefício simples por que não dava tais lições e há muitos poucos índios rapazes nos termos de aprender, e esses recusam (ibid.: id.).

Especificamente sobre o sustento dos padres nas aldeias através do recebimento de salário, após o Diretório a situação piorou muito. Quando os aldeamentos eram administrados pelos jesuítas haviam poucos problemas relacionados a este assunto, pois todos os religiosos recebiam uma ajuda do Colégio. Com a expulsão dos padres dos territórios ibéricos o sustento dos párocos instalados nas aldeias se tornou complicado. Muitos padres passaram a se recusarem a prestar serviços em aldeamentos, enquanto as autoridades se viravam como podiam para angariar fundos (Almeida 2003: 230-1). Cabe ressaltar, tendo em mente ainda o excerto acima, a indisposição dos Goitacá e dos Guarulho de S. Pedro em ouvir as ladainhas do padre. Possivelmente, dada a coesão manifesta pelos índios, suas práticas culturais – caçar e pescar, por exemplo – continuaram em desenvolvimento e, por isso, o aprendizado do português e do cristianismo poderia introduzir uma rotina diária distinta e rejeitada pelos aldeados (ibid.: 138). Mais adiante, a documentação se atém a um caso de roubo de madeiras do aldeamento no qual outras autoridades da aldeia, além do padre, estão envolvidos. Conforme o que consta, no terreno da aldeia haviam numerosas árvores utilizadas pelos índios na feitura de canoas para navegação – prática tradicional também mantida – e a pesca: Agora lá se acham a construir duas embarcações sem licença e com manifesto furto, e apesar do colorido com que se revestem no aumento da navegação, o que não dá o direito da apropriação do alheio, sendo certo que na fatura de canoas se empregam aqueles índios e disso vivem (RIHGB 1852: 427-8).

Três colonos são envolvidos na situação.22 O tenente Francisco Garcia da Rosa Terra, segundo o juiz conservador dos índios o desembargador José Albano Fragoso, é o primeiro deles O segundo acusado é Antônio Carvalho Soares. Já Plácido dos Santos, o terceiro acusado pelo desembargador, está envolvido em uma história bem mais complexa. “Este homem comprou por 50$000 réis aos oficiais da aldeia licença para cortar madeira” (ibid.: id.). Acontece que o padre da aldeia de nome João de Almeida Barreto também se envolve na negociata ilegítima, recebendo o dinheiro dado aos oficiais em troca da autorização:

22

Detalhes mais apurados sobre os colonos serão dados no capítulo sobre a relação entre índios e colonos

37 (…) os oficiais confessam que assim o fizeram e deram este dinheiro ao seu vigário o padre João de Almeida Barreto para comprar um turíbulo e naveta de prata (…). Este vigário merece ser advertido, pois sendo um capelão do rei ali posto para ensino dos índios, lhes ensina o crime, sem que o ressalve ser o dinheiro para aquela alfaia de luxo, e mais quando a igreja está próxima a cair e pede dela o concerto (ibid.: id.).

O desembargador responsável por relatar o caso se mostra indignado com o padre que deixa cortar as árvores dos índios para comprar artigos de prata que só são necessários em momentos de festas religiosas, algo bastante infreqüente no aldeamento segundo o relato. Outra preocupação é o fato da igreja da aldeia estar em ruínas enquanto o padre compra aparamento de luxo que poderia muito bem ser alugado.23 O oficial acusado de encabeçar a venda da permissão falsa seria o ajudante Domingos dos Santos Ferreira. “É este índio versado em escrever e contar, e tem seus escravos (…)”, há muito tempo permitia este tipo de furto, ganhando, com isso, um bom dinheiro (ibid.: 428-30). Desse modo, além de se distinguir socialmente pelo fato de possuir um plantel de escravos, Domingos dos Santos Ferreira, como evidencia o documento, era também letrado, algo bastante incomum para um colono, quem dirá para um índio. A principal diferença do caso do padre João de Almeida Barreto da aldeia de S. Pedro no Rio de Janeiro para os dois casos envolvendo padres analisados acima está no fato de encontrarse na própria aldeia liderança envolvidas com a negociata falsa. Se em São Paulo tanto frei Calixto de S. Helena como o frei José da Visitação não encontram aliados, conforme se vê nos queixumes, no Rio de Janeiro a situação é bastante diversa. A acusação mais contundente dirigida ao padre Calixto da aldeia da Escada consiste em supostas relações libidinosas com índias do aldeamento, enquanto o padre João de Almeida Barreto é acusado de se beneficiar da venda de uma autorização falsa de corte de madeira para comprar aparato de luxo para o ritual católico. É difícil determinar as causas exatas impulsionadoras dos atos dos dois padres, além do frei Antônio também envolvido na querela de São Paulo, porém, a marca diferencial do primeiro caso fluminense é justamente a aliança entre padre e lideranças reconhecidas da aldeia de S. Pedro. O segundo caso envolvendo um padre fluminense vem de um processo de aldeamento bastante conflituoso. Fundada para beneficiar os Guarulho – índios pertencentes à família lingüística puri – a aldeia de Santo Antônio de Guarulhos foi organizada por padres capuchinhos em 1672. A rigidez de conduta dos religiosos frente aos índios ocasionou uma série de fugas. No 23

A situação de decadência das aldeias fluminenses M. R. C. de Almeida (2003: 176), era geral no período do final do século XVIII e início do século XIX. Entretanto, na opinião da autora, as aldeias continuavam a dar segurança e proteção aos índios frente a impossibilidade de resistir sem o patrimônio e laços constituídos no interior destas localidades.

38 início do século XVIII, a aldeia já estava em franca decadência motivada também pelos litígios de terras. Os índios, cada vez mais miseráveis, começaram a assaltar as fazendas e terras vizinhas, afugentando-os e roubando-os (Almeida 2003: 86). Depois de tantos conflitos, no final do século XVIII, a aldeia foi declarada extinta, sendo que suas terras tiveram outras utilidades. Boa parte delas, serviram como rendimento para os índios da recém-fundada aldeia de São Fidélis. Com intenção de justamente apaziguar os conflitos em uma região onde pululavam lavouras e criações de gado, São Fidélis, às margens do rio Paraíba, abrigava em seu interior os Coroado.24 Com a mesma finalidade, outras duas aldeias foram instaladas ao longo das margens do mesmo rio; São José de Leonissa da Aldeia da Pedra e a aldeia de Santo Antônio de Pádua (ibid.: 90). A primeira foi localizada nas margens do Paraíba na confluência com o rio Pomba, onde aldearam-se os principais inimigos dos Coroado – os Puri. Já a segunda, acabou reunindo os Puri e os Coroado que precisaram de mais tempo para concordarem com o aldeamento conjunto. Em 1791, o missionário capuchinho frei Ângelo Maria de Luca, revelava as dificuldades em se encontrar um lugar adequado para se aldear os Puri (RIHGB 1852: 459-61). As sugestões recebidas pelo padre não agradavam aos índios, pois para se instalar uma aldeia era necessária uma série de combinações. As terras apontadas no rio Muriaé eram compostas por brejos e morros, enquanto as indicadas no rio Paraíba “estão possuídas, ou para melhor dizer infeccionadas pelos Coroado rebeldes, ainda inimigos mortais dos Puri” (ibid.: id.). No ano seguinte, João Luiz Machado decide abdicar de terras para doá-las ao frei Ângelo Maria de Luca que tanto se dedicava para aldear os Puri. Constava o fato de as terras estarem em litígios por supostamente serem parte da extinta aldeia dos Guarulho (ibid.: 455-6). A motivação explicitada pelo “doador” seriam as ruínas causadas pela ação destes mesmos índios em sua fazenda e nas vizinhas. Segundo o relato, os Puri matavam o gado e outros tipos de criações das fazendas, além de destruírem as lavouras e demais plantas utilizadas no sustento dos moradores. Mas, mesmo assim, as discordâncias continuavam e o processo de aldeamento dos Puri ficava cada vez mais complicado. A atitude do padre Ângelo Maria de Luca era rejeitar lugares propostos que ficassem muito afastados de regiões povoadas, provocando irritação nas autoridade que acompanhavam o caso. A terra doada por João Luiz Machado, nesse sentido, a princípio 24 Apesar de os aldeamentos normalmente possuírem uma faixa de terra extensa de modo a dar uma certa liberdade de movimento aos índios, tinham também “o objetivo menos nobre de restringir os índios a áreas determinadas pelos colonizadores, abrindo assim acesso a regiões antes ocupadas pelos grupos nativos” (Monteiro 1995: 44).

39 estava sendo descartada pelas autoridades graças ao fato de ser próxima a fazendas importantes com ampla população escrava.25 Depois disso, acontece outra reviravolta no caso a qual mostra uma intensa influência do frei Ângelo de Luca nas decisões dos índios. Segundo o relato do missionário, os índios “se queriam aldear no lugar chamado Morro da Onça, e que este era o seu gosto (…)” (ibid.: 457-9). As autoridade da capitania, desse modo, agiram no sentido de dar as mínimas condições para o sítio escolhido pelos índios. Assim, no dito lugar foi feito um roçado com milho e outras espécies, sendo que foram doadas aos índios farinha e outros mantimentos. Os Puri, então, saíram da fazenda do alferes Francisco Nunes onde estavam morando para o sítio desejado no Morro da Onça. Contudo, já bem instalados na localidade o padre adoeceu e, logo quando melhorou, tratou de abandonar o local com os Puri, pois uma epidemia parece ter se alastrado, segundo os boatos constantes no documento (ibid.: id.). As epidemias nos primeiros meses de aldeamentos, segundo Luiz Felipe Alencastro (2000: 128), eram bastante comuns. Comunidades isoladas eram levadas para área de contato constante com europeus e africanos, isto é, para um “novo campo patogênico”. As dificuldades passadas no referente à alimentação com a espera das primeiras colheitas do milho e da mandioca acentuavam o número de infectados e de mortos. Entre idas e vindas, os índios ficaram um bom tempo transitando entre a fazenda do alferes Francisco Nunes, a fazenda do capitão Luiz Manoel e o mato, como diz o relato. O padre, por sua vez, tinha decidido que os índios deveriam se aldear no interior ou nas proximidade da fazenda do capitão Luiz Manoel. As posições do religioso mais uma vez causavam polêmica entre os condutores dos negócios da capitania graças ao fato de representarem grandes despesas e a possibilidade de problemas futuros com as fazendas das imediações. Não há um parecer final sobre o aldeamento do índios, contudo, para a assistência dos mesmos, determinou-se que os rendimentos dos foros da extinta aldeia de Santo Antônio “se aplicassem para as despesas da nova aldeia dos Puri e para a de São Fidélis (…)” (RIHGB 1852: 457-9). O caso do padre Ângelo Maria de Luca, desse modo, é o único diferenciado dos demais justamente pela postura mantida pelo próprio padre. Exceto o caso relatado por frei José da Visitação, o qual não temos uma “visão dos índios”, tanto frei Calixto e frei Antônio de Escada como o padre João de Almeida Barreto de S. Pedro, como já dissemos, mantêm uma atitude de 25

Na seção sobre índios e negros trataremos mais detalhadamente desta questão.

40 aparente hostilidade para com os índios. Os índios, por outro lado, nos três casos, mantém uma atitude crítica em relação aos religiosos e utilizam seus métodos para tentar impedir a continuidade dos alegados desmandos dos clérigos. Por meio da ação da justiça da respectiva capitania e/ou cessando o fornecimento de víveres, água, lenha e serviços, em todos os demais casos os índios agiam contrariamente aos padres. Com a situação narrada pelo padre Ângelo Maria de Luca, porém, há novos elementos permitindo concluir a existência de um vínculo de confiança entre índios e padres. Ao nosso ver, no entanto, ambos os religiosos citados tinham a intenção, talvez não tão clara na documentação, de catequese dos índios. Os desvios e erros de estratégia dos padres aparecem de forma nítida, mas isto não nos permite decretar a falência do projeto missionário e, nem, ao contrário, afirmar o seu sucesso incontestável. É difícil traçar em mais detalhes como era o cotidiano da relação entre padres e índios nos aldeamentos das duas capitanias. Não acreditamos, porém, que esta relação era em sua maioria de hostilidade plena. Nas duas capitanias, os aldeamentos perduraram por cerca de três séculos e os missionários foram talvez os principais agentes responsáveis pela sobrevivência dessas instituições. No entanto, os padres tinham seus interesses próprios quando se fala na permanência das aldeias. Segundo Maria Regina Celestino de Almeida (2003: 144), no Rio de Janeiro, na época de expulsão dos jesuítas, eram comum as fugas dos aldeamentos para casas de brancos motivadas pelo excesso de trabalho que os padres exigiam dos índios para satisfazer somente a demanda dos clérigos. Uma das principais tarefas dos aldeados fluminenses era trabalhar nas fazendas e residências das ordens religiosas, principalmente dos jesuítas e dos beneditinos (ibid.: 203-4). Além disso, os aforamentos das terras das aldeias, em sua maioria, iam para os padres o que fez com que tomassem para si a defesa do patrimônio dos índios (ibid.: 241-2). Por isso, como aconteceu em São Paulo, a expulsão dos jesuítas causou uma série de prejuízos aos índios, pois agora não contavam mais com estes fortes aliados na luta pela preservação do seu patrimônio.26 Podemos identificar nos casos relatados mais acima relacionados com o contato de índios e padres nos aldeamentos setecentistas uma série de fatos curiosos. Os exemplo trazidos por nós da capitania de São Paulo e o caso envolvendo o padre João de Almeida Barreto de S. Pedro no

26

Em São Paulo, as aldeia de São José, Itaquaquecetuba, Embu, Carapicuíba e Itapecerica ficaram nas mãos dos jesuítas até a publicação do Diretório. As aldeias do Padroado Real, por sua vez, ficaram, a partir de 1734, divididas entre as seguintes ordens: São Miguel, Peruíbe e Escada com os capuchinhos; Pinheiros com os beneditinos; e Barueri com os carmelitas (Petrone 1995: 169).

41 Rio de Janeiro são bastante emblemáticos de uma aparente atitude de falta de resignação dos padres em relação aos índios. É difícil tecer hipóteses mais conclusivas, contudo, pode-se sugerir a predominância de um atitude interesseira entre os religioso citados na nossa breve análise. Os padres queriam que os índios trabalhassem para o benefício de suas fazendas e residências. Mas, como vimos, os índios encaminhavam suas estratégias no sentido de barrar os abusos. Somente com o padre Ângelo Maria de Luca há indícios de uma intensa participação dos índios nas decisões tomadas em relação à um processo de aldeamento dos mesmo levado à cabo pelo próprio religioso. Sugerimos, então, a partir disso, a predominância de três atitudes entre os padres: a primeira de “poda” dos costumes indígenas considerados reprováveis, a segunda de “pilhagem patrimonial” e de “pilhagem matrimonial” e uma terceira, mais comum, de utilização, por vezes desregrada, dos índios nas condução dos negócios dos padres. Ambas as atitudes deveriam provocar um sério descontentamento nos índios, sobretudo a “pilhagem matrimonial” exemplificada no caso relatado da aldeia da Escada..27 Assim, como base tanto no geral como nos casos específicos apresentados acima, podemos dizer que há uma certa semelhança nas relações entre índios e padres nas aldeias fluminenses e paulistas. Os religiosos, normalmente tomando para si uma série de questões administrativa dos aldeamentos, como o encaminhamento do processo de aldeamento e a proteção das terras indígenas acabavam estabelecendo uma relação de dependência juntos aos índios. O trabalho nas fazendas ou residências dos missionários, dessa forma, era vista como uma espécie de compensação pelos benefícios trazidos pelos padres na condução da manutenção dos aldeamentos. Provavelmente criava-se uma relação de dependência bastante forte, pois o Estado português tinha a tendência de deixar a condução dos negócios das aldeias nas mãos dos missionários. Os rendimentos proporcionado pelas aldeias era, então, o principal motor dessa dependência que sustentavam relações fortemente hierarquizadas entre religiosos e índios nas aldeias de São Paulo e Rio de Janeiro. 27

Podemos ver nos diversos artigos do livro Transformando os deuses que alterações na dinâmica de troca matrimonial do índios normalmente costuma provocar reações de descontentamento geral. Um texto importante, nesse sentido, é o de Robin M. Wright sobre os Baniwa. Este índios teriam se convertido, também por um breve momento, graças ao advento da missionária Sophie Muller em suas terras. Os Baniwa, ao longo tempo, manifestavam periodicamente exaltações religiosas por meio de movimentos milenaristas. Sophie apesar de romper com um tradição milenarista sustentada na mitologia baniwa – pois tachava alguns costumes culturais de obras de Satanás –, não rompia com o caráter de não submissão ao governo também sustentado pelos outros movimentos do passado (Wright 1999: 158). O fracasso do cristianismo pregado entre os Baniwa deu-se, contudo, graças à instituição da proibição de casamentos com índios não-crentes, prescrição que desarranjava por demais a estrutura de troca matrimonial baniwa (ibid.: 203).

42 4. Patrimônio e matrimônio em ameaça: índios, colonos, negros escravos e libertos Ao fazemos uma análise menos pormenorizada da documentação oriunda de São Paulo e do Rio de Janeiro setecentista, duas outras questões nos surgiram: quais eram os motivos impulsionadores de uma possível aliança ou conflito entre índios e colonos? Havia uma forte participação de negros na dinâmica dos aldeamentos nas duas capitanias? Na capitania de São Paulo, existe uma íntima relação entre o sistema de administração particular dos índios com os aldeamentos. Quando ocorria qualquer querela envolvendo a posse do administrado ou outro tipo de conflito, eles eram mandados para um aldeamento até segunda ordem (Petrone 1995: 92). Como na documentação de São Paulo é recorrente a relação entre colonos administradores, administrados e aldeamentos, resolvemos incluir nesta seção também alguns casos relativos à administrados. Mas, no seus objetivos centrais, este capítulo pretende discutir a relação entre índios aldeados, colonos e negros escravos e libertos. E, por isso, este capítulo é dividido em duas partes e, consequentemente, tem duas conclusões. Uma procurando tecer consideração sobre índios e colonos e outra sobre índios e negros. Em 1745, há um queixume envolvendo a deserção de um administrado da casa do seu senhor, colocando dois colonos em disputa indireta pelo controle do índio. José da Silva Leme reclama da deserção de Manoel – jovem carijó administrado e criado por ele – para a casa de um vizinho de nome José Pedroso Bonfato, (…) homem amasiado e com crimes na dita vila, assim ele como um filho é como tal trazem inquieta toda a vizinhança, sem que se possa evitar esta ruína pelas justiças da dita vila, pois os oficiais do juízo confessam temer ao suplicado e seu filho (…) (BDAESP 1948: 38).

Tanto José Pedroso Bonfato como seu filho, segundo argumenta José da Silva Leme, teriam feito ameaças à oficiais da vila de Mogi quando foram à sua casa para saber “de uma mulata de um Miguel Muniz Nolasco, mor das Minas Gerais” (ibid.: id.). As ameaças feitas aos oficiais, além disso, estariam atravancando a petição de José da Silva Leme, pois ninguém queria voltar a se deparar com Bonfato e seu filho. A reclamação do proprietário do administrado não fica apenas na denúncia de uma fuga induzida de mão-de-obra pertencente a ele. A contenda envolveria também os furtos praticados pelo índio a mando de Bonfato e uma ameaça de morte: (…) o suplicado e o filho tem induzido ao dito rapaz consentindo-lhe vários absurdos de furtos a que são inclinados os ditos carijós, e este muito mais pela referida causa, de que tem havido algumas queixas, e até o

43 suplicante tem deles recebido algum dano; e queixando-se o ameaçam para o matar, e a um filho do suplicante e como são homens (…) e sem temor de Deus, nem das justiças, e sem dúvida poderão fazer ao suplicante muito dano, o qual não pode evitar por outros meios, mais que valer-se do amparo de V. Il.ma Ex.ma (…) (ibid.: id.).

Em abril de 1745, um encarregado da justiça da vila de Mogi relata suas investigações e aponta para a versão de José da Silva Leme como sendo bem próxima da veracidade. A investigação se dá junto aos vizinhos do acusado, os quais confirmam as histórias do requerente, e no Livro dos Culpados existente na localidade, como vemos na narração abaixo: Satisfazendo ao que V.Ex.a me ordena sobre o deduzido pelo suplicante em sua petição acho nela senão a farta da verdade pois revendo o Livro dos Culpados achei nele ser criminoso o suplicado e um filho por nome não perca, e informando-me de pessoas fidedignas mais circunvizinhas dos suplicados pela melhor forma e dissimulação que pude, e achei de todos a notícia que eram os suplicados homens truculentos poucos tementes a Deus e a justiças, por cuja razão traziam toda a vizinhança atropelada ameaçando-os com armas de fogo, e de mais me consta que indo os oficiais de justiça, escrivão e meirinho, a fazer-lhe uma diligência a respeito da mulata de que se faz menção, e que o dito filho pegara com efeito armas contra os ditos oficiais, e que mais não quiseram de temor tornar a outras diligências, e que estas se mandaram fazer com esta circunstância por alguns oficiais de milícia, e demais me consta terem em sua companhia o rapaz de que o suplicante faz menção: é o que posso afirmar (ibid.: 39-40).

Feitas as devidas constatações, o juiz ordena a prisão de José Pedroso Bonfato e seu filho pelos crimes cometidos e manda “por o dito rapaz em uma das aldeias de S. Majestade que Deus guarde” (ibid.: id.). Nesse sentido, conforme o despacho, “para assim se evitarem queixas”, o índio é afastado também do seu administrador – graças a sua deserção que pode ser tido motivada por algum destrato – é enviado para um aldeamento (ibid.: id.). Em 1767, também na capitania de São Paulo, há um caso envolvendo Feliciano Cardoso e sua mulher Mônica de Jesus que foram “constrangidos pelo diretor dos índios da aldeia de S. José, hoje Vila Nova, para irem viver debaixo do pesado jugo de sua administração” (ibid.: 48). Esta querela, dentre outras coisas, nos permite refletir melhor sobre a dificuldade de inserção de uma família de colonos num aldeamento. Como já foi dito no primeiro capitulo, o Diretório é o principal motivador da presença de não-índios no âmbito dos aldeamentos. Cabe ressaltar, ainda, o caráter ambíguo do estatuto de Feliciano Cardoso, chamado de “pardo e não-índio” em uma petição e, em outra, de “pardo forro” (ibid.: 50-1). A designação de Feliciano Cardoso na documentação pode indicar para nós alguns dos princípios de classificação vigentes na capitania de São Paulo e em outras partes da América Portuguesa.28 O termo “pardo e não índio” é utilizado por um funcionário da Câmara de Jacareí responsável por ir ao aldeamentos verificar a 28

Apesar de termos selecionado um capítulo para tratar de identidades, faremos aqui alguns adiantamentos.

44 situação. A principal preocupação do funcionário, dessa forma, é comunicar seus superiores de que tal sujeito não é índio e, por isso, não pode ser coagido por ninguém para habitar o aldeamento. Já o termo “pardo forro”, é pronunciado pelos donos da terra a qual Feliciano tinha feito a compra. Denunciam, com isso, uma clara preocupação utilizar uma classificação que demostre a liberdade de Feliciano e, assim, sua plena capacidade de adquirir terras. Feliciano, sua mulher e suas filhas solteiras, viviam anteriormente justamente no “sítio, em terras foreiras aos religiosos do Carmo, no distrito da vila de Jacaraí, donde possuem benfeitorias do dito sítio, e suas lavouras de que há muitos anos se alimentavam” (ibid.: 49). Há dois meses, no entanto, o diretor dos índios, capitão-mor José de Armando Coimbra, da vila de São José obrigou Feliciano a largar suas terras e plantações para morar junto aos índios. Em dois meses no aldeamento, Feliciano e sua família, como mostra o relato abaixo, não haviam conseguido se instalar adequadamente na localidade, sem atrair nenhum tipo de ajuda para que isto pudesse acontecer: (…) se acham em uma casa aberta forrada e quase caindo, sem terem que comer morrendo de fome e sem quem lhe assista com o necessário, e ao mesmo tempo perdendo-se o mantimento e roça que os suplicantes tem no dito seu sítio de Jacareí, sem se utilizarem dele, pela sua sujeição, em que se vêem e seu modo de viverem presentemente nesta vila aonde não duvidam existir morar subordinados a mesma, pelo tempo futuro, porém de presente imploram o patrocínio de V.M.cê, para como conservador dos índios a quem a pia intenção de S. Majestade tão excessivamente protege, lhes conceda o irem para seu sítio colher suas plantas, desfrutá-las e dispor do mesmo sítio por estarem morrendo de fome sem ter quem lhos dê nem lhes assista com o necessário, e enquanto cuidarem em fazer casa nesta vila, e disporem modo de nela terem de que se alimentar (…) (ibid.: 49-50).

Como vemos, a intenção da família de Feliciano não parece ser desobedecer às ordens do diretor dos índios, só querem poder continuar lidando em seu antigo sítio para poderem suprir a falta de víveres para si no aldeamento. No trecho, podemos extrair da documentação também, conforme os conceitos de Sahlins, indício da existência de “reciprocidade generalizada” entre os índios aldeados. Feliciano diz estar sua família morrendo de fome graças ao fato de não contar com a ajuda de nenhum integrante da aldeia. Ao nosso ver, a falta de assistência pode ser uma pista para uma rejeição sistemática de não-índios entrarem no aldeamento, uma rejeição da própria família de Feliciano ou mesmo da existência de fortes laços de reciprocidade somente construídos através do partilhar de víveres, bens e serviços ao longo de um tempo considerável. Este regime de reciprocidade, como bem salienta Sahlins (1974: 117-48), é sustentado ou construído por meio do parentesco, e justamente aí estaria a dificuldade da família de Feliciano.

45 Outro elemento possível de ser extraído do caso de Feliciano, consiste em uma mudança recente, em 1767, da legislação indigenista portuguesa. Depois de uma década de implantação do Diretório, como podemos notar, algumas mudanças já aparecem na documentação. A transformação da aldeia de São José em vila é um dos pressupostos pombalinos prescritos nesta ordem principalmente para aldeamentos que atingissem um número de população considerável e tivessem colonos em seu interior. No condizente à solução do caso, podemos dizer que o título de venda da terra aparece descrevendo em detalhes sua localização, sendo considerado legítimo pelas instâncias competentes. O juiz determina, conforme o trecho abaixo, a volta de Feliciano para seu antigo sítio e, ainda por cima, repreende o diretor dos índios que poderia estar facilitando a entrada de não-índios no aldeamento em prejuízo dos aldeados: (…) recolhesse o suplicante; e a sua família para o seu sítio, sem contradição alguma, e o diretor e oficiais da Câmara de Vila Nova de São José, o não constrangerão a quem assista na dita vila, sem segunda ordem minha; porque devo fazer certo a sua Ex.a o prejuízo que se segue aos índios. (BDAESP 1948: 50).

A disputa em torno das terras dos aldeamentos parece ser outra tônica do período inaugurado pelo Diretório. Em 1788, os índios Francisco de Paula, Brás Fragoso, Anastácio Paes, Antônio Alves, Domingos Leite, Joaquim de Oliveira, Valentim da Cunha, Francisco de Godói e Escolástica Ana Barbosa da aldeia de Barueri em São Paulo se manifestam através de um requerimento justamente para reivindicar um cuidado maior nas distribuição de suas terras (ibid.: 71). A aldeia de Barueri teria sido fundada por volta da década de 1600, pelo padre visitador Manoel da Lima. Acompanhado do padre João de Almeida, o padre Afonso Gago, “sertanista veterano”, teria ido ao sertão dos carijós e trazido cerca de 1500 índios que foram repartidos para várias aldeias, dentre elas estava Barueri (Petrone 1995: 117). As terras de Barueri, assim como dos aldeamentos de Guarulhos e São Miguel, passaram a serem aforadas quotidianamente após a metade do século XVIII (ibid.: 300). Os índios de Barueri, tendo isto em vista, conforme relata o queixume, estavam sendo coagidos por José Martins da Cruz e José Branco Ribeiro. Estes sujeitos teriam recebido uma carta de aforamento de terras do diretor da aldeia de Pinheiros. Reclamam os índios, como explicita o documento, da confusão e dos desmandos do diretor de Pinheiros: (…) os suplicantes vexados de José Martins da Cruz e José Branco Ribeiro por estes tirarem carta de terras do diretor da aldeia dos Pinheiros, e quando o dito diretor não pode aforar terras sem ter conhecimento os que lhes pertence para assim poder aforar sem perturbar a população e quando se aforam é parte desembaraçados e não aquelas que esta população de moradores e ainda sem ser terras que pertence aquela

46 aldeia antes sim a esta e como as ditas terras dos Pinheiros nunca foi medidas demarcadas não deve o dito diretor dela aforar em paragem perlongada (sic) (…) (BDAESP 1948: 72).

Os moradores de Barueri queixam-se, então, que suas terras, onde vivem muitos anos, foram aforadas por um estrangeiro a outras pessoas com má intenção. Na aldeia de Barueri, por isso, “(…) se interpelam os foreiros com os moradores logo querendo expulsá-los fora das suas moradas, tudo causa o dito diretor (…)” (ibid.: id.). A situação parece bastante tensa no interior do aldeamento e as ameaças de parte a parte bem diretas. Os moradores antigos são ameaçados inclusive de expulsão e temem ficar sem lugar para fazerem suas plantações: (…) os suplicantes tão amofinados dos ditos foreiros correndo com uns e outros, querendo lhe botar casas abaixo provendo o trabalharem pois como poderão viver sem ter donde trabalhar para alimento das suas famílias quando Sua Majestade concede terras a patrimônio das aldeias para abrigos dos seus índios e não virem pessoas brancas correr com eles desta sorte irão despovoando as suas aldeias (…) (ibid.: id.).

O juiz determina que os índios da aldeia de Barueri conservem suas moradas no local e os títulos de terras aforadas ilegitimamente pelo diretor da aldeia de Pinheiros deveriam ser recolhidos. Autorizar-se-ia agora, além disso, aforamentos de novas terras apenas com a condição do espaço da aldeia de Pinheiros ser medido por órgãos competentes. A querela, contudo, perdura ainda por mais um tempo. O diretor, principal acusado da contenda, decide dar sua versão do ocorrido. Segundo ele, José Martins da Cruz, citado no requerimento dos índios, estaria impedindo que o índio Francisco de Paula: (…) faça casa nas terras que eu lhe arrendei cujas estão no campo da vila de Parnaíba distante da aldeia de Barueri 3 quartos de légua pouco mais ou menos e são pertencentes a esta aldeia dos Pinheiros como consta da sesmaria que se acha em poder do diretor secretário de V. Ex.a (ibid.: 73).

O diretor de Pinheiros, ainda por cima, além de negar a versão dos índios, justifica sua intervenção naquela área sustentado pela “tradição”. Antigamente também existiu o costume de arrendamentos das ditas terras, contra a vontade do superior de Barueri: (…) como também por dúvidas que houveram antigamente teve de mandar o defunto monge frei João da Natividade, com o superior da aldeia de Barueri, e como o monge venceu o dito por serem desta aldeia entrou o monge a arrendar e os mais que se seguirão depois dele como posso mostrar das obrigações dos arrendatários e não é coisa que eu tenha inovado (…) (ibid.: id.).

O testemunho do diretor em favor dos colonos, supostos invasores, não cessa nesse instante. Segundo o diretor de Pinheiros, José Martins da Cruz não estava derrubando as casas dos índios, conforme o alegado. José Branco Ribeiro, por sua vez, estaria morando em terras

47 “distante da dita aldeia mais de uma légua”, sendo seu terreno só confundido com as delimitações das possessões de Ana Barbosa, “a qual está fora da aldeia”. (ibid.: id.). Em defesa dos índios de Barueri, então, depõe João Leite Penteado, provável diretor da mesma aldeia, o qual estabelece uma versão bastante distinta da dada pelo diretor de Pinheiros: Obedecendo o venerável despacho de V. Ex.a informo os índios desta aldeia desde que se fundou a dita aldeia, sempre estiveram morando nas tais terras e nela pessoa alguma quis botar se não estes dois, que agora de novo vieram arrendar estes lugares, que é morada dos índios desde o princípio de sua criação; e não se pode botar fora do seus arranchamento porque não tem outro lugar, e do contrário desertaram a dita aldeia, e sua majestade recomenda a sua conservação sendo que as tais terras chamam suas os índios de Pinheiros, mas como esta aldeia fundaram neste lugar não se pode correr com eles por serem também índios, enquanto Ana Barbosa, dizer o diretor dos Pinheiros não é índia, é legítima da aldeia só ser branca e toda sua família (ibid.: 74).

A documentação sobre este caso, cabe ressaltar, parece estar bastante incompleta, inclusive com a falta do despacho final do juiz responsável. Mesmo assim, os fragmentos de documentação que possuímos nos permitem fazer algumas considerações. As autoridades envolvidas no caso, tendo em mente a permissão do Diretório, deixaram transparecer terem estado interessadas em reservar os direitos dos índios de Barueri sobre aquelas terras em conflito. Talvez pertencente mesmo ao aldeamento de Pinheiros, as terras em conflito teriam sido ocupadas, segundo uma das hipóteses possíveis, na falta de terras no aldeamento de Barueri. No momento da contenda, o diretor de Pinheiros arrenda terras provavelmente utilizadas por algumas famílias de Barueri, inclusive uma moradora branca. Ana Barbosa – a moradora branca –, têm a delimitação de sua terras questionadas; pois elas estariam fora da aldeia. A própria identidade de Ana Barbosa, além disso, é vítima de questionamentos. O diretor João Leite Penteado, defende Ana Barbosa, pois apesar e sua família ser de brancos, eles são moradores antigos do aldeamento e, por este fato, também tem diretos sob suas terras. Percebe-se a partir deste caso, dentre outros, as conseqüências negativas mais diretas da nova leis de terras indígenas presentes no Diretório. Os índios, a partir desse momento, passaram a ter que usar de diversas ferramentas para comprovarem a posse de suas terras doadas pela Coroa. O aforamento das terras das aldeias era, como acontecia em São Paulo, também uma prática cotidiana no Rio de Janeiro colonial, beneficiando índios, padres e demais administradores. Apesar dos recorrentes conflitos de terras que este tipo de rendimento ocasionava, existiram até aldeias especializadas no assunto, como São Lourenço e São Barnabé (Almeida 2003: 232). Na documentação analisada por nós, aparecem dois casos, bastante

48 semelhantes por sinal, nos quais reclama-se do preço padrão do aforamento na aldeia estabelecido por autoridades da capitania em São Pedro e nas terras anteriormente pertencentes ao aldeamentos dos Guarulho. As dificuldades de convivência na aldeia de S. Pedro, com o envolvimento do capitão dos índios e do capelão da aldeia num caso de roubo de madeiras, conforme mostramos na seção 2 e 3, inclui também dificuldade para sustento ocasionado pelo preço considerado baixo do arrendamento na aldeia. Assim como em várias aldeias do Rio de Janeiro do início do XIX, em Cabo Frio, os índios também tinham boa parte de suas rendas obtidas através de aforamento de suas terras. Segundo consta, havia ocorrido um aumento no foro padrão – estabelecido pela Coroa – e os índios de S. Pedro continuavam na miséria. Os aldeados percebiam, dessa forma, por ano, um valor total de 309$825 réis tendo 92 foreiros em suas terras, o que seria um valor irrisório comparado com às outras aldeias. A representação de reclame do baixo preço dos aforamentos é feita pelo conservador dos índios José Albano Fragoso: Persuado-me, que nem estes miseráveis índios são de pior condição para abandono de seus interesses nem estes foreiros de melhor sorte, e mais quando vejo o notável excesso que os administradores da casa dos viscondes fizeram a seus foreiros e o aumento dos padres beneditinos (RIHGB 1852: 431).

Há, também na capitania do Rio de Janeiro, o pedido de aforamento da antiga aldeia dos Guarulhos por parte do missionário capuchinho frei Ângelo Maria de Luca.29 Depois do aval positivo dado por autoridades da capitania, tratou-se de investigar de que forma as terras tinham sido anteriormente arrendadas. Descobriu-se, a partir disso, a existência nas mesmas terras de 84 foreiros os quais, na totalidade, pagavam 545$402 réis anuais. Estes rendimentos, segundo os beneficiários, eram insuficientes e podiam ser incrementados se as regras do jogo mudassem. É que os aforamentos tinham um preço fixado por pessoa, não contando o tanto de terra utilizado por ela e nem o número de escravos, como era feito em outras propriedades. Dois anos depois, vemos, entretanto, que a situação não havia mudado muito, pois agora haviam 113 aforamentos e o rendimento continuava quase igual (ibid.: 442-3). Com relação à interferência dos diretores dos índios, podemos dizer, já tendo em vista o conflito de terras em Barueri e o caso de Feliciano em São José, que eram constantes. Os dois casos apresentados até aqui demostram uma certa vontade de interferir na vida dos aldeados e

29

A participação do padre Ângelo Maria de Luca no aldeamentos de índios da etnia puri foi tratada anteriormente na seção “Índios e padres”.

49 seus circunvizinhos de maneira um pouco autoritária. Há, ainda como exceção, o relato provavelmente feito pelo do diretor de Barueri favorável aos seus índios. Em fins da década de 1800, em mais um caso deste tipo, José Joaquim do Nascimento, novo encarregado da diretoria dos índios da aldeia de Queluz, alerta para: (…) o estado de decadência em que achei a mesma aldeia pela dispersão de alguns índios, que por falta de provisões para a sua subsistência, ou mesmo por inertes, e preguiçosos, e pouco amantes de sujeição se subtraíram ao trabalho, desampararão a povoação (…) (ibid.: 97).

Como podemos notar, a aldeia de Queluz parece já estar na iminência de um colapso total. A origem da aldeia de Queluz, é interessante observar, está estreitamente ligada com a capitania do Rio de Janeiro. Justamente em fins do século XVIII, o capitão-general Antônio Manoel de Melo Castro e Mendonça passou a intermediar um possível aldeamento de índios puris que viviam transitando entre a fronteira das duas capitanias tratadas em nosso trabalho (Petrone 1995: 124). Os Puris são aldeados na localidade em junho de 1800. Com a ajuda de sete índios aprisionados, cerca de 85 indígenas teriam finalmente se submetido ao jugo do capitãogeneral (ibid.: 126). Quase dez anos depois, a tentativa do novo diretor José Joaquim do Nascimento, conforme o relato, foi estimular os índios para voltarem a se reunir e trabalharem para o seu sustento próprio. Ou seja, a sobrevivência de Queluz já estava ameaça em tão pouco tempo. O diretor relata também as medidas tomadas para a volta do funcionamento normal da aldeia, sem “fazer menos gravosa a despesa da real fazenda” (BDAESP 1948: 98). Assim, convocou-se as índias do aldeamentos no intuito de mandá-las para a casa de particulares no sentido de aprenderam “a fiar, e tecer algodões” (ibid.: id.). Os homens, por outro lado, foram estimulados a se instruírem “em ofícios fabris ao mesmo intento ao aumento das suas comodidade”, enquanto os meninos aprenderiam as primeiras letras com o próprio diretor, em uma tentativa de contenção de gastos com professores (ibid.: id.). Outro caso com interferência direta de um diretor ocorre em Itaquaquecetuba no ano de 1788, conforme já referimos na seção intitulada “Índios e capitães”. O episódio versa sobre o diretor João Pereira Vidal, segundo os índios, intermediados pelo seu capitão-mor, inadapto para o cargo. O principal desvio do qual é acusado João Pereira Vidal consiste em sua constante agressividade verbal junto aos índios e sua incapacidade de trazer inovações que pudessem incrementar a renda dos miseráveis índios de Itaquaquecetuba (ibid.: 78).

50 O longo caso oriundo da aldeia de S. Pedro no Rio de Janeiro, envolvendo autoridades da aldeia e seu capelão, já relatado nas seções 2 e 3 deste trabalho, conforme também já dissemos, também inclui colonos. São mandados para Cabo Frio, então, investigadores para descobrir quem está assaltando os índios de suas preciosas madeiras. O primeiro acusado é o tenente Francisco Garcia da Rosa Terra que, segundo o juiz conservador dos índios o desembargador José Albano Fragoso, há um longo tempo vinha praticando o roubo das madeiras. Suas alianças de parentesco, entretanto, jogavam a favor dele e sempre “lhe aplanam as graças e o perdão” (RIHGB 1852: 428-30). O desembargador, além disso, denunciava também o abuso do tenente que dizia ter ordens oficiais para contar as madeiras. O segundo acusado é Antônio Carvalho Soares que já teria sido preso justamente pelo extravio de madeiras. Aos olhos do desembargador José Albano Fragoso, o acusado tinha se tornado um especialista nesse tipo de furto e angariava com eles “grossa receita”. Já o terceiro acusado, Plácido dos Santos teria comprado junto às autoridades da aldeia uma autorização para o corte da madeira. A aldeia fluminense de Mangaratiba, por sua vez, passava por um processo semelhante ao ocorrido na aldeia paulista de Barueri. Na versão contada pelo capitão-mor José de Sousa Vernek, os índios tinham o intuito de expulsar todos os brancos da aldeia para se apropriarem de suas moradias e, com isso, se isentarem de qualquer atividade nos cultos católicos realizados na freguesia (ibid.: 398-403). Em 13 de outubro de 1806, segundo o relato do capitão, o índio Valério de Lima destruiu a casa do morador branco de nome José de Araújo. Vinte dias depois, outro morador branco, Antônio Alves da Cunha, não pode reparar: (…) umas casas que tem naquela aldeia com licença do Sr. ouvidor conservador dos índios fêmeas e machos armados e demoliram toda a obra, deitando-a por terra, acompanhando este despotismo com ameaças as mais temerárias e escandalosas (…) (ibid.: id.).

Um mês após, por fim, a situação se complicou ainda mais. O índio Felisberto Francisco foi a casa do oficial juiz Inácio Antônio de Freitas armado de um machado para insultá-lo. Ao esquivar-se da arma, o dito oficial teria caído em cima de uma pedras e acabou se ferindo. Os demais índios da aldeia teriam ido ao encalço do oficial que conseguiu escapar para a Ilha Grande, onde pediu auxílio da justiça (ibid.: id.). A causa da revolta dos índios de Mangaratiba estaria ligada a entrada de brancos na aldeia, porém, a contenda parecia estar dirigida a nomes específicos:

51

(…) que os ditos Antônio Joaquim e João Luiz, brancos, sejam expulsos da mesma aldeia, como prejudiciais à honra, pela sedução que praticam com moças donzelas, desinquietando-as, e ainda as índias casadas, além dos furtos das plantações que compram aos negros cativos (ibid.: id.).

Tendo em vista os relatos anteriores, é possível conjeturar algumas hipóteses sobre a revolta dos índios contra os brancos na aldeia de Mangaratiba. Provavelmente os índios estavam se sentindo acuados com a chegada de brancos em grande número, principalmente no que diz respeito às terras. A entrada de brancos também poderia estar ameaçando um regime de troca matrimonial, além da aparente ameaça sexual dirigida às índias, entre os índios aldeados, como acontecia também no aldeamento da Escada em São Paulo, visto na seção 3. A diversidade da documentação referentes à relação entre índios e colonos não nos permite fazer conclusões mais gerais, como ocorreu na seções anteriores. A primeira comparação mais nítida entre a documentação do Rio de Janeiro e de São Paulo que podemos fazer diz respeito ao cargo de diretor dos índios. Em São Paulo, nas aldeias de São José, Barueri, Pinheiros, Queluz e Itaquaquecetuba este cargo ocupado por colonos aparece na documentação, enquanto no Rio de Janeiro não há nenhum caso intermediado ou provocado por um diretor. Isto, ao nosso ver, pode nos sugere algumas hipóteses: a primeira, e mais óbvia, é a inexistência do cargo na capitania. Uma segunda hipótese, poderia associar o cargo de diretor de aldeia em São Paulo com o cargo de capitão-mor no Rio de Janeiro. Cabe ressaltar, no entanto, a existência do mesmo cargo de capitão-mor na capitania de São Paulo, conforme já vimos na seção 2. A nossa sugestão, tendo em vista essas condições, é de que em São Paulo, como acontecia com os capitães-mores fluminenses, o papel de intermediários da colonização com os índios acabou ficando nas mãos dos diretores. Os conflitos e as alianças com os índios paulistas por parte dos diretores deve ser entendida, nesse sentido, como conseqüência do estado constante de negociação o qual estavam sendo submetidos estes indivíduos. Os diretores estariam submetidos à constantes pressões oriundas dos índios e das ações dos colonos, permitidas ou não pelas prescrições portuguesas. Uma das principais questões dadas aos diretores seria, dessa forma, qual a fronteira exata entre seguir a determinação do Diretório e os interesse dos índios. Vários, como vimos, acabam declarando suas parcialidades nos óbvios conflitos desencadeados pela mudança no rumo da condução da colonização.

52 Em conclusão mais geral, juntando as reflexões do capítulo sobre os capitães com as feitas neste capítulo, sugerimos uma hipótese diferenciando São Paulo do Rio de Janeiro no que diz respeito ao poder dentro das aldeias. No Rio de Janeiro, as chefias seriam mais prestigiadas pela Coroa portuguesa e, por vezes, acabavam abusando dos seus poderes. Já em São Paulo, os diretores de aldeia – colonos indicados pela Coroa para cuidarem das aldeias – acabaram tomando para si o comando das aldeias, papel atribuído ao chefe prestigiado no Rio de Janeiro. Mas essa diferença, como indica Maria Regina Celestino de Almeida, se explica. As chefias fluminenses do setecentos teriam herdado de seus chefes tupinambás do XVI grandes doses de poder com aval da Coroa. Esses chefes do passado, como segue dizendo a autora para justificar tais poderes, ajudaram no combate às invasões estrangeiras ocorridas em terras fluminenses. O questionamento do pertencimento de determinadas terras aos índios aldeados é outra questão crucial levantada nesta seção. Tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo a evidência de conflitos de terras com os colonos são bastante claras inclusive na ênfase dada já pelas obras bibliográficas lidas por nós. O caso da aldeia paulista de Barueri é o mais longo a respeito deste assunto, envolvendo diretor da aldeia de Pinheiros, colonos, índios e diretor de Barueri. O preço dos arrendamentos feitos pelas aldeias fluminenses de S. Pedro e com as terras de Guarulhos em benefício de índios puri recém-aldeados, de acordo com a legislação do Diretório, são outro tipo de reclamação feita pelos índios e seus intermediários. Com baixos rendimentos, as terras dos índios iam, pouco à pouco, sendo tomadas e rendiam poucos frutos aos seus donos. A falta de recursos em São Paulo, sobretudo na recém-fundada aldeia de Queluz (1800), mostram-se a dificuldade de ensinar índios introduzidos recentemente em aldeamentos a fazerem os trabalhos considerados mais técnicos, com fiar, tecer e de lidar com a madeira. A capitania de São Paulo, como vimos, não possuía recursos para contratar professores para ensinar os índios esses serviços e a ler e escrever. É importante ressaltar, além disso, que a aldeia de Queluz é o primeiro vínculo mais claro estabelecido entre às duas capitanias analisadas por nós, pois se situava em suas fronteiras. Por fim, há o caso da aldeia do Rio de Janeiro denominada Mangaratiba. Como já enfatizamos, apoiados por uma ampla bibliografia que versa sobre a evangelização dos índios no tempo presente, qualquer tipo de alteração na configuração matrimonial de uma aldeia pode ocasionar um sério conflitos por parte dos índios. Assim como vimos isto acontecer no caso do frei Calixto da aldeia paulista de Escada, também em Mangaratiba esta situação acaba ocorrendo.

53 Além de fixarem residência na aldeia, alguns moradores brancos são acusados de serem “(…) prejudiciais à honra, pela sedução que praticam com moças donzelas, desinquietando-as, e ainda as índias casadas (…) (ibid.: 398-403)”. Ou seja, além da “pilhagem patrimonial” impulsionada pela entrada de não-índios nos aldeamentos, os aldeados sofriam também com a “pilhagem matrimonial” por parte dos brancos. Apesar de ser o tema menos recorrente tanto na documentação oriunda de São Paulo como na do Rio de Janeiro, os conflitos e as alianças realizadas entre índios e negros nos aldeamentos merecem ser analisados cuidadosamente por nós. É difícil, no entanto, como bem ressalta Schwartz (2003: 14), ter uma idéia da concepção que índios e negros tinham um do outro, graças ao fato de que a maioria dos documentos existentes retrata somente as visões dos colonizadores. O autor sugere, ainda, a possibilidade de a Coroa portuguesa e seus empreendedores tentarem constantemente alimentar rivalidades entre índios e negros em benefício da colonização (ibid.: 14-5). Partindo da premissa de Schwartz , nosso intuito neste capítulo é também investigar fragmentos documentais da relação entre índios e negros nos aldeamentos paulista e fluminenses setecentistas. A importância deste tipo de investigação está na possibilidade de com ela podermos descobrir os resultados, eficazes ou não, dos planos traçados pela colonização. O primeiro caso é oriundo do Rio de Janeiro e, apesar de estar relacionado com o tema do capítulo 2, cabe melhor aqui nesta seção, pois se refere à opinião dos agentes coloniais em relação à aliança entre um índio e uma escrava. Em 1771, pediu-se a destituição do capitão-mor da aldeia de Ipuca o índio de nome José Dias Quaresma sustentada pelo fato de ele ter se casado com uma mulher negra. Na opinião do ouvidor da comarca Antônio Pinheiro Amado, o índio estaria “manchando com este casamento o seu sangue” (RIHGB 1852: 438). É interessante observar este tipo de relação entre aldeados e escravas também tendo em vista que o Diretório claramente manifestava-se a favor da mestiçagem como estratégia de incorporar os índios a sociedade colonial. Considerados livres, os índios aliados poderiam adquirir escravos como qualquer membro branco da sociedade. Nesse sentido, casar com uma escrava, ou seja, instituir uma igualdade inexistente nas prescrições da Coroa portuguesa, significa dispensar a “atenção às distintas mercês com que el-rei meu senhor tem honrado a todos os índios” (ibid.: id.). O cargo ocupado por José Dias Quaresma, além do mais, exigia que ele tivesse “boas posturas”, “por ser o primeiro que devia servir de exemplo aos demais” (ibid.: id.). Isto é, parece que identificamos

54 aqui indícios de uma tentativa das autoridade portuguesas, numa escala hierarquicamente mais baixa, integrar os índios prioritariamente ao segmento branco da população. Porém, fica a sugestão para uma investigação mais apurada dessa questão. Ainda no Rio de Janeiro, vemos uma pequena manifestação de preocupação das autoridades coloniais com a aproximação de índios e escravos. Como já vimos anteriormente, em 1791, o missionário capuchinho frei Ângelo Maria de Luca, cuidava da realização de um aldeamento de índios puri. Irritado com alegados distúrbios causados pelos Puri em suas e nas terras vizinhas, João Luiz Machado decide doar um pedaços de chão suficiente para os índios construírem sua aldeia. Ninguém parecia agüentar as atitudes dos índios que estariam matando gado e destruindo as plantações das fazendas contíguas. A fazenda de João Luiz Machado, independente de sua “boa ação”, estava em querela judicial, pois certos rumores atribuíam suas delimitações à antiga e extinta aldeia dos Guarulhos. Além do mais, a princípio estava sendo descartada pelas autoridades o uso da fazenda graças ao fato de ser próxima a outras fazendas importantes: O estabelecimento da aldeia neste lugar o considera cheio de muitos inconvenientes, porquanto sendo ele encravado em fazendas populosas de escravatura, parece que mal poderão ser os índios cristianizados e postos naquele sossego, que indispensavelmente se requer em um estabelecimento de gente bárbara, que pela sua natureza é desconfiada e pelos seus costumes apta para todo o gênero de maldade, ainda quando S. Majestade no Diretórios dos Índios manda só admitir nas aldeias populações delas pessoas de um exemplar procedimento, e que exemplar procedimento podem ter os escravos das fazendas a eles próximas? E com quem indispensavelmente hão de viver quase em comum? (ibid.: 451-5)

Este pequeno trecho da vasta documentação sobre os aldeamentos dos Puri encabeçado pelo frei capuchinho, ao nosso ver, indica uma possível política de afastamento de aldeados com fazendas possuidoras de grandes planteis de escravos. As últimas palavras da argumentação da autoridade colonial que veta tal ajuntamento, são ainda mais indicativas: “hão de viver quase em comum?”. Provavelmente, ou naquela região, ou de maneira mais geral, havia uma certa tendência em índios e escravos se relacionarem. Índios e escravos poderiam planejar fugas; índios e escravos poderiam se aliar matrimonialmente; índios e escravos poderiam entrar em conflitos, impulsionados pela mesma lógica da “proteção da troca matrimonial” por parte dos primeiros e índios poderiam ser contratados para capturar escravos em fuga. É difícil precisar, então, o motivo exato de tal rejeição por parte das autoridades coloniais. Porém, já acrescido do documento anterior sobre a aldeia de Ipuca, vemos indícios da construção no Rio de Janeiro de uma possível política de separação entre índios aldeados e negros escravos.

55 Como já dissemos na seção sobre índios e capitães, completando as informações sobre o Rio de Janeiro, há indícios de que os índios da aldeia de Itinga prestavam serviços à capitania de localizar escravos ou criminosos em rota de fuga (ibid.: 339-42). O único índio, em toda nossa documentação, que possui escravos declaradamente é o ajudante Domingos dos Santos Ferreira da aldeia de S. Pedro. Como diz a documentação oriunda da extensa querela sobre roubo de madeira, “é este índio versado em escrever e contar, e tem seus escravos (…)” (ibid.: 428-30). A legislação indigenista, cabe ressaltar novamente, sempre permitiu aos índios aliados adquirirem escravos para suas comodidades (Almeida 2003: 104). Além de se distinguir socialmente pelo fato de possuir um plantel, vale ratificar o que diz o requerimento, Domingos dos Santos Ferreira era também letrado. No concernente às alianças, excluindo o casamento do capitão de Ipuca com uma negra, há no Rio de Janeiro apenas uma caso de auxílio entre índios e negros. O encarregado principal dos descobrimentos no rio Paraíba do Sul de nome José Rodrigues da Cruz, irritado com os ataques dos índios à fazenda da região, decidiu abrigar um grupo dentro da sua própria propriedade. A escolha, porém, acabou resultando em um grande inconveniente tanto para os índios como para José Rodrigues da Cruz. Uma epidemia de bexigas abateu a maioria dos nativos e havia quatro meses eles lutavam pela sobrevivência. Todos os escravos da fazenda tinham sido deslocados de suas funções originais para cuidarem dos doentes: (…) desde pouco tempo depois tem sofrido uma epidemia de bexigas, de forma que há quatro meses, o suplicante e toda a escravatura da sua fábrica apenas tem cuidado em tratar de doentes, caçar para lhes dar que comer, tendo já esgotado os seus mandiocais e bananais, privando-o até reduzir a sua safra a uma terça parte (RIHGB 1852: 486-7).

Nas terras de José Rodrigues da Cruz, dada a solução descrita acima, se abrigavam 154 índios. Alertava-se, nesse sentido, para a impossibilidade de continuarem nessas condições de escassez de gêneros e com os índios doentes. A preocupação de José Rodrigues da Cruz também estava voltada para os seus rendimentos gerados pelas suas terras que abrigavam um engenho e uma olaria. Como diz o trecho supracitado, há quatro meses seus escravos estavam sendo deslocados do trabalho na fazenda para o cuidado dos 154 índios, em sua maioria debilitados pela varíola (ibid.: id.). Na capitania de São Paulo, a relação entre índios e negros também não tem um papel central na documentação analisada por nós. Como viemos fazendo neste capítulo, acrescentaremos aqui a relação entre índios administrados e negros. O primeiro caso, nesse

56 sentido, envolve “um negro do gentio da Guiné” e dois administrados, chamados também de “carijós” (BDAESP 1948: 9). Em 1736, Domingos Lopes Godói, o solicitante do termo, relata que o “negro do gentio da Guiné” de nome Ventura, sua posse, teria fugido de sua casa há cerca de um ano e meio. Há cerca de quinzes dias, no entanto, Domingos Lopes Godói teria mandado buscar seu negro na cadeia de Guaratinguetá, “trazendo-o para sua casa preso” (ibid.: id.). Uma noite dessas de cativeiro, o tal Ventura teria tido suas correntes quebradas por dois Carijó seus administrados de nome Antônio e Bernardino de Godói. Ambos acabaram por se ausentar da casa de Domingos. A súplica do senhor dos administrados e do negro é justamente a devolução das suas posses ao convívio do seus lar, pois eles “são os únicos que tem para alimentação da sua casa que é um homem pobre com sete irmãs solteiras órfãs (ibid.: id.)”. Alegando, então, sofrer tanto com a ausência de suas mãos-de-obra, Domingos consegue um resultado positivo só tendo que assinar um termo se comprometendo: (…) ao bom trato dos dois carijós chamados Antônio e Bernardino de Godói, e de os repor em qualquer das aldeia de Sua majestade todas as vezes que pelo Ex.mo Sr. Conde-general ou seus sucessores lhe for ordenado, obrigando a dar conta deles, e como assim o disse obrigou sua pessoa e bens e a todas as mais penas que lhe forem impostas (…) (ibid.: 9-10).

Infelizmente, este é o único caso paulista relatando relação diretas entre índios e negros, sendo oriundo de uma querela relacionada a administrados e não índios aldeados. Nas aldeias só achamos pequenos indícios da presença de negros nas listas constantes no final de nossa documentação impressa. Na aldeia de Barueri, em lista de 1803, no fogo de nº 50, aparece João Valente, considerado um agregado à igreja da aldeia, “forro da nação Banguela” (ibid.: 178). O tal negro tem 58 anos e é casado, provavelmente com uma índia de nome Escolástica Maria de 48 anos, ambos vivem “de milho, feijão, algodão e cana” (ibid.: id.). Os dois moravam, ainda, com um enteado de nome Ângelo, também índio, ausente no momento por ter ido ao Rio de Janeiro sem licença. Na mesma lista, no fogo nº 117, está Inácia Maria, negra casada oriunda da vila de Apiaé que “vive de fiar” (ibid.: 187). Não há, porém, nenhuma informação sobre o cônjuge de Inácia. No fogo de nº 119, mora Inácio Ruiz, negro, de 58 anos descrito como “forro agregado”, com sua mulher Ana Almeida, de 52 anos, também “forra agregada”. Mora com os dois uma neta mulata de 20 anos e solteira. Ambos se sustentam de “tecer pano” (ibid.: 188). Por último, no fogo 120 da aldeia de Barueri, mora Maria Fragoso, negra, casada com 42 anos, e considerada

57 “forra agregada”. Maria “vive de fiar”, sendo que não há qualquer referência sobre seu marido (ibid.: id.). Em uma lista da aldeia de N.S. da Escada, provavelmente numerando apenas os moradores colonos desta localidade, há uma série de escravos. Fazendo uma contabilidade mais geral dos dados, tendo em vista que estão listadas 158 pessoas e delas 32 são escravos, podemos dizer que 20% da população colona da aldeia é de escravos. Das 30 famílias listadas no total, 8 possuem escravos. Com relação ao número de escravos e suas faixas etárias, o gráfico abaixo nos traz alguns dados importantes. Ao mostrar que a maior parcela da população considerada escrava está em idade abaixo dos 20 anos, o gráfico indica duas hipóteses para nós. A primeira seria da existência de famílias escravas no aldeamento de Barueri e, a segunda hipótese, diz respeito a uma interação da população escrava com índios do aldeamento. Assim, podemos dizer, tendo em vista os dados abaixo, que a possibilidade de casamentos entre índios aldeados e negros não pode ser descartada. Para resumir, em termos gerais, vemos na capitania do Rio de Janeiro uma atitude recorrente das autoridades coloniais em separar índios e negros. No caso da destituição do capitão de Ipuca e na preocupação de não aldear os Puri junto a fazendas com grande escravaria, esta política se manifesta mais claramente. Por outro lado, ainda no Rio de Janeiro, índios eram incentivados a terem escravos e a perseguirem cativos fugidos. Existem, além do mais, dois casos de alianças claras entre índios e negros, um oriundo da própria documentação fluminense e outro das fontes paulistas. O primeiro, como vimos, refere-se ao auxílio prestados por escravos da fazenda de José Rodrigues da Cruz a 154 índios, dentre eles vários com varíola. Em São Paulo, o caso se refere a dois administrados que ajudam um escravo a fugir. Ou seja, a maioria dos casos trata da existência de uma tendência de auxílio entre índios e negros, grande parte combatida pelos colonizadores. Quanto a possibilidade de intercasamentos entre índios e negros, ao nosso ver, há alguns indícios apontando neste sentido. Porém, para se ter uma idéia mais geral da situação, será preciso investigar uma quantidade maior de documentos.

58 5. Identidade e parentesco nas aldeias: índios aldeados, “índios bravos” e “administrados” Uma das principais questões levantadas a partir dos estudos de aldeamentos, como já adiantamos anteriormente, diz respeito à dinâmica das identidades dos índios no processo de contato. Há uma série de implicações circunscritas às diferentes historicidades dos índios em relação à sociedade colonial. Grosso modo, dividimos este capítulo no sentido de apontar para três identidades básicas de tratamento da sociedade colonial para com os índios que estão, de uma forma ou de outra, travando relações com colonos, padres e/ou negros. A situação, porém, como veremos a seguir é muito mais complexa. Os termos de tratamento utilizados para se referenciarem os índios na documentação são inúmeros. O que pretendemos fazer aqui neste capítulo, então, é desvendar os lugares de determinada identidade. Assim, qualquer citação de localidades constante nos documentos será tratada por nós como uma pista na investigação das identidades e suas fronteiras nas capitanias do Rio de Janeiro e São Paulo. O primeiro caso a ser referenciado é oriundo do Rio de Janeiro. No início da década de 1790, a aldeia de São Luiz passava – como São Pedro, Mangaratiba e Itaguaí – também por problemas que envolviam uma chefia indígena e os índios da circunvizinhança. O cacique chamado Mariquita que tinha desertado da aldeia acerca de um ano junto com sua família estava sendo acusado pelo capelão de causar desassossego entre os índios.30 Como explicita melhor o trecho abaixo, a não permanência do cacique na aldeia estava provocando uma série de deserções: O cacique e um irmão que tem, são rebelados e há reconciliação que os conduza; o capelão duvida da redução da fé enquanto se não extinguirem estes dois, e durante a dominação deste não cessarão as descensões e desordens da dita aldeia (RIHGB 1852: 477-9).

Na mesma petição, o padre solicita também a urgência de passar uma estrada particular para o controle da ordem pública, pois isto poderia impedir os ataques sucessivos de índios que ainda perambulavam pelo sertão próximo a São Luiz. Os moradores do aldeamento, segundo consta, utilizavam muito a estrada e eram freqüentes os prejuízos tidos nesta passagem. Índios escondidos no mato com receio de serem capturados teriam, na passagem chamada João Congo, frechado um homem de nome Francisco Dias. Conforme relato, nenhum mal fazia o referido 30 Este caso foi deixado de fora da segunda seção deste trabalho justamente pelo caráter não oficial dado ao estatuto do cacique Mariquita. No que nos consta, o cacique não possuía nenhum cargo na fluminense aldeia de São Luiz patrocinado pela Coroa.

59 homem aos índios, sua intenção era apenas chegar a um velório de um parente seu e, por isso, passava no local (ibid.: id.). Um ano depois, as notícias mostram o sertão da aldeia ainda mais polvoroso e agora lança-se mão de medidas efetivas para “conter os assaltos dos índios bravos” (ibid.: 479-80). A decisão tomada foi tornar o sertão da aldeia um lugar habitado e, para isso, foram convocados 20 casais voluntários para tomarem posse do lugar. Imediatamente, então, esses voluntários passaram a cultivar nessas áreas, morar ou freqüentar quotidianamente o local. As medidas, porém, não pararam por aí: Estes moradores se têm entranhado pelos sertões e aberto picadas para se comunicarem e conduzirem os seus necessários, por forma que já acham nas fraldas da Mantiqueira, tudo pelas margens Rio Negro, circuito da mesma aldeia que poderá distar dos campos da lagoa da Juruoca da capital de Minas três a quatro léguas (pelo que dizem), e mandando examinar todo o sertão e achando que os índios o devassam com suas laçadas e idas ao pinhão no seu tempo, ainda que isto mesmo se faz necessário por conta de afugentar os índios bravos, contudo antevendo ser fatível transitar-se pelas mesmas picadas dos índios alguns extraviadores, mandei por uma patrulha no lugar mais atacado da dita aldeia para explorar aqueles sertões e impedir qualquer dano que possa haver contra a real fazenda, além de que obviam as invasões dos ditos índios (ibid.: id.).

As notícias em relação ao sucesso do empreendimento de colonização do sertão parecem ser bastante positivas. Com o patrulhar da região os assaltos dos índios bravos cessaram. O caso acima, além de outras coisas, demostra um pouco o processo de ocupação dos sertões fluminenses que parece em pleno andamento no final do século XVIII e início do século XIX. É preciso estar atento, além disso, para as designações constantes no documento sobre o caso acima. Nota-se o fato de não haver qualquer menção à etnia dos índios genericamente chamados, pelo discurso do colonizador, de “índios bravos”. Os índios do aldeamento de São Luiz, como pode-se ver, provavelmente são de aldeamento recente e ainda vivem indecisos entre o sertão e os atrativos dos aldeamentos. Ao discorrer sobre um aldeamento paranaense de meados do século XIX, ou seja, em um contexto político totalmente distinto, Marta Amoroso sugere hipóteses sobre os motivos que atraíam os índios para estas localidades. Segundo a autora, diante de um sertão em pleno processo de colonização os nativos passavam a achar interessante a idéia de se aldearem, pois isto representaria “proteção contra os inimigos e fonte garantida para a subsistência” (Amoroso 1998: 56). Ainda sobre o Rio de Janeiro e sua relação com o sertão, em 1798, faz-se um relato bastante interessante a respeito dos empreendimentos no rio Paraíba do Sul (RIHGB 1852: 480-

60 1). As metas dessa empresa se fazem claras no documento dando uma idéia novamente da expansão das terras da capitania e a interferência causada por esse processo nos índios habitantes do sertão. Facilitar e ampliar a civilização dos índios moradores das margens do rio consistia no primeiro objetivo. Por segundo, procurava-se estabelecer a navegação no rio até sua embocadura no mar. Procurava-se também, por último, reservar áreas da margem para a extração de madeiras as quais deveriam ser vigiadas para impedir a “invasão de índios bravos” (ibid.: id.). Para executar os planos ditos acima, como consta em uma carta do ano de 1800, a intenção era doar uma sesmaria aos índios descobertos ao longo do rio para o aldeamento dos mesmos. No processo de convencimento dos índios bravos a mesma carta arregimentava padres dispostos a participarem da negociação para o aldeamento. A necessidade de colocar os índios num aldeamento parecia imediata, como mostra o trecho abaixo, pois aumentava a preocupação com as fazendas particulares: (…) promover a civilização do gentio bravo, que infestava o sertão da Paraíba com grande dano dos moradores das freguesias Sacra-Família, Rio Preto e do Peixe, Paraíba e Paraibuna, desde o ano de 1790 (…) (ibid.: 486-7).

Como já foi descrito no capítulo anterior, José Rodrigues da Cruz decidi abrigar um dos grupos de índios que causavam as referidas perturbações nas suas terras. Uma epidemia de varíola, no entanto, acabou causando grandes transtornos a José Rodrigues da Cruz, pois ele teve de deslocar boa parte dos seus escravos para cuidarem dos nativos enfermos. Dada às enfermidades irrompidas ali e ao conseqüente desabastecimento dos índios na fazenda, Tomouse, então, a decisão de aldear esses índios e os demais que, como diz o documento, “infestavam o rio Preto, o Paraíba, o do Peixe e Sacra-Família” (ibid.: 488). Para efetivar este ambicioso projeto, estariam sendo providenciados quatro espaços na capitania para a formação de aldeamentos. Tendo em vista a nova empreitada, em uma petição, também de José Rodrigues da Cruz, solicita-se uma enorme quantidade de materiais a serem utilizados na implantação das duas primeiras aldeias. Além da abertura de caminhos os quais levassem as novas localidades, as tarefas iniciais incluíam escolher seis casais oriundos da aldeia de São Luiz da Paraíba para ensinarem os ofícios aos outros. Quanto ao material solicitado, consta numa lista bastante interessante a qual citamos integralmente:

61 Que V. Ex.a lhe mande dar o seguinte: 200 anzóis grandes, 200 ditos pequenos, 20 maços de linhas de Oeiras, 150 mantas ordinárias, 200 foices grandes, 200 enxadas, 500 facas de cabo de peso, 6 quintais de ferro da Suécia, 1 quintal de aço, 100 tesouras sortidas, 200 chapéus ordinários e 2 melhores para os caciques, 2.000 varas de algodão, 12 maços de miçanga, 1 barril de pólvora e o chumbo competente, fumo, etc. (ibid.: id.).

A lista, além de revelar as necessidades circunstanciais de estabelecimentos das novas aldeias, também nos permite fazer algumas conjecturas a respeito dos índios a serem aldeados. No concernente as distinções no interior dos grupos, o fornecimento de chapéus melhores para os líderes nós dá mais uma clara impressão da política ibérica de enobrecer as lideranças nativas. “A distinção hierárquica por vestimenta era típica do Antigo Regime e os poucos documentos citados indicam ter sido ela introduzida entre os índios aldeados e, ao que parece, assumida por eles (…)” (Almeida 2003: 159). A importância da pesca como base da alimentação é a segunda hipótese que pode ser levantada tendo em vista a enorme quantidade de material solicitada para esta prática. Outra dedução a qual podemos dar como relativamente certa, dada a condição de “índios bravos” dos futuros aldeados, é o fato deles andarem desvestidos, pois na lista são solicitadas 2 mil varas de algodão. Fazendo pequenas ponderações especificamente sobre os casos do Rio de Janeiro descritos acima, podemos dizer que há um padrão muito claro nas identidades, ou na origem étnica, dos índios da capitania no século XVIII. Entretanto, devemos ficar atentos. Os pesquisadores empenhados em desvendar as diferentes dinâmicas do contato das sociedades indígenas com a sociedade colonial tendem a concordar quando se referem as dificuldades representadas pela etnonímia constante nos documentos. Às vezes, “um só etnônimo pode encobrir vários grupos étnicos e, reversamente, vários etnônimos podem estar sendo utilizados nas fontes para designar um mesmo grupo étnico” (Farage 1991: 19). Parte considerável dos estudiosos defende também que havia um padrão lingüístico para os nativos escravizados tanto na África como no Brasil (Alencastro 2000: 150-1). Ao longo desta pesquisa, e mais claramente na documentação descrita até agora neste capítulo, nos parece óbvio que esta sentença pode ser estendida para os índios aldeados. No Rio de Janeiro do século XVIII, os grupos potencialmente a serem aldeados pertenciam à família lingüistica puri do tronco macro-jê. No século XVI e XVII, segundo a bibliografia consultada, eram os Tupi-Guarani os mais visados. Já prática de misturar etnias diferentes em uma mesma aldeia, ao nosso ver, era comum no Rio de Janeiro. Os dados indicadores dessa mistura estão situados tanto nos casos revelados neste capítulo como no caso da aldeia de Mangaratiba, onde, segundo nossa hipótese, o capitão José de Sousa Vernek era

62 protagonista principal de uma querela envolvendo as lideranças da aldeia. Segundo Cristina Pompa, a mistura de etnias nas aldeias, apesar de causar os conflitos que descrevemos, serviria para criar “além de uma língua geral, uma ‘cultura geral’, a partir da qual se rearticula uma identidade indígena” (ibid.: 388). Isso permitia, na nossa opinião, maior inteligibilidade entre, índios e padres, principalmente, mas também entre índios e administradores coloniais. Em São Paulo, como veremos, a situação é um pouco distinta do panorama mostrado acima para o Rio de Janeiro. A diversidade das etnias declaradas nos documentos parece ser muito maior. Isso pode-se dar, no entanto, graças ao caráter da documentação paulista e da própria natureza das aldeia. Na capitania de São Paulo, os aldeamentos eram lugares de circulação de uma diversidade de índios com os mais variados estatutos. Assim, podemos ver transitando pelas aldeias coloniais, índios administrados, índios do sertão e índios vindos de outras aldeias. A íntima relação entre aldeia e o sistema de administração particular dos índios em São Paulo é uma conseqüência das sugestões dadas pelo padre Antônio Vieira num parecer de 1696. O padre Vieira (d/s: 340-58) se posiciona acerca da administração particular dos índios em S. Paulo, para dar algumas sugestões para os administradores leigos da capitania. Segundo ele, a administração tratava-se de uma nova postura para com os índios, tendo com referência comparativa à escravidão dos mesmos. Os índios agora teriam seus laços de estatuto de propriedade de um senhor afrouxado. Quando fugissem dos lares de seus administradores, os indígenas não poderiam sofrer qualquer castigo, pois não tinham obrigação de servir seus donos se não quisessem. Na morte de seu administrador, a escolha de a quem servir também seria destinada ao índio que poderia sim escolher um dos herdeiros do falecido, porém de livre e espontânea vontade. Caso houvesse alguma discordância em situações com essa, o administrado, conforme sugestão de Vieira, deveria ficar o tempo necessário num aldeamento da capitania. Assim como os índios aldeados, os administrados deviam perceber um salário pago por dia de trabalho feito. Na opinião de Vieira (s/d: 355), que lembra muito às teses de Gilberto Freyre proferidas dois séculos e meio depois sobre a escravidão negra, o fato de trabalharem para os senhores de livre vontade fazia do sistema de administração “o mais doce cativeiro e a liberdade mais livre”. Os escritos do padre Vieira, nos permitem questionar se ouve realmente uma reestruturação da política indigenista a partir da implantação do sistema de administração ou se ele se assemelhava muito à escravidão dos nativos anteriormente praticada.

63 Tendo em vista os subsídios de Vieira, então, partimos para uma análise mais detalhada dos casos paulistas. Para isso, levaremos sempre em conta esse caráter não fixo dos lugares ocupados por índios com determinados estatutos na São Paulo setecentista. Primeiramente, temos um caso no qual uma família branca, mais bem posicionada hierarquicamente dentro da sociedade colonial, ameaçada graças a um crime cometido por um dos seus membros é preservada. Um problema desses transparece em uma petição escrita por volta da década de 1740, quando o capitão-mor da vila de Itú, Salvador Martins Bonilha, solicita a justiça da capitania de São Paulo que dezenove índios oriundos das minas de Cuiabá “da nação Paresi” fossem restituídos as suas mãos. Conforme o relato do capitão, dezesseis eram homens que “lhe teriam dado por administrados” e três eram mulheres que “(…) lhes mandarão entregar por um termo como seu administrador, pelos haverem tirado do poder de alguns moradores com quem haviam ficado culpadas no crime de mancebia (…)” (BDAESP 1948: 32). Chegando na cidade de São Paulo, o tenente-general Manoel Rodrigues de Carvalho não quis permitir que os índios permanecessem com o capitão Salvador. O tenente-general não usou nenhuma justificativa para tirar os índios da mãos do capitão que solicitava a administração dos mesmos índios e isso serviu como “pretexto de se mandarem para as aldeias” os ditos índios paresis (ibid.: id.). Os seus índios, no entanto, foram mandados para a fazenda de São Bento comandada pelos religiosos beneditinos. Tendo, para esse transporte, o capitão Salvador que custear do seu próprio bolso a “condução do dito gentio” (ibid.: 33). O analisador da querela dá ganho de causa ao capitão, contudo, o principal elemento que podemos extrair deste caso é um possível regime de “punição” dos administrados. O apurado junto às fontes permite dizer que as três índias culpadas em Cuiabá pelo crime de “mancebia” receberam como punição ter de se ausentar de suas contigüidades. Transtornos os quais envolviam colonos e índios, em relações de subjugação dos últimos, pareciam sempre serem resolvidos no sentido de preservar a família branca, mandando o índio para longe. Uma última questão sugerida pelo queixume é da existência de um questionamento ou mesmo da possibilidade de não validade de uma administração passada às mãos do capitão nas minas de Cuiabá na região de São Paulo. Em um situação distinta, agora envolvendo um família bororo que solicita a volta de um dos seus membros, ocorrida no ano de 1741, o coronel regente Antônio Pires de Campos, reclama de Ângelo Preto Nobre. Este haveria, por meio de uma portaria, retirado dele “um carijó da nação Bororó” para ser utilizado “na conquista do gentio Kayapó” que havia invadido suas possessões

64 (ibid.: 35). Em consciência da portaria, sem maiores questionamentos, o coronel regente lhe concedeu um índio bororo seu administrado “na suposição de que o suplicante vinha fazer a dita conquista” (ibid.: id.). A missão de conquista de Ângelo Preto Nobre, contudo, acabou não ocorrendo e como o índio era um dos membros de um plantel maior de administrados, sendo que estes “atualmente o estão persuadindo a que o mande recolher a companhia dos mais” (ibid.: id.). Esta petição feita para o retorno do índio bororo pelo coronel regente Antônio têm dois intuitos principais: o primeiro consiste em “satisfazer a vontade de seus parentes” e o segundo seria a volta do índio bororo ao seu administrador de direito (ibid.: 36). Desprovida de um dos seus membros, como podemos ver, então, uma família de administrados bororos pressiona o coronel regente Antônio para exigir seu retorno e este, conforme o despacho do juiz, obtém sucesso. Os dois casos analisados anteriormente, em clara conexão com as regiões de Goiás e Mato Grosso, merecem uma atenção conjunta. No primeiro caso vemos os Paresi sendo trazidos para São Paulo, enquanto no segundo caso vemos um bororo da região de São Paulo sendo tomado de empréstimo para guerrear com os Kayapó. A rivalidade tradicional entre Bororo e Kayapó, segundo a bibliografia que consultamos, moldou inclusive a implantação de aldeamentos em Goiás (Ravagnani 1996: 221-44). Uma pesquisa mais minuciosa buscando analisar em mais quantidade documentação a esse respeito pode trazer conclusões interessantes no que diz respeito às etnias indígenas que vêm para os aldeamentos paulistas e também para os administradores particulares da capitania. Mesmo assim, a pouco documentação, que temos em mão nos permitem sugerir que Bororo, Paresi e, quem sabe, Kayapó constituíam grupos razoavelmente presentes na capitania. O fato, no entanto, de a etnia de ambos serem referenciadas contentemente pode indicar o caráter de mais “estrangeiros” dado aos índios vindos do atual Brasil Central. Segundo a hipótese que tecemos, então, os grupos indígenas que habitavam os aldeamentos e as casas da região tinham um padrão étnico e, por isso, como veremos, eram designados pelos colonos de forma “genérica”. Quando um índio de grupo mais desconhecido era trazido para a região rapidamente traçava-se sua alteridade por meio da designação étnica atribuída pelos brancos.31 Há, ainda, uma outra petição que aponta para mesmas conclusões tiradas acima. Na nossa opinião, entretanto, os Arari tratados aqui não são oriundos de Goiás ou Mato Grosso, mas sim da capitania de Minas Gerais ou do Nordeste. A petição do diretor dos índios José Joaquim do Nascimento se presta, além das comunicações quanto a nova orientação da aldeia de Queluz já 31

Ainda há, mais adiante, outro caso sobre Goiás, porém, não se referindo especificamente à etnia dos índios citados.

65 explicitadas no capítulo 4. O diretor pede a permissão para que seis índios “de uma nação chamada dos Araris”, acompanhados de seu respectivo capitão “índio chamado pelo seu idioma Manquita”, passem a residir no aldeamento de Queluz, conforme pedem os mesmos (BDAESP 1948: 97-8). O capitão Manquita se compromete, em retribuição ao possível acolhimento, a “a ir catequizar quantos existem naqueles sertões, para com ele se sujeitarem a mesma aldeia” (ibid. id.). A promessa, então, gira em torno da possibilidade de novos índios se agregarem ao aldeamento, sendo fortalecida a hipótese da bibliografia a qual afirma que tanto a deserção como a decisão de se reunirem em aldeias coloniais, eram feitas, na maioria quase absoluta dos casos, em conjunto pelos índios, isto é, por um grupo de parentes ou por aldeias inteiras. Já em idos da década de 1770, como já foi comentado brevemente no capítulo 2, aparece um caso no qual a principal preocupação parece ser com o sustento das famílias indígenas, dado o regime crescente de exploração delas por parte dos colonos. O capitão-mor da aldeia do Padroado Real de Barueri de nome Antônio Cardoso Pinto e a numerosa povoação indígena a qual administra nesta localidade achava-se em sua maioria dispersa em várias vilas da capitania de São Paulo. Estes índios estariam servindo em distintas casas particulares aparados pelo regime de salários prescrito em legislação. Outros homens se ausentavam em viagens, também a trabalho, para Minas Gerais, Viamão, dentre outras regiões mais longínquas. Nas viagens principalmente, mais também nos serviços em locais mais próximos, arregimentam-se sobretudo nativos já casados e detentores de uma ampla prole e “ficam suas mulheres, e filhos pela pobreza” (ibid.: 64). Denuncia também o capitão casos mais graves de não pagamento dos salários e da exposição dos índios a jornadas perigosas que muitas vezes os levam a morte: (…) para estes fins o saírem desta aldeia 23 índios para as conduções de Iguatemi, e perecendo alguns com as vidas ficarão outros dispersos até o presente sem perceber um até o presente o salário do seu trabalho (…) (ibid.: 66).

Sendo as terras da aldeia dividida em quadras de três léguas para cada família, sem contar a divisão das tarefas que nitidamente persiste dentro dos aldeamentos, as mulheres ficavam sobrecarregadas em serviços dado a ausência de seus maridos. E, além do mais, como deixa claro o capitão-mor em seu queixume, os salários dado aos homens que poderiam servir para a compra de provisões escassas geralmente nunca chegavam às mãos das mulheres a tempo: (…) sofrendo suas mulheres e filhos às penalidades da fome pela falta da assistência de suas lavouras, pois é certo que o quê ganham por fora jamais nunca lhe chega para trazerem, a casa, coisa alguma porquanto a miséria de pupilos os conduz a uma total desordem do seu obrar (…) (ibid.: 65).

66

Evidenciamos neste caso, então, uma denúncia dirigida a uma exigência além da capacidade de demanda dos índios aldeados da feitura de trabalhos particulares sobre o regime de salários, estes muitas vezes não pagos. Na aldeia de Barueri, desse modo, podemos constar uma prática da sociedade da época que retirava os índios da convivência com seus pares apenas conforme as conveniências dos colonos. A demanda nativa por sustento próprio, pouco parece ser levada em conta neste caso.32 Dois casos acima mostram as estratégias tomadas por famílias aldeadas, ou por uma família administrada – na petição sobre o índio bororo que havia sido retirado do seu administrador –, de reintegrarem seus membros. Em São Paulo, para corroborar com essa tendência de união das famílias indígenas, há também um caso de luta contra uma ameaça de fragmentação de uma índia e seus filhos. Em uma queixa dirigida ao seu administrador Bernardo de Góes, no ano de 1736, “Potência e seus filhos, André, Caetano, Luís, Felipe, Bento e Joana, todos oriundos do gentio da terra” reclamam de uma suposta tentativa de fragmentação dos membros de sua família (ibid.: 6). Alegando servirem o “seu administrador com todo o cuidado, amor e vontade”, delatam o mesmo o qual estaria interessado em dividi-los, sendo alguns filhos de Potência destinados ao dote de um futuro casamento de sua filha Tereza de Góes e outros seriam vendidos a outras pessoas (ibid.: 7). Os índios, então, mesmo conscientes do seu caráter de “(…) pessoas livres, e senhores de si, na forma dos ordens de Sua Majestade que Deus guarde e assim isentos de qualquer gênero de venda, trato ou contrato (…)”, deixam claro o fato de trabalharem para o seu administrador sem dar motivos para desgosto (ibid.: id.). O intuito da querela levada a cabo por Potência e seus filhos, nesse sentido, parece ser exigir o respeito das suas condições de índios livres e a manutenção dos seus filhos sobre o teto da mesma casa: (…) os suplicantes só querem viver na administração do suplicado e por sua morte na de alguns dos seus filhos que melhor trato lhe der andarão sempre juntos e unidos, e fora dele, ou do seu filho na administração de alguma das aldeias reais que lhe for mandado para esse efeito (ibid.: id.).

Visto a reivindicação dos índios, o despacho da administração da capitania determina que Potência e seus filhos sejam conservados juntos na administração de Bernardo Góes. No caso de haver algum tipo de constrangimento aos índios, deixando-os o administrador carente de comida e vestimentas, a pena seria a retirada deles de sua habitação para algum aldeamento a ser

67 determinado pela capitania. Num pedido da administração da capitania, além disso, funcionário de nome Diogo Aires de Araújo se encaminha até a Vila de São Sebastião – local onde reside Bernardo Góes – para investigar em minúcias as acusações feitas pelos índios. Nada se apura efetivamente, pois até o momento “é constante nesta vila que o suplicado Bernardo de Góes, não ter vendido nenhum oriundo do gentio da terra de sua administração” e, além do mais, não haveria também qualquer acerto de casamento destinado a Tereza de Góes (ibid.: id.). Mesmo assim, Bernardo de Góes é levado a assinar um termo de obrigação em que se prontifica a continuar tratando bem seus administrados. No ano de 1804, organiza-se na capitania de São Paulo uma espécie de operação de defesa contra índios desertores das aldeias da capitania de Goiás. Estes índios entraram na capitania depois de ultrapassarem o rio Grande, se instalando entre este rio e o chamado rio Pardo. Os índios eram temidos pelos colonos graças à um alegado conhecimento dos costumes e das ferramentas bélicas dos brancos, “o que não acontece com o gentio bruto, que supõem que as nossas espingardas ofendem sem a necessidade de primeiro serem carregadas” (ibid.: 95). Ao todo são montadas três operações simultâneas as quais parecem ter a intenção de cercar esses antigos índios aldeados desertores. Primeiramente, Hipólito Antônio Pinheiro, munido de “meia arroba de pólvora com seu chumbo”, ficou encarregado de penetrar sertão adentro por 15 léguas acompanhando o rio Sapucaí até chegar ao rio Grande. Em outra frente, João de Campos e Manoel Vaz ficaram incumbidos “aquele para entrar pelos Batatais até a lagoa Rica, a este descendo pelas margens do Rio Pardo até a sua Barra” (ibid.: id.). E, no intuito de dar mais eficácia a esta empresa de expulsão do gentio oriundo de Goiás, o capitão do mato Tomas da Silva foi encarregado de entrar “com a sua gente abeirando o rio Grande, até dar com a trilha dos Bugres, e segui-los” (ibid.: 96). É difícil argumentar sobre as causas exatas da deserção dos índios aldeados de Goiás aqui citados. Podemos fazer, entretanto, algumas conjecturas a respeito da visão dos colonos sobre a distinção entre o aqui chamado “gentio bruto” e os aldeados. Parece que para os colonos, neste caso, e talvez de modo geral, a categoria de “gentio bruto” ou “índio bravo”, por exemplo, ao não conhecimento ou domínio das armas de fogo dos brancos. O conhecimento de tal técnica, neste

32

Mais adiante, analisaremos uma lista nominativa de índios de Barueri de 1803 na qual a saída constante dos aldeados da aldeia também está presente.

68 caso atribuído aos índios aldeados desertores de Goiás, poderia ser chave na resistência nativa contra ataques visando a conquista por parte dos agentes coloniais. No bem da verdade, a deserção, além do apelo às autoridades da capitania, parece consistir num instrumento comum para a superação de desentendimentos nos aldeamentos. No ano de 1783, “um índio por nome Antônio de Camargo com sua mulher, e dois filhos, um por nome Joaquim e outro por nome Simão, desertaram desta aldeia (não consta o nome da aldeia no documento) e se acham situados ao pé de São Roque, segundo me dizem (diretor da aldeia) nas terras do capitão José de Camargo” (ibid.: 70). A reclamação principal do diretor, nesse caso, é, porém, a deserção posterior de “3 raparigas solteira”. Conforme o relato detalhado abaixo, as índias solteiras desertadas vão ser encontradas na casa o dito Antônio Camargo: (…) em 3 de agosto deste presente ano (1783), desertaram 3 raparigas solteiras , mandando eu dois índios atrás delas para as trazer; foram topar com as ditas 3 raparigas em casa deste dito Antônio Camargo, antes sim este índio ocultou, rompeu com vozes ativa e petulante contra os meus portadores que foram buscar as ditas raparigas, que si eles não voltassem e fossem prudentes certamente haveria algumas desordens (ibid.: 71).

Esta deserção se torna mais generalizada algum tempo depois quanto quando três índios se ausentam sem licença da aldeia, “segundo dizem foram para as partes de Viamão” (ibid.: id.). Os motivos de tantas deserções não são explicitados no requerimento oriundo do diretor da aldeia, somente pede-se que “Vossa Excelência como senhor dará a providencia que lhe parecer, do contrario desertarão a aldeia”. Ou seja, poderia estar havendo alguma querela interna e, com isso, novas deserções estavam na iminência de ocorrer (ibid.: id.). Em 1788, a deserção é utilizada, de forma individual, pelo índio de nome Francisco “o qual induzido por Francisco de Figueiró, taberneiro desta cidade fugiu do suplicante e desertou a aldeia (de Embu) (…)” (ibid.: 79). O diretor da aldeia onde morava Francisco de nome Francisco da Cunha Lobo vem reclamar à administração da capitania pelo motivo de que, “permitindo-lhe Sua Majestade pelo seu Real Diretório”, este índio coabitava em sua casa tendo a finalidade de cuidar dos encargos de distribuição de cartas, de dar avisos e comunicar aos outros índios ordens vindas de instâncias superiores. Um irmão de Francisco, segundo consta na petição, fez um requerimento solicitando a posse dele e a obteve. O diretor de aldeia reclama da ilegalidade deste termo, pois o irmão do índio está “preso na cadeia desta cidade” (ibid.: id.). O despacho do responsável pelo caso é claro, Francisco deve voltar a aldeia, porém outro índio será escolhido para auxiliar o trabalho do diretor.

69 A deserção, agora com caráter mais coletivo, é fruto de mais uma querela no início da década de 1790. Moradores da antiga aldeia e atual vila de São José reclamam do não cumprimento do segundo capítulo do Diretório o qual prescreveria que na passagem de aldeia a vila as incumbências ligadas à justiça dos índios ficariam, em primeira instância, encarregada dos “juizes ordinários, e vereadores e mais pessoas da justiça” (ibid.: 82). O diretor dos índios, no entanto, conforme o relato, parece não estar obedecendo essas determinações: (…) tem dado ocasião a deserção dos índios que constam da inclusa lista, horrorizados dos cruéis castigos que recebem do Diretor, que sem atenção ao mesmo capitulo anteontem a sua jurisdição a aquela, que se acha conferida as justiças, quando de aldeia se passa a vila, e além dos castigos que recebem, são constrangidos pelos dízimos a pagarem ao Diretor a seu arbítrio, e não a proporção de suas limitadas lavouras, e por tudo não só tem desertado os que se nomeiam como consta de outros muitos, que pretendem fazer (…) (ibid.: 82).

A deserção nesta situação é utilizada de forma generalizada como método para escapar dos desmandos do diretor da aldeia. Ao todo consta numa lista anexa ao queixume a relação de trinta e duas famílias inteiras que deixaram o aldeamento e, com se vê na citação supra, as ameaças de novas deserções continuavam. Nota-se, a partir disso, a não aplicação efetiva na capitania de São Paulo do Diretório num capítulo claramente benéfico para as populações indígenas aldeadas. A procura de uma justiça mais livre das pressões internas existentes no âmbito das aldeias parece ser um ideal indígenas sustentado desde o tempos mais remotos, os quais a documentação analisada permite afirmar. Diante de casos aparentemente insolúveis no concernente às instâncias de juízo, os índios normalmente recorriam a deserção generalizada como instrumento de rebelião contra os autores dos constrangimentos. Cabe ressaltar, contudo, como no caso específico da aldeia de São José, as deserções demostram de certa forma a coesão interna dos índios nos aldeamentos, pois normalmente eram realizadas por famílias inteiras e por um número considerável delas juntas. Ainda tecendo considerações sobre a situação de São Paulo, um instrumento que nos auxilia muito, como já dissemos, são as sete listas contidas no final da documentação. Contendo uma série de dados importantes sobre os aldeados instalados em seus respectivos fogos, podemos utilizá-las para discorrer a respeito das famílias indígenas nos aldeamentos. Nelas normalmente constam o nome cristão do aldeado, sua idade, seu estado (solteiro, casado ou viúvo), sua naturalidade, seus ofícios, dentre outros dados. Outro dado relevante que ainda nos trazem as listas das quais falamos acima, são indicações que dizem respeito aos agregados dos fogos das aldeias. Somente em Pinheiros não há

70 qualquer indicação sobre os agregados. Assim, por meio confecção da tabela abaixo, conseguimos traçar uma espécie de perfil do sujeito classificado com agregado num aldeamento. Pois bem, geralmente, como atesta a tabela abaixo, os agregados eram menores de idade, com predominância para o lado masculino, ou mulheres solteiras entre os 14 e 39 anos. Cabe ponderar, nesse sentido, que são poucos os agregados que ultrapassam a casa dos 39 anos de idade. Outro detalhe que deve ser ressaltado, não constante na tabela, é o fato de 10% da população da aldeia da Escada ser composta de agregados em sua maioria também menores de idade. Tabela 2 Números de agregados nas aldeias de São Paulo33 Agregado Casado Solteiro Viúvo Menores (14 anos) Não consta (maiores) Total

Masculino 3 10 3 22 3 41

Feminino 3 20 4 15 7 49

Total 6 30 7 37 10 90

Fonte: BDAESP 1948: 101-224

É difícil fazer maiores especulações sobre os dados acima, mas podemos lançar algumas hipóteses iniciais na tentativa de desvendar quem eram esses indivíduos inseridos no interior dos aldeamentos e classificados com agregados em seus respectivos fogos. Normalmente as mulheres solteiras entram nos fogos solitárias, ou seja, não há no mesmo fogo nenhum outro agregado. Já os menores parecem entrar em grupo, talvez de irmãos, com idade na descendência típica. Quando entram esses grupos de menores, muitas vezes há também outros agregados solteiros no mesmo fogo, fato que corrobora para tese do grupo de irmãos. Esses dados podem indicar tanto fenômenos de incorporação dos chamados “índios bravos” ao aldeamento ou a saída e/ou mortalidade dos cabeças dos casais dos aldeamentos deixando seus para trás. Mas, pendendo nossa análise para a primeira hipótese, podemos dizer que os sujeitos que entravam nas aldeias oriundos do sertão eram basicamente menores ou mulheres solteiras. Já os indivíduos classificados com ausentes de suas respectivas aldeias, como vemos na tabela abaixo, também indicam uma série de fatos curiosos. Para as cinco aldeias nas quais há

33

Referente às listas das seguintes aldeias no final do século XVIII e princípio do século XIX: Barueri, Embu, Escada, Itapecerica, Peruíbe. A aldeia de Pinheiros é a única onde não s

71 registro da existência de índios ausentes, nota-se variações no que diz respeito a porcentagem da população ausente perante a população total da localidade. Em Escada e Itaquaquecetuba os ausentes correspondem a cerca de 5% da população, enquanto em Barueri, Embu e Pinheiros os ausentes são em maior número, chegando a 10% da população total da aldeia. No que diz respeito às localidades listadas como rumo desses sujeito em saída do aldeamento destacam-se mais lugarejos situados no interior paulista. Aparecem, desses modo, Parnaíba, Campinas, Sorocaba e Soroca-mirim como localidades para onde se dirigem mais freqüentemente os índios que saem dos aldeamentos. Cita-se, além disso, fora das delimitações do atual interior paulista, Curitiba, Rio de Janeiro, Cuiabá e Minas. Tabela 3 Ausentes das aldeias de São Paulo Aldeia Fugido Barueri 32 Embu --Escada --Itaquaquecetuba --Pinheiros --Total 32

Desertor ------2 --2

S/ licença 19 25 4 --13 61

C/ licença 5 --1 --4 10

Não consta 1 1 7 16 1 26

Total 57 26 12 18 18 131

Fonte: BDAESP 1948: 101-224

O mais curioso, no entanto, são o número de fugidos na aldeia de Barueri e o número de saídos sem licença em todas as aldeias, excluindo-se Itaquaquecetuba. Inúmeras famílias fogem de Barueri nessa época constante na lista o que sugere uma certa desagregação da aldeia. A maioria dessas famílias vai para regiões do interior paulista como Sorocaba, Itú e Campinas. Já os que saem sem licença de Barueri são jovens solteiros ou casais sem filho. O fato de saírem sem licença 61 índios listados, quase metade do total de ausentes, indica uma certa atitude de autonomia dos índios perante aos agentes da colonização que controlavam essas saídas. Tudo isso aponta para existência nos aldeamentos de uma dinâmica na qual os índios não achavam necessário comunicar sua saída para as autoridades coloniais responsáveis.

72 Conclusão

73 Fontes: Boletim do Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo. 1948. São Paulo: Secretaria da Educação, Tempo Colonial, Maço 2, Volume 8. SILVA, J. N. de S. e. 1852. Memória histórica e documentada das aldeias do Rio de Janeiro. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 17, p. 109-552. Referências bibliográficas: ALBERT, B. 2002. O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da natureza (Yanomami). In: ALBERT, B.; RAMOS, A. R. (orgs.). Pacificando o Branco. São Paulo: Editora Unesp, p. 239-274. ALMEIDA, M. R. C. de. 2001. Senhores das terras e da serra: os índios e as disputas agrárias nas aldeias do Rio de Janeiro colonial. In: FRAGOSO, J.; MATTOS, H. M.; SILVA, F. C. T. da (orgs.). Escritos sobre história e educação. Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, p. 225-46. _____. 2003. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. AMOROSO, M. R. 1998. Catequese e evasão: etnografia do Aldeamento Indígena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese de doutoramento, Universidade de São Paulo. CABALZAR, A. 1999. O templo profanado: missionários e a transformação da maloca tuyuka. In: WRIGHT, R. (org.). Transformando os deuses: os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, p. 363-98. CARVALHO, M. R. G. de; DANTAS, B. G.; SAMPAIO, J. A. L. 1998. Os povos indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, M. C. da. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 431-456. CASTRO, E. V. de. 2002. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, p. 181-264. CANABRAVA, A. P. 2005. Uma economia de decadência: os níveis de riqueza na capitania de São Paulo. In: História econômica: estudos e pesquisas. São Paulo: Unesp. DUMONT, L. 1997. Homo hierarchicus. São Paulo: Edusp.

74 FARAGE, N. 1991. As muralhas do sertão: os povos indígenas do Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra. FERNANDES, F. 1970. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. São Paulo: Pioneira. GONZÁLEZ, R. R. 2002. La política legislativa com relación a los indígenas sur del Brasil durante la Unión de las Coronas. In: Revista de Indias, v. LXII, n. 224, p. 17-39. GRUZINSKI, S. 2003. A colonização do imaginário. São Paulo: Companhia das Letras. HEMMING, J. 1999. Os índios e a fronteira no Brasil colonial. In: BETHELL, Leslie. (org.) América Latina Colonial. São Paulo: Edusp, v. 2, p. 423-469. MARCHANT, A. 1980. Do escambo à escravidão. São Paulo: Ed. Nacional. MARCHIORO, M. 2002. O inimigo em pedaços: um ensaio de discussão bibliográfica acerca dos Tupi-Guarani. In: Revista Vernáculo, n. 6-7, p. 20-52. MELIÀ, B. 1988. La poblacion Guarani del antiguo Guairá en la história primeira. In: El Guarani conquistado y reducido. Asuncion: Biblioteca Paraguaya de Antropologia, p. 60-89. MENEZES, C. 1999. Missionários e guerreiros: o apostolado salesiano entre os Xavante. In: WRIGHT, R. (org.). Transformando os deuses: os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, p. 309-42. MONTEIRO, J. 1995. Negros da Terra. São Paulo: Companhia das Letras. _____. 1998. Os Guarani e a história do Brasil Meridional. In: CUNHA, M. C. da. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 1998, p. 475-498. NEVES, L. F. B. 1978. O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Rio de Janeiro: Forense-Universitária. PASTORE, M. 1991. Trabalho forçado indígena e campesinato mestiço livre no Paraguai: uma visão de suas causas baseada na teoria da procura de rendas econômicas. In: Revista Brasileira de História, v. 11, n. 21, p. 147-85. PERRONE-MOISÉS, B. 1998. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, M. C. da. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 115-32. PETRONE, P. 1995. Aldeamentos paulistas. São Paulo: Edusp. POMPA, C. 2003. Religião como tradução. Bauru: Edusc.

75 QUEIROZ, R. C. de. 1999. A saga de Ewká: epidemias e evangelização entre os Waiwai. In: WRIGHT, R. (org.). Transformando os deuses: os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, p. 255-84. RAVAGNANI, O. M. 1996. Os primeiros aldeamentos na Província de Goiás: Bororo e Kaiapó na Estrada do Anhangüera. In: Revista de Antropologia, v. 39, n. 1, p. 221-244. SAHLINS, M. 1974. Economia tribal. In: Sociedades tribais. Rio de Janeiro: Zahar, p. 117-48. SCHWARTZ, S. B. 1988. Uma geração exaurida: agricultura comercial e mão-de-obra indígena. In: Segredos internos. São Paulo/Brasília : Companhia das Letras/CNPq, p. 40-73. _____. 2003. Tapanhuns, negros da terra e curibocas: causas comuns e confrontos entre negros e indígenas. In: Afro-Ásia, n. 29-30, p. 13-40. VIEIRA, A. s/d. Voto sobre as dúvidas dos moradores de S. Paulo acerca da administração dos índios. In: Obras várias. Lisboa: Livraria Sá da Costa, vol. 5, p. 340-58. VILAÇA, A. 1999. Cristãos se fé: alguns aspectos da conversão dos Wari (Pakaa Nova). In: WRIGHT, R. (org.). Transformando os deuses: os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, p. 131-54. WRIGHT, R. 1999. O tempo de Sophie: história e cosmologia da conversão baniwa. In: _____. (org.). Transformando os deuses: os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, p. 155-216.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.