FONTES E METODOLOGIAS DA HISTÓRIA DA ÁFRICA: RELAÇÕES ENTRE FONTES ESCRITAS, TRADIÇÃO ORAL E ARQUEOLOGIA

May 26, 2017 | Autor: Léo Vinicius | Categoria: African History
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Leonardo Vinicius Brisola Barbosa, Nº USP - 9372180 História da África – Marina de Mello e Souza FONTES E METODOLOGIAS DA HISTÓRIA DA ÁFRICA: RELAÇÕES ENTRE FONTES ESCRITAS, TRADIÇÃO ORAL E ARQUEOLOGIA

Introdução A história da África, apesar de nova em alguns aspectos, é uma disciplina que começa a existir já na Antiguidade, com a atividade de alguns autores gregos e árabes interessados em saber mais sobre o passado e o presente daquele misterioso continente de pessoas com pele escura. No século XV, por causa dos contatos euro-africanos, houve uma mudança no rumo da produção desses conteúdos históricos, que, passaram a contar com centenas de relatos e documentos escritos principalmente por missionários cristão. A partir do século XVIII, as grandes potências europeias com a intenção de um maior aproveitamento nos lucros das terras africanas, passaram a dar mais atenção ao continente; entretanto, essa atenção vinha mesclada com uma grande quantidade de racismo e intolerância, dando luz a uma crença generalizada que pode ser muito bem resumida pelas palavras de Hegel em sua Filosofia da História: “A África não é um continente histórico; ela não demonstra nem mudança nem desenvolvimento... (os povos negros) são incapazes de se desenvolver e de receber uma educação, eles sempre foram tal como os vemos hoje”1. Apenas a partir de 1948 a historiografia da África começa a se assemelhar com a do resto do mundo e a ser encarada como algo que pode ser estudada tanto quanto qualquer outra disciplina histórica, no entanto, com a necessidade de um uso mais diversificado das fontes. Por sua “falta” de fontes escritas e seu suposto isolamento geográfico, o continente africano esteve por muito tempo relegado a ser considerado uma região pré-histórica, no entanto, o que os historiadores da época ignoravam é que existem diversas possibilidades de compreensão da história escondidas em diferentes áreas, como a arqueologia, a tradição oral, a linguística, e até mesmo alguns relatos escritos (principalmente muçulmanos), que eram em sua maioria desprezados e taxados como inconfiáveis.

1

HEGEL, Georg Wilhelm Friedich. The Philosophy of History. Kitchener: Batoche Book, 2001. p. 113

Com base na trajetória da história do continente africano e no preceito de que a história pode ser feita de diferentes maneiras através de diversos tipos de fonte, essa pesquisa busca compreender e comparar esses métodos de forma panorâmica, analisando suas vantagens, desvantagens e contextos em que começaram ou deixaram de se popularizar.

1. As fontes escritas Considerada um dos maiores problemas do estudo da história africana, a escassez de fontes escritas foi considerada por séculos como a prova de que as sociedades africanas não possuíam história, no entanto, isso não é verdade. A África, por ser um continente grande e com uma diversidade de culturas e sociedades maior ainda, possui diferentes formas e recorrências de fontes escritas por região e época, por isso podemos dividir as fontes entre as escritas antes do século XV e as escritas após o século XV. 1.1. As fontes escritas anteriores ao século XV As fontes escritas antes da chegada dos europeus no continente africano geralmente seguiam duas tendências: narrativas (crônicas, anais, relatos de viagens, obras literárias, etc.) e arquivistas (documentos particulares, estatais e jurídico-religiosos). Essas fontes podem ser divididas em três épocas diferentes: a Idade Pré-islâmica (até 622 d.C.), considerada a época com menor recorrência de documentos escritos e de menor importância; a primeira Idade Islâmica (622 – 1050), que vem com a conquista árabe e o estabelecimento do império almorávida e traz um crescimento de fontes escritas em árabe, principalmente narrativas; e a segunda Idade Islâmica (século XI ao século XV)2, onde as fontes escritas antes do século XV encontraram seu ápice, contando com diversos cronistas que escreviam os fatos observados com grande riqueza de detalhes e confiabilidade. Em relação a essas fontes, também é muito importante entender as diferenças que ocorriam em cada região. Enquanto partes do continente como o Egito e o norte da África estavam repletos de influência muçulmana e europeia, as regiões como a África central e meridional estavam mais isoladas desses povos com escrita, acarretando em uma quantidade muito maior de fontes nas primeiras do que nas outras. O problema da pequena

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Divisão proposta por Hisham Djait em As fontes escritas anteriores ao século XV, publicado no História Geral da África I Metodologia e Pré-história da África, Editora Ática S.A: 1980.

quantidade de documentos escritos, adicionado ao problema linguístico dos europeus em relação à eles (grande parte desses escritos estava em árabe, egípcio antigo, copta e outras línguas específicas da região), acabou por gerar preconceito e consequentemente uma renúncia ao uso desse tipo de fonte por séculos.

Figura 1 - Exemplo de manuscrito de um viajante árabe: The Travels (Rihla) of Ibn Jubayr (875/1470, Mecca). Leiden University Library (OR.320, fols. 2-3)

1.2. As fontes escritas a partir do século XV O motivo da divisão histórica das fontes entre “antes do século XV” e “após o século XV” está na diferença entre suas características e na quantidade em que foram produzidas. Enquanto a primeira é conhecida como “a época das fontes árabes”, graças ao grande número de suas fontes serem escritas por muçulmanos, a segunda pode ser considerada “a época das fontes europeias”, pelo declínio das fontes árabes e a ascensão das escritas europeias e nativas. Do mesmo modo que as anteriores ao século XV, as fontes escritas modernas, por terem uma distribuição irregular quanto ao tempo, espaço, caráter, origem e língua são muito difíceis de generalizar, então para melhor compreensão as dividiremos por suas origens.



As fontes europeias;

A partir do século XV, encontramos um vasto volume de literatura portuguesa, holandesa, francesa, inglesa e alemã sobre a África, principalmente na costa ocidental e em maior parte da costa oriental. Escritos principalmente por comerciantes, missionários, viajantes e colonizadores, a maior parte das fontes europeias até o século XIX preocupava-se ou com a exaltação do que era exótico e diferente ou com relatos de perigosas e impressionantes aventuras; esses relatos eram quase todos repletos de panfletagens, preconceitos e graves incompreensões dos aspectos culturais e das estruturas internas das sociedades relatadas. No entanto, esses relatos ainda são fontes históricas muito importantes para o estudo da história da África, pois, apesar de preconceituosos e exagerados (coisas que afinal deveriam ser dribladas por historiadores conscientes), esses documentos podem complementar muitos aspectos da história com suas requintadas descrições de costumes, comportamentos, cerimônias, vestimentas, técnicas de produção, datações, entre outras coisas. 

As fontes nativas;

As fontes históricas escritas por africanos até o século XX estão em sua maioria em árabe e mostram pela primeira vez uma visão da história da África que não estivesse contaminada por etnocentrismos europeus ou muçulmanos. Representada principalmente por crônicas, a historiografia genuinamente africana possui as mesmas desvantagens das fontes narrativas normais, contudo, possuem uma vantagem incomparável: elas representam a versão africana da história, que muitas vezes passou despercebida e ignorada entre a grande quantidade de versões estrangeiras da mesma. Juntas, as fontes escritas representam uma parte muito importante das fontes utilizáveis para o estudo histórico da África, entretanto, embora abundantes, elas formam apenas uma peça do quebra-cabeças, pois sua utilidade está comprimida apenas a regiões e épocas específicas para o estudo de assuntos específicos que geram um conhecimento muitas vezes incompleto e deficiente, destacando o exemplo das sociedades iletradas, que apesar de possuírem a sua própria história, muitas vezes não são contempladas com as fontes escritas.

2. A tradição oral A tradição oral pode ser definida como um testemunho transmitido oralmente de uma geração a outra, e é, entre os três tipos de fontes a serem tratadas neste trabalho, a fonte mais complicada de se trabalhar, tanto por sua complexidade filosófica e metodológica, quanto pela árdua crítica histórica, literária e sociológica que deve ser subjugada a fim de obter-se um conteúdo concreto e próximo da realidade. As fontes orais são geralmente adquiridas após uma série de pesquisas e entrevistas com pessoas especiais e confiáveis de certas sociedades, os tradicionalistas. Esse tipo de fonte é especialmente útil quando tratamos de sociedades iletradas, pois nelas existe uma grande espiritualidade no poder da palavra, e assim as fontes adquirem maior credibilidade. Assim como qualquer outro tipo de fonte, a tradição oral também deve ser submetida a certos tipos de crítica e decodificações. As fontes orais normalmente se constituem de mitologias, contos épicos, poemas e músicas, por isso possuem a história em forma de códigos que necessitam ser, além de decifrados, também devidamente entendidos em seus contextos. Para este entendimento, o historiador deve primeiro ter um grande conhecimento da sociedade, da língua e dos personagens envolvidos na pesquisa e ter também conhecimento das metodologias do estudo da história oral, de modo que não se perca no meio de uma infinidade de informações sem saber o que usar ou como usar corretamente. Além dessas dificuldades, a tradição oral possui também alguns pontos negativos específicos de seu método. Com a sua utilização pode-se citar diversos problemas cronológicos, pois as unidades de tempo usadas pelos tradicionalistas responsáveis pelos relatos são em sua maior parte relativas a sua própria cultura, o que pode trazer muitas dificuldades ao tentarmos relacionar os relatos com a história de outras sociedades e culturas. Outro aspecto negativo seria a dificuldade de analisar, com a ajuda dessas fontes, mudanças inconscientes ou muito lentas na estrutura de uma sociedade, pois pelas tradições orais serem focadas principalmente em eventos únicos como a chegada de um novo líder ou a migração de um povo, as transformações mais gerais como mudanças sutis ocorridas em uma religião acabam passando despercebidas. No entanto, apesar dessas dificuldades legítimas, antes do século XX não faltavam falácias que atentassem contra a credibilidade das fontes orais; ao ser considerada não confiável por ser tendenciosa, funcional ou passível de erros, esquecia-se que toda fonte

histórica é passível das mesmas coisas, pois como disse Hampaté Bâ: “O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que um testemunho humano, e vale o que vale o homem”3. Hoje em dia é impossível descartarmos a importância que possui a tradição oral para o estudo histórico da maior parte da África subsaariana, tanto pela escassez que ela possui de importantes fontes escritas, quanto pela riqueza de conteúdo que ela pode possuir se retirada dos informantes certos e usada de forma certa pelos historiadores e especialistas envolvidos. Uma metodologia aplicada a história da África que possui um grande potencial e vem produzindo grandes frutos é a “verification approach”, uma técnica interdisciplinar para o estudo da história da África que consiste na afirmação de uma teoria pela comparação e confirmação entre no mínimo duas fontes independentes, por exemplo, uma tradição oral pode ter sua verdade confirmada com vestígios arqueológicos, sem que para isso uma precise ser considerada auxiliar da outra, pois ambas as ciências podem e devem se complementar.

Figura 2 - Exemplo de um tradicionalista "griot" em uma performance: A griot in Mali performs. Laura Boulton collection, 1934

3

HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva in História Geral da África: I. Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982. p. 181.

3. A arqueologia O terceiro e último tipo de fonte a ser explorado nesta pesquisa pode ser considerado o mais “científico”, ou pelo menos o mais próximo das ciências naturais e com a maior probabilidade de acertos no campo em que é devidamente usado, a arqueologia. Usando técnicas já consagradas na arqueologia mundial, a arqueologia da África foi e ainda é considerada por muitos o melhor método de estudo da história da África pré-escrita, por seus complexos métodos de datação, prospecção e conservação, que levam muitas vezes a resultados precisos do passado das sociedades estudadas. Entretanto, assim como os outros tipos de fonte, a arqueologia das diferentes regiões africanas deve ser dividida entre os seus devidos contextos regionais. Enquanto os esforços desta ciência estiveram até as últimas décadas do século XIX voltados exclusivamente para as civilizações do norte da África, consagrando famosos arqueólogos como Jean-François Champollion e Flinders Petrie, a arqueologia das regiões central, ocidental e oriental foi em sua essência relegada ao anonimato.

Figura 3 - Cabeça de bronze de um Obá do Benim, século XVI. The Michael C. Rockefeller Memorial Collection, Bequest of Nelson A. Rockefeller, 1979 (1979.206.86)

Seguindo basicamente os mesmos processos técnicos, a arqueologia no território africano esteve, inicialmente, atualizada com o resto da arqueologia do mundo: tinha como principal propósito o descobrimento de artefatos antigos, raros ou esteticamente belos (como as famosas cabeças de bronze do Benim). No entanto, com as mudanças na filosofia da arqueologia, foi acentuada sua necessidade na contribuição para as ciências em geral, sendo a partir daí usada como técnica em pesquisas sobre a história social,

econômica e cultural da África. Para essas pesquisas foi muito importante o desenvolvimento da etnoarqueologia, uma disciplina que mistura técnicas usadas normalmente na antropologia, como estudos das sociedades do presente e entrevistas com moradores das regiões de estudo (usando as tradições orais), com as já conhecidas técnicas arqueológicas, servindo para facilitar o encontro de sítios arqueológicos e o entendimento dos artefatos encontrados. Contudo, a arqueologia, como todos os outros tipos de fontes, também possui seus pontos fracos. Através dela, é muito difícil decifrar alguns aspectos muito objetivos de fatos ocorridos no interior de algumas sociedades, como nomes de agentes ou sistemas sociais e políticos. Apesar de ser possível entender alguns vários aspectos da história africana através da arqueologia, para preenchermos os buracos deixados, tanto pelas tradições orais e fontes escritas quanto pela arqueologia, é sempre interessante optarmos pelo verification approach, pois ele permite uma concreta comparação e uma possível confirmação da verdade dos fatos históricos retirados dos diferentes tipos de fonte.

Conclusão Um dos principais problemas epistemológicos para os historiadores da África se constitui na interdisciplinaridade necessária para o entendimento de seu objeto de estudo. Além das fontes principais já analisadas, ainda existem diversas outras técnicas e metodologias que permitem o aprofundamento na interpretação dos dados adquiridos pelas fontes, entre elas temos a linguística histórica, que possibilita analisar possíveis descendências ou unidades culturais entre povos de diferentes regiões, a paleobotânica, que permite revelar atividades de domesticação de plantas alimentícias, a egiptologia e paleografia, que ajudam a decifrar pictogramas e signos utilizados por algumas sociedades da África negra e a antropologia e as ciências social e política, que permitem redefinir o saber histórico e cultural de estruturas sociais diferentes das sociedades ocidentais. A necessidade da união de diversos tipos de ciências – exatas, naturais, humanas e sociais – dá a história da África uma complementaridade única, contando com informações trazidas por tradições orais, raros manuscritos árabes, escavações arqueológicas, relatos de viajantes europeus e outros, que unidos têm a possibilidade de formarem um quebracabeças completo da história. Quando se trata da história da África, não podem existir

fronteiras entre suas disciplinas de estudo, por isso é impossível relegar qualquer ciência à “auxiliar” ou qualquer tipo de fonte a “não utilizável”. É nas técnicas de comparação e complementação entre fontes que a história da África encontra seu potencial.

Bibliografia DJAIT, Hisham. As fontes escritas anteriores ao século XV in História Geral da África: I. Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982. FAGE, John Donnelly. Evolução da historiografia na África in História Geral da África: I. Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982. HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva in História Geral da África: I. Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982. HEGEL, Georg Wilhelm Friedich. The Philosophy of History. Kitchener: Batoche Book, 2001. HRBEK, I. As fontes escritas a partir do século XV in História Geral da África: I. Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982. ISKANDER, Z. A arqueologia da África e suas técnicas Processos de datação in História Geral da África: I. Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982. KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral in História Geral da África: I. Metodologia e Préhistória da África. São Paulo: Ática, 1982. OBENGA, Théophile. Fontes e técnicas específicas da história da África in História Geral da África: I. Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982. PHILLIPSON, David W. African Archaeology. New York: Cambridge University Press, 2000. SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia in História Geral da África: I. Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982.

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