Fora da filosofia: As formas dum conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze

July 18, 2017 | Autor: Eduardo Pellejero | Categoria: Gilles Deleuze, Maurice Blanchot, Michel Foucault, Jean Paul Sartre, Filosofía
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«Fora» da filosofia As formas de um conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze

Editado por Golgona Anghel e Eduardo Pellejero

Vol. I

Edição: Golgona Anghel e Eduardo Pellejero. Titulo: «Fora» da filosofia. As formas de um conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze Capa: Manuel Anghel

Data: Janeiro de 2008 ISBN: Depósito legal:

Este livro foi realizado no âmbito do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (POCTI-ISFL-20-678).

«Fora» da filosofia

«O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação», «Deleuze, ‘Fora’ da literatura e com a casa tomada», «Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente» e «De Sartre a Deleuze: Onde é que pára o compromisso literário?» foram apressentados no I Workshop – «Fora» da Filosofia, organizado pelo Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, em colaboração com o Centro de Centro de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e o Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

«A clausura do fora» foi publicado antes em: Peter Pál Pelbart, Da clausura do fora ao fora da clausura - Loucura e desrazão, São Paulo, Brasiliense, 1989.

«E cantam na planura» foi publicado em espanhol em: Archipiélago, Cuadernos de Crítica de la Cultura, nº 17, OctubreDiciembre 1994.

A abóbora que se tornou cosmos A exposição do pensamento ao fora da filosofia Freedom fighters come and go Bloody, righteous - and mentally slow We're out of work We're out of time We're out of luck We're out of line Now we're on the borderline we've really gone and done it this time People say it could never happen here But this is a strange frontier. Roger Taylor, Strange Frontier

Duma maneira ou outra estamos todos fora. Minados por deslocamentos linguísticos, culturais ou políticos, os nossos lugares de enunciação parecem cada vez mais precários no quadro do sistema que aspira à totalização do real pela representação (duma representação que pretende regular o que significa pensar, criar, lutar, viver). E talvez seja nesse sentido que devemos ler a afirmação de Herberto Hélder: todos os lugares estão no estrangeiro (e, seguramente, a de Deleuze: cada um tem o seu sul e o seu terceiro mundo). Desejar numa língua, escrever noutra, pensar numa terceira (viver na que nos seja possível). E fazer filosofia, claro, na língua que lhe é própria (as alfândegas filosóficas funcionam nisto muito melhor do que as nacionais ou comunitárias: há que adequar-se a um modelo, inscrever-se numa tradição, para ter direito a exercê-la; o resto fica na fronteira). Antes de começar sequer, impõe-se uma forma, um conteúdo. Antes de estalar a segunda guerra mundial no seu país, o escritor polaco, Witold Gombrowicz, sobe ao bordo dum transatlântico via Buenos Aires. A viagem atrasa-se 24 anos em terras argentinas. As conversações no Café Rex, o xadrez e a pornografia, as mulheres ricas que acreditam na sua obra, as expe-

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riências homossexuais e sobretudo a língua do exílio, o castelhano, constroem as palavras e a fama de W., Toldo, Witoldo. Kafka era judeu e checo mas tinha que escrever em alemão. Kundera ainda não foi traduzido integralmente do francês para a sua língua materna e é o escritor checo mais famoso do momento embora a academia de Praga se tenha vindo a recusar até agora a outorgar-lhe o prémio mais importante de literatura daquele país. Outros escritores de expressão francesa mas de origem alheia, os romenos Gherasim Luca e Eugen Ionescu fizeram das suas dificuldades linguísticas, da impossibilidade de escrever em francês (por isso mesmo inevitável fazê-lo) um lugar para questionar os próprios limites da literatura. Luca insiste num gaguejar criativo enquanto Ionescu revela que foram precisamente as tácticas exaustivamente repetitivas e mecânicas dos manuais de língua que o fizeram levar ao absurdo o teatro na língua de Racine. Cioran nunca teria sido conhecido, quiçá, se não tivesse abraçado as formas dessa língua maior. Um contemporâneo seu, Celan, anagrama do romeno Ancel, seguiu o mesmo caminho do exílio francês mas escreveu em alemão, escreveu tanto que se tornou num dos mais importantes poetas modernos da língua alemã. E é preciso mesmo ter uma anticabeça e um coração de gás para abrir a página do dicionário, espetar um estilete sobre a palavra “dada” e assim nomear um movimento de vanguarda. Sami Rosenstock, o romeno judeu, o homem aproximativo conhecido nas noites de Zurique como Tristan Tzara, teve esta audácia e assim nasceu o dadaísmo. Parece que é preciso, não só sair para fora de si para alimentar a sua própria voz mas pactuar com o fora, agenciar o outro com o outro, fazer corpo com essas linhas intempestivas e domar essa geografia onde o tempo se desconhece por um momento na história, abrindo o espaço para o surgimento do novo. Duma maneira ou outra estamos todos expostos ao fora. Não já o ser para a morte heideggeriano, mas o ser formatado a priori pela existência duma força plural e coextensiva da vida. Bichat, por exemplo, em vez de pensar a morte como fizeram os clássicos, como um ponto, converte-a numa linha que afrontamos continuamente, que trancamos até ao momento em que se

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acaba. É disso que se trata, enfrentar a linha do Fora, dobrá-la como quem fecha à chave os quartos da casa. 1 Recordando esta estética do fim derradeiro, Rilke conta num dos seus livros (Os cadernos de Malte Laurids Brigge) que em tempos imemoriais as pessoas levavam com elas a sua morte, assim como as ameixas levam dentro o seu caroço. Os adultos tinham uma grande e as crianças uma pequena. As mulheres andavam com ela no seio, os homens traziam-na sepultada no peito. Cada um tinha a sua morte e esta consciência dava-lhes orgulho, maquinava-lhes uma arte de (sobre)viver. No volume sobre Foucault, Deleuze parece contar a mesma história, aquela do tempo-morte que se transforma num Si. Isto é, o fora cria um dentro nas suas dobras, um dentro que se apresenta como resistência, presente, vida, individuação. Uma história semelhante deste tempo estranho parece funcionar no processo heteronímico pessoano. Não é Fernando Pessoa, o autor de Chuva oblíqua, que escreve. Ele suspende-se enquanto autor e passa a existir num plano virtual para deixar que a personagem do tempo das pirâmides, a Esfinge, vista a roupa do actual e se torne mais real que o próprio Pessoa, porque mais forte, mais fértil. De volta à filosofia, basta pensar as dificuldades que levantam qualquer tentativa de pensar por conceitos fora de Europa. É-nos permitido, no melhor dos casos, as veleidades da literatura, de uma certa literatura, legitimada pelos vagos prestígio do mágico (e inclusive na América anglo-saxónica, uma vez quebrado o cordão que o ligava à terra mãe – o círculo de Viena, a escola de Frankfurt – o pensamento perde o direito à filosofia e deve limitar-se aos guetos dos estudos culturais). Eis aqui duas maneiras de fechar o fora da filosofia na interioridade dos departamentos universitários ou nas marcas de família de um género. Há um pensamento do fora que segue sem ter direito a um lugar na filosofia, na literatura, nas artes plásticas; pensamento da loucura, da colónia, da minoria. Como em qualquer sociedade medieval, as mulheres da corte japonesa, embora muito privilegiadas em comparação com as das classes mais baixas, estavam sujeitas a uma série de regras e limites. Além de totalmente isoladas do mundo externo, elas

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também viviam limitadas pela própria língua, visto que desconheciam a escrita Kanji e o vocabulário importado do chinês pela linguagem culta, que era então de uso exclusivo dos eruditos de sexo masculino. Apesar das circunstâncias, coube a um grupo de nobres japonesas talentosas usar a escrita fonética Kana para dar assim origem à literatura japonesa e inventar uma grafia que deu depois lugar à invenção de dois alfabetos usados hoje em dia: hiragana e katacana. A escritora japonesa, Murasaki Shikibu (978? - 1026?), é o nome mais eminente deste período. O seu livro, Genji Monogatari ou a História de Genji, é o primeiro romance da literatura japonesa. Harold Bloom confere-lhe o poder fundacional do Dom Quixote. Camille Caudel passa despercebida na história da arte devido a sua doença mental surgida no seguimento da ruptura da sua relação com Rodin. Colaboradora e amante do escultor durante mais de quince anos, a sua prolífica produção artística foi ignorada completamente numa época em que as mulheres eram circunscritas às limitações duma minoria negligenciável. A sua psicose provocada pela separação de Rodin reforçou o seu isolamento e favoreceu a névoa em que se perdió a sua obra. Poucos sabem hoje que muitas foram as esculturas trabalhadas em comum com Rodin e que a Camille Claudel tinha a exímia habilidade para esculpir as mãos e os pés. Contudo, o tema do fora retoma de alguma maneira o problema da crítica, só que o faz de tal modo que não a reformula sem propor a través desse movimento uma extensão criativa. Um pensamento do fora, de facto, seria aquele que não colocasse a pergunta sobre as condições de possibilidade da experiência (análise) sem questionar-se ao mesmo tempo sobre as condições de possibilidade duma experimentação que teria por objecto pensar aquilo que escapa às primeiras (diagnóstico). Trata-se, então de desenvolver as armas, os meios de expressão necessários para pensar aquilo que escapa à representação (de facto e de direito). Em vez de resposta, um eco: «a arte não mostra o visível, ela torna visível». É o grito de Klee contra a mimese e as teorias clássicas da representação. Não é um sentido prévio que mostra

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o movimento das coisas, é o devir das coisas que se constituem como movimento de sentido. E já Foucault assinalava como Marx, Nietzsche e Freud nos abriram novas possibilidades de interpretação 2 , no mesmo sentido em que Deleuze dirá que dispomos hoje de meios de penetrar o sub-representativo (que através de Freud dispomos, por exemplo, de uma nova noção do inconsciente 3 ), marcando nessa direcção uma das linhas programáticas da filosofia (o filósofo como aquele que torna pensáveis as forças que ainda não são pensáveis) 4 . Sartre, Blanchot, Foucault, Deleuze, são os nomes que marcam esta linha menor da filosofia que vem dar uma continuidade paradoxal a este exercício de pensamento que se situa nos limites da representação, da racionalidade, da saúde: Sade, Hölderlin, Nietzsche, Mallarmé, Artaud, Bataille, Klossowsy. E, inclusive se não podemos afirmar para além de qualquer suspeita, que “atracção é para Blanchot o que, sem dúvida, é para Sade o desejo, para Nietzsche a força, para Artaud a materialidade do pensamento, para Bataille a transgressão” 5 , a verdade é que na apropriação de todos os conceitos se volta a pôr em jogo, cada vez, a sobredeterminação do pensamento pelo possível (formal, transcendental, histórico, material), assim como as eventuais linhas de fuga. Para além, da conquista laboriosa da sua unidade, a exposição da filosofia à erosão indefinida do fora, leva desta maneira o pensamento a pôr em causa os seus pressupostos e colocar em questão a (im)possibilidade radical do seu incessante recomeço. A aposta do jogo é a sorte de outro jogo (quando já não parece possível continuar a jogar); é a perversão de um teatro que, à força de má vontade, renova a esperança (desesperada) de encontrar uma saída. Ao abrir-se ao que está além das suas determinações históricas e transcendentais, a filosofia procura assim que a cruel indiferença do caleidoscópio ou o golpe cruel dos dados sobre a mesa (como um ponto de crise, de fusão ou de congelação, de ebulição ou de cristalização), revele as virtualidades as virtualidades latentes de um mundo que se fecha sobre a actualidade mais claustrofóbica. O pensamento abraça assim, o mistério da criação, como quem diz o “mistério da fé”

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(pelo menos se nos situamos no horizonte teórico que Deleuze propõe na sua leitura de Peguy), isto é, o assombro radical de que “um problema do qual não se via o fim, um problema sem saída, um problema em que todo o mundo estava estagnado, de repente deixe de existir e nos perguntemos de que é que estamos a falar”. Peguy, de facto, assinalava que os acontecimentos, como certos estados de sobrefusão, só se precipitam ou cristalizam pela introdução de um fragmento de acontecimento futuro, por forças que se apropriam de um fenómeno, de um valor, de uma representação, diria Nietzsche, para lhe dar outro sentido, outra essência, outra vida – pela gravitação, generalizemos, do que nesta artificial família de filósofos ganhará o nome do fora. Irrupção que faz com que, de repente, sem ter acontecido nada de relevante, se esteja «num povo novo, num novo mundo, num novo homem», e que «pensar seja de novo possível no pensamento e que valha a pena pensar». E, neste sentido, poderíamos parafrasear Foucault e dizer que a filosofia não é então nem a verdade nem o tempo, nem a eternidade nem o homem, senão a forma sempre renovada do fora. Uma vez assentes estes elementos minimais para a problematização do conceito, da figura ou da gravitação do fora, as conexões se multiplicam e com elas se vai povoando um plano de singularidades ideais. Os personagens são velhos amigos da tropa (alguns, inclusive, partilharam a territorialidade primitiva do bairro e da juventude). Retratamos a seguir as suas apresentações formais. Patrícia San Payo situa o pensamento do fora para além da filosofia e do conceito; recuperando a escrita de Blanchot, afirma a experiência do fora como a experiência da arte por excelência; “olhar por intermédio do qual o Outro se dá a conhecer sem contudo perder a sua alteridade e exterioridade”. Contramundo cuja presença assombra o pensamento e o incita a pensar (actuar), no mesmo sentido, talvez, que o fantasma do seu pai mobiliza Hamlet na procura de uma justiça impossível de realizar (espectros da loucura, da perversão, do menor em geral, diríamos nós, pensando em Derrida, sem querer com isso politizar em demasia a sua leitura de Blanchot.)

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Ao levar-nos intempestivamente ao domínio da música, José Luis Pardo lembra-nos outro nome deleuzo-guattariano para o fora: a música, que desde uma perspectiva que procura pôr em questão a filosofia heideggeriana, constitui o fora da linguagem. A Heidegger lhe devemos, de facto, uma curiosa cantilena que “reza assim: a liguagem é a casa do ser (deixem-se de músicas, nunca sairão da linguagem) (...) Fora da linguagem nada é. De modo que a suposição mais prudente, por muito aberrante que possa parecer, seria que habitamos uma casa que não tem exterior, que vivemos confinados num interior sem exterior no qual jamais entrámos e do qual jamais – nem sequer pelo negro buraco da morte – sairemos”. A esta filosofia que pretende fazer coincidir o fim da metafísica com o fim da distinção entre interior e exterior sobre a base de uma linguagem autêntica, o pensamento deleuziano contrapõe uma arte de inventar ladainhas (conceitos) a parti do caos (fora), isto é, um pensamento que pela amplificação e o desdobramento do ritmo a-significante das forças sub-representativas faz estremecer a linguagem para além das condições transcendentais da sua possibilidade: “Uma música que não se pode imaginar nem recordar, trautear nem medir. A música imensa da natureza sonora, da qual a «música humana» não é mais que uma pequena parte, uma pequena ilha ou arquipélago de sons bem medidos e «agradáveis»”. Pardo não só reconhece uma resposta à filosofia heideggeriana, como também ao mesmo tempo dá um sentido (produtivo) à equiparação da arte à música (como conceito filosófico e ideia de arte) que Rancière sublinhava em «Deleuze e a literatura»: “precisamente porque a natureza se tornou insensível e inimaginável pode a filosofia assenhorar-se do problema de como o imensoinsensível (os ritmos inimagináveis que não se podem medir, que não se podem ouvir) pode chegar a devir cantilena, de como o inaudível devém audível, de qual é a mathêsis mediante à qual a própria Phisis devém sensível e sentida”. Numa lectura original da História da Loucura de Foucault, com Blanchot a cruzar os eixos, Peter Pal Pelbart afirma que a loucura (como por outra parte a produção de minorias, estrangeiros, etc.) responde à exigência histórica de enclausurar o Fora, que é assim dobrado numa série de “forças encarceradas em

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túmulos tristes (loucos crónicos, peças de museu)”. Peter Pelbart não faz isso sem sembrar-nos que, para além da produção do louco nos hospitais (como das minorias em guetos, os estrangeiros nas fronteiras, etc.), o fora sobrevive como uma potência do pensamento (e, acrescentemos, da acção), na figura da «desrazão insurrecta» que “como neutro, anula o tempo, dissolve a história, desbarata a dialéctica e a verdade, abole o sujeito e faz soçobrar uma ordem”. Esperança numa aliança entre razão e desrazão que não desemboque na loucura, na alienação ou no enclausuramento, e por conta da qual se numera a força capaz de arruinar qualquer história (logo, as pretensões de totalização de todo diagrama de poder). Numa outra abordagem da obra de Foucault que sugestivamente, evita qualquer referência a «O pensamento do fora», José Luís Câmara Leme aproxima-se à consideração relativa à maneira como o fora é produzido por qualquer cultura que queira afirmar uma identidade. Qualquer cultura, neste sentido, define o seu interior pelo seu exterior (ao rejeitá-lo), a sua identidade por diferença (ao negá-la), produzindo assim um vazio no seu seio, uma exterioridade mais profunda que qualquer interioridade (que no caso do ocidente poder-se-ia definir-se em grandes traços pelo sonho, o sexo, a loucura e, principalmente, o oriente). A exposição desta estrutura estruturante que nos oferece Câmara Leme, vai, de todas as maneiras, para além da mera determinação de um caso de produção de um fora enclausurado; ao mesmo tempo, de facto, mostra a forma que pode tomar o pensamento do fora, pensamento que para além da filosofia, descobre o lugar precário desde o qual é possível rir de si próprio, isto é, das condições que nos constituem como sujeitos de saber e de poder (acrescentando-se assim à série de determinações análogas que encontramos noutros pensadores do fora: a inactualidade nietzscheana, o devir-menor deleuziano, a perspectiva exterior witoldiana). Por fim, nós mesmos decidimos cavalgar a linha do fora (eu segui o caminho mais curto), cada um à sua maneira, estabelecendo relações de força com outras forças. «Deleuze entre a Literatura e o Fora» procura explorar, sem trair o estrito princípio de imanência que rege o pensamento deleuziano, a possibi-

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lidade de uma abertura da literatura ao fora, capaz de pôr em questão o fechamento do texto e a perda da realidade que o acompanha, mas sem se comprometer por isso numa afirmação da transcendência do sentido (referencial, subjectiva ou estrutural). E encontra, se assim se pode dizer, para alem do mundo da percepção que representaria, como do autor cujos estados de alma viria a expressar, um mundo de intensidades puras, onde a língua sai dos seus eixos para começar a balbuciar o imperceptível, o impensável, como cadência de visões e audições antepredicativas, présubjectivas, asignificantes. Tal é a experiência do fora de toda a (grande) literatura menor: agenciar (fluxos de desejo, de matéria, de sentido), para que a percepção perceba o imperceptível e a linguagem diga o novo, o inesperado, o marginal, isto é, para que o pensamento possa ser lançado sobre a dupla mesa do céu e da terra, dos corpos e dos conceitos, das visibilidades e dos enunciados. «De Sartre a Deleuze», ressuscita uma questão até agora esquecida pela filosofia contemporânea: «a doutrina sartreana do compromisso literário». Para além de lhe devolver o ar fresco da época em que a questão surgiu, o ensaio aqui presente volta a “problematizar o valor político da literatura”, recusando-se a cingir a sua perspectiva aos territórios da revolução modernista que reclamava apenas a arte pela arte. A escrita deixa de ser só um problema da literatura para se tornar num olhar que vê «desde fora os seus leitores». O escritor assume um compromisso com os seus leitores. Aprendemos desta forma que foi precisamente Sarte, antes de Deleuze, a abrir o caminho para um agenciamento colectivo de expressão. Deleuze volta a postular o compromisso literário fazendo referência ao fora, mas «ao mesmo tempo rompe com a ideia de que esta referência tenha que ver com uma representação crítica da sociedade (o livro como imagem do mundo)». Longe das utopias marxistas e sem pretender que a literatura faça a revolução, o horizonte que este texto inaugura é apontar que o escritor se interessa por algo mais que a sua literatura e a sua vocação é «clamar por um povo nómada e não por uma cidade modelo».

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Para além da interiorização, pela reflexão filosófica, dos dispositivos do saber e do poder, eleva-se assim uma nova perspectiva, que Foucault baptizou ruidosamente como «o pensamento de fora»: “discurso que se apresenta sem conclusão ou sem imagem, sem verdade nem teatro, sem argumento, sem máscara, sem afirmação, independente de todo centro, isento de pátria e que constitui o seu próprio espaço como o fora em relação a quem fala e fora de quem fala.” 6 . Os discursos não são uma série de estratos mas a interligação da linguagem com outras camadas da experiência. O que se dá, como é óbvio, a estas alturas fora do império da mimese. Macedonio Fernández tornou visível este duplo movimento que vai, tal como diz Peter Pal Pelbart, da clausura do fora ao fora da clausura, num conto que fala de A abóbora que se tornou cosmos. O rumor desse mundo desmesurado, que irracionalmente nos lembra o nosso, ainda ecoa transfigurado pela recriação incessante das gerações. A abóbora estava a crescer solitariamente em terras da Patagónia. Favorecida por uma terra que lhe dava de tudo, a abóbora foi crescendo em liberdade e sem remédios específicos como uma verdadeira esperança da vida. Os seus diários íntimos referem que se ia alimentando darwinianamente de plantas mais débeis que estavam em seu redor (o que, lamentamos dizê-lo, era uma maneira um tanto antipática e capitalista de se desenvolver à custa dos outros). Mas são os seus anais oficiais que nos interessam para a casuística do fora. A sua história de conquista só os gauchos a podem contar, vendo-se envoltos na massa aboborífera. O medo chega a Buenos Aires e Montevideu. Muito rapidamente é realizado um Conselho Pan-americano em Genebra: horas inteiras de negociação, conciliação, propõem-se soluções. A Organização Green Peace prepara manifestações de protesto em Washington e em Cabul. Circulam opiniões científicas, suspiros das senhoras, propostas (g)astronómicas. Quando os seus poros atingem dez metros de largura, companhias aéreas russas organizam voos de lazer para verem a abóbora crescer e engolir a América toda com a sua casa branca mais falada lá dentro. Os homens são absorvidos como moscas e muito brevemente os chineses se resignam ao perceber que a sua vez che-

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gou a ser uma questão de horas. Os antropólogos percebem que se encontram na iminência do Mundo da Abóbora. Diferentes movimentos de rua protestam em Paris, “por que é que ninguém nos avisou?”. E quando apenas falta a Austrália, empresas imobiliárias apresentam ofertas de como melhor se alojarem dentro da abóbora. E a fuga parece mudar de sentido: mulheres e crianças fogem agora para dentro. Quando a abóbora engoliu o planeta todo, e qual foi a última ilha da Polinésia a entrar no sistema aboborígeno não se tem notícias. Dizem que agora se está a preparar para engolir a via láctea... nada se sabe ao certo, desconhecemos como chegámos a praticar uma Metafísica Curcurbitácea. Vivemos neste mundo que todos sabemos, mas agora dentro de uma casca, com relações somente internas e por isso sem morte e sem fora, o que para a maioria é visto como um progresso. Mas algumas pessoas, nos recantos longínquos do espaço abobórico, onde escasseia a polpa e não se vêem mais do que descampados onde a sociedade escoa a sua quota diária de sementes secas, começam a procurar uma saída. A abóbora pode abranger tudo mas não é tudo, pelos menos não tudo aquilo que somos. Há algo no nosso corpo, no nosso pensamento que lhe resiste. A claustrofobia é grande m-mmm-m-mas à-às vez-z-zzz-z-zes nas d-oooo-obras da c-c-c-carne q-q-qre-cremos vir-vir-ouvir vo-vooo-vozes... dum mundo por vir.

Golgona Anghel Eduardo Pellejero

Notas  1

Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990/2000 (PP), p. 150. Foucault, «Nietzsche, Freud, Marx», em Dits et écrits (vol. I), Gallimard, Paris, 1994 3 Cf. ID 161 4 Cf. Deleuze, Deux régimes de fous: Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Minuit, 2003 (DF); p. 146 “En philosophie: la philosophie classique se donne une espèce de matière rudimentaire de pensée, une sorte de 2

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 flux, qu'on essaie de soumettre à des concepts ou à des catégories. Mais de plus en plus, les philosophes ont cherché à élaborer un matériau de pensée très complexe pour rendre sensibles des forces qui ne sont pas pensables par elles-mêmes”. 5 Foucault, «La pensée du dehors», em Dits et écrits (vol. I), p. 525.

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O «Fora» de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação Patricia San Payo

Como falar de um conceito – esse conceito seria o «fora», tal como surge, por exemplo, na designação deste encontro: “Fora da Filosofia: as formas de um conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze” 1 , a propósito de uma palavra na qual o que é da ordem do conceptual parece recuar e dar lugar ao que não é conceito no conceito, algo que, como observou Derrida, seria da ordem da metáfora, justamente da ordem de uma força que designa por metaforicidade que o conceito apaga a troco de um maior grau de abstracção e de uma menor equivocidade nas modalidades do seu uso 2 . No vocabulário de Blanchot, «dehors», como aliás «ressassement» ou «desoeuvrement», são palavras de difícil tradução. Devemos ter em conta que a palavra «dehors» surge em L’Espace Littéraire, associada à experiência da literatura, uma experiência que Blanchot descreve neste livro sobretudo a partir de Kafka (dos Diários, mas também de O Processo, O Castelo e de um conto, O Covil), de Mallarmé (de «Crise de vers», Igitur, e de «Un coup de dés») e de Rilke (a correspondência e as elegias). Em que consiste tal experiência? Ela é a experiência do fora que se abre no interior da própria linguagem, um fora de todo o discurso significativo que, no entanto, não constitui um limite da linguagem, dado que se trata de uma abertura que a ilimita do interior. No decurso da experiência o escritor é subtraído à dimensão do «possível» e arrastado na direcção do «impossível», reserva do negativo a que nenhuma positividade corresponde, resíduo inassimilável pelo discurso do que permanece na sua noite, que é como que uma noite que se abre na noite, e à qual Blanchot faz corresponder a dicção do elementar. Pelo modo oblíquo como se lhe refere, torna-se claro que a palavra «dehors» deve ser levada a um grau de indeterminação que é importante para a compreensão do que está em jogo.Com

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frequência o autor caracteriza esse fora por intermédio de acções indeterminadas que parecem apontar no sentido de qualquer coisa de elementar, como é o caso das acções expressas pelo verbo francês «ruisseller» (correr, manar, fluir, jorrar); já a palavra «ruissellement» (presente numa formulação recorrente em L’Espace Littéraire, “le ruissellement eternel du dehors”) que designa simultaneamente o “cambiante das jóias” e “o escoamento rápido da água nas vertentes” 3 , refere uma acção que se produz sem especificação do agente; com efeito, para o cambiante das jóias parecem concorrer vários factores conjugados, dado que depende de uma propriedade destas, mas também do olhar do observador, da posição relativa de ambos, do tipo de iluminação, por exemplo; trata-se em qualquer caso de uma acção paradoxalmente próxima de uma ausência de acção, de um agir sem agir 4 própria do neutro, efeito neste caso acentuado pela proximidade da palavra «éternel». O segundo exemplo fornecido pelo dicionário, o escoamento rápido da água nas vertentes, parece ilustrar um outro processo de funcionamento do neutro: trata-se, com efeito, de algo que desfaz o que no entanto prossegue inalterado (de algo como um desfazer subterrâneo, inaparente). Verbos iterativos como «fluir» ou «escoar» possuem a particularidade de remeter para acções que se cumprem sem que aparentemente isso represente uma progressão relativamente a um estado anterior. Com a expressão “ruissellement éternel du dehors”, Blanchot aponta para a exigência do neutro na escrita de cada vez que o escritor aprofunda o movimento que lhe é próprio e que conduz ao fora de qualquer discurso ou de qualquer enunciação. O autor parece ter pretendido aumentar a ambiguidade ou o poder de cintilação do termo quando em L’Espace Littéraire o coloca sob o signo de Orfeu que erra nas trevas de uma noite pré-conceptual e pré-ontológica, falhando na missão de trazer Eurídice para o dia no momento em que se vira para a ver. O valor emblemático que Orfeu adquire nesta obra deve-se a que o seu canto se constitui na proximidade de uma origem (inoriginária) contra aquilo que o compromete, a violência indistinta do fora no ponto do espaço literário onde a linguagem se apresenta como rumor incessante e incessante proliferação do que

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escapa à inteligibilidade. Por outro lado, por intermédio desta versão transformada do mito, Blanchot caracterizou o olhar do poeta -o olhar de Orfeu – um olhar por intermédio do qual o Outro se dá a conhecer na sua alteridade e exterioridade. Num texto sobre a imagem e o neutro, Blanchot observa que a imagem não é apenas, como era para Sartre, um acto no qual se vence, ou nega, o nada, é também o olhar do nada que nos fixa: a imagem neutra impõe o afastamento ao mesmo tempo que propõe o contacto. Na imagem que partilha com o cadáver as características do neutro (ne… uter), qualquer coisa está diante de nós que não é nem o ser vivo em pessoa, nem uma realidade qualquer, nem o que era em vida, nem outro, nem outra coisa. Tal como o cadáver, a presença cadavérica estabelece uma relação entre aqui e em lado nenhum, entre o único e o qualquer. A imagem neutra é sempre, por conseguinte, um jogo antropomórfico de semelhanças viscerais e inversamente, nela os traços do humano dissolvem-se no impessoal 5 . Devemos ter em consideração que Blanchot não é um filósofo, mas fundamentalmente um escritor e um crítico literário e que a persistente interrogação que se formula ao longo da sua obra, incidindo sobre a escrita e o espaço literário, emerge justamente no ponto de intercepção entre teoria e ficção. Nos seus textos de crítica ou de ensaio é sempre essa interrogação que encontramos, como se de uma investigação sem termo assinalável se tratasse, sobre as propriedades do neutro e a tarefa que cabe ao escritor de aprofundar o movimento que este desencadeia. A investigação do neutro não dá lugar a uma resposta, mas sim a uma série de afirmações não positivas e incertas. Isto confere à sua obra um carácter suspensivo e mesmo paradoxal. O constante uso do paradoxo, ou de figuras como a paranomásia, enfraquece o conceptual e subverte as conexões lógicas do discurso. Por vezes Blanchot parece adoptar um modo mais «filosófico» de explanação e desenvolvimento das ideias, mas, na realidade, mesmo nesses textos, a coerência em termos lógicos do discurso é posta em causa por um elemento que o fragmenta, ainda que de modo inaparente. É certo que em L’Entretien Infini se evoca a tradição do diálogo filosófico, mas a opção pelo diá-

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logo corresponde sobretudo a uma estratégia discursiva pela qual, na proximidade do discurso argumentativo, se vão desfiando os poderes da escrita (indeterminação dos aspectos relacionados com a enunciação, o fragmento, o constante recurso ao paradoxo, bem como a formas de interpolação, citação ou rasura próprias do neutro). Uma maior liberdade relativamente às várias convenções discursivas parece à partida assegurada no discurso ficcional, mas trata-se de prosseguir o trabalho da escrita por desfiguração das suas instâncias e categorias, nomeadamente da desarticulação do dispositivo da representação. Foucault referiu-se à conversão da linguagem da reflexão operada por Blanchot. Em vez da negação, uma afirmação não positiva; em vez de reconciliação, «ressassement» (processo de regressar constantemente ao que já foi dito, constante repisar de um mesmo assunto); em vez da unidade na qual o espírito se afirma, a erosão do fora; Uma conversão simétrica se dá na linguagem da ficção, na qual mais do que de imagens se trata dos interstícios entre elas, do seu intermediário neutro. Em qualquer caso, observa, trata-se de uma palavra do fora: “Como palavra do fora, acolhendo nestes termos o fora ao qual se dirige, este discurso terá a abertura do comentário: repetição do que no fora nunca deixou de murmurar. Mas como palavra que permanece sempre de fora do que diz, este discurso é uma incursão incessante no sentido daquilo cuja luminosidade, de uma extrema finura, nunca acedeu à linguagem. Este modo de ser singular do discurso – regresso ao espaço oco onde se encontram a origem e o fim – define sem dúvida o lugar comum aos «romances» e às «narrativas» de Blanchot e à sua «crítica 6 . Conduzir a linguagem para o fora de toda a linguagem, observa ainda, criar das imagens os interstícios e insistir no vazio que circula entre as palavras, é pronunciar um discurso sobre o não discurso de todos os usos da linguagem, criar pela ficção o espaço invisível no qual este último se constitui. O permanente intercâmbio entre ficção e teoria contribui para a indeterminação com que se colocam os mais persistentes temas e motivos de Blanchot. Que se pense, por exemplo, no modo como a noção de «Il y a» que sustenta algumas das suas

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mais conhecidas páginas sobre a literatura e a experiência literária - e que foi também um dos assuntos de Lévinas nos seus primeiros livros – é descrita em Thomas L’Obscur, o seu primeiro romance. De modo análogo, a morte e as suas várias declinações (a morte inevitável e impossível, o seu carácter impessoal, a sua impenetrabilidade a experiência etc), outro leitmotiv dos seus textos teóricos, é constantemente tematizada nos textos de ficção. Pense-se ainda em L’Arret de Mort, curta narrativa publicada em 1948,na qual se encontram os temas da finitude e da comunidade que prossegue em outros lugares da sua obra (nomeadamente em La communauté inavouable). Mas um outro tipo de apelo se estabelece entre aquela narrativa e a reflexão sobre a imagem que prossegue simultaneamente na sua obra ensaística. O narrador de L’arret de Mort descreve apersonagem que morreu e regressa à vida. No seu rosto vivo sobrepõe-se o rosto do cadáver e vice-versa, segundo um princípio de reversibilidade paradoxal a que obedece a narrativa. As circunstâncias descritas vêm como que dramatizar certas considerações sobre a imagem e “semelhança cadavérica” em L’Espace Littéraire. Em outros momentos dessa narrativa coloca-se de outro modo a questão da semelhança, desta vez, segundo considerações sobre as condições técnicas da reprodução às quais Blanchot se referirá mais tarde em textos sobre a imagem em L’Entretien Infini ou L’Amitié. Há nela um momento em que o narrador observa o molde em gesso das mãos da personagem feminina, J. verifica então que as linhas nas palmas da mão são no molde mais legíveis, do que no original, enquanto que as rugas da parte de fora desapareceram no que aparenta ser agora uma superfície de marfim. O processo de duplicação, na medida em que a relação da cópia e do original é posta em causa, desencadeia o movimento imparável da similitude. No processo aqui ilustrado por intermédio da modelagem em gesso, intervêm factores que instalam o que é Outro no lugar do semelhante. Uma idêntica reflexão tem lugar em L’Amitié, num texto que Blanchot consagra a Malraux, no qual se refere ao papel desempenhado pelos acidentes a que uma obra é submetida no processo de chegar a nós (nomeadamente os efeitos da erosão nas estátuas ou nas pinturas) observação que, por sua vez, é dada como exemplo do

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modo como a uma representação diverge do representado e no limite, de si mesma, entre outras razões pela acção do tempo sobre os suportes. Comentando esse texto de Blanchot, Didi Huberman observa muito justamente que ao contrário da estética clássica, que “idealiza o instante” e atribui às obras de arte a propriedade de o eternizar, para Blanchot as imagens participam do movimento de um devir no qual se fazem e desfazem interminavelmente. Nesse texto, prolongando as reflexões de Malraux sobre a arte, o museu e o tempo, Blanchot coloca a imagem na escansão de uma temporalidade que não é nem o «intemporal», nem o «absoluto», nem o «eterno». Porque as coloca no plano de um devir e porque elas se constituem a partir de uma desaparição (na realidade são «aparições»), a imagem é sempre objecto de uma memória, é uma sobrevivência e implica a experiência do «ressassement», um tempo que DidiHuberman situa entre o tremor de Kierkgaard e o eterno retorno de Nietzsche 7 . Ao colocar a experiência do «fora» como a experiência da arte por excelência, Blanchot persegue várias finalidades. 1) Por um lado, procura atribuir à arte e à literatura um lugar que não é o da filosofia, embora as respectivas esferas se interceptem. No entanto, a “missão” atribuída ao artista por Blanchot é quase diametralmente oposta à missão heróica que Heidegger atribuía ao poeta. Escreve Blanchot: “O artista e o poeta têm como missão recordar-nos incessantemente do erro, virar-nos para esse espaço no qual tudo o que somos, tudo o que se abre na terra e no céu regressa ao insignificante, onde o que se aproxima é o não sério e o não verdadeiro, como se daí brotasse talvez a fonte de toda a autenticidade” 8 . 2) Por outro lado, para desimpedir o caminho de uma reflexão sobre a literatura e a arte apoiadas na noção de escrita e de imagem como manifestações do neutro (a referência a Heidegger aqui continua a ser importante, na medida em que o neutro em Blanchot se constrói a partir do neutro heideggeriano) A partir de L’Entretien Infini, com a caracterização das propriedades do neutro, a reflexão sobre a escrita conflui no sentido da caracterização do sentido como simulacro, ou dito de outro modo, como se a literatura devesse ser em todo o caso espectral,

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animada pelo que é prévio ao sentido, “velando o sentido ausente” (no sentido). No capítulo de L’Espace Littéraire intitulado «Les Deux Versions de l’Imaginaire», Blanchot consagra dois regimes da imagem. Numa primeira acepção, a imagem consiste na possibilidade de apreensão ideal da coisa, na medida em que a nega enquanto tal ao mesmo tempo que para ela remete; dito de outro modo, a imagem é a negação vivificante da coisa (em sentido hegeliano). Mas numa outra acepção – na qual o autor se deterá em toda a sua reflexão posterior – a imagem remete não já para a coisa ausente, mas para a ausência como presença no duplo neutro do objecto no qual a relação de pertença que mantinha com o mundo se dissipou. Nesta concepção, o que importa não é que a imagem venha depois da percepção (do objecto), mas justamente que o objecto seja posto à distância, porque desta maneira ele se torna inactual, inapreensível. O «fora» surge relacionado com o desaparecimento das coisas na imagem, na qual o mundo se retira: deste modo a imagem torna-se elementar, como se o elementar a reclamasse nesse pôr-se à distância (afastamento) da coisa, movimento pelo qual ela escapa ao valor de uso e de verdade, bem como à própria significação: “Na imagem, o objecto aproxima-se de novo de qualquer coisa que tinha dominado para se constituir como objecto. Qualquer coisa contra a qual ele se tinha edificado e definido, mas agora que o seu valor e a sua significação se suspenderam, agora que o mundo o abandonou à inoperância e o põe de lado, a verdade nele recua e o elementar reivindica-o – empobrecimento e ao mesmo tempo enriquecimento que o consagra como imagem” 9 . Ao colocar a imagem sob um duplo regime, Blanchot assegura a possibilidade de, pela ficção, se dispor das coisas na ausência destas, retendo-nos no âmbito do sentido. Mas, mesmo tempo, valoriza uma outra possibilidade pela qual, como vimos, a palavra não falaria já do mundo. No neutro, a semelhança desunifica, cria uma relação de não-unidade entre a coisa e a sua representação a fim de melhor desarticular os pólos dessa relação, ou seja, a fim de instaurar a divisão do próprio ser. Em vez de uma correspondência, encontramos a semelhan-

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ça espectral, na qual a própria desaparição se tornou, por sua vez, aparência. É com base nessa semelhança espectral, na qual, como no rosto do cadáver o reflexo absorveu a vida e a tranferiu para um plano inusual e neutro, que se dá a afirmação irreal (não positiva) do poema ou da narrativa que é simultaneamente uma abertura a um espaço (o espaço literário) no qual reina a fascinação. Num texto de L’Entretien Infini, «Vaste comme la nuit», título que consiste numa citação de um conhecido verso de «Correspondances», de Baudelaire, referindo-se justamente à noção de imagem tal como Bachelard a entende, Blanchot dirá que quando consideramos num texto a dimensão da escrita deixa de fazer sentido pensar-se em termos de «imagens» poéticas porque o que nele se dá a escutar/sentir é a evidência da realidade na afirmação irreal (não positiva) do poema, não o mundo posto em imagens, ou imagens do mundo, mas a presença (sem imagens) de um contra-mundo. Nesta acepção, a imagem conduznos ao «fora» do seu próprio espaço, afastando-nos num movimento oscilante da esfera do signo e do sentido ao qual pertence também, para se apresentar como “figura do infigurável”, “forma do informe” 10 . A linguagem no poema não se desdobra, como pressupõe a tradição hermenêutica e a tradição da leitura alegórica (na qual a imagem é suprimida); entre o que nele é figura e um sentido alegórico que a leitura nele descobre, sentido este que, por se apoiar numa extensa rede de semelhanças, prolonga horizontalmente a figura até ao infinito, pelo comentário que a duplica ou recobre. Para Blanchot, o próprio Platão, ao ridicularizar o rapsodo, esteve mais próximo da verdade de Homero do que os gramáticos que nele procuravam e descobriam a exposição de todas as certezas físicas, morais e metafísicas. É a tradição alegórica que é expulsa da cidade, não Homero, e isto porque nada há a explicar num poeta, fechado que este se encontra no seu mundo de reflexos e superfície. No plano da crítica alegórica, afastando-se da ideia comummente aceite de que ao crítico compete a explicação do texto, Shelling desempenhou um papel importante na desmistificação da ideia de que um poema se desdobra entre figura e alegoria. Bachelard, por sua vez, terá

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efectuado o mesmo movimento relativamente à psicanálise (na qual o símbolo surge como uma versão atenuada da alegoria). Na teoria de Bachelard, nota Blanchot, a imagem é como que o começo e a origem da linguagem, não o seu fim, não o ponto em que ela claudica, razão pela qual não se trata de uma concepção «mística» de imagem (trata-se de saber acolher na leitura “une ouverture de langage”). Fazendo sua uma distinção, estabelecida em Poétique de l’espace, no modo de funcionar das imagens em função de diferentes modos de ler ou de se entender a leitura, Blanchot referir-se-á a uma possibilidade de ressonância da imagem, que nesse ressoar reenvia sentimentalmente para a nossa experiência e a uma possibilidade alternativa de reverberação que, por sua vez,dá acesso dá acesso ao não- espaço e ao não-tempo da literatura; nesta última acepção ela é manifestação do fora, reverberação («retentissement») pela qual se prolonga e distende o espaço e o tempo que lhe é próprio. Apenas a esse nível nos é dado aceder à linguagem da poesia: “Só a reverberação nos coloca no plano do poder da poesia, apelo da imagem ao que nela sempre recomeça, apelo urgente a sairmos de nós e a movermo-nos no estremecimento da sua imobilidade. A reverberação não tem a ver com a imagem que reverbera (em mim, leitor, a partir de mim) mas é o próprio espaço da imagem, a animação que lhe é própria, o ponto de eclosão no qual, falando de dentro, ela fala já do de fora” 11 . A estas considerações sobre Poétique de l’Espace,Blanchot acrescenta algo que nos interessa para chegar a definir o que entende por «fora». Nada negando das ideias de Bachelard, acentuando mesmo as suas considerações sobre o duplo efeito das imagens e o tipo de entendimento (próximo da ideia de tabula rasa) que pedem, este autor observa, contudo que num poema não há imagens, a não ser imagens de linguagem. Com isso pretende sublinhar duas coisas. Em primeiro lugar que a noção de imagem que nos dá a retórica em nada nos esclarece sobre a “abertura da linguagem” que o poema é. No seu lado neutro a imagem não é quantificável, não pode ser isolada para fins de classificação retórico-estilística: ela não pode ser tomada de per si, fora de uma dimensão que incorpora o ritmo e a medida poéticas ou, como também observou Bachelard, fora da

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composição propriamente dita (composição aqui no sentido de um agrupamento de imagens múltiplas). Em segundo lugar, a imagem de linguagem que o poema é, ou seja, o espaço que aceita (com algumas reservas) designar por espaço do imaginário, não encontra correspondência em nenhuma acepção conhecida da palavra imagem, a qual sugere sempre uma analogia com o perceptual. Mas o visível não encontra no espaço literário qualquer correspondência, do mesmo modo que as coordenadas que fazemos derivar da nossa experiência nele se não aplicam. Citando Michaux, escreve, comentando Bachelard: “Que uma tal imagem nos aloje ou desaloje, nos dê o sentimento de uma permanência feliz ou infeliz, que nos oprima ou nos resguarde, nos deporte e nos transporte, não quer dizer que a imaginação se aproprie das experiências reais ou irreais do espaço, mas sim que nos aproximamos pela imagem do próprio espaço da imagem, do fora que é a sua intimidade, «Esse terrível de dentro de fora no qual consiste o verdadeiro espaço» nas palavras de Michaux que se tornam inesquecíveis desde o momento em que as apreendemos” 12 . Acentuando uma ideia que em Bachelard não terá talvez um carácter tão radical, Blanchot reafirma que o entendimento ou acolhimento do que na imagem é reverberação – a sua tensão, extensão e a abertura na qual se dá a aparição –, o que é do domínio da opinião, o que se dá por certo no plano da cultura, de nada conta, ou representa mesmo um obstáculo. À imagem neutra, a que corresponde o espaço que a escrita abre na superfície do discurso, parece poder aplicar-se o que Mallarmé escreveu em Un Coup de Dés, “rien n’aura eu lieu que le lieu”, porque o «fora» é também vacilação de um sentido, construído a partir das antinomias (dentro/fora, presença/ausência, aparecimento/desaparecimento, objecto/simulacro, figurado/não figurado), doravante indisponível. Acolher o neutro (a ser possível) só se pode dar na condição de nos virarmos para lá, ou seja, efectuando o seu giro, desencadear, favorecer, propiciar a reverberação. No verso de Baudelaire “Vaste comme la nuit et comme la clarté”, a palavra «vaste» dá acesso a um espaço no qual participam a noite e a claridade, noções que por não se oporem uma à outra permanecem imóveis face a face, trocando

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entre si as suas cintilações. Fora seria esse espaço, no qual a noite e a claridade se vão prolongando sem se confundir, sem dar lugar ao dia por rendição da primeira, nem sequer à noite como se por um movimento idêntico de sinal contrário a claridade fosse totalmente absorvida. Porque participam do movimento da escrita são conceitos atravessados pela diferença, o que significa que a fissura se instaura em cada um deles e não entre eles como no caso dos dois pólos de uma oposição. Como pensar estas noções – fora, repetição e diferença, inoperância – nas quais assenta o pensamento do neutro? Seguramente de fora do quadro disciplinar, nomedamente, fora da filosofia, pois como observou Didi-Huberman, elas relevam, como as figuras do pensamento em Bataille, de uma heterologia. Para Foucault, a imagem neutra constitui a face heterodoxa da dialéctica e Lévinas, por sua vez, referindo-se a uma “ressemblance desassemblée” que encontra nos textos de Blanchot, disse que nestes se dá o desenraizamento das imagens relativamente à ontologia heideggeriana. O que Hölderlin foi para Heidegger, terá sido Celan para Blanchot? O que efectua o movimento inverso ao do primeiro? Não pretendendo trazer as coisas à linguagem por um acto de nomeação na qual são devolvidas à sua essência, mas, pelo contrário, por ser incapaz de nomear, prosseguindo de um modo, hesitante, absolutamente sem garantias, a reconfiguração do mundo na escrita? Dir-se-ia que, em Celan, é justamente a partir desse desenraizamento ontológico, a partir de um nada articulado sobre a perda, que as coisas, associadas de outra maneira, para lá ou aquém do sentido, se vêm inscrever. Como a erva e a escrita entrelaçadas na ausência de sentido de tal imagem que assim inicia o seu giro: “Mas assim como a escrita se lê como a aparência de uma coisa, de um de fora de coisa condensando-se numa coisa ou noutra – não para a designar mas para se escrever no movimento de vaga de palavras que não cessam de surgir –, também o de fora não se lê por sua vez como uma escrita, uma escrita des-ligada, sempre já exterior a ela mesma: erva escrita fora uma da outra?” 13 .

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Notas 1

O encontro em questão reuniu alguns investigadores na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em torno de um conceito, o «fora», na obra de Sartre, Blanchot, Foucault, Deleuze e Derrida. 2 Sobre este assunto cf., por exemplo, Jacques Derrida,«La Mithologie Blanche», Marges de la Philosophie, 1972. 3 Conforme definição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 4 Cf. Derrida, «Pas» , Parages, 1986, onde este autor se refere à “sintaxe do sem” em Blanchot, ao paradoxal passo sem passo, espécie de recuo inaparente em qualquer progressão. Um passo assim considerado não se sucederia a um outro de acordo com as regras de desenvolvimento e prossecução lógicas de um raciocínio. Para Derrida o modo como os textos de Blanchot evidenciam a colusão entre análise e paralisia (“paralyse”) decorre da fascinação enquanto efeito de leitura, do que neles conduz invariavelmente à aporia, à indecidibilidade. 5 Maurice Blanchot, «La sollitude essentielle», L’Espace Litéraire, onde lemos, por exemplo, “voir est une sorte de touche (…) un contact à distance (…) ce qui nous est donné par un contact à distance est l’image, et la fascination est la passion de l’image”, pp. 28-29. 6 “Comme parole du dehors, accueillant dans ces mots le dehors auquel il s’adresse, ce discours aura l’ouverture du commentaire: repetition de ce qui au-dehors n’a cessé de murmurer. Mais comme parole qui demeure toujours au dehors de ce qu’elle dit, ce discours será une avancée incessante vers ce dont la lumière, absolument fine, n’a jamais reçu langage. Ce mode d´’être singulier du discours – retour au creux equivoque du dénouement et de l’origine – définit sans doute le lieu commun aux “romans” au «récits» de Blanchot et sa «critique» Michel Foucault, La Pensée du Dehors, pp. 25-26. 7 Cf. «De Ressemblance à ressemblance», Maurice Blanchot – Récits critiques , Cristhophe Bident & Pierre Vilar (eds). 8 Maurice Blanchot, L’Espace Littéraire, p. 337, n. 9 “Dans l’image, l’objet affleure à nouveau quelque chose qu’il avait maitrisé pour être objet, contre quoi il s’était édifié et defini, mais à present que sa valeur, sa signification est suspendue, maintenant que le monde l’abandonne au désoeuvrement et le met à part, la vérité en lui recule, l´élementaire le revendique , apauvrissement, enrichissement qui le consacrent comme image”, Maurice Blanchot, Entretien Infini, p. 348. 10 Cf. Maurice Blanchot, Entretien Infini, p. 476. 11 “Seul nous met au niveau du pouvoir poétique le retentissement, appel de l’image à ce qu’il y a d’initial en elle, appel instant à sortir de nous et à nous mouvoir dans l’ébranlement de son immobilité. Le “retentissement” n’est donc pas l’image qui retentit (en moi, lecteur, à partir de moi), il est l’espace même de l’image, l’animation qui lui est propre, le point de jaillissement où, parlant au-dedans, elle parle dejà tout au dehors”; Maurice Blanchot , Entretien Infini, p.470. 12 “Que telle image nous loge ou nous déloge, nous donne un sentiment du séjour heureux ou malheureux, nous resserre ou nous abrite, nous deporte et nous transporte, cela ne veut pas seulement dire que

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l’imagination s’empare des expériences réelles ou irréeles de l’espace, mais que nous nous approchons, par l’image, de l’espace même de l’image, de ce dehors qu’est son intimité, «cet horrible en dedans-en dehors qu’est le vrai espace», selon les termes de Michaux qu’on ne peut guère oublier, lorsqu’on les a saisis”; Maurice Blanchot, Entretien Infini, p.475. 13 “Mais de même que l’écriture se lit sous l’espèce d’une chose, d’un dehors de chose se condensante en telle ou telle chose, non pour la designer, mais pour s’y écrire dans le mouvement de houle des mots qui toujours vont, le dehors ne se lit-il pas encore comme une écriture, écriture sans lien, toujours déjà hors d’elle même: herbe, écrite hors l’une de l’autre?”; Maurice Blanchot, citando Celan, Une Voix Venue d’Ailleurs, p.75.

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Experiências literárias do Fora. Num conto de Julio Cortázar, A casa tomada, dois irmãos levam uma vida marcada pelo estatismo incerto das lembranças e por uma rotina repetida mecanicamente todos os dias. Essa rotina vê-se consolidada com uma existência fechada de quase monaquismo anacorético, uma existência secreta que se restringe ao íntimo da casa. O ritmo vagaroso das suas existências modificar-se-á progressivamente cada vez que desde os fundos da casa estejam a surgir ruídos estranhos. Os ruídos fazem com que alguns quartos da casa sejam fechados e permaneçam de acesso vedado. “O som vinha impreciso e surdo, como um voltejar de cadeira sobre o tapete ou um afogado sussurro de conversação. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que vinha daqueles quartos até à porta. Atirei-me contra a porta antes de que fosse demasiado tarde, fechei-a de repente apoiando o corpo; felizmente a chave estava metida do nosso lado e para além disso tranquei-a com o grande ferrolho para mais segurança. (...) Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte do fundo.” 1 A rotina vai alterando o seu ritmo monótono enquanto uma presença estranha avança progressivamente e se manifesta como uma inquietação insinuante: de onde vêem esses ruídos?; e os irmãos, são eles quem vive na casa ou então é a casa que os habita?; e se há alguém mais dentro da casa, quem é, quem são? e por que é que avançam?; para quê? A crescente e lenta redução do espaço da casa aumenta o suspense na medida em que abre uma zona do impreciso e do desconcertante. O espaço da casa como unidade fica dividido entre um «aqui» (onde vivem os irmãos) e um «ali» (aquele dos ruídos), ao mesmo tempo que outra dualidade entra em jogo: o «nós», dos irmãos que se des-

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locam para «Fora» sob a suspeita de uma ameaça que não pode ser confrontada, e «eles» do não-nomeável que avança para «dentro». “Como tinha ficado com o relógio, vi que eram as onze da noite. Cingi com o meu braço a cintura de Irene (eu acho que ela estava a chorar) e saímos à rua. Antes de nos afastarmos tive pena, fechei bem a porta da entrada e atirei a chave no canal de esgoto. Não fosse que a algum pobre diabo lhe passasse pela cabeça roubar e se metesse na casa, a essa hora e com a casa tomada.” 2 Obviamente, várias poderiam ser as nossas leituras deste conto. Uma delas poderia “considerá-lo como se fosse um continente que remete para um conteúdo, através do qual é preciso buscar os seus significados e inclusive, se somos ainda mais perversos ou mais corruptos, partir à procura do significante. O livro seguinte será considerado como se contivesse o anterior ou estivesse contido nele. Haverá comentários, interpretações, serão pedidas explicações, escrever-se-á o livro do livro, até ao infinito” 3 . Agora, é geralmente sabido que na tradição cultural francesa se tem construído um debate entre duas posições teóricas opostas relativas ao modo de aproximação a um texto literário. Ora, podemos centrarmo-nos no funcionamento interno do discurso literário dando primado à sua organização significante, às formas e à sua estrutura. O sentido, a verdade são sempre um efeito, um resultado do jogo e da organização significante, material; é a chamada posição estruturalista que se deu a conhecer através da corrente Tel Quel (Sollers, Kristeva, Barthes). Nesta linha, Kristeva, por exemplo, limitaria o conto de Cortázar a um jogo entre o Mesmo e o Outro que se vai construindo na gramática textual com base nos dois pares dicotómicos: Dentro/ Fora, Nós/ Eles. Ou então, partindo do pressuposto de que a linguagem é vocacionada para o mundo e que tem como função o facto de nos dizer alguma coisa, de nos comunicar, a obra literária vai ser entendida como tendo um sentido ligado a uma referência (real ou irreal). Dá-se assim prioridade a um sentido que justifi-

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ca a organização material do texto. Trata-se da perspectiva fenomenológica que faz da literatura a manifestação de um sentido ligado a uma experiência originária vivida, e a expressão de uma subjectividade, de um autor. E o que é que teria Cortázar para comunicar, na Casa tomada (1951), com a presença deste estranho não-dizível que avança implacavelmente e toma posse da casa? Será este Fora o prenúncio de que alguma coisa de importante, de subversivo que está prestes a acontecer? Talvez a revolução? 1951 é o ano de publicação do volume Bestiário que integra o conto, bem como o ano em que Cortázar deixa Argentina por problemas políticos. Em Setembro do mesmo ano, uma tentativa de derrubar o sistema totalitário desemboca num fracasso. A questão que se põe agora é se há outra possível aproximação à literatura, que não seja uma narração formal da estrutura e das categorias internas do texto, nem uma hermenêutica dos conteúdos na direcção do sentido alegórico. Gilles Deleuze propõe uma alternativa a estas posições. Ele vai conservar, é certo, alguns vestígios do estruturalismo, o essencial, talvez: o princípio da imanência. Mas aquilo que ele rejeita é o fechamento do texto e a perda da realidade que o acompanha, o primado do sistema significante e das práticas formais, ou seja aquilo que ele chama de ditadura do significante à qual este tipo de análise conduz. A palavra de ordem geral, como elemento constitutivo do pensamento deleuziano e da sua estética não é a verdade mas o interessante: “A filosofia não consiste em saber, e não é a verdade que inspira a filosofia, mas as categorias como aquela de Interessante, de Notável ou de Importante que decidem o êxito ou o fracasso” 4 . Quais serão, então, as consequências que esta liberação do império da verdade tem? Como conservar esta abertura para o Fora sem se referir à transcendência do sentido? Como manter uma análise puramente imanente sem abandonar os direitos do sentido e da vida? Assim a literatura não fica mais encerrada no fecho do significante, da língua, é certo, mas o resultado não parece ele contrário ao desejado? Ou seja, ao querer afirmar o Fora, Deleuze parece asseverar também a perda do mundo exterior, um pensamento senão fechado em si mesmo, pelos menos

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destinado a uma esfera encerrada de intelectualidade. Não caímos desta maneira num fechamento ainda pior? O Fora invocado por Deleuze não tem nada a ver, de facto, com um mundo exterior: “um forma mais longe do que todo mundo exterior” 5 ; um “Fora não exterior” 6 . Nesta sua maneira de se aproximar à literatura, e quase caminhando ao encontro das nossas dúvidas, Deleuze propõe um outro tipo de leitura: “consideramos o livro como se fosse uma pequena máquina a-significante; o único problema é «será que isto funciona?» Como é que isto funciona para vocês ? Se isto não funciona, se nada acontece, têm então que tomar outro livro. Esta outra leitura é uma leitura em intensidade: alguma coisa acontece ou não. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do estilo de ligação eléctrica. (...) Esta outra maneira de ler opõe-se à precedente porque liga o livro directamente como o Fora” 7 . Ou seja, a solução proposta por Deleuze é considerar o livro como uma máquina a-significante cujo único problema é se funciona ou não. Não há nada para explicar, nada para interpretar, nada que compreender. É uma espécie de conexão eléctrica que relaciona directamente o livro com o Fora. E como é que o conto funciona para nós, se é que funciona? O conto poderia funcionar como uma pequena engrenagem nesta maquinaria exterior, muito mais complexa. Porque quando escrevemos, diz Deleuze, mantemos relações de corrente e contracorrente com outros fluxos – fluxos de merda, de esperma, de fala, de acção, de erotismo, de moeda, de política, etc. Tal como refere Bloom: escrever com uma mão na areia e masturbar-se com a outra 8 . A Casa tomada seria o nosso «dehors», ou pelo menos como um dos nossos «dehors» na medida em que nos força a pensar, que nos arrouba o pensamento para aquilo que ele não pensa ainda, levando-o a pensar diferentemente 9 . O Fora, menos do que um espaço outro, é essa força não-representável que, por mais exterior que pareça pela sua violenta estranheza, está aí dentro da casa, mais próxima que todo mundo interior. Os irmãos tentam afrontá-la por momentos e as armas que têm

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para conjurar o caos são os rumores domésticos, a voz ou as canções de embalar: “De dia eram os rumores domésticos, o roce metálico das agulhas de tecer, um ruído ao passar as folhas do álbum filatélico. (...) Na cozinha e na casa de banho, que ficavam perto da parte tomada, púnhamo-nos a falar em voz alta ou a Irene cantava canções de embalar. Numa cozinha há demasiados ruídos de louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitíamos aí o silêncio (...)” 10 A pequena canção é territorial, é como o canto dos pássaros: um ritornelo que agencia um espaço, que marca assim o seu território. “Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Anda, pára, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com a sua canção. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos.” 11 Os próprios modos gregos, os ritmos hindus são territoriais, provinciais, regionais. Do caos nasce uma voz que determina momentaneamente um centro: “Quando a Irene estava a sonhar em voz alta, eu acordava de repente” 12 . Elementos diversos, o ruído das folhas, o roce das agulhas, a voz, referências e marcas de toda espécie intervêm para manterem as forças do caos, o território do pesadelo no exterior tanto quanto possível.

Mircro-Arqueologia do pensamento do Fora. Mas de onde vem este tema do Fora? Em entrevista com Claire Parnet (1986), Gilles Deleuze fala numa influência de Maurice Blanchot sobre Foucault 13 . Esta influência passa por uma «dívida» que Foucault sempre reconheceu que tinha com Blanchot, e que diz respeito a três temas: primeiro, “falar não é ver”, ou seja a diferença que implica que, ao dizer aquilo que não vemos, empurramos a linguagem para o seu limite extremo; segundo, a superioridade da terceira pessoa sobre as duas primeiras; terceiro, o tema do Fora, a relação (ou a não-relação) com um Fora mais longínquo que todo o mundo exterior e por isso mais próximo que todo o mundo interior 14 .

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Várias suposições relacionadas com uma possível genealogia do pensamento do Fora se perfilam também no texto que Foucault escreve sobre Blanchot, «La pensée du dehors», in Critique, Junho de 1966, nº 229. Segundo ele pode ser que se tenha originado nos textos místicos do Pseudo-Dioniso nascidos nas margens do cristianismo e que tenha sobrevivido assim como uma teologia negativa. Ou então, menos arriscado ainda seria admitir que tenha surgido com Sade e Hölderlin para depois reaparecer na segunda metade do século XIX: em Nietzsche, Mallarmé, Artaud, Bataille ou Klossowski 15 . E é a través de Blanchot que Foucault conclui que a literatura não é a linguagem que se identifica consigo mesma, é a linguagem que se afasta o mais possível de si mesma e é a palavra que nos conduz pela literatura, para esse Fora onde desaparece o sujeito que fala. Deleuze se inscreve nesta linhagem do pensamento do Fora. A presença que Blanchot identifica como sendo “a intimidade enquanto Fora, o exterior tornado intrusão” 16 é o plano de imanência em termos deleuzianos.

O Fora: do poder ao possível. Enquanto «historiador da filosofia» é bem sabido que Deleuze procurou exercer a arte de fazer retratos mentais, conceptuais: seria o caso de Espinosa, Kant, Leibniz, Foucault. Assim como isso acontece em pintura, a história de filosofia, segundo ele, deve, não recontar o que disse um filósofo, mas dizer o que ele subentendia necessariamente, aquilo que ele não dizia e que está entretanto presente no que ele diz. Em Foucault (1986), Deleuze recruta experiências do pensamento do Fora e activa problemas fundamentais para o seu entendimento. Do pensamento de Foucault ele subtrai três problemáticas fundamentais: o Saber, o Poder e a Subjectivação. Nesta fissura criada pela subtracção operada no pensamento foucaultiano – desta maneira deslocado, desprovido das suas constantes e assim submetido a uma nova confrontação com outras determinações –, surgem questões que às vezes tornam indiscerníveis os territórios deleuzianos e os de Foucault: o que é que podemos saber, ou o que é que podemos ver e dizer em

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certos contextos; quais são os poderes a enfrentar e quais são os nossos modus vivendi, os nossos processos de subjectivação. Segundo Deleuze, os primeiros livros de Foucault – As palavras e as coisas, História da Loucura, Isto não é um cachimbo, O Nascimento da clínica e Vigiar e Punir – problematizam a questão do saber. O saber é um plano formal em que tudo se dá conforme um registo de visibilidade (aquilo que pode ser visto, «o visível») e um registo de enunciação (o que pode ser dito, «o dizível» ou «o enunciável»). Cada época histórica organiza-se em função das constelações que o visível e o enunciável podem constituir. O ofício do arqueólogo teria como tarefa definitória revelar o que se pode dizer e ver numa determinada época. Isto é, demarcar as camadas próprias de cada período com as suas mutações e as suas constantes. Acontece que, esta tarefa não é tão simples como possa parecer, visto que as visibiliadades não são directamente observáveis nas coisas nem os enunciados se deixam ler imediatamente nas palavras. O que não quer dizer que haja uma espécie de ocultação; tudo é dito e visto em cada estrato em função das condições de possibilidade do enunciado e do observável daquela época. Há no entanto que fazer uma rasura das palavras e das coisas. Ora, segundo Foucault visto por Deleuze o saber funda-se nos limites do visível e do enunciável. Esta ideia de que o enunciado nunca poderá conter o visível e vice-versa perpetua-se também num outro livro de Foucault: Isto não é um cachimbo. Aprendemos com ele que há em Magritte uma disjunção permanente entre texto e figura. Na medida em que nos é impossível não tentar relacionar o texto com a imagem, deparamo-nos simultaneamente com outra impossibilidade: aquela de encontrar uma relação associativa entre o signo verbal e a representação visual. Esta fissura entre o visível e o enunciado vem estremecer a tradição da mimesis. É com Vigiar e Punir que as preocupações de Foucault operam a transição do saber ao poder. Assistimos assim da passagem do Foucault arqueólogo a um Foucault genealogista. Se o saber é constituído pelas visibilidades e pelos enunciados, o plano do poder é feito de relações de forças móveis, é informe, diagramático, não-estratificado. Entre o saber e o poder, há por-

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tanto uma diferença de natureza, mas há também uma relação, ou melhor, uma não-relação. As relações de forças virtuais dos diagramas ganham forma no plano do saber, actualizam-se nos arquivos, isto é, no visível e no enunciável. Há ainda uma outra componente que escapa ao complexo saber-poder: a linha do Fora. Se os diagramas são compostos por relações de força que se encontram num perpétuo devir, a linha do Fora sai dos limites do saber e do poder e surge como um espaço anterior, nãoestratificado, uma «nuvem não-histórica», preindividual e intempestiva. Este domínio do indeterminado e do intempestivo situa o Fora num espaço de virtualidades reais que resistem duma certa maneira ao poder: “o pensamento do Fora é um pensamento de resistência” 17 . Que tipo de linha é esta se a relação que se estabelece com ela já não é de poder, nem de saber? A estas perguntas, Deleuze já tentou responder numa entrevista com Claire Parnet de 1986: “É difícil de falar disso. É uma linha que não é abstracta, embora não tenha nenhum contorno. Não está no pensamento nem nas coisas, mas ela se encontra em todos os lados onde o pensamento enfrenta qualquer coisa como a loucura, e a vida, qualquer coisa como a morte. Miller dizia que a encontramos numa molécula qualquer, nas fibras nervosas, nos fios da aranha. Pode encontrar-se a terrível linha da baleia, da qual fala Melville em Moby Dick, que nos pode levar ou estrangular quando se está a desenrolar. Pode ser a linha da droga de Michaux (...) pode ser a linha dum pintor, como aquelas de Kandinsky ou aquelas que levam Van Gogh à morte. Acho que estamos a cavalgar tais linhas cada vez que pensamos feitos vertigem ou que vivemos no meios destas forças” 18 . Podemos então afirmar com Deleuze que o próprio poder dá origem a uma força que resiste ao próprio poder. O Fora enquanto força de subversão não pára de criar resistências que encarnam por vezes a cabeça da morte. Seria então preciso dobrar essa tendência mortal, essa linha mortífera, dando lugar a uma dobra, a uma vida, um dentro no interior do Fora. Quando isso acontece, o Fora entra numa relação de força con-

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sigo mesmo, entra num processo de auto-afecção e é isso que Foucault entende por subjectivação 19 . Trata-se de uma relação da força consigo (ao passo que o poder era a relação da força com outras forças), trata-se de uma «dobra» da força, da constituição de modos de existência. Em O Nascimento da clínica há uma passagem dedicada a Bichat em que Foucault analisa a concepção da morte. Bichat apresenta a morte como violenta, plural e coextensiva da vida. Em vez de pensar a morte como fizeram os clássicos, como um ponto, converte-a numa linha que afrontamos continuamente, que trancamos até ao momento em que se acaba. É disso que se trata, enfrentar a linha do Fora, dobrá-la como quem fecha a chave os quartos da casa 20 . Num outro conto de Cortázar, Carta para una señorita en París, o protagonista tem a extraordinária capacidade de vomitar coelhos. O que é estranho não é o facto em si, mas o tom natural com o qual a personagem explica à dona da casa, ausente de momento, a presença dos coelhos na casa. Como se experimentar essa linha do Fora já não tivesse nada a ver com a experiência da angústia dos irmãos que se vêem expulsos da casa. Aprendemos assim que experimentar a linha do Fora, para além de levar a uma prova demasiado violenta, demasiado rápida que nos introduz numa atmosfera irrespirável, de asfixia, pode também levar a uma vivência, a uma prática. A personagem de Carta para una señorita en París faz dela, na medida do possível e durante todo o tempo que lhe é possível uma arte de viver. Como se estivesse a dobrar a linha do Fora, ele cria uma zona onde lhe seja possível, residir, respirar, lutar, e assim pensa 21 . Dobrar a linha do Fora é despregar o processo de subjectivação. Criar novos modos de existência dobrando a força é fazer do Fora, quando não uma ars moriendi, uma ars vivendi e, desta maneira, cravar no interior da resistência ao poder a metástase do possível.

Conceito, Percepto, Afecto. É óbvio que a existência ou não de um mundo exterior ao sujeito pensante não está aqui em jogo e que esta questão não faz sentido na problemática

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deleuziana. Quando Deleuze fala do «Dehors», esta palavra tem dois sentidos complementares – salienta François Zourabichvili num ensaio recente: “1/o não-representável, a saber a exterioridade da representação ; 2/a consistência mesma do nãorepresentável, a saber a exterioridade das relações, o campo informal das relações” 22 . Deleuze chama de plano de imanência a este campo transcendental onde nada é pressuposto que haja a priori com excepção da exterioridade que rejeita precisamente qualquer pressuposto: “Poderíamos dizer que O plano de imanência é ao mesmo tempo aquilo que deve ser pensado, e o que não pode ser pensado. Isto é, o não-pensado do to” 23 . A questão que se põe é saber em que condições podemos entrar em relação com um elemento desconhecido, com o Fora? Como é que se pode alcançar o Fora? Por que meios? E como é que “cavalgar a linha do Fora” determina uma mutação do pensamento? Tanto a filosofia como a arte são modalidades do pensamento, e não o são menos porque o elemento próprio do pensamento filosófico seja o conceito e os do pensamento artístico o afecto e o percepto. A filosofia, enquanto criação de conceitos só vive da sua confrontação com a arte, a literatura e a ciência, com o não-filosófico. Deleuze reclama as origens das ideias filosóficas não só destas disciplinas como também da história interna da filosofia 24 . Porque é a partir da literatura e não do interior da história da filosofia que se inaugura um novo pensamento. A filosofia e a literatura são inseparáveis: “são necessárias as duas (...) como se fossem duas asas ou duas barbatanas” 25 . Toda a obra de Deleuze é, de facto, atravessada pela literatura: os livros sobre Proust, Beckett, Carmelo Bene, vários ensaios dedicados à literatura anglo-americana reunidos na sua última publicação, Critique et Clinique, falam desta presença. Por que esta aproximação? Porque, diz ele, tanto a literatura como a filosofia se alimentam da mesma fonte, o pensamento, e as duas tendem para a mesma finalidade: “inventar novas possibilidades de vida” 26 , “libertar a vida de todos os sítios onde esteja presa” 27 . As grandes personagens da literatura são grandes pensadores e a filosofia não pode prescindir das suas personagens 28 .

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A obra de arte só vale pela sua consistência interna, a sua autonomia. Ora, a obra não se parece com nada, não imita nada. A verdade dela é existir por si própria, sem denotar ou remeter para um mundo Fora dela que reflectisse ou expressasse: a obra é um “monumento” 29 , um ser autónomo e suficiente, um “bloco de sensações” 30 . A literatura não serve para nomear o mundo, “porque já está feito” 31 – pela linguagem comum – mas para nomear “uma espécie de duplo do mundo capaz de recolher a violência e o excesso” 32 e isto com o fim de relançar as forças de vida e de devir no seu poder de criação e de invenção. “É aquilo que Deleuze entende por devir. Escrever é uma questão de devir, sempre inacabada, sempre em curso de se realizar, e que transborda qualquer matéria vivível ou vivida” 33 . A literatura e a filosofia vêem de uma única e mesma actividade, pensar, e as duas só têm uma só finalidade: “inventar novas possibilidades de vida” 34 . Este programa não é somente apropriado à literatura mas também a todas as formas de pensamento e de vida: contra a imitação reprodutiva da vida a produção de vida nova. É esta a meta de qualquer grande escritor ou grande filósofo.

Visões e Audições. A nova língua que nasce no interior da língua materna não desemboca no nada; não está fechada ou recolhida sobre si mesma. Ela nos faz ouvir ou ver alguma coisa através das suas palavras e os seus procedimentos. A literatura, diz Deleuze, é feita de Visões e de Audições. Mas aquilo com o qual ela comunica, não é o mundo da percepção que ela representaria, nem o autor cujos estados de alma poderia expressar. Os perceptos, que contêm as visões e as audições, e os afectos, são diferentes das percepções dos objectos e das afeições do sujeito que perceve. O que é um percepto? O percepto é uma visão, uma audição, mas não uma percepção. Pelo contrário, ele é este bloco de sensações, que na percepção nos faz ver, perceber o imperceptível, aquilo que se encontra no limite do percepcionado, para além de qualquer objecto e das categorias perceptivas que organizam a experiência do mundo, como para além de qualquer cliché ou estereótipo. Da mesma maneira o

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afecto é aquilo que nos permite levar as nossas afeições ao limite daquilo que nós sentimos, para nos lançar naquilo que Deleuze chama de devir, ou seja uma intensidade impessoal, para além de qualquer sujeito pessoal, de qualquer individualidade. Por outras palavras: “escrever não é contar as nossas lembranças, as viagens, os amores e os lutos, os nosso fantasmas” 35 — “Não escrevemos com as nossas neuroses” 36 , porque são consequências do percurso da vida. A literatura é uma enorme fabulação. Mas, é certo, para Deleuze, fabular não consiste e m imaginar e projectar o seu eu; “não se trata de uma história privada” 37 . A literatura não revela o mundo (nem o ser no mundo na sua experiência originária), nem expressa um sujeito autor. Ela não tem outro sujeito ou objecto senão estas visões e audições, os perceptos da vida que fazem desbordar as percepções e as afeições vividas para caminhar na direcção do limite da linguagem. A fabulação criadora não tem nada a ver com a lembrança mesmo que amplificada, nem com um fantasma. De facto, o artista, e portanto o escritor também, transborda os estados perceptivos e as passagens afectivas do vivido. É um «voyant»: “Viu na vida alguma coisa de muito grande, demasiado, intolerável” 38 . A subversão da linguagem, enquanto meio para chegar a sua finalidade última, é portanto inseparável duma certa forma de relação com o mundo que não perde de vista. A literatura como invenção de novas maneiras de sentir e de pensar partilha esta finalidade última com a filosofia. Mas qual é o objectivo próprio da literatura? A literatura não pode representar o mundo também não pode comunicar, transmitir uma mensagem, porque para isso temos a linguagem comum, para isso, ao nível mundial temos o «standard English». Então, para que é que serve a literatura? Resposta: para criar uma nova linguagem 39 , a única que pode permitir a criação de novas possibilidades de vida, de lançar devires. Esta função pressupõe que nos afastemos do nível descritivo e comunicativo da linguagem, desviando-nos das conotações codificadas usuais. O que, em termos deleuzianos, inventar significa inventar uma nova língua 40 . Resulta portanto uma operação dupla: a literatura apresenta dois aspectos, na medida em que opera uma decomposição ou

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uma desconstrução da língua materna, inventa uma nova língua, pela criação da sintaxe (...). É como se a língua caísse num delírio, que a faz sair dos seus contornos. No entanto, este trabalho de desconstrução da língua, esta saída dos contornos habituais, a agramaticalidade e a asintaxe às quais o escritor pode recorrer não são gratuitas. O papel subversivo e transgressivo, intempestivo, da literatura encontra-se ligado a um poderoso desejo de liberdade, de libertação de fluxos, de linhas de fuga do desejo. O que é, enfim, este limite para o qual a obra literária nos conduz? A obra comunica com o seu Fora, diz Deleuze 41 . As visões e as audições, que compõem o Fora, o que é que nos fazem então ver e ouvir? Aquilo que está no limite do visível e do audível: é por isso que Deleuze diz que o escritor (como o filósofo, aliás) testemunha uma coisa que demasiadamente grande para ele. O artista da mesma maneira que o filósofo voltam sempre do país dos mortos 42 . Porque pensar como um artista ou como um filósofo não é uma coisa inocente. É um exercício perigoso: “Pensar é sempre seguir uma linha de bruxaria” 43 . Para bem entender este tema no qual se concentra o essencial do pensamento deleuziano, temos que voltar a uma questão aparentemente trivial: o que é pensar? É enfrentar o caos. Como é que se opera este lance no caos do devir que desfaz qualquer identidade, estabilidade e continuidade? O pensador leva consigo uma espécie de prancha, como os surfistas em alto mar, ou então ele esboça um plano que organiza este caos, quase como se estivesse a cortar um pedaço. É neste plano que ele vai tentar fazer funcionar os seus conceitos, afectos ou perceptos. É isto pensar: “atirar-se no abismo para tentar iluminá-lo um segundo. De onde o ar estranho dos pensadores.” 44 As audições e as visões não se separam portanto da escrita, duma nova língua, que teremos talhado na língua usual da comunicação. Assim, as visões e as audições só nos são dadas através da linguagem, graças aos meios literários específicos. Logo Deleuze não fala de experiências inefáveis, quase místicas, para além das palavras, para Fora da linguagem. Aquilo que se encontra no limite da linguagem ainda é linguagem no seu borde interno, e não remete para aquilo que seria Fora da linguagem, porque

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sairíamos da literatura, do pensamento. É sempre através das palavras, entre as palavras, nos seus interstícios, através da sua organização, composição, ou seja através daquilo que designamos como estilo, que ouvimos e vemos 45 , que produzimos uma linha de fuga, um devir. Aquilo que nos faz ver e ouvir é o Fora que se mostra na linguagem, o seu próprio Fora. O Fora não está Fora da linguagem. As visões e as audições são somente o avesso da linguagem o qual enquanto avesso ou limite ainda mantém uma relação com ela. “O limite não está fora da linguagem, ela é o seu fora : ela é feita de visões e audições non langagière, é certo, mas que só a linguagem as torna possíveis” 46 . Escrever é portanto levar a linguagem ao seu limite para que possa captar aquilo que não pertence a nenhuma outra linguagem – silêncio e música – estas visões e audições que são mesmo a passagem da vida na linguagem 47 .

Estética da subversão: n-1. Deleuze desenvolve uma estética da linha libertadora em relação com às autoridades sociais que se servem da língua de comunicação como de um instrumento privilegiado. A questão estética consiste agora em precisar como é que, no plano concreto, se pode produzir este lançar de linhas de fuga. O princípio único assenta no primado dos procedimentos de minoração e subtracção. Para quê reduplicar a realidade percebida com uma outra fictícia, narrada? Para se emancipar do sistema dominante e dos poderes da língua que nos aprisionam. E para isso é preciso minorar, subtrair ou desfazer as formas canonizadas pela linguagem. A invenção consiste em criar e não em descobrir ou reencontrar aquilo que precede o mundo perceptível e a linguagem consagrada da língua. Não se trata de nenhuma maneira, como quer a fenomenologia, de um retorno a qualquer coisa anterior, dada a um pré-conhecimento, que seja o sentido de ser ou um dito fundador instaurado pelos presocráticos, como para Heidegger, ou seja uma experiência primordial do mundo, antepredicativo, que marca a nossa pertença originária ao mundo e que nos permite o habitar.

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O livro também, filosófico ou literário, segundo Deleuze, é conseguido quando salienta o primado de um acto, de um fazer, entendido como uma projecção de linhas de fuga ou de desterritorialização, e não ao expressar um sentido, mesmo que primordial, ao transmitir uma mensagem. A obra literária é sem sujeito expressado nem objecto representado: “Um livro não tem objecto nem sujeito” 48 . Então, o que é a obra, o que é que ela faz? Agencia: “O livro, agenciamento com o fora, contra o livro imagem do mundo” 49 . Como o Fora não tem imagem, de significação ou de subjectividade, já não se trata de imitar, mas de agenciar. Já não o livro imagem (do mundo, duma sociedade, duma época), não o livro mensagem, o livro código com uma unidade de sentido secreta. A obra literária é um agenciamento de fluxos heterogéneos, ou de linhas de fuga que valem por si mesmas, pelo seu poder de subversão dos sentidos dominantes e de libertação dos sujeitos dominados. Consequência: o sentido está no uso. É o pragmatismo deleuziano. Um livro tem que ser funcional: “é uma caixa de ferramentas” 50 . Deve servir como peça de agenciamento libertador. Resulta assim que qualquer escrita tem uma dimensão necessariamente política, porque o livro tem como fim conectarse com todos os géneros de fluxos, entre os quais os sociais também. Ao criar um rizoma com o mundo histórico e social, a escrita cria uma realidade micropolítica no campo social. Como concretamente subverter, desfazer o poder descritivo da linguagem narrativa e escapar à doxa que dirige esta função da linguagem? Existem alguns procedimentos que podem contribuir para o efeito entre os quais salientamos os mais importantes: a) as fórmulas (exemplo de Bartleby: I would prefer not...); b) “les mots valises” (Lewis Carroll) que condensam e entrecruzam significados múltiplos para abrir um sentido indeterminado, suspenso, a completar. ex: flor santástica = manjericão; c) os termos agramaticais como no caso de Louis Wolfson, «l’étudiant d’idiomes dément», aquilo que ele faz é traduzir seguindo certas regras: traduzir uma palavra da sua língua

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materna – inglês – com uma palavra – do francês, alemão, russo ou hebraico – de sentido semelhante que tenha sons ou fonemas comuns (por ex: a palavra Tree – Tere – que através de um trabalho fonético torna-se Dere – e acaba no russo derevo); d) as repetições diferenciais e as variações que fazem a língua gaguejar (cf. Gherasim Luca) sacudindo as suas constâncias e as suas invariantes (“é a língua inteira que varia para eliminar um bloco sonoro último, um único sopro ao limite do grito” 51 ). Deleuze usa a linguística como ferramenta crítica. E para tal efeito, o procedimento linguístico é imprescindível – afirma Deleuze no ensaio sobre Louis Wolfson. A linguística em si não lhe parece, no entanto, essencial. O que interessa é o caracter activo da língua. Todas as palavras contam uma história de amor, uma história de vida e de saber, mas essa história não está designada nem significada pelas palavras, nem traduzida de uma palavra a outra. Essa história é o que há de impossível na linguagem e por isso lhe pertence ainda mais estreitamente: é o seu Fora. Deleuze reconhece neste empurrar da língua para o seu próprio limite, para o seu Fora agramatical, a-significante uma operação de subtracção, uma minoração de sentido, de significações, que têm como fim produzir um efeito de indeterminação que lhes permite desdobrar uma fuga, uma polivocidade. A crítica e clínica deleuziana, embora marcadas pelo devir asintáctico, agramatical da língua no seu processo de criar uma língua estrangeira na própria língua materna, mantêm uma relação com os fluxos do social, fazem corpo com as forças do Fora, criam uma micropolítica. Mais do que isso, quando dentro de uma língua se cria outra língua, a linguagem na sua totalidade tende para este limite a-sintáctico. É óbvio que para Deleuze não há uma metalinguagem nem espécies de linguagem. Há diferentes jogos da língua, isso sim, como por exemplo o jogo linguístico do quotidiano, o jogo do discurso judicial, o da literatura, etc. Todos eles têm limites. Não se podem infringir os códigos da linguagem quotidiana como também não se podem infringir as regras dum regulamento processual. A literatura também tem os seus limites mas é sobretudo o lugar onde os próprios limites estão em jogo. O

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agenciamento, como já foi referido, é uma maneira de entender o jogo linguístico duma maneira pragmática. Afinal a teoria da linguagem deleuziana é uma pragmática ampliada. Porque os limites do jogo linguístico se referem a componentes de expressão mas também a componentes exteriores à expressão. O jogo linguístico nunca é total, universal. Basta a contaminação com o «black English» e a mudança de género se produz através do Fora. O que é que têm em comum todos estes procedimentos? Um processo de minoração que desencadeiam um devir, lançam uma linha de fuga. Percebemos então por que o secreto do múltiplo, a sua fórmula reside em n-1, na subtracção e não na adição (de unidades prévias). Percebemos também por que Deleuze fala de «littérature mineure». Porque aquilo que Deleuze entende por isso é sempre uma minoração, uma subversão do maioritário e do modelo que ele constitui para a maioria (a qual por natureza é conformista, que precisa de um modelo para estar conforme). A literatura menor (que não é forçosamente aquela das minorias étnicas ou doutras) pressupõe uma minoração no sentido quase matemático do termo: é preciso reduzir, diminuir a importância dos significados estabelecidos, subtrair, deformar a sintaxe e a gramática da língua para soltar os devires contra a história gregária e democrática, consensual e maioritária. Ou seja a obra só é verdadeira na medida em que traça linhas de fuga e faz corpo rizomático com fluxos sociais. O Fora funciona como um motor do pensamento deleuziano sobre a literatura. É na articulação do/com o Fora que se criam os conceitos de literatura menor, devir minoritário/mulher, percepto, afecto, plano de imanência, ritornello, etc. E é através da contaminação do Fora que se dá a mutação no pensamento. Haverá, sem dúvida, mais dobras desta linha de «sorcière»; ficamos, no entanto, por aqui, não seja que ao dobrá-la ainda mais percamos a vertigem do seu contacto, não seja que ao desdobrar mais um pli este seja o último e nos encontremos, sem querer, Fora, na rua e com a casa tomada.

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Notas 1 Cf. Cortázar, Julio, “Casa tomada” in Bestiario, Madrid, Alfaguara, 1998, pp. 16-17 (Tr. A.): “El sonido venía impreciso y sordo, como un volcarse de silla sobre la alfombra o un ahogado susurro de conversación. También lo oí, al mismo tiempo o segundo después, en el fondo del pasillo que traía desde aquellas piezas hasta la puerta. Me tiré contra la puerta antes de que fuera demasiado tarde, la cerré de golpe apoyando el cuerpo; felizmente la llave estaba puesta de nuestro lado y además corrí el gran cerrojo para más seguridad. (...) Tuve que cerrar la puerta del pasillo. Han tomado la parte del fondo. 2 Cf. Ibid., pp. 20-21 (Tr. A.): “Como me quedaba el reloj pulsera, vi que eran las once de la noche. Rodeé con mi brazo la cintura de Irene (yo creo que ella estaba llorando) y salimos a la calle. Antes de alejarnos tuve lástima, cerré bien la puerta de entrada y tiré la llave a la alcantarilla. No fuese que a algún pobre diablo se le ocurriera robar y se metiera en la casa, a esa hora y con la casa tomada”. 3 Cf. Deleuze, “Lettre à un Critique Sévère”, in Pourparlers, Paris, Minuit, 1990/2000 (PP), p. 17. 4 Deleuze-Guattari, Qu'est-ce que la philosophie?, Paris, Éditions de Minuit, 1991 (QPh); p. 80. Cf. “La philosophie ne consiste pas à savoir, et ce n’est pas la vérité qui inspire la philosophie, mais des catégories comme celle d’Intéressant, de Remarquable ou d’Important qui décident de la réussite ou de l’échec” (QPh 80). 5 Deleuze, Foucault, Paris, Éditions de Minuit, 1986 (F); pp. 92 y 126. 6 QPh 59. 7 Cf. PP 17 : “on considère le livre comme une petite machine asignifiante ; le seul problème est «est-ce que ça fonctionne, et comment ça fonctionne ?» Comment ça fonctionne pour vous ? Si ça ne fonctionne pas, si rien ne passe, prenez donc un autre livre. Cette autre lecture, c’est une lecture en intensité : quelque chose passe ou ne passe pas. Il n’y a rien à expliquer, rien à comprendre, rien à interpréter. C’est du type branchement électrique. Corps sans organes, je connais des gens sans culture qui ont tout de suite compris, grâce à leurs «habitudes» à eux, grâce à leur manière de s’en faire un. Cette autre manière de lire s’oppose à la précédente, parce qu’elle rapporte immédiatement un livre au Dehors”. 8 PP 18, “Un livre c’est un petit rouage dans une machinerie beaucoup plus complexe extérieure. Écrire c’est un flux parmi d’autres, et qui n’a aucun privilège par rapport aux autres, et que entre dans des rapports de courant, de contre-courant, de remous avec d’autres flux, flux de merde, de sperme, de parole, d’action, d’érotisme, de mannaie, de politique, etc. Comme Bloom, écrire sur le sable avec une main en se masturbant de l’autre – deux flux dans quel rapport ? Nous, notre dehors à nous, du moins un de nos dehors, ç’a été une certaine masse de gens (surtout jeunes) que en ont marre de la psychanalyse”. 9 Pelbart, «Literatura e loucura: da exterioridade à imanência»: “Las fuerzas del afuera (...) no son así llamadas apenas porque vienen de afuera, del exterior, sino porque ponen al pensamiento en estado de exterioridad, jugándolo en un campo informal donde puntos de vista

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heterogéneos, correspondientes a la heterogeneidad de las fuerzas en juego, entran en relación de no-relación”. Cf. François Zourabichvili, Deleuze, une philosphie de l´événement, Paris, PUF, 1994, p. 45. 10 Cf. Cotazar, op. cit., p. 19: “De día eran los rumores domésticos, el roce metálico de las agujas de tejer, un crujido al pasar las hojas del álbum filatélico. (...) En la cocina y el baño, que quedaban tocando la parte tomada, nos poníamos a hablar en voz alta o Irene cantaba canciones de cuna. En una cocina hay demasiado ruido de loza y vidrios para que otros sonidos irrumpan en ella. Muy pocas veces permitíamos allí el silencio (...)”. 11 Cf. Deleuze-Guattari, Mille Plateaux, Paris, Minuit (MP) ; p. 382. 12 Ibidem, cf. “Cuando Irene soñaba en alta voz, yo me desvelaba en seguida.” 13 PP 133. 14 Cf. P 150: “Le Dehors, chez Foucault comme chez Blanchot, à qui il emprunte le mot, c’est ce qui est plus lointain que tout monde extérieur. Du coup, c’est aussi bien ce qui est plus proche que tout monde intérieur. D’où le renversement perpétuel, du proche et du lointain. La pensée ne vient pas du dedans, mais elle n’étend pas davantage une occasion du monde extérieur. Elle vient de ce Dehors, et y retourne, elle consiste à l’affronter. La ligne du dehors, c’est notre double, avec toute l’altérité du double”. 15 Foucault, «La pensée du dehors», (publicada pela primeira vez in Critique, nº 229, Junho de 1966) in Dits et écrits I, Paris, Gallimard, 1994 : “(...) chez Nietzsche, quand il découvre que toute métaphysique de l'Occident est liée non seulement à sa grammaire (ce qu'on devinait en gros depuis Schlegel), mais à ceux qui, tenant le discours, détiennent le droit à la parole; chez Mallarmé, quand le langage apparaît comme congé donné à ce qu'il nomme, mais plus encore -depuis Igitur15 jusqu'à la théâtralité autonome et aléatoire du Livre15 -le mouvement dans lequel disparaît celui qui parle; chez Artaud, lorsque tout langage discursif est appelé à se dénouer dans la violence du corps et du cri, et que la pensée, quittant l'intériorité bavarde de la conscience, devient énergie matérielle, souffrance de la chair, persécution et déchirement du sujet lui-même; chez Bataille, lorsque la pensée, au lieu d'être discours de la contradiction ou de l'inconscient, devient celui de la limite, de la subjectivité rompue, de la transgression; chez Klossowski, avec l'expérience du double, de l'extériorité des simulacres, de la multiplication théâtrale et démente du Moi”. 16 Cf. Blanchot, L’entretien infini, Gallimard, 1969, p. 65-66 : “l’intimité comme Dehors, l’extérieur devenu intrusion qui est le renversement de l’un et de l’autre”. 17 F 96. 18 PP 151: “C’est difficile d’en parler. C’est une ligne qui n’est pas abstraite, bien qu’elle ne forme aucun contour. Elle n’est pas plus dans la pensée que dans les choses, mais elle est partout où la pensée affronte quelque chose comme la folie, et la vie, quelque chose comme la mort. Miller disait qu’on la trouvait dans n’importe quelle molécule, dans les fibres nerveuses, dans les fils de la toile d’araignée. Ce peut être la ter-

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rible ligne à baleine, dont parle Melville dans Moby Dick, que peut nous emporter ou nous étrangler quand elle se déroule. Ce peut être la ligne de drogue de Michaux, (...), ça peut être la ligne d’un peintre, comme celles de Kandinsky, ou celle dont meurt Van Gogh. Je crois que nous chevauchons de telles lignes chaque fois que nous pensons avec assez de vertige ou que nous vivons avec assez de forces”. 19 Não há um sujeito prévio, a subjectividade deve ser produzida. Dobrar a força é, portanto, dar consistência a novas modalidades de existência, novas subjectividades. 20 PP 150. 21 Cf. PP 151: “Ployer la ligne pour arriver à vivre sur elle: affaire de vie ou de mort. La ligne, elle ne cesse de se déplier à des vitesses folles, et nous, nous essayons de plier la ligne, pour constituer «les êtres lents que nous sommes» (...)”. 22 Cf. Zourabichvili, “Deleuze. Une philosophie de l’événement”in AAVV, La philosophie de Deleuze, Paris, PUF, 2004, p. 49 : “1/le nonreprésentable, ou le dehors de la représentation; 2/la consistance même du non-représentable, à savoir l’extériorité des relations, le champ informel des relations”. 23 QPh 59 : “On dirait que LE plan d’immanence est à la fois ce qui doit être pensé, et ce qui ne peut pas être pensé. Ce serait lui, le nonpensé dans la pensée. C’est le socle de tous les plans, immanent à chaque plan pensable qui n’arrive à le penser. Il est le plus intime dans la pensée, et pourtant le dehors absolu”. 24 Deleuze-Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1977 (D), p. 89 : “La philosophie naît ou est produite du dehors par le peintre, le musicien, l’écrivain (...). Sortir de la philosophie, faire n’importe quoi, pour pouvoir la produire du dehors. Les philosophes ont toujours été autre chose, ils sont nés d’autre chose”. 25 QPh 43. 26 Deleuze, Critique et clinique, Paris, Editions de Minuit, 1993 (CC); p. 15. 27 CC 14 28 Cf. todo o capítulo 3 de Qu’est-ce que la philosophie?, “Les personnages conceptuels”. 29 QPh 158. 30 QPh 155; cf. QPh 155: “L’artiste crée des blocs de percepts et d’affects, mais la seule loi de la création, c’est que le composé doit tenir tout seul” ; cf.: QPh 158 : “Il est vrai que toute oeuvre d’art est un monument…”. 31 Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch, Paris, Éditions de Minuit, 1967 (PSM); p. 33. 32 PSM 33. 33 CC 15. Cf. CC 19 : “Écrire est une affaire de devenir, toujours inachevé, toujours en train de se faire, et qui déborde toute matière vivable ou vécue”. 34 CC 14-15; QPh 162. 35 CC 13. 36 CC 13.

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Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

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CC 9. QPh 161; cf. ss: “Il a vu dans la vie quelque chose de trop grand, de trop intolérable aussi, et les étreintes de la vie avec ce qui la menace…”. 39 PSM 16. 40 Cf. CC 15 : “le problème d’écrire : l’écrivain, comme dit Proust, invente dans la langue une nouvelle langue, une langue étrangère en quelque sorte”. 41 CC 9. 42 CC 67. 43 CC 44. 44 CC 71. 45 CC 9. 46 CC 9. 47 CC 16. 48 MP 9. 49 MP 66. 50 MP 72. 51 CC 139. 38

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E cantam na planura José Luis Pardo

1. Mamã, eu quero saber 1 Mille Plateaux está sobre a mesa, aberto na página 382, onde se conta a história de uma criança que caminha na escuridão trauteando uma cantilena. Trata-se certamente de uma cantilena que ouviu em alguma parte (e mesmo que, agora, no meio da noite, isto não tenha nenhuma importância, ronda sempre a pergunta sobre a procedência dessa ladainha), provavelmente nem sequer a reproduz com fidelidade, mas o caso é que essa cantilena o protege contra o caos, conjura e exorciza os monstros deformados – ou, melhor, a deformidade monstruosa na qual se desenham e redesenham constantemente os rasgos ameaçadores das criaturas da escuridão – que se entrevêem entre as sombras ocultando-se nelas, sem chegar nunca a mostrar-se abertamente, porque não têm figura nem contorno, mas que podem em qualquer momento impor a destruição absoluta. Para defender-se da cruel exterioridade, a criança – o vivente – não tem mais que uma ladainha cuja procedência ignora e que repete insistentemente para opor ao fundo amorfo, no que corre o risco de afogar-se, o frágil e precário perfil somente esboçado de uma forma que se repete periodicamente, que retorna sobre si e envolve o vivente numa espécie de abrigo no qual pode refugiarse da intempestiva tempestade, das inclemências do tempo, do tempo-río que tudo arrasta em direcção à desembocadura no fundo que dissolve toda a forma. “Retornar, inverter, reverter o tempo. Se o tempo musical fosse meramente irreversível, se fosse a pura e simples cadência, a música anular-se-ia por si só. Necessita da reversibilidade para existir. O pulsar de uma corda que vibra ou a vibração de uma coluna de ar são movimentos que revertem sobre si mesmos... A música é, pois, uma corrente irreversível obstruída, preenchida,

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saturada por uma reversão... O seu tempo dirige-se do passado para o futuro, mas é o tempo do retorno. Ritornelo, refrão” 2 . A cantilena retém por um momento o fluxo, dá-lhe forma, e o vivente conforma-se ao revestir-se com esse refrão que opera como recipiente que tenta conter o caos: não se trata de interromper o caudal – pois essa interrupção não é a vida, senão a morte nas águas estancadas –, trata-se de achar o modo de “se inserir numa onda que preexiste”, de “ser acolhido no movimento de uma grande onda, de uma coluna de ar ascendente” 3 . A arte de inventar cantilenas é tudo o que temos para levantar uma morada na qual nos proteger contra o caos, na qual escapar do nada. Se temos refrães é porque os refrães nos têm, nos sustêm local e momentaneamente, nos fazem um território e uma casa, fabricam as nossas horas e os nossos lugares.

2. De onde são os cantores Mas, que tem a ver com a filosofia esta cantilena? Porquê suster, como faz Deleuze, que a filosofia é uma cantilena? Segundo os pitagóricos, fundadores da ciência e da filosofia antiga, os números são a razão (ou inclusive a alma) das coisas, as coisas expressam números. Neste sentido, não podemos identificar «número» com «dígito» nem com «cifra», senão antes com «proporção». O que as coisas expressam são antes proporções, relações. E isto põe-se ainda mais de manifesto se repararmos que o modo usual de representação dos números entre os pitagóricos são as figuras, frequentemente híbridas de gnómônes e pontos, e que o seu modelo privilegiado são as concordâncias entre os intervalos da escala musical. O que significa que a mera existência de números (proporções entre os intervalos) pressupõe uma diferença de tensão, um desnível de intensidade. O continuum do som é a continuidade infinita destas variações de intensidade, tanto em termos de tensão (tons altos) como de distensão (tons baixos). A escala – a proporção numérica, a figura – opera um corte neste continuum ao

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introduzir uma «ordem artificial» (a progressão das notas) que reduz a «desordem natural» ao silêncio (os intervalos entre as notas são o que não se ouve quando o som devém música), que impõe ao imenso uma medida, que inventa uma cantilena.

3. Que os encontro muito elegantes Como se a natureza, contemplada como essa continuidade sónica de vibrações intensivas, contivesse em si mesma uma certa força, um certo poder para constituir, no mar ilimitado do som, pequenas ilhas ou pequenos arquipélagos diferenciados, limitados, cada um dos quais é uma selecção de figuras e, por tanto, uma música particular, uma cantilena. O facto de que cada colectividade construa os seus instrumentos musicais peculiares tem já, em si mesmo, algo de revelador: um instrumento musical é a materialização, empiricamente constituída ao longo do tempo de sedimentação dos costumes de uma comunidade, de um determinado modo de ouvir, de um padrão auditivo que comporta essa selecção sonora à que acabamos de referir-nos; o instrumento encerra a imensidade do vento numa coluna de ar, a imensidade das intensidades numa série de cordas ou de peles esticadas de modo distinto e «afinado», a imensidade do ruído cósmico numa gama de percussão. O instrumento é, em suma, a concreção física e sensível de essas figuras que se «experimentam» sobre as liras ou as cítaras. A figura (razão numérica ou proporção matemática) está, por assim dizê-lo, entesourada no instrumento que a materializa. O instrumento serve aos homens para fazer música, mas serve à natureza para fazer-se audível aos ouvidos dos homens, e por isso a função «primitiva» da música foi a comunicação dos viventes com os deuses, o modo de escutar a voz dos deuses, a maneira de fazer audível o imenso, o inaudível.

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4. E quero conhecê-los Mas nada disto é privilégio dos homens: a religiosidade é «o que temos em comum com os animais» 4 : tanto a conduta de luta pela vida como o comportamento religioso dependem do «factor estético bruto», da Arte – que tampouco é privilégio do homem – que consiste em inventar ladainhas a partir do caos 5 . Assim as coisas, a tese pitagórica de que as coisas – todas as coisas da natureza – expressam números ou, o que é o mesmo, a tese de que o número ou a figura é a natureza das coisas, equivale a considerar as coisas, na sua facticidade mais pura, como instrumentos: não – ou não somente nem em primeiro lugar – instrumentos ao serviço dos homens ou das comunicação entre os homens, senão instrumentos, meios, ferramentas, órgãos da natureza, estratégias mediante as quais a vida se torna sensível para os viventes e enche com o seu fluxo os seus recipientes. A vibração de uma corda, segundo todos os testemunhos, parece ser o cânone fundamental deste modelo (e inclusive se atribui a Pitágoras a invenção do kanôn ou monocórdio, instrumento de uma só corda sobre uma ponte móvel). Mas a vibração de uma corda mede-se em termos de amplitude e de frequência ou, como diziam os gregos, de velocidade, estando o incremento de velocidade relacionado normalmente com o incremento de altura tonal. Esta relação da intensidade de um som com a sua velocidade assinala numa direcção que frequentemente passa inadvertida: os «descobrimentos» relativos à música, que sempre se supõem relacionados com as proporções dos intervalos, são descobrimentos rítmicos, pois «ritmo» (e não medida) é o que significa a «proporção» grega; esse «continuum do som» com o que as figuras fazem música não pode ser somente a continuidade intensiva das tonalidades ou graus de tensão, desde o infinitamente baixo até ao infinitamente alto, senão também a continuidade infinitamente polirrítmica dos graus de rapidez ou de lentidão, de aceleração ou de «ralentização», os graus de movimento e de repouso, Motus et Quies.

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5. Que as suas trovas fascinantes Agora, isto coincide expressamente com as variações de Deleuze sobre o tema espinozista «o que pode um corpo»: os corpos medem-me pelas suas intensidades e pelas suas velocidades. Aqui, os números (proporções numéricas entre os intervalos musicais) pressupõem uma diferença de tempo, e a harmonia, adequação de coisas distintas, não é somente «afinação» ou afinidade de intensidades tonais, senão também concordância dos tempos ou das durações dos sons: também o ritmo é proporção numérica, figura que joga com o incomensurável. A natureza é um repertório de diferentes espacialidades e temporalidades distintas, uma colecção de «medidas» incomensuráveis: a temporalidade das flores (o seu tempo de crescimento e os seus ciclos reprodutores) não é comensurável com as eras geológicas da Terra ou com a idade das galáxias, como a espacialidade do caranguejo (as dimensões, as orientações e os vectores do seu spatium) é incomensurável com a da vespa ou a do astronauta. O ritmo – que, como a intensidade, é em rigor uma condição anterior à música mais que música enquanto tal – é a combinação de espaços e tempos incomensuráveis, a relação entre coisas desproporcionadas, a mistura bem medida do imenso. “É bem sabido que o ritmo não é medida ou cadência, nem sequer irregular... o ritmo é o Desigual ou o Incomensurável, não actua num espaço-tempo homogéneo, senão entre blocos heterogéneos..., o ritmo tem lugar entre dois meios, ou entre dois inter-meios, como entre duas águas, entre duas horas, entre cão e lobo, Twilight ou Zweilicht”. O ritmo não é medida, nem cadência, nem regularidade, nem compasso, o ritmo é intervalo.

6. Eu quero aprende-las No ano de 1618, René Descartes, fundador da filosofia e da ciência moderna, escreve um breve tratado de música. Reconhece desde o princípio duas únicas propriedades ao som:

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a intensio (a sua condição de agudo ou grave, segundo a tensão das superfícies que o produzem) e a duratio (ou seja, as partes nas que se encontra dividido). Neste contexto, Descartes faz uma observação que não tem deixado de suscitar a perplexidade dos seus leitores contemporâneos, já que relata a velha anedota segundo a qual um tambor feito de pele de cordeiro emudece perante o som de outro confeccionado com pele de lobo. Gilson manifestava a sua surpresa ante esta citação, na qual reconhecia o que provavelmente seria o único resíduo que deixaram na obra do filósofo “aquelas velhas tradições que povoam a Idade Média e o Renascimento”, as tradições mágicomisteriosas das simpatias e antipatias cosmológicas. Um resíduo arcaico nos tambores, pressentimento quiçá de outro mundo, de outro tempo, de outro ritmo, de outra música que não é, que já não pode ser a música de Descartes, música de percussão e não de corda. Os tambores são a excepção. A natureza soa, com certa intensidade, com certa duração. A intensidade marca, sem dúvida, umbrais: por cima ou por debaixo de certa intensidade, a natureza continua a soar, mas nós já não podemos ouvi-la; por cima de certa tensão, há materiais que se partem, por debaixo de certa tensão, a vibração pode ser nula. Mas não se trata de umbrais meramente fisiológicos. Os sons não só se ouvem, senão que se sentem com certas qualificações afectivas. A natureza soa no ar, mas ressoa na alma: ao soar, a natureza não só devém sensação, senão também e imediatamente sentimento. Comunicação das substâncias. Conexão da alma e do corpo. O fluxo sanguíneo sofre perturbações, turbulências provocadas pelo seu encontro com fluxos que provêem do exterior. A circulação do sangue é o ritmo dessas turbulências, a cantilena que se grava na glândula pineal construindo uma figura, um refrão, uma ladainha, uma muleta que, ao ser lida – ao ser ouvida, ao ser cantada ou repetida – pela alma, se converte numa inclinação mental, num afecto, num hábito, num habitat. Desde este ponto de vista, a segunda característica do som, a duração, requer uma explicação mais detalhada que a intensidade, pois não diz respeito unicamente ao ouvido, senão também à imaginação, à memória e ao hábito. “O tempo nos

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sons” – diz Descartes – “deve estar constituído por partes iguais”. A razão é óbvia: são as mais fáceis de sentir, e Descartes vem de definir a facilidade sensível pela minimização das diferenças (percebemos melhor as coisas quantas menos diferenças comportam); pode haver ritmos ou durações de partes desiguais, mas se a desigualdade superasse certa proporção, o ouvido já não poderia distingui-las, a música não se poderia cantar, não perceberíamos mediante a imaginação a cantilena como “uma unidade composta por numerosos membros iguais” porque não conseguiríamos recordar o primeiro quando escutamos o último e, em sentido estrito, já não haveria canção em absoluto. Só há uma excepção a esta regra: “a força do tempo é tal na Música que pode produzir qualquer prazer por si mesmo, como é evidente no tambor, instrumento militar, no qual não cabe considerar outra coisa que a medida. E esta pode estar formada, segundo estimo, não só de duas ou três partes, senão, talvez, inclusive de cinco, sete ou mais. Porque, como neste instrumento o sentido não tem que prestar atenção a nada excepto ao tempo, nele pode haver uma maior diversidade, para que cative mais o sentido”. Os tambores são a excepção.

7. De onde serão? (Ai, Mamã!) A natureza soa, devém sonora por caminhos ainda misteriosos que o físico deve esclarecer, mas não pode soar de qualquer modo, não todo som é música. Há, por assim dizer, deste modo, uma espécie de «a priori da sensibilidade»: para que a natureza chegue a devir música é necessária uma certa intensidade e uma certa duração, um certo tom e um certo ritmo. Se o som se compõe de muitas diferenças (se comporta muitas «partes desiguais» ou heterogéneas), encontrá-lo-emos arrítmico, transbordará as capacidades da nossa imaginação: transbordará a nossa memória porque não poderemos lembrar a primeira parte quando tenha lugar a última, transbordará os nossos hábitos porque, ao não poder lembrar o anterior, não po-

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deremos imaginar o que há-de vir, não poderemos achar a regra que governa a sucessão, a lei que rege a sequência. Salvo nos tambores, instrumentos de guerra que admitem ritmos mais complexos, durações carregadas de diversidade, porque neles a própria duração torna-se intensiva, porque são apenas ritmo, ritmo puro, puro tempo. A proporção dobra-se, redobra-se. Assim, nos limites da imaginação se adivinha uma espécie de ruptura da harmonia, um limite das consonâncias no que a natureza sonora, ao complicar os seus ritmos, abandona a sua estrutura musical para devir caos, som desmedido, imenso, ruído desordenado, dor e já não prazer dos sentidos, estridência insuportável ou silêncio exasperante. Como se se tratasse de uma cantilena composta de silêncios, de intervalos, um refrão cujas notas fossem exactamente o que não se pode ouvir, o que está entre uma nota e a seguinte ou a anterior, o rumor inclemente da tempestade, da grande onda em cuja corrente se inserem as ladainhas, o fundo amorfo no qual os instrumentos recortam as formas e as figuras, os espaços e os tempos. A natureza continua a soar, mas o seu som já não é música senão ruído; ou, no melhor dos casos, é ritmo, ritmo puro sem melodia, variedade sónica que, no limite e ainda nos limites do audível, pode conter infinitas desigualdades temporais. Do mesmo modo que há na natureza infinitas intensidades, infinitas vibrações de matérias estiradas que não podemos ouvir (ou, ao menos, não com claridade e distinção), a repetição periódica de tais sons constitui um conjunto de ritmos dos quais há muitos (inumeráveis) que a nossa imaginação não pode medir em termos temporais, que desafiam a potência da nossa memória e dos nossos hábitos, que constituem no domínio de um som a-métrico que nós percebemos como arrítmico ainda que seja perfeitamente (infinitamente) rítmico. Variações que o ouvido já não pode distinguir (mas que a mão percutindo a pele tensa do tambor pode continuar a experimentar, repercutindo e redobrando na sensibilidade total do corpo, para além do domínio meramente acústico), que já não produzem prazer (senão acaso temor e tremor, como os tambores rituais ou bélicos), uma música que já não se pode cantar, mas sim bailar.

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8. Serão da Havana? Serão de Santiago (terra soberana)? Uma música que não se pode imaginar nem recordar, trautear nem medir. A música imensa da natureza sonora, da qual a «música humana» não é mais que uma pequena parte, uma pequena ilha ou arquipélago de sons bem medidos e «agradáveis». Precisamente porque a Physis é matemática faz sentido que a filosofia comece pela música, e não só pela música como arte destinada ao prazer do ouvido, senão pelos ritmos puros ou durações a-temporais (amétricas); precisamente porque a natureza se tornou insensível e inimaginável pode a filosofia assenhorar-se do problema de como o imensoinsensível (os ritmos inimagináveis que não se podem medir, que não se podem ouvir) pode chegar a devir cantilena, de como o inaudível devém audível, de qual é a mathêsis mediante à qual a própria Physis devém sensível e sentida. Mas toda esta cantilena desafina estridentemente com a canção mais aplaudida pelos filósofos do século XX, e acaso com a própria canção da filosofia desde que se produzisse o que María Zambrano chamava «a condenação aristotélica dos pitagóricos», uma canção cujo refrão fui criado por Heidegger e reza assim: a linguagem é a casa do ser (deixem-se de músicas, nunca sairão da linguagem). Mas qualquer casa tem, se não um piso de cima e um de baixo (pois a filosofia moderna constata que é impossível distinguir níveis de linguagem altos ou baixos, nenhuma planta pode ser mais elevada o mais profunda que outra, todas se estendem numa superfície inabarcável), ao menos um exterior e um interior, pois de outro modo nem sequer seria uma casa. O exterior da casa, aquele que está do outro lado da sua porta, é o nada ou o caos (e por isso é preciso que a casa do ser não tenha portas nem janelas, porque todo o sentido e a verdade da linguagem se escapariam de um só golpe de vento por tais orifícios se se deixasse penetrar a corrente do não-ser). Fora da linguagem nada é. De modo que a suposição mais prudente, por muito aberrante que possa parecer, seria que habitamos uma casa que não tem exterior, que vivemos confinados num interior sem exterior

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no qual jamais entrámos e do qual jamais – nem sequer pelo negro buraco da morte – sairemos. Mas, então, o que vemos quando olhamos através das janelas? De onde procedem as imagens, as figuras, as formas? De onde procedem as canções? De onde são os cantores? Só podemos supor que as figuras foram gravadas nas paredes por outros habitantes que nos precederam nesta – humana, demasiado humana – morada, outros que usaram a casa antes que nós. E só abusivamente poderíamos pensar que tais representações são o modo em que imaginamos aquilo que não podemos ver, o modo em que representamos o que não existe (o exterior), o modo em que inventamos a ilusão de um Fora. Haveria antes que reconhecer que se trata do mesmo modo que habitamos a casa (habitar a casa consiste em povoa-la de imagens, de fantasmas, de ícones ou cópias que não têm modelo algum). Feroz antiplatonismo: ao menos, a caverna platónica apresentava uma abertura de onde se projectavam as sombras. Mas agora, nesta casa sombria nos seus sótãos, luminosa nas alturas, claro-escura rente ao chão, as sombras não procedem de nenhuma parte. Fim da metafísica, sem dúvida, se metafísica é a distinção entre o exterior e o interior, entre o adentro e o fora. Nem sequer podemos aceitar a ideia de que exista algo que não podemos ver, pois existir é ser e o ser está dentro da casa, não fora.

9. Som da Loma. Mas qualquer casa tem um exterior ainda noutro sentido: já não aquele que está «do outro lado da porta», para além do dintel, senão o outro lado da porta enquanto tal, ou seja, a fachada da casa, o seu rosto, a sua pele (que há-de existir, dado que as figuras pintadas no interior da casa têm espessura, volume, dado que as formas soam). Esta fachada não se pode ver (nem sequer mediante uma ilusão óptica) quando se olha, de dentro, para o exterior. Parece elementar: para ver este Fora da casa haveria que sair dela. E, se a linguagem fosse a casa do ser, isso significaria tanto como instalar-se em cheio no nada,

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significaria tanto como não ser. E, como seria possível ver sem ser, sem poder dizer o que se vê? Só poderia ver a fachada alguém que não habitasse a casa, alguém cujo ser não estivesse domiciliado na linguagem. As bestas, os deuses, as plantas, as pedras, os idiotas. Mas não, em todo o caso, na medida em que todos eles são, ou seja, não na medida em que os vemos da nossa casa, falamos deles e compreendemo-los ou usamo-los, senão, ao contrário, na medida em que eles não são nada (para nós), na medida em que nos vêm de fora, com um olhar que nos resulta ao mesmo tempo invisível e incompreensível; a verdade do que dizemos só reside no silêncio que eles (todos os que não somos nós, os que não são como nós) guardam acerca de nós (e que nos resulta inaudível e ininteligível). O que acontece é que uma casa sem fachada, sem pele, não é uma casa sem ser ao mesmo tempo (mas não no mesmo sentido) a intempérie do nada, o inclemente não ser. Como podemos sequer dizer que temos uma morada? Porque um interior sem exterior não é em absoluto um interior, não é cavidade sem ser superfície ou protuberância, não é morada protectora sem ser ao mesmo tempo a mais despida das intempéries, não é interior sem ser ao mesmo tempo exterior. Ali onde não há pontos de referência externos nem sequer tem sentido distinguir entre profundidade poética, altura científica e vulgar mediania da linguagem ordinária, nem sequer pode dizer-se que a casa tenha pisos, assoalhadas diferentes, lugares discerníveis, porque o ser não tem casa, (não) estamos presos em nenhuma parte. Descobrimos assim uma saída da prisão da linguagem, mas só para nos encontrarmos de novo no meio da noite, perdido o caminho, cantando uma miserável ladainha de origem desconhecida.

10. E cantam na planura. A nossa morada está feita de músicas, refrães, a nossa casa é uma deformação do nada, uma prega do caos, uma turbulência do tempo ou um remoinho do espaço, um repertório de formas

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e figuras, de ritmos e posturas. A canção não descreve nem narra, não se refere à realidade senão que a verte e se (di)-verte com ela, e por isso é inteiramente verso; é uma língua que não conta (o que se passa) senão que o canta e se decanta nele, é música que baila os ritmos das estações, que faz com o seu corpo as figuras e imagens dos lugares, língua sem olhos para contemplar aquilo do que goza, sem mãos para utilizá-lo. Nem prosa seca nem relato, a música constitui o Fora da linguagem: tem toda a roupagem externa da palavra (ritmos, imagens, tons, acentos, sensações) sem o seu conteúdo «lógico» ou «narrativo»: é cantilena. A subjectividade que se constitui como canção da natureza mediante essa individuação pelo gozo é, portanto, uma subjectividade-recipiente, passional ainda que não passiva (já que «receber» é também uma acção). O sujeito é um canto (rodado). Um cântaro (quebrado). A criança salva-se do caos com a sua ladainha, constrói a sua morada à força de sintonias que dão à sua casa uma aparência sólida, faz-se adulto, acumula propriedades, distribui sintonias e cartazes para marcar e defender o seu território. Mas eis aqui que continua a estar fora, no «fora do seu casa», fora da linguagem, senão justamente no Fora da linguagem, nas imediações do sentido, nos limites da palavra e da história, no limite das formas, das figuras e dos ritmos que, ao mesmo tempo que o protegem contra a deformidade, o situam novamente no meio da noite, dessa grande onda na qual conseguiu instalar-se, no ponto de contacto entre o interior e o exterior, entre o caos e o ritmo. E então o problema consiste em determinar em que condições é possível cantar o que não se pode cantar, desconjuntar o corpo para poder continuar a dançar 6 , que atletismo afectivo 7 , que alianças com que forças cósmicas são precisas para que o movimento continue, para desbloquear os fluxos sem se afundar no caos. Isto é, finalmente, o que essa cantilena deleuziana tem a ver com a filosofia, pois tal é o problema próprio da filosofia: pensar as figuras, os ritmos, os intervalos, encontrar o conceito que «corresponde» a tal ou tal cantilena, elevar o pensamento a certo grau de tensão, submete-lo a tal ou tal velocidade, pensar o intervalo da representação, pensar nos interstícios da

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representação, na interrupção – no reverso, na reversão – do próprio pensamento.

Traduzido do castelhano por Susana Guerra

Notas 1

O título da secção, como os das seguintes secções deste artigo, reproduzem os versos da famosa canção cubana de Miguel Matamoros (1897-1971), Son de la loma (o Mamá, son de la loma, como fora intitulada originalmente pelo próprio Matamoros): “Mamá, yo quiero saber/de dónde son los cantantes,/que los encuentro galantes/y los quiero conocer,/con sus trovas fascinantes/que me las quiero aprender./¿De dónde serán?/ ¿Serán de la Habana?/¿Serán de Santiago,/tierra soberana?/Son de la loma/y cantan en llano./Mamá, ellos son de la loma./Mamá, ellos cantan en llano./Mamá, ellos son de la loma./Mamá, ellos cantan en llano./Son de la loma/y cantan en llano.” (Nota da tradutora). 2 M. Serres, Le Naissance das Phesique, París, Ed. de Minuit, 1977, p. 187 (trad. cast. Ed. Pre-textos, no prelo). 3 Deleuze, "Les intercesseurs", en Pourparlers, París, Ed. de Minuit, París, 1990, p. 165. 4 Mille Plateaux, Ed. de Minuit, París, 1980, pp. 395-396 (trad. cast. J. Vázquez e U. Larraceleta, Mil Mesetas, Ed. Pre-textos, Valencia, 1988, p. 327) 5 Ibíd. 6 O que Artaud chamava «crueldade» era então uma técnica para refazer o homem “fazendo-o passar, uma vez mais, a última, pela mesa da autópsia para refazer a sua anatomia... O homem está enfermo porque está mal construído... Que me atem se quiserem, mas não existe nada mais inútil que um órgão. Quando lhe dermos um corpo sem órgãos, então libertá-lo-emos de todos os seus automatismos e devolvido a sua verdadeira liberdade. Então voltaremos a ensinar-lhe a dançar ao contrário, como no delírio dos bailes populares, e esse revés será o seu verdadeiro direito... Façam com que a anatomia humana dance por fim” (Artaud, "El teatro das crueldad", trad. cast. R. Font, en Van Gogh, el suicidado das sociedad e Para acabar de uma vez con el juicio de Dios, Ed. Fundamentos, Madrid, 1977). É quase inevitável pensar nos "tormentos" aos que tanto aludem os místicos: a mortificação do corpo não pode ter nunca mais que um sentido preparatório ou metafórico. Baste um só exemplo: na Introdução a uma obra posterior à Guía Espiritual, a Defensa da Contemplación, Miguel de Molinos apoia-se em São Jerónimo para defender a necessidade de se fabricar um corpo novo -que chama "interior"- cujo sentido é "o sentido da vida", e cuja construção exige a purga dos cinco sentidos para por de pé outros cinco sentidos –digamo-lo assim- "espirituais": está a fabricar-se um monstro,

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um ser que não é humano. O envelhecimento que Molinos pede à alma assim guiada não é um envelhecimento humano senão sobre-humano (ou melhor, infra-humano), o nada na qual a convida a submergir-se não é um nada human senão infra-humano, inclusive mais vil que a animalidade (que nunca pode ser de todo miserável neste sentido), mais baixa que a vegetalidade e que a mineralidade: blasfémia, luxúria, maldição, desolação, cólera, mar de obscenidade no qual exploram as paixões desatadas quando carecem justamente de aquilo que tanto no oratório jesuítico como no pensamento racionalista pode refreá-las (o entendimento e a vontade), oceano de ansiedade sem limites, de angústia sem termo que se confunde com o inferno, presença do demoníaco. Mas esse envelhecimento é o modo que a alma tem de "dançar" uma música que desborda por todas as partes o seu recipiente, o único modo no qual a alma pode cantar uma música que já não se pode ouvir, imaginar nem recordar. 7 “Um Atletismo que não é orgânico ou muscular, um «atletismo afectivo» que seria o dobro inorgânico daquele, um atletismo do devir que unicamente revela umas forças que não são as suas, «espectro plástico»” (Qu'est-ce que la philosophie?, Ed. de Minuit, París, 1991, p. 163, trad. cast. Th. Kauf, Ed. Anagrama, Barcelona, 1993).

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De Sartre a Deleuze Onde é que pára o compromisso literário? Eduardo Pellejero

Muitas vezes o pó levantado pela polémica que suscita uma obra acaba por enterrá-la. Foi o que passou com a formulação sartreana do compromisso literário. As coisas aconteceram de tal maneira que nos perguntamos hoje se continua a ter algum sentido continuar a ler O que é a literatura? Tê-lo-á, em todo o caso (e esta é uma hipótese de trabalho), se conseguirmos sobrepor-nos à ideia de que Sartre é o fim de uma época, ou o começo de outra. Tê-lo-á se conseguimos deixar de ver nele um modelo, para recuperar a corrente de ar fresco que representou para muitos em seu momento. Tê-lo-á, por fim, ainda que não seja mais que por isto: Se as teorias da arte pela arte, ao pôr fim à necessidade de subordinar a arte a qualquer outro valor para fundamentar a sua existência, abrem o espaço necessário para que comece a questionar-se sobre si mesma, a doutrina sartreana do compromisso literário, por sua parte, ao recusar taxativamente a ideia de que a escrita não se tem mais que a si mesma como objecto, abre o espaço para uma problematização do valor político da literatura que vai muito para além das respostas concretas que possa aportar-nos na sua própria obra. Quero dizer: depois de Sartre, a problematização do compromisso literário torna-se de uma urgência antes desconhecida; depois de Sartre o problema do compromisso passa a ser um problema literário incontornável. Independentemente da ideia que façamos sobre a literatura, já não nos é possível pensar que o escritor escreva apenas para se mesmo. E isto é Sartre quem o formula para nós quase de um modo fundacional. Podemos estar em desacordo em muitas coisas com Sartre, mas temos que concordar nisto, que é essencial: “só há arte por e para os demais” 1 .

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A partir daqui, o problema da literatura deixa de ser o da distância que vai do formalismo puro ao realismo crítico, para passar a ser o da natureza do leitor ao qual se dirige uma obra e do agenciamento dos leitores num público associado: Para quem se escreve? Para quem, se não para todos? E enquanto que sujeitos constituídos ou por constituir? Enquanto que formam parte de grupos já agenciados em etnias, nações e classes? Ou enquanto que singularidades dispersas, à procura de uma identidade, de uma comunidade, de um povo?

A primeira resposta que nos oferece Sartre a estas perguntas constitui uma determinação negativa, mas crítica, na medida em que rompe com o preconceito humanista e moderno de um sujeito neutro e universal (cito Sartre): “À primeira vista, não há dúvida: escreve-se para o leitor universal e temos visto, com efeito, que a exigência do escritor se dirige em princípio a todos os homens. Mas as descrições que precedem são ideais. Na verdade, não há liberdade dada; há que conquistar-se sobre as paixões, a raça, a classe e a nação e consigo aos demais homens. O que importa é a figura singular do obstáculo que há que superar, da resistência que há que vencer; é isto o que, em cada circunstância, dá a sua figura à liberdade” 2 . Isto é, a liberdade, como apelo ou como responsabilidade, não é um universal, senão que sempre deve ser pensada em situação, isto é, em vista dos obstáculos e às resistências que nos separam da mesma; e, nessa mesma medida, a relação do escritor com o leitor está associada a essas resistências e esses obstáculos comuns, às situações singulares nas que se vêm comprometidos como homens livres. A escrita aparece assim associada a uma certa necessidade. O escritor encontra o seu leitor numa ratoeira, rodeado de muros, sem saídas, e, penetrado pela urgência destes problemas, procura propor soluções na unidade criadora da sua obra, ou seja, na indistinção de um movimento de livre criação. Ante um dilema, ante um beco sem saída, ante uma série de impossibilidades, o escritor faz aparecer de pronto um terceiro termo, até então invisível 3 .

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É neste sentido que a liberdade, para Sartre, não é nunca um dado, senão um acto de invenção: “Uma saída inventa-se. E cada um, inventando a sua própria saída, inventa-se a si mesmo. O homem está por inventar cada dia. A acção histórica não se reduz jamais a uma eleição entre coisas dadas, senão que se caracteriza sempre pela invenção de soluções novas a partir de uma solução definida” 4 .

Mais concretamente, falando do escritor afro-americano Richard Wright 5 , Sartre sugere que desde esta perspectiva a posição do escritor comprometido, a respeito da sociedade na que escreve, é ou deve ser a de uma certa exterioridade; o escritor comprometido escreve desde fora [du dehors]: “se um negro dos Estados Unidos descobre uma vocação de escritor, descobre ao mesmo tempo o seu tema: é o homem que vê os brancos desde fora, que se assimila à cultura branca desde fora, e todos os seus livros mostrarão a alienação da raça negra no seio da sociedade norte-americana” 6 . Esta referência do escritor ao fora passa por uma tomada de consciência -por parte do escritor- da contradição existente entre ele e o seu público (conflito); o segredo do escritor comprometido não é superar a distância que o separa do seu público, senão explorar essa distância de um modo crítico: o escritor vem “desde fora aos seus leitores”, considera-os “com assombro”, ou, melhor ainda, sente o peso de “um olhar assombrado, de consciências estranhas (minorias étnicas, classes oprimidas, etc.)” 7 , olhar que o leva a escrever o que escreve. Isto é, o escritor alcança uma perspectiva impessoal, onde reencontra o olhar dos excluídos de uma sociedade, dos que ocupam as suas margens, dos que, virtualmente, constituem o seu fora. De alguma maneira, podemos dizer que assim o escritor vê a sociedade desde o seu lado maior (classe opressora, à qual pertence, enquanto elite intelectual) e desde o seu lado menor (oprimidos entre os quais, inclusive no encontrando leitores, tem o seu público virtual), para logo fazer jogar essa distância criticamente.

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Esta conexão com o fora é vital para o escritor, que assim ganha uma potência expressiva que o excede como sujeito, mas é também vital para a gente que habita essa exterioridade, na medida em que “uma classe não pode adquirir a sua consciência de classe senão vendo-se ao mesmo tempo desde o interior e desde o fora; dito de outra maneira, se beneficia de colaborações exteriores: é para isto que servem os intelectuais, eternos desclassados” 8 . O segredo da relação crítica do escritor com a sua época radica, portanto, nesta capacidade para saber-se conectar com o que fica do lado de fora da sociedade na que escreve. Trata-se de uma condição de possibilidade para a sua escrita, mas não deve esquecer-se que se trata de uma condição histórica; as ratoeiras são sempre singulares, constituem uma situação, uma espécie de campo empírico transcendental. O fora, neste sentido, não é nem pode ser pensado como um absoluto, ao menos se se quer preservar a efectividade da literatura. Tanto estando desconectado do fora como pensando o fora como um para além de toda a sociedade, o escritor acaba por encerrar-se a si mesmo numa ratoeira, abdicando, nessa mesma medida, das possibilidades de invenção e de resistência das que é capaz. Exemplo do primeiro é o artista de finais do século XIX que, afundado no seu meio não chega a julgar desde fora a sociedade na que vive, tomando a burguesia como uma espécie natural e não pela classe opressora 9 . Exemplo do segundo, o escritor realista, que neutraliza os acontecimentos do universo, pondoos entre parêntesis, como se nem ele nem o seu público fossem de este mundo, esforçando-se por alcançar o ponto de vista de Deus, ou, se se prefere, do vazio absoluto 10 .

Pelo contrário, quando o escritor é capaz de situar-se no seu tempo, mas contra o seu tempo, em favor de um tempo por vir, como dizia Nietzsche, conectando as suas capacidades actuais, as armas da sua época, com as potências virtuais daqueles que habitam as margens da sociedade na que escreve, quando é capaz de aliar a sua erudição a esses saberes menores, como dizia Foucault, então escrever pode ser uma força efectiva para

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além da cultura e do mundo das letras, e começar a operar sobre o dividual 11 , o político, o social. Habitando esta distância constitutiva de toda a sociedade, conectando-se com o que deixa fora, o escritor encontra então a potência, a perspectiva para fazer uma literatura verdadeiramente revolucionária, para criticar uma classe e inclusive abrir o espaço para o surgimento de outra. E se trata talvez da potência maior da literatura: abrir novos espaços de possíveis para a constituição de novas formas de subjectividade (individuais e colectivas).

Então, voltando a Sartre, se Richard Wright não se dirige ao homem universal, enquanto que constitui uma abstracção desmobilizante, na medida em que não está comprometido em nenhuma época determinada, a quem poderá dirigir-se? Não aos racistas brancos de Virginia ou Carolina, certamente, que já tomaram partido e não abriram livros assim. Tampouco aos camponeses negros do sul do Louisiana, gente que não sabe ler. Por fim, ao menos por princípio, não a uma certa elite europeia, que está longe e pouco se preocupa pela condição da sua gente. Sartre diz: “Richard Wright dirige-se aos negros cultos do norte e aos norte-americanos brancos de boa vontade (intelectuais, democratas de esquerda, radicais, operários, etc.)” 12 . Neste sentido, Wright encontra leitores, mas não um público. Há gente que o lê, mas falta isto que dá a uma obra um sujeito próprio, um sujeito da opressão e da indignação, do sofrimento e da revolta que anima a sua obra (o povo é o que falta, dirá Deleuze). Existe uma ruptura muito pronunciada no seio desse público de facto 13 . A gente está aí, mas falta algo que a una, que os agencie como comunidade, como colectividade ou como classe. Sartre parecera entrever o que a filosofia posterior abraçará como um imperativo para o pensamento: procurar um modo de agenciar a multidão sem trair as diferenças que a constituem como tal. Assim, de Wright poderá dizer que, “ao escrever para um público fragmentado, soube manter e superar a fragmentação, fazendo dela o pretexto para uma obra de arte” 14 .

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É sobre este espaço fragmentado (o situacionismo é um pluralismo), que não pressupõe como dadas as alternativas possíveis a uma situação crítica (é uma ratoeira) nem o sujeito da liberdade criadora capaz de abrir uma brecha (o homem está por inventar), onde, estritamente, o compromisso deve começar 15 . O apelo da literatura não é aos partidos, às nações ou às classes, nem sequer aos homens enquanto sujeitos constituídos, senão à potencial liberdade dos seus leitores. Sartre vê isto perfeitamente quando procura situar-se sobre o horizonte da guerra (da guerra futura que se perfila sobre as ruínas da guerra terminada): por um lado, negando-se a eleger entre perspectivas que não conduzem mais que a esta (ratoeira), e, por outro, procurando traçar uma linha de fuga em conexão com o fora (deserto) 16 , na esperança de que na fuga da primeira surjam novas formas de agenciamento das liberdades individuais para habitar o segundo (um povo).

A espera de que o novo, a mudança ou a liberdade advenham ao pensamento desde fora, isto é, a partir do que excede os padrões das representações políticas e intelectuais, assim como a assimilação deste fora às minorias e aos loucos, aos revolucionários e aos artistas, tem sido um sonho recorrente desde que Sartre nos deu a que é talvez a sua primeira formulação 17 . Quero dizer, cada vez que a sensação de encerro, e de falta de alternativas existenciais, culturais e políticas, se faz notar, a apelação ao fora volta a reluzir. A esquerda contemporânea mais lúcida que conheço, também a mais desesperançada, devo dizer, já não consegue sustentar este sonho. No Brasil, Peter Pal Pelbart, retomando as análises de Michál Hardt e Toni Negri, nota que a nossa situação parecera ter mudado por completo: “A claustrofobia política contemporânea parece ser só um indício, entre muitos outros, de uma situação para a qual parecemos desarmados, a saber: a de um pensamento sem fora num mundo sem exterioridade” 18 . Ao mesmo tempo, o pensamento contemporâneo continua a renovar um discurso que afirma taxativamente a impossibili-

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dade de qualquer totalização do real pela representação 19 . Ante a situação actual, então, do que se trataria seria menos de baixar os braços que de avaliar até que ponto a referência ao fora continua a ser vital para o pensamento e pode ainda permitir à literatura romper com as totalizações da realidade pelas mais diversas formas da representação, arrancando-nos à existência quotidiana, à nossa alienação como sujeitos de uma história que não conta com o que nos torna singulares, abrindo-nos um espaço para a resistência ou uma linha de abertura ao futuro. Digo que se tornou necessário repensar esta referência ao fora, para além de qualquer intento de fazer um absoluto de uma determinação qualquer da mesma; pensar o fora não como o que Blanchot chamava «a parte do fogo», isto é, como aquilo com o que a cultura não pode conviver e reduz a cinzas sistematicamente, senão como «campo informal de relações não representáveis». «Fora da representação», então, que por debaixo da sua homogeneização e fixação nas malhas do saber e do poder pode vir a relançar a expressão para além das suas determinações históricas 20 .

Analisemos, então, à luz destas críticas, a forma que a questão assume na obra de Deleuze. Deste Deleuze que via justamente em Sartre o Fora [Dehors] da sua geração 21 . Deste Deleuze que recupera o essencial da problematização sartreana da literatura na hora de levantar as principais questões da sua própria perspectiva 22 . Mas também a este Deleuze que retoma todas essas coisas para leva-las para além do círculo dialéctico em que pareciam encontrar-se encerradas em Sartre. O que encontramos então é que Deleuze não só restitui toda a sua potência à arte comprometida, senão que ao mesmo tempo o libera dos compromissos assumidos com as filosofias da história (compromissos que assombravam ainda a filosofia de Sartre).

Deleuze permite-nos compreender melhor que Sartre que as minorias não constituíam o novo sujeito da literatura, ou da

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história, senão apenas uma manifestação privilegiada da permanente variação do real, que continuamente vem romper com todas as totalizações que a conta do saber ou do poder incautam o movimento da gente, instrumentalizando esta energia não ligada em representações mais ou menos homogeneizantes, mais ou menos opressivas e desmobilizantes. Desde este ponto de vista, “o fora designa menos um outro espaço que uma força de arrebatamento (...) Concerne às forças heterogéneas que afectam o pensamento, que o forçam a pensar (...) aquilo que não pensa ainda” 23 . O fora não são as minorias, que podem sempre vir a ganhar um espaço no horizonte da representação (alienando assim o movimento que as constitui como multidão), senão o que nas minorias escapa a toda a representação, esta potência de variação, esta multiplicidade intrínseca, esta fuga que as mantém (ou as condena) a permanecer a um lado, e que põe em questão o equilíbrio do sistema 24 . As minorias, em si, como os negros do sul aos que se dirigia Wright, tendem a ser facilmente integradas subsidiariamente nas representações maioritárias (dá-se-lhes um lugar, ainda que não se trate mais que de um lugar inaceitável, na parte traseira dos autocarros, por exemplo), mas isto não nega que por debaixo dessas representações subsista latente uma agitação, que oportunamente desatada pelo trabalho da expressão possa chegar a pôr tudo em causa (penso nessa jovem negra que, um dia de Dezembro de 1955 em Montgomere, Alabama, decide no autocarro permanecer no seu lugar, que não era o seu).

Para Deleuze, o fora continua a ter como figuras privilegiadas estes “mecanismos locais de bandos, margens, minorias, que continuam a afirmar os direitos de sociedades segmentárias contra os órgãos de poder do Estado” 25 , mas já não se trata de idealizar as minorias, de pô-las fora de uma história que continuamente joga a instrumentalizá-las (e renovar assim, de alguma forma, o mito do bom selvagem). Do que se trata é de retomar por conta da expressão essa variação que tem lugar por debaixo das representações das que se socorrem ou lhes são impostas. As

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minorias invocadas pela literatura na sua procura do fora escapam assim às filosofias da história, “não porque se contentariam em reproduzir modelos imutáveis ou porque seriam regidas por uma estrutura fixa, senão porque são sociedades de devir” 26 . Com efeito, mesmo os ricos e os pobres, por exemplo, pertencem a um mesmo sistema de poder e de dominação, que os reparte, sobre o horizonte de uma representação conflituosa e institucionalizada, em «escravos pobres» e «escravos ricos», quando do que se trata é de fazer valer o trabalho subterrâneo de uma variação livre que se introduza entre as malhas da escravidão e desborde o conjunto 27 . Então, enquanto que a maioria, ou inclusive as minorias mais ou menos integradas na maioria, reenviam a um modelo do poder, histórico ou estrutural, todo o mundo é potencialmente minoritário, na medida em que se desvia constantemente desse modelo. E correlativamente o fora, como a menoridade, comportará dois sentidos: designará, por um lado, um estado de facto, a situação de um grupo que ora é excluído da maioria, ora é incluído como fracção subordinada a um padrão de medida que dita a lei e fixa a maioria (e então dir-se-á que as mulheres, os negros, o sul, o terceiro mundo são minorias, por muito numerosos que sejam); mas, por outro lado, designará uma variação em torno à unidade despótica, uma variação que escapa ao sistema, um devir no qual se está comprometido e não já um estado de facto (e então diremos que cada quem tem o seu sul e o seu terceiro mundo). O fora tem por correlato este segundo sentido do menor: “menoridade [que] designa a potência de um devir, enquanto a maioria designa o poder ou a impotência de um estado, de uma situação” 28 .

O escritor comprometido, portanto, procurará menos às minorias que este devir-menor, esta linha de transformação que, estando geralmente associada às mais diversas minorias, concerne potencialmente a todos e concerne-lhe a si mesmo. Estranha simbiose involutiva que faz dizer a tantos escritores: “Eu

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não sou dos vossos, eu sou o fora e o desterritorializado, «eu sou de raça inferior (...) eu sou uma besta, um negro»” 29 . As minorias tendem a normalizar-se quando se fecham sobre 30 si , pelo que o escritor procura com todos os seus meios extrair das mesmas a linha de transformação em torno às quais se constituem. O escritor procura agenciar, pela conjunção da exterioridade que as minorias personificam com respeito a uma representação estabelecida e a interioridade que o constitui a si mesmo, um plano de variação, onde já não há nem exterioridade nem interioridade, senão apenas um agenciamento colectivo de enunciação como dobra da linha do fora, isto é, da linha que passa entre as representações que o saber e o poder propõe das minorias (não menos que entre as representações que a gente faz do escritor e das representações que o escritor faz de si mesmo) 31 . Deleuze chama literatura menor a esta forma de compreender ou postular as condições da literatura comprometida 32 . Condições nas quais nem a subjectividade do autor nem a da comunidade com a que entra em relação tem valor em si, senão apenas como elementos de um agenciamento colectivo 33 : “Não há sujeito, não há mais que agenciamentos colectivos de enunciação –e a literatura expressa estes agenciamentos, em condições que não estão dadas exteriormente, e onde existem apenas como potências diabólicas por vir ou como forças revolucionárias por construir” 34 . Relação não representativa entre multiplicidades, portanto, entre uma comunidade que não deixa de explodir em minorias, e o povo dos átomos do escritor 35 . Tal é o compromisso da literatura a respeito de uma situação de opressão qualquer. Devir-menor, na escrita, como (junto a) uma tribo que devém-nómada no deserto, como (junto a) um campesinato que devém-guerrilheiro na selva: “Artaud dizia: escrever para os analfabetos, falar para os afásicos, pensar para os acéfalos. Mas que significa «para»? Não é «dirigido a...», nem sequer «em lugar de...». É «ante». Trata-se de uma questão de devir. O pensador não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas devém-no. Devém índio, não acaba de devi-lo, talvez «para que»

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o índio que é índio devenha ele mesmo algo mais e se libere da sua agonia” 36 .

Já não é possível separar a arte da luta contra a cultura, da confrontação das raças, da superação dos umbrais históricos 37 . Correlativamente, o escritor deixa de ser um autor para passar a ser um operador, isto é, agente de um movimento de subtracção ou de amputação dos elementos que tendem a homogeneizar e estabilizar a realidade social, movimento que vê dobrado por outro movimento que pode chegar a fazer nascer e proliferar algo inesperado 38 . Em outras palavras: Escreve-se sempre para dar vida, para liberar a vida ali onde está presa, para traçar linhas de fuga, para fazer ver e pensar algo que havia permanecido na sombra, obscurecido pelas representações do saber e do poder, entidades cuja existência nem se suspeitava. O presente como estado de facto que de jure pretende-se pontual, homogéneo e monolítico, não se combate pela referência à sua fundação na história sobre uma injustiça, uma imoralidade ou uma estupidez, senão pela sua desmultiplicação numa actualidade multifacetada, heterogénea, trabalhada pela latência do que a excede, do que é deixado de lado pela linguagem e as instituições, isto é, do diferido, do divergente, do menor, do lateral.

Do mesmo modo que Sartre, Deleuze volta a postular o compromisso literário através de uma referência ao fora, mas ao mesmo tempo rompe com a ideia de que esta referência tenha que ver com uma representação crítica da sociedade (o livro como imagem do mundo). O agenciamento com o fora deve, pelo contrário, arrebatar o escritor de toda a representação estabelecida (tanto da sua arte como da sua sociedade), abrindoo a um futuro incerto e improvável, que não se segue das condições de possibilidade que o determinam como escritor ou como homem 39 : “a potência do pensamento dá lugar, então, a um impensado no pensamento, a um irracional próprio ao

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pensamento, ponto do fora para além do mundo exterior, mas capaz de devolver-nos a fé no mundo” 40 . Neste último sentido, a literatura nunca se fará suficientemente em nome de um fora, para além das representações totalizadoras e totalitárias, das imagens, dos significantes, das estruturas e dos sujeitos constituídos de um momento histórico dado.

A questão é: Que caminhos haverá de seguir a literatura para alcançar essa força do fora que a leve a agenciar no heterogéneo em lugar de reproduzir o mundo? 41 Como agenciará o escritor esta reserva de possíveis 42 , para não se afogar e ser para a gente uma corrente de ar fresco?

Evidentemente, a literatura não muda o mundo e não faz a revolução 43 , mas nem por isso deixa de ter uma função que, apesar de modesta, pode chegar a ser eficaz: “Esta função antirepresentativa seria a de traçar, a de constituir de alguma maneira uma figura da consciência minoritária, que se dirigiria às potências de devir, que são de outro domínio que o Poder e a representação-padrão”, opondo “a autoridade de uma variação perpétua ao poder ou ao despotismo do invariante” 44 . Consciência minoritária que nada tem já que ver com a tomada de consciência marxista por parte de um sujeito constituído (o proletariado) 45 , ainda que talvez não esteja tão longe da afirmação sartreana de que o homem está por inventar ante as situações de opressão que sitiam continuamente o escritor e o seu povo. A literatura, evidentemente, no faz a revolução, mas Deleuze esperava ainda muitas coisas desta produção de subjectividades menores por um trabalho comprometido da expressão (cito): “Quanto mais se espera desta forma de consciência de menoridade, menos nos sentimos sós (...) E, sob a ambição das fórmulas, está mais modesta apreciação do que poderia ser uma [literatura] revolucionária, uma simples potencialidade amorosa,

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um elemento para um novo devir da consciência” 46 . Para além das utopias ilustradas ou socialistas, o escritor descobre que o seu objecto é clamar por um povo nómada e não por uma cidade modelo 47 . Descobrirá também, é certo, que apesar dessa redução de horizontes nem sempre alcançará o que persegue, e que é tudo, que não é possível fazer mais 48 .

O compromisso literário continua a ser, como sempre, de difícil formulação, mas não é por isso menos urgente para os que procuramos no pensamento as armas para que, em nós e na gente, não degenere o labor necessariamente paciente que dá forma à impaciência da liberdade 49 . O mesmo na época de Sartre que na nossa, o escritor, apesar do seu radical desclassamento, encontra-se sempre preocupado por algo mais que a sua literatura. Deleuze gostava de recordar que a quem lhe perguntava em que consistia escrever, Virginia Woolf respondia: Quem é que fala de escrever? 50

Traduzido do castelhano por Susana Guerra

Notas 1

Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, pp. 50 e 49. Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 75 (modificado). 3 Cf. Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, pp. 290, 293 e 292. Lição da qual aprenderá Deleuze, quem numa entrevista de 1985 dizia: “Se um criador não é tomado no gargalo de garrafa de uma série de impossibilidades, não é um criador. Um criador é alguém que cria as suas próprias impossibilidades ao mesmo tempo que cria o possível. Como MacEnroe, é batendo com a cabeça que se encontrará a saída. Há que bater contra a parede porque, se não se tem um conjunto de impossibilidades, não se terá linha de fuga, essa saída que constitui a criação” (Deleuze, Pourparlers 1972-1990, Paris, Éditions de Minuit, 1990; p. 183). 4 Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, pp. 290-291 (modificado). 5 Richard Wright (1908-1960): Escritor afro-americano, autor de Native Son e Black Boe, foi membro do partido comunista (com o qual rompeu em 1944) e amigo de Sartre durante a sua estância em Paris 2

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(1946-1947). Foi um dos primeiros autores negros que conquistou certa fama (e dinheiro) com uma obra literária. 6 Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 85. 7 Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 98. 8 Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 108. 9 Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 130: “imerso no seu meio, não pode julgar do fora (...) não se dá conta de que inclusive a burguesia é classe opressora; na verdade, não a toma por classe, senão por uma espécie natural” 10 Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 135: “os acontecimentos do universo são neutralizados e, por assim dizer, postos entre parêntesis (...) Nem o autor, enquanto que escreve, nem o leitor, enquanto que lê, são deste mundo (...) consideram o homem do fora, esforçam-se por alcançar sobre ele o ponto de vista de Deus, ou, se se quiser, do vazio absoluto” 11 Consciência individuante que aparece já insinuada em Sartre, que retornará o Foucault de Há que defender a la sociedad, e que encontrará a sua formulação mais apurada na obra de Deleuze. 12 Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 86 (modificado). 13 Cf. Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 87. 14 Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 88 (modificado); cf. ss.: “Para os brancos, as palavras que Wright traça sobre o papel não têm o mesmo significado que para os negros; há que elegê-las ao acaso, pois Wright ignora as ressonâncias que terão nessas consciências estrangeiras. E, quando fala para os brancos, o escritor tem que mudar até de objectivo; trata-se de comprometê-los e de fazer-lhes compreender as suas responsabilidades; faz falta indigná-los e envergonhá-los. Assim, cada obra de Wright contém o que Baudelaire teria chamado "uma dupla postulação simultânea"; cada palavra remete a dois contextos; aplicamse por sua vez a cada frase duas forças e isto é o que determina a tensão incomparável do relato”. 15 Cf. Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 98. 16 Cf. Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 264: “Como a nossa perspectiva histórica é a guerra, como nos obriga a eleger entre o bloco anglo-saxónico e o bloco soviético, e nós nos negamos a prepará-la tanto com um como com o outro, caímos fora da História e falamos no deserto”. 17 Como diz Peter Pal Pelbart: «a palavra do fora é um sonho que não deixa de retornar» (Pelbart, «Literatura e loucura: da exterioridade à imanência», in Conceito, nº2 (no prelo). 18 Cf. Pelbart, «Literatura e loucura: da exterioridade à imanência»: “Michál Hardt e Toni Negri tentaram mostrar, recentemente, que o capitalismo mundial integrado assumiu a forma do Império, ao abolir toda exterioridade, devorando as suas fronteiras mais longínquas, englobando a totalidade do planeta, mas também os seus enclaves até há pouco invioláveis, acrescentaria Jameson, como a Natureza e o próprio Inconsciente (...) É o mundo sem fora, é o capitalismo sem exterior, é o pensamento sem exterioridade”.

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19 Princípio da filosofia deleuziana: Não há agenciamento, nem linguístico nem de nenhuma outra classe, que seja total, universal. Cf. Golgona Anghel, «A literatura e o seu fora: uma leitura deleuziana». 20 Cf. “Deleuze. Une philosophie de l’événement”, in AAVV, La philosophie de Deleuze, Paris, PUF, 2004, p. 49 : “1/le non-représentable, ou le dehors de la représentation; 2/la consistance même du nonreprésentable, à savoir l’extériorité des relations, le champ informel des relations”. Cf. Anghel, «Deleuze, Fora da Filosofia e com a casa tomada». 21 Deleuze faz questão de assinalar a dívida que sente para com Sartre. E, assim, conhecemos este artigo que Deleuze lhe dedica na altura da sua morte (“Ele foi o meu maestro”), ou inclusive as referências ocasionais como as dos Dialogues. Deleuze dizia: “Felizmente estava Sartre. Sartre era o nosso Fora [Dehors] (...) um pouco de ar puro (...) um intelectual que mudava singularmente a situação do intelectual” (Deleuze-Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1977; p. 18). 22 Neste sentido, reencontramos o mesmo Kafka das situações sem saída e das soluções criativas que encontrávamos em Sartre, como reencontramos o problema da conexão da literatura com o Fora, ou inclusive a posição anomal – ou de radical desclassamento – do escritor. 23 Pelbart, «Literatura e loucura: da exterioridade à imanência»: “As forças do fora (...) não são assim chamadas apenas porque vêm de fora, do exterior, senão porque põem o pensamento em estado de exterioridade, jogando-o num campo informal onde pontos de vista heterogéneos, correspondentes à heterogeneidade das forças em jogo, entram em relação de não-relação”. Cf. François Zourabichvili, Deleuze, une philosphie de l´événement, Paris, PUF, 1994, p. 45. 24 Nisto descobrimos sobretudo a influência de Nietzsche. Porque se bem Deleuze põe de lado a possibilidade de um fora absoluto, de um fora para além de tudo, e com isto o papel das minorias como «parte do fogo», também põe de lado a ideia de totalidade, de totalização: “Nada existe fora do todo. Mas «não há tudo»: «faz falta desfazer o universo, perder o respeito do todo. A inocência é a verdade do múltiplo»” (NPh 26). Cf. ID 356: “Nietzsche fonde la pensée, l'écriture, sur une relation immédiate avec le dehors”. Cf. Pelbart, «Literatura e loucura: da exterioridade à imanência»: “Deleuze deu do Fora uma caracterização mais acentuadamente nietzschiana: menos referida à literatura do que quis Blanchot na sua formulação explícita, menos referida ao ser da linguagem do que quis Foucault num primeiro momento, é como se Deleuze ressaltasse sua dimensão agonística. Daí o privilégio absoluto das forças, «descoberta», aliás, que ele atribui generosamente a Foucault. As consequências dessa perspectiva são diversas: 1) O desafio do pensamento é liberar as forças que vêm de fora; 2) o fora é sempre abertura de um futuro 3) o pensamento do fora é um pensamento da resistência (a um estado de coisas) 4) a força do fora é a Vida. Assim, não só a vida é definida como essa “capacidade de resistir da força”, mas o desafio é atingir a vida como potência do fora”.

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25 MP #1. Cf. MP #1: “O que vale é que tudo o que aconteceu de importante, tudo o que acontece de importante, procede por rizoma americano: beatnik, underground, subterrâneos, bandos e gangues, empuxos laterais sucessivos em conexão imediata com um fora”. A outra grande figura do fora que Deleuze identifica nas sociedades contemporâneas são estas “grandes máquinas mundiais, ramificadas sobretudo o ecúmeno num momento dado, e que gozam de uma ampla autonomia em relação aos Estados (por exemplo, organizações comerciais do tipo «grandes companhias», ou então complexos industriais, ou inclusive formações religiosas como o cristianismo, o islamismo, certos movimentos de profetismo ou de messianismo, etc.)” (MP #12). 26 MP #10. 27 S 126: “La frontière, c'est-à-dire la ligne de variation, ne passe pas entre les maitres et les esclaves, ni entre les riches et les pauvres. Car, des uns aux autres, se tisse tout un régime de relations et d'oppositions qui font du maitre un esclave riche, de l'esclave un maitre pauvre, au sein dl un même sestème majoritaire”. 28 Cf. S 129. Cf. S 129-130: “Minorité désigne d'abord un état de fait, c'est-à-dire la situation d'un groupe qui, quel que soit son nombre, est exclu de la majorité, ou bien inclu, mais comme une fraction subordonnée par rapport à un étalon de mesure qui fait la loi et fixe la majorité. On peut dire en ce sens que les femmes, les enfants, le Sud, le tiers monde, etc., sont encore des minorités, si nombreux soient-ils. (...) Il e a tout de suite un second sens: minorité ne désignera plus un état de fait, mais un devenir dans lequel on s'engage. Devenirminoritaire, c'est un but, et un but qui concerne tout le monde, puisque tout le monde entre dans ce but et dans ce devenir, pour autant que chacun construit sa variation autour de l'unité de mesure despotique, et échappe, d'un côté ou de l'autre, au sestème de pouvoir qui en faisait une partie de majorité. D'après ce second sens, il est évident que la minorité est beaucoup plus nombreuse que la majorité. Par exemple, d'après le premier sens, les femmes sont une minorité; mais, d'après le second sens, il e a un devenir-femme de tout le monde, un devenir-femme qui est comme la potentialité de tout le monde, et les femmes n'ont pas moins à devenir-femme qui les hommes eux-mêmes. Un devenir-minoritaire universel”. E também: “Os judeus, os ciganos, etc., podem formar minorias em tais ou tais condições; mas isso não é suficiente para convertê-los em devires. Se reterritorializa, ou se deixa reterritorializar numa minoria como estado; mas se desterritorializa num devir. Inclusive os negros, diziam os Black Panthers, têm que devir negro. Inclusive as mulheres têm que devir-mulher. Incluso os judeus têm que devir-judeu (claro está, não basta com um estado). Mas se isto é assim, o devir-judeu afecta necessariamente tanto o não judeu como o judeu, etc. O devir-mulher afecta necessariamente tanto os homem como as mulheres. Em certo sentido, o sujeito de um devir sempre é «homem»; mas só é sujeito se entra num devir-minoritário que o arranca da sua identidade maior. Como na novela de Arthur Miller, Focus” MP 351. Cf. ABC, «G comme Gauche». Cf. MP 588: “O pró-

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prio da minoria é exercer a potência do não-numerável, inclusive quando está composta de membro apenas. Essa é a fórmula das multiplicidades. Minoria como figura universal, ou devir todo o mundo. Mulher, todos temos que devir-lo, quer sejamos masculinos ou femininos. Não-brancos, todos temos que devir-lo, quer sejamos brancos, amarelos ou negros”. 29 AE 121. Para além dos casos de Rimbaud e de Nietzsche, que são referidos pelo próprio Deleuze, eu recordaria aqui o de Carson McCullers, que em The Heart is a Lonely Hunter, punha na voz de um dos personagens principais, esse mesmo grito: “Eu também tenho sangue negro!”. Tenho sangue negro e italiano e cigano e chinês. Tudo junto. (...) E sou holandês e turco e japonês e americano. (...) Eu sou um dos que já sabem! Um estranho em terra estranha!”. O próprio Deleuze reconhece num certo grupo marginal da sua época a linha do Fora: “Quanto a nós, o nosso Fora (ou ao menos um dos nossos foras) é uma certa massa de gentes (sobretudo jovens) que estão fartos da psicanálise. (...) A existência desta corrente fez possível O Anti-Édipo”. 30 Cf. S 128: “une minorité commence déjà à se normaliser quand on la ferme sur soi”. 31 Cf. S 128: “Ce qu'il extrait [Bene] des Pouilles, c'est une ligne de variation”. 32 Cf. K 33: “Autant dire que “mineur” ne qualifie plus certaines littératures, mais les conditions révolutionnaires de toute littérature au sein de celle qu'on appelle grande (ou établie)”. 33 Cf. K 150: “Pas plus que le Célibataire n'est un sujet, la collectivité n'est un sujet, ni d'énonciation ni d'énoncé. Mais le célibataire actuel et la commumauté virtuelle -tous les deux réels -sont les pièces d'un agencement collectif”. 34 Cf. K 149-150: “Or, quand un énoncé est produit par un Célibataire ou une singularité artiste, il ne l'est qu'en fonction d'une commumauté nationale, politique et sociale, même si les conditions objectives de cette commumauté ne sont pas encore données pour le moment en dehors de l'énonciation littéraire. D'où les deux thèses principales de Kafka: la littérature comme montre qui avance, et comme affaire du peuple. L'énonciation littéraire la plus individuelle est un cas particulier d'énonciation collective. C'est même une définition: un énoncé est littéraire lorsqu'il est “assumé» par un Célibataire qui devance les conditions collectives de l'énonciation”. 35 IT 287. Cf. IT 287: “Les artères du peuple auquel j'appartiens, ou le peuple de mes artères...”. O compromisso literário continua a passar para Deleuze por uma relação com o fora; a mudança e a produção do novo continuam a depender dessa relação que já apontava Sartre em 1947. Mas o fora deixou de «ser já aí», e está agora sempre para ser agenciado, subtraindo às minorias os elementos significantes que as tendem a integrar aos sistemas de poder e de saber, ao mesmo tempo que se procura subtrair na literatura os elementos significantes que tendem a constitui-la como imagem do mundo. Cf. MP #1: “Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio livro uma

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pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina revolucionária, etc.”. 36 Deleuze-Guattari, Qu'est-ce que la philosophie?, Paris, Éditions de Minuit, 1991 ; p. 105. 37 Cf. AE 102-103. Politização da literatura, que leva Deleuze à frequentação das minorias, onde o delírio histórico-mundial aparece associado implicitamente a um devir-menor (“sou todos os pogroms da história” (AE 104)). Devir-mulher, devir-besta, devir-negro de Rimbaud, mas também devir-polaco de Nietzsche. Plano de variação continua ou linha de transformação onde os nomes da história já não dão conta de uma identificação sobre o teatro da representação, senão da frequentação de zonas de intensidade como «efectuação de um sistema de signos» (forças e singularidades que, em condições de menoridade, carecem de representação). Cf. AE 102: “Nunca se trata, não obstante, de identificar-se com determinados personagens, como quando equivocadamente se diz de um louco que «acreditava que era...». Trata-se de algo distinto: identificar as raças, as culturas e os deuses, com campos de intensidade sobre o corpo sem órgãos, identificar os personagens com estados que enchem estes campos, com efeitos que fulguram e atravessam estes campos. Daí o papel dos nomes, na sua magia própria: não há um eu que se identifica com raças, povos, pessoas, sobre uma cena da representação, senão nomes próprios que identificam raças, povos e pessoas com umbrais, regiões ou efeitos numa produção de quantidades intensivas. A teoria dos nomes próprios não deve conceber-se em termos de representação, senão que remete à classe dos «efeitos»: estes não são uma simples dependência de causas, senão o preenchimento de um campo, a efectuação de um sistema de signos”. 38 Cf. S 89: “par opération, il faut entendre le mouvement de la soustraction, de l'amputation, mais déjà recouvert par l'autre mouvement, qui fait naître et proliférer quelque chose d'inattendu”. 39 Cf. MP #11: “Agora, enfim, entreabrimos o círculo, nós o abrimos, deixamos alguém entrar, chamamos alguém, ou então nós mesmos vamos para fora, nos lançamos. Não abrimos o círculo do lado onde vêm acumular-se as antigas forças do caos, mas numa outra região, criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga. E dessa vez é para ir ao encontro de forças do futuro, forças cósmicas. Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação. Mas improvisar é ir ao encontro do Mundo, ou confundir-se com ele”. 40 IT 237. 41 Cf. MP #1: “encontrará o livro um fora suficiente com a qual ele possa agenciar no heterogéneo, em vez de reproduzir um mundo?”. 42 Cf. AE 344: “peu de relation avec le dehors”. 43 Cf. S 120. 44 Cf. S 125: “Cette fonction anti-représentative, ce serait de tracer, de constituer en quelque sorte une figure de la conscience minoritaire, comme potentialité de chacun. (...) en dressant la forme d'une cons-

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cience minoritaire, il s'adresserait à des puissances de devenir, qui sont d'un autre domaine que celui du Pouvoir et de la représentationétalon. (...) Le [literatura] surgira comme ce qui ne représente rien, mais ce qui présente et constitue une conscience de minorité, en tant que devenir-universel, opérant des alliances ici ou là suivant le cas”; “l'autorité d'une variation perpétuelle au pouvoir ou au despotisme de l'invariant”. 45 Cf. S 130: “La conscience, la prise de conscience est une grande puissance, mais n'est pas faite pour les solutions, ni pour les interprétations. C'est quand la conscience a abandonné les solutions et les interprétations qu'elle conquiert alors sa lumière, ses gestes et ses sons, sa transformation décisive”. 46 S 131. 47 Cf. MP #12: “um povo ambulante de revezadores, e não por uma cidade modelo”. 48 Cf. MP #12: “A natureza envia o filósofo à humanidade como uma flecha; ela não mira, mas confia que a flecha ficará cravada em algum lugar. Ao fazê-lo, ela se engana uma infinidade de vezes e se desaponta. (...) Eles jamais atingem mais do que uma minoria, quando deveriam atingir todo mundo, e a maneira pela qual essa minoria é atingida não responde à força que colocam os filósofos e os artistas em atirar sua artilharia”. Neste sentido, numa entrevista de 1990, onde o tom sartreano me parece inconfundível, Deleuze comentava: “o artista não pode mais que fazer apelo a um povo, tem esta necessidade no mais profundo da sua empresa, [mas] não tem que criá-lo, não pode” (PP 235). Retomava assim uma afirmação de Paul Klee, que na sua Teoría del arte moderno escrevia: “Achamos as partes, mas não ainda o conjunto. Falta-nos esta última força. Falta-nos um povo que nos proteja. Procuramos esse sustém popular: na Bauhaus, começamos com uma comunidade à que damos tudo o que temos. Não podemos fazer mais” (Klee, Théorie de l’art moderne, p. 33 (citado em Deleuze, Cinéma2: L'Image-temps, p. 283)). 49 Cf. Foucault, «Qu'est-ce que les Lumières?» (1984)», em Dits et écrits (vol. IV), Gallimard, Paris, 1994. 50 Cf. CC 17.

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A pista essencial deste trabalho nos veio na forma de uma observação das mais sóbrias e penetrantes escritas por Maurice Blanchot. A existência da loucura, diz ele, responde à exigência histórica de enclausurar o Fora, constituindo-o como “interioridade de espera ou excepção” 1 . Paradoxo da loucura: ao ser exposição descampada ao Fora nas suas diversas modalidades históricas (caos do mundo, fúria da morte, fim dos tempos, bestialidade do homem, inumanidade, força do desejo, sagrado dos elementos, fascínio das miragens, violência do desmesurado, ameaça do nada, e todas as outras forças, sejam quais forem, determinadas ou indeterminadas, e que podem «constituir» o Fora), é ao mesmo tempo cercada numa exclusão, numa reclusão, num tipo social, numa doença. A Loucura não seria então só exposição pura ao Fora como postuláramos noutro lugar 2 , mas clausura desse Fora numa personagem exilada. Como se um círculo de giz traçado na circulação de forças (cósmicas, inumanas, trágicas) do Fora reservasse ao louco esse espaço como morada única. Não é à toa que nos loucos se conjuga de modo tão surpreendente um lugar extremamente exíguo (lugar familiar, lugar social, lugar mítico, circuito de circulação urbana restrito) e a mais desarticulada transversalidade. Espantosa combinação de paralisia e aceleração, sufoco e vertigem. Puxado e empurrado por todos os ventos e confinado, não obstante, a um percurso milimétrico, como um trapezista sobre um único fio, equilibrando-se em meio à tormenta e por cima do abismo. Às vezes não se sabe bem se o fio limita ou sustenta (enlouquecer pode ser uma forma de obter um fio, por mínimo que seja, para interromper a queda: por exemplo, o status de louco; filosofar caminhando sobre o fio da Razão pode ser outra). Michel Serres chamou a atenção para a problemática espacial na questão da loucura, e acertou ao observar que Michel

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Foucault precisou escrever sua História da Loucura na língua da geometria, distinguindo o espaço único, estruturado de forma caótica – exemplo do espaço marítimo onde vaga a nau dos insensatos (vizinhança imediata de todos os pontos possíveis) – e a insularidade da reclusão. Mas o que Serres vê como uma sequência histórica (erráncia marítima x fortaleza terrestre), barca e hospital, é preciso ver também como uma oposição constitutiva da loucura. A ilha da loucura é cristalização e fechamento do mar aberto 3 , do Fora. Presa no Aberto do Fora, a Loucura é o que – por pavor e confinamento – acaba subtraindo-se a ele. De tão exposta à indeterminação das forças, já lhes fica alheia: impermeável permeabilidade. O ponto em que a Desrazão vira Loucura é o mesmo em que o absolutamente Fora torna-se o absolutamente Dentro do Fora. A Loucura não é Dobra do Fora (isso é a subjectividade) mas Dentro do Fora, mónada do Fora, sem curvatura de forças, viabilização de formas, passagem. Entre o Dentro e a Dobra, há a mesma oposição que reina entre a Subjectividade e a Loucura. Se é possível afirmar que Loucura é o escancaramento da Dobra 4 , se trata duma afirmação que cabe completar. É quando essa Dobra (que é a subjectividade) se escancara e ao mesmo tempo vira um Dentro – aí, na maior das aberturas e no rebatimento dela sobre o menor dos territórios, estamos em plena Loucura. Se noutra parte insistimos sobre o carácter de abertura para entender a loucura como esgarçar para Fora, contrariamente à subjectividade, onde há um encurvamento do Fora, agora insistiremos sobre o carácter paradoxalmente insular dessa abertura, em que o louco é objecto confinado a lugares restritos, tanto a nível imaginário (para a mãe, a família, a sociedade) como efectivamente (clínicas, hospitais, menoridade jurídica, inimputabilidade, etc.). E a partir daí, nesse espaço mínimo maximamente atravessado, o louco torna-se a tela de projecção intensíssima do Fora total. Passam por ele todas as forças, seus combates, os diagramas de poder, os estratos, os saberes, as palavras, as coisas, os sons, as personagens da História, os elementos, as cores. A perda do corpo é isso: tudo cravando a carne, perfurando a pele,

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atravessando-o, desmembrando-o, projectando sobre ele imagens materializadas, explodindo-o, incendiando-o, engolindo-o. Esse é o corpo despedaçado, corpo-coador, corpo-tela, cinema vivido nas vísceras, superfície feita profundidade. Se há profundidade no louco, é nesse sentido, do Fora penetrando o corpo-tela. Rectifiquemos então a afirmação que identifica a profundidade com o Fora: ela só é válida para certas modalidades de relação com o Fora (nomeadamente, as figuras da desrazão contemporânea 5 ), mas não para a loucura, pois esta, como acabamos de ver, é Clausura do Fora num Dentro absoluto, e por isso profundidade absoluta. Que na loucura todo Fora vira Dentro significa também que toda superfície submerge numa profundidade. Precipitemo-nos um pouco nessa distinção sugerida acima entre relação com o Fora e loucura, e digamos, prestes a esclarecê-lo mais tarde, que a relação com o Fora se refere à desrazão. Assim, na questão da profundidade que ora nos ocupa é preciso dizer, quase, que a loucura é o contrário da desrazão. Se nesta a profundidade leva à exterioridade e ao Fora (pois elas se equivalem), como no referido conto de Kafka, na loucura a superfície e o Fora desabam num Dentro, confirmando a linda análise que Deleuze fez a respeito da profundidade psicótica. Sempre é ténue a fronteira entre um caso e outro, e como uma luva revirada, a profundidade – superfície desabada – pode tornar-se o Fora novamente, como em Nietzsche ou Artaud, que diz claramente: “E a terra entreaberta em todo o lado e a mostrar segredos áridos. Segredos como superfícies”. Um pouco mais adiante no mesmo texto, cujo título sugestivo fala por si mesmo – «Onde se malham as forças» –, Artaud mostra uma vez mais o sofrimento da profundidade, a esperança do Fora e a oscilação especular, sem definição, entre ambos: “Ó cães, que acabastes de rolar na minha alma as vossas pedras. Eu. Eu. Voltai a página dos escombros. Também ando à espera do celeste saibro e da página já sem margens. Este fogo precisa de começar em mim. Que os blocos de gelo venham naufragar-me nos dentes. Sou de crânio rude mas alma lisa, como um coração de matéria naufragada. Tenho ausência de meteoros, ausência de injúrias

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inflamadas. Na minha garganta procuro nomes e como que o cílio vibrátil das coisas. O cheiro do nada, um relento de absurdo, a estrumeira da morte total... O leve e rarefeito humor. Eu próprio já só espero o vento. E chame-se amor ou miséria, não vai naufragar-me em nenhum lado que não seja uma praia de ossos” 6 . Cavernas de gestação ou leveza do humor celeste, em Artaud sempre paira, num misto de terror e apelo irrecusável, a iminência do naufrágio ou sua efectuação. É sempre um quase que transforma um desarrazoado (aquele que tem relação com o Fora) em insano (aquele que está dentro do Fora), um artista num delirante ou um delirante num pensador do Fora. É da passagem de um para o outro que devemos tratar, discriminando-os, se quisermos responder à pergunta maior já referida na introdução e que atravessa todas as demais em diagonal: como é possível a relação com o Fora sem que dela advenha a loucura? E a outra, correlata ou anterior a esta, tal como Michel Foucault a formulou: o que condenaria à loucura aqueles que uma vez tentaram a experiência da desrazão?

Ausência de obra A loucura é ruptura absoluta de obra, diz Michel Foucault 7 . À primeira vista tudo parece claro. Por obra entendemos trabalho, construção, consistência, produto, comunicação, estrutura – tudo aquilo de que são incapazes os nossos loucos, impotentes e desmilinguidos. Obra é materialização de trabalho, forma, inserção do homem no espaço e inauguração de história. Os que não produzem, não formam, não comunicam, não têm lugar – a esses nós chamamos de loucos. A conclusão se impõe: ausência da obra vale como critério-limite para discriminar o produtor do improdutivo, o estruturado do desmanchado, o existente do desistente, o são do insensato. A essa evidência se contrapõem duas séries de objecções. A primeira: 1) Não se vê por todos os lados grandes obras de grandes loucos? Não estão aí Hölderlin, Nerval, Artaud, Lautréamont e Van Gogh para atestá-lo? 2) Não vemos com fre-

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quência cada vez maior exposições feitas por instituições manicomiais que testemunham a vitalidade e criatividade até de pacientes cronificados por anos de hospitalização? Veja-se o belo filme de Hugo Denisart sobre o Bispo, paciente que recriou um universo inteiro em miniatura na Colónia Juliano Moreira, com os mais diversos materiais. Ou o Museu do Inconsciente, seu acervo, exposições, publicações, ou ainda a exposição realizada em 1987 em São Paulo, intitulada Arte e Loucura, ou a mostra de arte «outsider» na galeria Paulo Figueiredo, em 1988, na mesma cidade, intitulada Olhar Selvagem, sem falar da arte bruta e de todo o aproveitamento dada e surrealista da arte dos loucos. 3) Quem conhece de perto o quotidiano das clínicas psiquiátricas e o trabalho de certos profissionais da área (principalmente os terapeutas ocupacionais) sabe perfeitamente que as afirmações sobre a improdutividade da loucura não têm fundamento. A segunda série de objecções resume-se no seguinte: hoje em dia basta visitar uma Bienal qualquer para se certificar de que grande parte das obras parecem sugerir uma desmontagem da estrutura, da forma, da comunicação, de seu carácter de produto finalizado; atentando contra a consistência, essas obras lembram mais a ruína do que propriamente um movimento de construção. Nada similar à noção vulgar de obra. A elas melhor se aplicaria o termo feliz de Blanchot – desobramento. Se há ali trabalho, visa a demolição da própria noção de trabalho, de obra, de linguagem, de palavra, do enquadre, da inteligibilidade etc. Enfim, se os loucos produzem (como querem as três primeiras objecções) e a arte rói (conforme a última), nada do que foi dito acima se sustenta e somos obrigados a retomar o problema de um outro ângulo a fim de entender porque, segundo Foucault, onde há loucura não há obra. Depois de historiar o nascimento do asilo, Michel Foucault se pergunta o que sobreveio à desrazão com a medicalização da loucura operada pela nascente psiquiatria. O desatino clássico, diz ele, que era silêncio e nada diante da Razão, foi transformado no final do século XVIII, através de Goya e Sade, em grito e furor. O não-ser da desrazão tornou-se com eles poder de aniquilação, violência, possibilidade de abolição do homem e

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do mundo. O nada e a noite da desrazão adquiriram direito de expressão na forma de obra, mas apenas na medida em que essas obras que o expressassem fossem mortíferas e lancinantes, capazes, na sua força, de contestarem o mundo, a razão e a dialéctica que as ligavam. Essas vozes do desatino foram ouvidas, mais tarde um pouco, por Nietzsche e Artaud, que as levaram ao paroxismo. Nietzsche, por exemplo, transformou em raio o desabamento de seu pensar, e é através dele que ainda somos nietzscheanos. Artaud, com a virulência e sofrimento que o marcaram, fez de sua obra uma obra que diz sua destruição, de suas palavras fez palavras que dizem a ausência de linguagem, fez da obra um “escarpamento sobre o abismo da ausência de obra”. Pela loucura, conclui Foucault, essas obras abrem um silêncio, um vazio e uma dilaceração que obrigam o mundo, que as repele e acolhe, a interrogar-se. Paradoxo: enquanto loucura e obra se excluem mutuamente (segundo a fórmula foucaultiana: loucura é ausência de obra), a forma maior de expressão da loucura, numa época em que ela foi sequestrada por inteiro pela «ciência» psiquiátrica, é precisamente a obra – que ela, no entanto, rói. Por que a loucura, para expressar a ruína, precisaria justamente da obra, que é seu contrário? Por que a loucura, que implica a ausência de obra, necessita da obra para manifestar-se? Mero jogo de contrastes? Toda essa questão se esclarece se a retomamos à luz da hipótese desenvolvida anteriormente, segundo a qual a História da Loucura seria uma arqueologia articulada em dois planos distintos, o da desrazão e o da loucura. Para isso basta relacionar as últimas páginas do livro, em que Foucault «define» loucura como ausência de obra, com a problemática da dupla arqueologia. É no meio do capítulo «O Círculo Antropológico» 8 que há uma referência àqueles que, “perdendo o caminho, desejam perdê-lo para sempre”. Trata-se do destino da desrazão que abordamos acima, que na época clássica era silêncio e que no século XVIII recompôs-se, como vimos, num “silêncio sulcado de gritos... silêncio da interdição, da vigília e da desforra”. No comentário sobre os quadros de Goya, que ilustram esse silêncio da desforra, em que a loucura é a “possibilidade de

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abolir o homem e o mundo”, vemos que Foucault, apesar de falar das formas de manifestação da desrazão (a pergunta dizia respeito ao destino sobrevindo à desrazão), utiliza o termo loucura. Não penso que isso se deva a um mero deslize de linguagem, mas ao deslocamento histórico ao qual aludimos no princípio desse estudo. O pensador da arqueologia mostrou, ao longo desse livro, como o hiato entre desrazão e loucura foi se diluindo ao longo do tempo, desaguando numa coincidência à qual ainda estamos submetidos. Se a desrazão foi «capturada» pela loucura, não é de surpreender que a única forma de manifestação da desrazão seja a loucura, uma loucura que será, então, marcada pelo índice do grito, da vigília e da desforra. A desrazão «enclausurada» não pode «romper o cerco» a não ser pela exacerbação e violência. A loucura será a máscara já colada ao rosto da qual a desrazão quer livrar-se, o que só é possível desfigurando-a, no exagero das caretas e dos clamores. Usar a máscara para arrebentá-la, assim como é preciso desfigurar as palavras para deixar aparecer os sons. A desrazão insurrecta, já o sabemos, não é a loucura fundamental e originária, mas aponta para o Fora (no mesmo texto de Blanchot que citávamos ao principio, e do qual extraímos a idéia-mestra deste trabalho, está implícita essa equivalência entre Fora e Desrazão), o Fora enclausurado na loucura, cuja irrupção só é possível – numa época em que se confinou o Fora na loucura e na doença mental – através da própria loucura. Isso responde à questão de por que os que experimentaram a desrazão sucumbiram na loucura. É porque, pela configuração histórica (práticas e saberes de exclusão, medicalização, etc.) ao Fora foi reservado (quase que apenas) o espaço dessa linguagem, e é dessa linguagem, a da loucura (com sua fúria, sintomas, etc.), que a relação com o Fora precisou lançar mão para se libertar justamente dele – esse espaço confinado – ainda que o elevando ao seu extremo. O mesmo valerá para a obra. Como diz Maurice Blanchot, a loucura tem a mesma função que a obra, “pois permite à sociedade, como a obra permite à literatura, manter – inofensiva, inocente, indiferente – a ausência de obra entre os firmes limi-

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tes de um espaço fechado” 9 . A ausência de obra, fechada no asilo, está emparedada também na obra. E tal como a desrazão usa a loucura para expressar-se, a ausência de obra usa a obra, às vezes até sua possibilidade extrema (isto é, arruinando-a), para manifestar-se. Fechemos o círculo e designemos a ausência de obra pelo seu lugar de origem – o Fora. É o Fora que, confinado à obra, a utiliza para «vir à luz», e ao fazê-lo a rói, sem nunca conseguir destruí-la. É assim que a obra existe como um movimento que de algum modo a anula sempre, levando-a de volta à ausência de obra, mas nunca definitivamente. Oscilação inacabada, eis a obra da modernidade: desobramento. O desobramento é o que, como o neutro, anula o tempo, dissolve a história, desbarata a dialéctica e a verdade, abole o sujeito e faz soçobrar uma ordem. Se quisermos ver aí um «trabalho» da desrazão, no sentido de uma demolição, nada mais justo. Violentemos agora o postulado de Foucault (loucura é ausência de obra) e entendamos o termo «loucura» no sentido de desrazão – é aliás o que o início do texto que tomamos por referência sugere, ao se perguntar sobre o destino da desrazão 10 . Feita a substituição que sugerimos, obtemos, ao invés de «loucura, ausência de obra», «desrazão, ausência de obra». Desrazão e ausência de obra, estão, sob o signo do Fora, e numa época em que o Fora está confinado quer à loucura, quer à obra, desrazão e ausência de obra só podem expressar-se na forma que os aprisiona: como obra louca. Os poetas loucos não realizam a síntese entre um género literário e outro psiquiátrico, mas expressam a desrazão com as máscaras que esse século e outros talvez lhes reservaram: a arte e a loucura. Por trás das máscaras não há nada, desde Nietzsche já o sabemos. Mas o nada de Nietzsche é um Fora, as forças na sua indeterminação, no seu jogo do Acaso, nas suas diferenças intensivas. É a essas forças que se expõe a obra, assim como a loucura, e são essas forcas que ambas enclausuram; essas forças ora as submergem, devastando-as, ora são encarceradas por elas em túmulos tristes (loucos crónicos, peças de museu). Às vezes entre a obra e a loucura, de um lado, e as forças do Fora, de outro, ocorre um jogo, um diálogo, uma troca. Quan-

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A clausura do fora

do Foucault afirma que a psicanálise restituiu a possibilidade de um frente a frente entre loucura e desrazão, é desse diálogo que se trata, malgrado a terminologia estranha a Freud: entre as forças do Fora e a clausura do Fora (loucura). Diálogo interrompido na época clássica quando a clausura foi elevada ao estatuto de natureza – e com mais razão um século depois, com o advento da psiquiatria. Foucault diz com todas as letras: não é mais de psicologia que se trata na psicanálise, mas dessa experiência da desrazão que a psicologia moderna mascarou. E Blanchot completa: os psicanalistas frequentemente o esquecem, sobretudo quando eles “hesitam em abandonar algumas das exigências do conhecimento dito científico, que quer situar a loucura de uma maneira cada vez mais precisa na solidez de uma natureza e num enquadre temporal, histórico e social” 11 . O Fora com o qual a psicologia, no seu trato com a loucura, recusou entrar em contacto, é o contrário de uma ciência: é a não-origem, a ausência de tempo, o inumano, o anónimo – tudo o que, aliás, a psicanálise abrigou sob o nome de Inconsciente. Se uma crítica deve ser feita à psicanálise, é a de ter remetido sua descoberta do Fora a uma interioridade personalógica – individualizando-a e humanizando-a –, ao dispositivo familiar – edipianizando-a –, a um teatro imaginário – jogando-a do lado da representação – e, por último, a de ter privilegiado na loucura, em decorrência dessas inflexões, seu fechamento (o narcisismo), em detrimento da dimensão do Fora do qual a loucura é apenas um recorte. Mas talvez fosse exigir da psicanálise o que não cabe a ela promover – afinal, não é a isso que ela se propõe. A desrazão confinada na loucura ou na obra exigiria, quem sabe, não psiquiatras, nem críticos de arte, mas algo que por falta de expressão mais adequada chamarei por ora de pensadores do Fora. O pensamento do Fora pode ocupar-se do Fora embutido na loucura e na arte, na filosofia ou na política. Pouco importam, aqui, os territórios. O essencial é que se trate de um pensamento que pratique, como diz Blanchot em outro contexto, o alea entre raison et déraison. Talvez o pensamento do Fora permita um contacto com a desrazão que não desemboque na loucura.

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Resumindo: a Desrazão remete ao Fora, a Loucura à Clausura desse Fora num Dentro absoluto, e o Pensamento do Fora à relação da Dobra subjectiva com esse mesmo Fora (o pensador do Fora é aquele que tem relação com o Fora, isto é, com a Desrazão; pode ser dito um desarrazoado, embora não seja um louco). Por vezes nos terá ocorrido assimilar Pensamento do Fora e Desrazão – é quando preferimos ficar na terminologia do Foucault historiador, a fim de melhor ressaltar o sentido do contraste Desrazão/Loucura presente em sua obra). Ao longo de uma história da loucura sempre estarão em questão as diferentes modalidades de relação com o Fora (confinamento, exposição a, troca) segundo os diagramas de poder, os estratos de saber e os modos de subjectivação sucessivos. Loucura e Pensamento do Fora (por essa expressão entendo agora o bloco de «experiências», tanto artísticas, quotidianas, místicas como propriamente pensantes, em que uma certa turbulência é expressão de um tipo de relação com o Fora ou a Desrazão) são duas formas de se relacionar com o Fora, vizinhas mas antitéticas, donde a insistência em tratá-las lado a lado ao longo deste estudo. São vizinhas porque estão sob o signo do Fora, e antitéticas porque, enquanto a Loucura transforma o Fora em Dentro numa adesão surda, o Pensamento do Fora é capaz de estabelecer com ele um jogo e uma troca. Mas voltemos à questão deste capítulo. Agora talvez se entenda porque a história da loucura será sempre, ao mesmo tempo, a história da desrazão: a Clausura do Fora só pode ser entendida no horizonte das demais manifestações do Fora do qual ela é às vezes apenas uma parte, às vezes a depositária exclusiva. Em outros termos: assim como em certos momentos uma sociedade pode confinar o acesso ao Fora apenas à loucura (obrigando com isso poetas, artistas e pensadores do Fora a enlouquecerem), em outros momentos outros espaços podem estar abertos a uma relação com o Fora (espaços proféticos, xamánicos, místicos, políticos, poéticos, literários, etc.) 12 . Que fique claro: o Fora não é uma invariante histórica nem uma entidade metafísica. Ele é, como já dissemos anteriormente, o Jogo selvagem das forças, ao qual os homens têm acesso sempre em função da fissura subjectiva que reparte Ver e Falar segundo

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A clausura do fora

os diagramas de poder. Trata-se sempre de um acesso histórico àquilo que rói qualquer história. Esse é o paradoxo da relação com o Fora: o modo de relação com o Fora sempre é historicamente determinado, ainda que nessa relação fale a ruína do tempo, do sujeito e da memória. Enfim, se hoje a loucura ainda é um dos modos privilegiados de exposição ao Fora (na forma da clausura), nem de longe é o único. Por isso talvez a aura da loucura esteja cedendo lentamente, em favor da disseminação do Pensamento do Fora. Se essa hipótese for correcta, estaríamos assistindo não mais à liberação do louco – já em andamento – mas à da desrazão, isto é, a uma modificação profunda nas modalidades de relação com o Fora.

Notas  1

Blanchot, L’Entretien infini, Paris, Gallimard, 1969, p. 292. Cf. Peter Pal Pelbart, Da clausura do fora ao fora da clausura. Loucura e desrazão, São Paulo, Editora Brasiliense, 1989, pp. 21-121. 3 Serres, Hermes ou la communication, Paris, Minuit, 1968; pp. 171-2. 4 Cf. Peter Pal Pelbart, op. cit., pp. 163. 5 Cf. Idem, pp. 75-128. 6 Artaud, «Onde se Malham as Forças», in A Arte e a Morte, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa, Livreiros Editores e Distribuidores Ltda., 1987, pp. 31 e 33, respectivamente. 7 Foucault, História da Loucura, São Paulo, Perspectiva, 1978 (1961); p. 529. 8 Idem, p. 523. 9 Blanchot, op. cit., p. 617. 10 Foucault, op. cit., p. 513. 11 Blanchot, op . cit., p. 298. 12 Roger Bastide nota, por exemplo, a relação existente entre o processo de secularização cultural e da medicalização (e somatização) da loucura. Com o declínio dos rituais mágicos e sagrados aumenta a incidência da loucura, de onde ele conclui que “a loucura é uma doença do sagrado”. Nietzsche teria expressado a mesma ideia ao dizer: outrora, refugiava-se em um convento, hoje não nos resta senão a loucura. Cf. Roger Bastide, Sociologie dês maladies mentales, Paris, Flammarion, 1965, p. 299. 2

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Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente (ou como rir das nossas verdades) José Luís Câmara Leme

«…on est toujours à l'intérieur. La marge est un mythe. La parole du dehors est un rêve qu'on ne cesse de reconduire» 1

Um dos traços inconfundíveis das obras de Foucault é a presença de pequenas ficções, que condensam, ilustram ou sugerem o tema que ele se propõe estudar. A presença dessas ficções, a justaposição de discursos, assim como de diálogos em que ele se questiona, evidenciam a necessidade sentida de renovar as formas discursivas da filosofia, uma vez que estas são correlativas a novas formas de problematização. Importa neste sentido estar atento a essas ficções, já que não são apenas um interstício que, no meio de uma exposição teórica, lhe comprometem toda a resolubilidade, elas começam por ser experiências do pensar. É por esta razão que uma filosofia atravessada por ficções é avessa à doutrina: elas obrigam a um recomeçar incessante. Vejamos assim quando é que Foucault as introduz, e qual é o jogo que se estabelece entre elas. Entre essas ficções, há três que têm um estatuto particular: é o caso da enciclopédia chinesa, da anedota japonesa, e da fábula árabe. Não é difícil de ver que o seu denominador comum é o facto de as três remeterem para o Oriente. Poder-se-ia explicar essa coincidência em função da venerável tradição do Persa em França; ou seja, de um modo quase convencional Foucault também teria recorrido a esse procedimento retórico. Os argumentos a favor desta leitura não são desprezíveis, pois não se reveste de qualquer dificuldade a tentativa de mostrar que a dialéctica do reconhecimento e do estranhamento não repugna a uma leitura relativista do filósofo. Com efeito, se se aceitar que o seu propósito era desnaturalizar a experiência ocidental,

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então é plausível que também ele tivesse convocado o Oriente para melhor perceber o que é próprio da sua cultura. A minha hipótese é outra. Não creio que este Oriente seja apenas um recurso retórico; o que está em causa é muito mais profundo, já que tem a ver com a ideia de uma exterioridade a partir da qual se pode pensar o Ocidente. Atente-se no entanto que, deste ponto de vista, a referência ao Oriente em Foucault parece corroborar o pior dos orientalismos, já que também ele aparentemente menosprezaria o putativo Oriente real e o teria substituído por uma invenção ocidental. Em que medida é então este Oriente imaginado necessário à sua filosofia, é a questão que me move. Comecemos por recordar que é com um intervalo aproximado de meia década que estas três ficções aparecem na sua obra. A primeira é de 1966, com As Palavras e as Coisas 2 ; a segunda de 1971, com A Ordem do Discurso 3 ; e a terceira de 1976, com A Vontade de Saber 4 . É assim que a enciclopédia chinesa nos confronta com a experiência de pensar os limites do pensar, a história de William Adams com a correlação do poder com o saber, e o anel mágico do príncipe Mangogul com a injunção de perguntar ao sexo o que somos. São, portanto, três ficções que anunciam novos domínios de análise: o saber, o poder e o ethos. Mas se é indubitável que estas três ficções assinalam novos horizontes de problematização, fica no entanto por explicar por que razão o Oriente é sempre convocado. A hipótese que sustento é a de que estas três ficções orientais têm também uma dimensão mítica: são o lugar de “escolhas essenciais” 5 . Três “escolhas originais” 6 que configuram, para o Ocidente, os três eixos das experiências que nos constituem: a esfera ideal do saber, por oposição às peripécias históricas do poder; a soberania do sujeito, por oposição à materialidade do discurso; o desejo, por oposição ao prazer. Três rejeições, três escolhas, enfim, três dilacerações, que urdem miticamente a nossa história.

No prefácio original à História da Loucura, Foucault interroga-se sobre a originalidade da cultura ocidental e sobre a possi-

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Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente

bilidade de a pensar 7 . A tese que ele defende é a de que as dimensões dessa originalidade devem ser procuradas num confronto subjacente à linguagem da razão. Esta é desdobrada por Foucault em duas vertentes principais: por um lado, como história do conhecimento; por outro, como História tout court, quer dizer, a história comandada pela teleologia da verdade ou pelo encadeamento racional das causas. Portanto, não é através destas duas formas de história que podemos apreender e pensar a originalidade da cultura ocidental. O argumento que ele propõe é o seguinte: se se procurar essa originalidade através do devir horizontal da razão, ou seja, se se a procurar através das duas vertentes da linguagem da razão, a história do conhecimento ou o encadeamento racional das causas, o que se apreende é o que já está previamente dado, uma vez que se confronta a cultura ocidental consigo mesma: a história do conhecimento mostra-nos como o domínio do saber se estendeu e se aprofundou, ou seja, a história teleológica da verdade mostranos como a ciência actual e as verdades que enuncia não são arbitrárias ou contingentes, a história do encadeamento causal mostra-nos como um acontecimento releva necessariamente de outros acontecimentos anteriores. Por outras palavras, e sem prejuízo para a celebração das várias vertentes da identidade ocidental, sejam elas quais forem, a verdade é que essa abordagem perde o essencial da sua originalidade porque celebra uma petição, isto é, reconhece na origem a identidade de um presente e não a ruptura que possibilita a sua emergência. Por conseguinte, uma coisa é elevar a identidade de uma cultura, outra é saber quais são as condições através das quais podemos pensar a sua originalidade. Assim, para evitar essa falácia, Foucault sustenta que é preciso confrontar a cultura ocidental com aquilo que ela não é. Mas este confronto não se confunde com um simples comparativismo, não se trata de procurar compreendê-la por oposição a qualquer outra cultura. O seu propósito não é culturalista. Trata-se antes de a confrontar com aquilo que ela própria rejeita. Neste sentido, Foucault opõe a identidade aos limites. Foucault explicita metaforicamente esta oposição opondo a verticalidade à horizontalidade. Celebrar a identidade de uma

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cultura é reconhecer os valores que a atravessam ao longo da sua história, ou seja, o que ela herda e transmite na sua continuidade, quer dizer, a sua horizontalidade. Já a verticalidade prende-se com o que ela rejeita. Temos então uma tese forte: para se pensar a originalidade de uma cultura, mormente a Ocidental, é preciso dirigirmo-nos a essa região subjacente à razão em que “uma cultura rejeita qualquer coisa que será para ela o Exterior” 8 . Atente-se no entanto que essa exterioridade não é prévia a essa cultura, é antes e fundamentalmente criada por ela própria. Foucault emprega uma imagem muito explícita: ele diz-nos que essa exterioridade é um vazio escavado 9 no interior de uma cultura. O acto de rejeitar que define a originalidade de uma cultura é o vazio que essa mesma cultura escava dentro de si, na sua verticalidade. Mas esta oposição entre a verticalidade e a horizontalidade encerra um paradoxo que é preciso desde já esclarecer. Definir uma cultura a partir do que ela rejeita, a partir dos seus limites, não será tornar-se refém de uma suposição que compromete o alcance da tese, a saber, afirmar que a cultura ocidental é fundamentalmente uma cultura reactiva? Em suma, o desafio consiste em saber em que medida uma história dos limites não é uma história reactiva. Em que medida encerra ela uma dimensão activa? Como é evidente, a dificuldade desta dimensão activa tem justamente a ver com o facto de ela se confundir facilmente com uma rejeição. Porém, como sublinhei atrás, essa rejeição é entendida por Foucault como um escavar um vazio. No momento mesmo em que esse vazio se escava, uma cultura cria as condições da sua história. O problema é então perceber como é que essa rejeição, esse escavar um vazio dentro de si, pode corresponder a uma dimensão activa. Na minha leitura, essa dimensão activa é dada pelo conceito decisivo de “escolha essencial”. A exterioridade de uma cultura é a região onde ela exerce as suas escolhas essenciais. Temos assim dois conceitos correlativos, a exterioridade e a escolha essencial. Para que as escolhas essenciais possam ser exercidas é preciso escavar esse vazio, criar as condições de uma exteriori-

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dade. É patente que as duas são concomitantes, mas devem ser distinguidas, uma vez que a primeira tem a ver com o lugar, a segunda com os efeitos. São duas as determinações que Foucault descobre para este conceito de escolha essencial: por um lado ela é a divisão que dá a face à positividade de uma cultura, por outro é aí que “se encontra a espessura originária na qual ela se forma” 10 . Esta correlação entre a positividade das suas manifestações e a espessura originária é explicitada por Foucault através da ideia de dilaceramento. O nascimento da história decorre desse dilaceramento, dessa divisão originária. É este o sentido do jogo metafórico que opõe a horizontalidade dos valores à verticalidade do confronto com o que se rejeita. A espessura originária de uma cultura é então justamente essa rejeição que lhe é subjacente e que possibilita a positividade das suas manifestações históricas. Foucault reitera e reformula esta ideia opondo a análise dialéctica, ou seja, análise histórica e horizontal, à estrutura trágica, que releva dos confins da história. Se a originalidade de uma cultura releva das suas escolhas essenciais, escolhas exercidas nessa exterioridade que uma cultura escava dentro de si, os valores e a continuidade histórica dessa mesma cultura, a positividade da sua face, são portanto o efeito dessas mesmas escolhas essenciais em que uma cultura se inventa a si mesma no interior daquilo que rejeita. O exterior de uma cultura não é assim o outro absolutamente estranho, é o vazio que ela escava dentro de si mesma e que é a condição da sua história e da sua vitalidade. Podemos assim concluir dizendo que a história dos limites, história vertical como vimos atrás, é a história das escolhas essenciais, e que estas são a condição de possibilidade dos valores, da positividade de uma cultura. As escolhas essenciais de uma cultura são gestos de dilaceramento que escapam à história mas que a tornam possível. Para Foucault, a experiência-limite é justamente a experiência do dilaceramento, o lugar do nascimento da história de uma cultura. No já citado prefácio à História da Loucura, ele apresenta quatro divisões originárias, quatro experiências-limite: o

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Oriente, o sonho, o sexo e a loucura. Estas experiências-limite são correlativas a uma exterioridade que o Ocidente escavou dentro de si, exterioridades a partir das quais a positividade dos valores ocidentais se constituiu. Se é certo que estas quatro experiências não esgotam a originalidade da cultura ocidental, elas configuram no entanto o horizonte a partir do qual a verdade foi pensada. Porém, estas quatro experiências têm um alcance diferente. Se a verdade foi pensada por oposição à irrealidade do sonho, na suspeição de que o sexo lhe escapava e através da exclusão da loucura, o Oriente foi o vazio escavado a partir do qual o Ocidente se escolheu a si mesmo, isto é, escolheu a verdade como o limite intransponível de todas as suas experiências 11 . Vejamos então como é que Foucault relaciona a escolha da verdade, o Ocidente e a filosofia. Vou recorrer a duas citações que me permitem entrar directamente na questão que me move. A primeira é de 1970. Trata-se de uma conferência proferida no Japão com o título «Loucura, literatura, Sociedade»: “para responder sumariamente à questão «o que é a filosofia», direi que se trata do lugar de uma escolha original, que se encontra na base de toda uma cultura.” 12 A segunda é de 1984, portanto o ano em que morreu. Encontra-se numa entrevista que tem por título «A ética do cuidado de si como prática da liberdade»: “Este é efectivamente um problema: afinal, porquê a verdade?… Penso que tocamos aí numa questão fundamental e que é… a questão do Ocidente: o que é que fez com que toda a cultura ocidental passasse a girar em torno dessa obrigação de verdade, que assumiu várias formas diferentes?” 13 Se articularmos entre si as duas citações, percebemos claramente que a questão da filosofia é a questão da verdade, e que esta é por sua vez a questão do Ocidente, e que estas três questões relevam por sua vez de uma mesma escolha original. Há ainda outros dois momentos que são cruciais para se perceber o entendimento que Foucault tinha da filosofia. O primeiro é de 1978, no curso proferido no Colégio de França, Segurança, Território e População, quando afirma que a filosofia é a política da verdade 14 . Que a filosofia tenha a ver com a verdade, que procure pensá-la, nada de mais pacífico. Já a noção de

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política da verdade não é clara. A meu ver, esta ideia de uma política da verdade tem a melhor explicitação num segundo momento, na primeira aula do seu último curso no Colégio de França em 1984, A Coragem da Verdade, quando ele sustenta que a filosofia comporta uma estrutura de apelo que a diferencia de todos os outros discursos 15 . O seu argumento é o seguinte. Se se aceitar que são três as questões cruciais que estruturam as nossas experiências – a questão da verdade, a questão do poder e a questão do ethos (e recorde-se que são estes os temas que as três ficções orientais citadas articulam) – e que estas três questões têm discursos próprios – o poder no discurso político, a verdade no discurso científico e o ethos no discurso ético ou moral – , então o que define a filosofia, desde os gregos até aos nossos dias, é o facto de ela ser sustentada por um lado pela irredutibilidade essencial destes três pólos e por outro pelas relações necessárias e mútuas que descobre entre eles. É esta estrutura de apelo entre os três pólos que faz com que, ao colocar a questão do ethos, a filosofia não seja “simplesmente um puro discurso moral que prescreve princípios e normas de conduta”, pois ela não pode deixar de colocar simultaneamente a questão do poder e da verdade. Por outras palavras, o que faz com que a filosofia não seja redutível a um discurso científico, a um discurso político ou um discurso moral, é que nenhum destes discursos comporta essa estrutura de apelo; ao invés, quando a filosofia coloca o problema da verdade, simultaneamente coloca o problema do poder e do ethos, ou quando coloca o problema do poder não pode deixar de levantar o problema da verdade e do ethos. Em suma, o que define a filosofia é justamente essa estrutura de apelo entre esses três eixos da experiência, o saber, o poder e o ethos. Das três ficções orientais já referidas, aquela que melhor explicita essa estrutura de apelo, essa política da verdade, é a anedota de William Adams. Em A Ordem do Discurso, Foucault introduz essa pequena ficção sob o pretexto de que ela reduz a uma só figura os vários sistemas de exclusão do discurso por ele analisados nessa obra 16 . Trata-se da história do primeiro inglês a visitar o Japão, no início do século XVII, e que foi conselheiro do shogun Toku-

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gawa Leyasu. Há uma série de dados históricos incontestados, como o facto de ele ter impressionado o shogun com os seus conhecimentos de navegação e comércio, de ter sido impedido de sair do país e de ter constituído uma segunda família com uma mulher japonesa. O fascínio desta história, e a anedota que ela encerra, são resumidos por Foucault nestes termos: “No início do século XVII, o shogun ouvira dizer que a superioridade dos europeus – em termos de navegação, comércio, política, arte militar – era devida aos seus conhecimentos de matemática. Desejou apoderar-se de um saber tão precioso. Como lhe haviam falado de um marinheiro inglês que possuía o segredo desses discursos maravilhosos, ele fê-lo vir ao seu palácio e aí o reteve. A sós com ele, recebeu lições. Aprendeu matemática. E, com efeito, conservou o poder e teve uma longa velhice. Foi só no século XIX que houve matemáticos japoneses. Mas a anedota não termina aí: ela tem a vertente europeia. A história conta que aquele marinheiro inglês, Will Adams, fora um autodidacta: um carpinteiro que, por ter trabalhado num estaleiro naval, aprendera a geometria.” 17 Nesta pequena história encontramos dois mitos da cultura europeia: o mito da transparência e o mito da esfera ideal do saber. Na realidade trata-se de um mesmo mito, mas por razões de exposição é conveniente separá-los. Vejamos como esta ficção ilustra o mito da transparência. Nesta história temos, segundo Foucault, a oposição entre o saber monopolizado e secreto da tirania oriental e a comunicação universal e livre do conhecimento no Ocidente. Estamos perante o mito da transparência, porque a imagem que o Ocidente tem de si mesmo é precisamente a dessa ausência de princípios de rarefacção que supostamente impediriam a circulação dos discursos. Ora, a análise do discurso mostra que é precisamente do contrário que se trata: “a troca e a comunicação são figuras positivas que actuam no interior de sistemas complexos de restrição; e não poderiam funcionar sem estes” 18 . Por outro lado, esta mesma transparência aparece como a razão de ser de uma superioridade científica, económica, bélica e moral. Atente-se assim que William Adams é mais do que um autodidacta, é alguém que singrou na vida graças à livre circula-

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ção do conhecimento: primeiro quando se empenhou em adquiri-lo, e depois quando o partilhou com o shogun. Em oposição a estes valores temos a imagem do tirano, que mantém o país subjugado através do monopólio do saber e da ignorância dos seus súbditos. Podemos então dizer que este mito começa por opor o elemento da transparência, onde as verdades se erguem uma a uma, às trevas geradas por um saber não partilhado; ou, de uma forma sucinta, a ilustração ocidental por oposição à tirania oriental. Mas esta ficção comporta também um segundo mito, que decorre naturalmente do primeiro, e que se prende com essa grande escolha original do Ocidente: a escolha da verdade. Com a divisão entre o verdadeiro e o falso que, com Platão, cindiu o discurso eficaz dos mestres da verdade – e assim enformou originariamente a nossa vontade de saber – não temos apenas a veracidade de um saber que não cessa de aumentar, temos também o nascimento do grande mito ocidental da antinomia entre saber e poder. Para Foucault, este mito comprometeu desde então o modo como se pensa filosoficamente a verdade. Como essa escolha original consistiu na deslocação da verdade da enunciação para o enunciado, a consequência imediata dessa deslocação foi a elisão do discurso, e o descuramento dos princípios que o estruturam. Uma atenção filosófica ao discurso seria então uma forma de trair essa escolha original; em lugar da enunciação, que é sempre realizada dentro de uma comunidade, temos a interiorização da via de acesso à verdade através da ideia de memória. Mas outras consequências são também visíveis: a decadência da retórica, o afastamento dos seus mestres, os sofistas, e a emergência dessa “grande ameaça civilizacional” que ainda hoje serve de espantalho para não se estudar a enunciação da verdade, o relativismo. Deste modo, os temas filosóficos que então ganharam dignidade circunscrevem-se a uma analítica da verdade: temos, assim, em primeiro lugar, a verdade ideal como lei do discurso, depois a racionalidade imanente como princípio do seu desenvolvimento e, finalmente, a renúncia ao poder como a ética do conhecimento. Repare-se que temos aqui, não por acaso, os três eixos da experiência: a verdade é exclusiva àqueles que renun-

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ciam ao poder (o ethos); o progresso da ciência é independente das peripécias da história (o poder); o saber tem um reino próprio que não é o da sociedade onde ele é gerado (o saber). É por esta razão que, segundo Foucault, grande parte da filosofia desde Platão consistiu em estabelecer o máximo de distância possível entre o saber e o poder. Resta considerar um último aspecto deste mito. Com a enciclopédia chinesa, deparámo-nos com a impossibilidade de pensar um outro pensamento: a moral da história não é tanto a existência de outros sistemas de pensamento, mas o confronto com os limites do nosso. Agora, com a história do shogun, a situação inverte-se: é o Oriente que nos percebe melhor do que nós próprios. Aquilo que para nós aparece como uma divisão incontornável, a separação entre o poder e o saber, descobre-se aos olhos do shogun como uma união indivisível, de que é preciso tirar partido, o que ele aliás provou com a sua longevidade.

No primeiro prefácio à História da Loucura, Foucault afirma que, subjacente à “universalidade” da razão ocidental, e consequentemente à possibilidade de esta colonizar o Oriente – que a anedota de William Adams, aliás, sintetiza bem –, encontra-se uma divisão originária entre o Ocidente e o Oriente. Por conseguinte, se o Oriente é aquilo que o Ocidente rejeitou, mas também a sua origem, então a filosofia como o lugar em que o Ocidente se pensa a si mesmo tem no Oriente uma exterioridade a partir do qual ela pode pensar as suas escolhas originais. Mas atente-se que esse Oriente é aquele que o Ocidente sem cessar reinventa a partir de uma erosão interna: a China de J. L. Borges, o Japão de William Adams e o reino de Mangogul, são os nomes que damos a esse vazio que é escavado na nossa cultura. Posto isto, não é difícil compreender que sempre que Foucault procurou pensar a estrutura de apelo dos três eixos da experiência ocidental, o saber, o poder e o ethos, ele não só a pensou a partir de experiências-limite, o que é pacífico, mas socorreu-se de uma exterioridade para a pensar. Ao fazê-lo, porém, ele não só inscreveu a sua filosofia numa escolha essencial, como levou ao extremo essa mesma destinação mítica.

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A conclusão que proponho é então a seguinte: ao alojar a sua filosofia nessa exterioridade, nesse vazio escavado em que a cultura ocidental realiza as suas escolhas essenciais, Foucault foi mais do que um filósofo ocidental, foi também alguém que redescobriu o lugar a partir do qual podia rir. Com efeito, se compararmos mais uma vez entre si as três ficções orientais, verificamos que há um derradeiro denominador comum, o fazer-nos rir. A propósito do texto de J. L. Borges, Foucault diznos que esse riso sacode as familiaridades do pensamento; é também o caso da história do marinheiro inglês no Japão, que é uma “anedota que é tão bela que trememos só de a imaginar verdadeira” 19 , e é ainda o dessa fábula libertina de Diderot, de um anel feérico que punha os sexos a falarem de si mesmos. São portanto três ficções avessas a um pathos: são antes a oportunidade para rirmos de nós mesmos e das nossas verdades, do modo como as procuramos no sexo, do modo como abjuramos o poder para acedermos a elas, e do modo como entronizamos o sujeito para as possuirmos.

Notas 1

Michel Foucault, Dits et écrits, vol.3, Gallimard, Paris, 1994, p. 77. Michel Foucault, Les mots et les choses, Gallimard, Paris, 1966, p. 7. 3 Michel Foucault, L’ordre du discours, Gallimard, Paris, 1971, pp. 3940. 4 Michel Foucault, La volonté de savoir, Gallimard, Paris, 1976, p. 101. 5 “choix essentiels”; cf. Michel Foucault, Dits et écrits, vol. 1, Gallimard, Paris, 1994, p. 161. 6 “Par choix originel, je n'entends pas seulement un choix spéculatif, dans le domaine des idées pures. Mais un choix qui délimiterait tout un ensemble constitué par le savoir humain, les activités humaines, la perception et la sensibilité. Le choix originel dans la culture grecque, c'est Parménide, c'est Platon, c'est Aristote.” Dits et écrits, vol. 2, Gallimard, Paris, 1994, p.106. 7 Michel Foucault, Dits et écrits, vol. 1, Gallimard, Paris, 1994, pp.160162. 8 “…une culture rejette quelque chose qui sera pour elle l'Extérieur.” Dits et écrits, vol. 1, Gallimard, Paris, 1994, p.161. 9 “vide creusé”, Dits et écrits, vol. 1, Gallimard, Paris, 1994, p.161. 10 “l'épaisseur originaire où elle se forme”, Idem, p.161. 11 “On échappait donc à une domination de vérité, non pas en jouant un jeu totalement étranger au jeu de la vérité, mais en le jouant 2

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José Luís Câmara Leme

autrement ou en jouant un autre jeu, une autre partie, d'autres atouts dans le jeu de vérité.” Dits et écrits, vol. 4, Gallimard, Paris, 1994, p.724. 12 “pour répondre sommairement à la question «Qu'est-ce que la philosophie?», je dirai qu'il s'agit du lieu d'un choix originel, qui se trouve à la base de toute une culture” Dits et écrits, vol. 2, Gallimard, Paris, 1994, p.105. 13 “C'est en effet un problème: après tout, pourquoi la vérité? Et pourquoi est-ce qu'on se soucie de la vérité, et plus que de soi, d'ailleurs? Et pourquoi est-ce qu'on se soucie de soi seulement à travers le souci de vérité? Je pense qu'on touche là à une question qui est fondamentale et qui est, je dirais, la question de l'Occident: qu'est-ce qui a fait que toute la culture occidentale s'est mise à tourner autour de cette obligation de vérité, qui a pris tout un tas de formes différentes?” Dits et écrits, vol. 4, Gallimard, Paris, 1994, p.723. 14 “Mais après tout, ce que je fais, je ne dis pas ce pour quoi je suis fait, parce que je n’en sais rien, mais enfin ce que je fais, ce n’est, après tout, ni de l’histoire, ni de la sociologie, ni de l’économie. Mais c’est bien quelque chose qui, d’une manière ou d’une autre, et pour raisons simplement de fait, a à voir avec la philosophie, c’est-à-dire avec la politique de la vérité, car je ne vois pas beaucoup d’autres définitions du mot «philosophie» sinon celle-là. Il s’agit de la politique de la vérité.” Sécurité, Territoire, Population, Cours au Collège de France, 19771978, Gallimard / Seuil, Paris, 2004, pp. 4-5. 15 Aula de 1 de Fevereiro de 1984. Os cursos de Foucault no Colégio de França podem ser consultados no arquivo que se encontra no IMEC, em Paris. 16 Michel Foucault, L’ordre du discours, Gallimard, Paris, 1971,pp. 3839. 17 Michel Foucault, A Ordem do Discurso, Relógio D’Água, Lisboa, 1997, pp. 29-30. 18 Idem, p. 30. 19 Idem, p. 29.

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Índice

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Golgona Anghel – Eduardo Pellejero A abóbora que se tornou cosmos. A exposição do pensamento ao fora da filosofia

17

Patricia San Payo O «Fora» de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação

31

Golgona Anghel Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

53

José Luis Pardo E cantam na planura

67

Eduardo Pellejero De Sartre a Deleuze. Onde é que pára o compromisso literário?

87

Peter Pál Pelbart A clausura do fora

99

José Luís Câmara Leme Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente (ou como rir das nossas verdades)

111

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