Forma e função: reflexões a partir da Linguística Cognitiva

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FERRARI, L.; PINHEIRO, D. Forma e função: reflexões a partir da Linguística Cognitiva. In: RIOS DE OLIVEIRA, M.; CEZARIO, M. M. (Org.) Funcionalismo linguístico: vertentes e diálogos. A sair.

FORMA E FUNÇÃO: REFLEXÕES A PARTIR DA LINGUÍSTICA COGNITIVA Lilian Ferrari1 Diogo Pinheiro2

1. Introdução

A interdependência entre forma e função é um dos pilares fundamentais do funcionalismo linguístico. Desde os trabalhos do Círculo Linguístico de Praga, que delinearam a noção de fonema e se debruçaram sobre a caracterização da estrutura funcional das sentenças (TRUBETZKOY, 1969; JAKOBSON, 1970; 1974), o argumento de que a estrutura linguística é motivada pelas funções da linguagem ocupa lugar privilegiado na pauta de estudos funcionais. Deve-se reconhecer, entretanto, que, apesar dessa associação mais estreita à corrente funcionalista, o binômio forma-função é peça-chave na constituição e desenvolvimento das teorias linguísticas de um modo geral. Na história da linguística, a delimitação do signo linguístico por Saussure é fruto de uma reflexão detalhada sobre o fenômeno, culminando na caracterização de uma estreita relação entre significado (conceito) e significante (imagem acústica). A partir desse marco inicial, a discussão sobre as relações entre forma e significado ganhou espaço definitivo na agenda dos estudos linguísticos. As teorias subsequentes tiveram que adotar um posicionamento sobre a relação entre esses dois polos constitutivos da linguagem, quer fosse para pleitear sua interdependência, quer fosse para reivindicar a completa dissociação entre ambos, como é o caso da Teoria Gerativa (CHOMSKY, 1980; 1986).

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Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Linguística e Filologia, Rio de Janeiro, RJ. Email: [email protected]. 2

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Linguística e Filologia, Rio de Janeiro, RJ. Email: [email protected].

Levando em conta esse panorama, o presente trabalho pretende estabelecer algumas reflexões sobre o binômio forma-função a partir da LC (LC). O trabalho visa a discutir o percurso trilhado pelos fundadores da área que, inicialmente atrelados ao modelo gerativista, protagonizaram uma importante guinada em direção à inclusão do significado na análise de estruturas linguísticas, enfatizando o tratamento de aspectos semânticos em termos de operações conceptuais. Se, por um lado, essa guinada propiciou a constituição de um novo campo em que o pareamento entre estrutura e significado passou a desempenhar papel central na análise, por outro lado, o novo paradigma acabou por se ressentir do abandono de certas preocupações tipicamente associadas ao modelo gerativista, como é o caso da questão da geratividade. O presente trabalho pretende, portanto, fazer um balanço desses dois movimentos protagonizados pela LC, a partir de sua constituição em claro rompimento com a teoria gerativa. Nesse balanço, argumentamos que a questão da inclusão da semântica cognitiva na análise teve peso definitivo, já que foi esse movimento que possibilitou a própria constituição do campo e a interlocução do novo paradigma com as vertentes funcionalistas que sempre se ocuparam das relações entre forma e função. Se a desatenção ao fenômeno da geratividade foi o ponto desfavorável nessa trajetória, acreditamos, entretanto, que essa lacuna possa ser superada, trazendo claros benefícios à LC, em particular, e aos paradigmas funcional-cognitivos, de um modo geral.

2. Dois grandes paradigmas

Ao delimitar o signo linguístico, Saussure não só apontou a relação estreita entre significado e significante, caracterizando-os como “duas faces de uma mesma moeda”, mas também recorreu à noção de arbitrariedade – termo utilizado para indicar o caráter absolutamente não-motivado dessa relação. Tanto é assim que as línguas indicam o mesmo conceito através de sequências sonoras distintas, demonstrando o papel central da arbitrariedade absoluta. Por exemplo, o conceito

ÁRVORE

está associado aos

significantes ‘tree’, em inglês, ‘arbre’, em francês, ‘baum’, em alemão, e assim por diante. Isso significa que o conceito não determina a escolha de uma imagem acústica específica

para designá-lo, de modo que pode estar associado a diferentes sequências sonoras em línguas distintas. Dada a complexidade e sofisticação que caracterizam o pensamento saussureano, entretanto, outro tipo de arbitrariedade não passou despercebida, a arbitrariedade relativa. Na verdade, Saussure reconheceu que as línguas também possuem signos que apresentam um certo grau de motivação, como é o caso de dix-neuf para indicar o numeral dezenove em francês. Nesse caso, os elementos que se unem, embora em si mesmos arbitrários, são motivados. Ao invés de se buscar uma nova imagem acústica para designar o conceito, a escolha recai sobre os signos dix (‘dez’) e neuf (‘nove), já disponíveis no sistema linguístico, cuja soma corresponde a dezenove. Embora os dois tipos de arbitrariedade – absoluta e relativa – não tenham gozado do mesmo status teórico na abordagem saussureana, que concentrou seus esforços na primeira, não é difícil reconhecer que esses dois modos de associação entre significante e significado deram origem a dois grandes paradigmas em linguística. Enquanto a arbitrariedade absoluta foi levada aos seus limites máximos na abordagem formalista, tendo na Gramática Gerativa seu expoente mais emblemático, a arbitrariedade relativa motivou investigações abrigadas sob os diferentes matizes do Funcionalismo.

3. O surgimento da LC

A LC, por sua vez, traça um percurso interessante com relação a essas duas possibilidades, tendo como ponto de partida o gerativismo, passando pela semântica gerativa e culminando na semântica cognitiva, o que a torna muito mais próxima das correntes funcionais. Essa trajetória começou a ser realizada por alguns alunos de Chomsky que, ao desenvolverem pesquisas no âmbito do modelo gerativo, começaram a se inquietar com a necessária exclusão da semântica para a explicação de fenômenos sintáticos. Esses alunos – John Ross, Paul Postal, James MacCawley e George Lakoff – desenvolveram a semântica gerativa, com o objetivo de incorporar o significado à análise linguística. Tendo por base a teoria semântica clássica, vinculada à filosofia angloamericana e à lógica, esses estudiosos postulavam estruturas profundas mais abstratas e

mais próximas das representações semânticas do que as estruturas profundas chomskianas. A semântica gerativa apresentava uma agenda programática extensa, que além de sintaxe e semântica, incluía a pragmática, a lógica, e outros componentes que pudessem contribuir para a análise das estruturas investigadas. Ancorada no modelo semântico formal, a semântica gerativa alinhava-se à premissa de que o mundo é composto por entidades, propriedades e relações entre entidades. Dentro dessa perspectiva, o significado é concebido como atrelado à verdade que, por sua vez, é definida a partir da relação entre os símbolos e o mundo; para usar um exemplo clássico, a sentença “O giz é branco” é verdadeira, apenas no caso em que o giz pertence ao conjunto de entidades brancas no mundo. Em suma, trata-se de uma teoria semântica de base lógico-matemática, que exclui qualquer referência à mente, cérebro ou corpo do falante. Em última análise, a agenda programática extensa da semântica gerativa, associada a uma teoria semântica objetivista pautada na lógica, parece ter contribuído para que o modelo não fosse adiante.3 Em especial, no que se refere à semântica formal, George Lakoff detectou seus pontos problemáticos após alguns anos de tentativa de aplicação do modelo à análise linguística. Em conferência proferida na China, e posteriormente transcrita e publicada como parte do livro Ten Lectures on Cognitive Linguistics, o autor comenta sua tentativa de adaptar a noção chomskiana de estrutura profunda à semântica gerativa: I tried working with this system for many years, and I tried adapting it to generative semantics. So what I tried to do was say the underlying structure was its logical form, and that from its logical form you could derive in various steps the surface form. And in 1974, I came upon a set of sentences that could not be done this way.These are sentences that can not have any deep structure or D-structure or underlying structure with transformations. (LAKOFF, 2007, p.11)4

Com relação ao argumento de que a estrutura da sentença era formada por núcleo e modificadores, desenvolvido logo em seguida no âmbito da Teoria X-barra, Lakoff e 3

Maiores detalhes sobre esse período estão descritos no livro The linguistics wars, de Harris (1993).

Tradução: “Eu tentei trabalhar com esse sistema por muitos anos, e tentei adaptá-lo à semântica gerativa. Então o que eu tentei fazer foi dizer que a estrutura profunda era a forma lógica, e que a partir da forma lógica você poderia derivar em vários passos a estrutura superficial. E em 1974, eu me deparei com um conjunto de sentenças que não poderiam ser tratadas dessa maneira. Essas eram sentenças que não poderiam ter nenhuma estrutura profunda ou estrutura subjacente com transformações”. 4

Ross construíram vários contraexemplos, que também colocavam em xeque os pilares básicos do modelo. Um desses contraexemplos pode ser adaptado à seguinte versão em português: “Eu peguei e tomei uma xícara de chá”. O problema surge porque, com relação ao sintagma xícara de chá, há duas possibilidades de estrutura X-barra. Na primeira, xícara é o núcleo e de chá, o modificador (Fig.1); na segunda, chá é o núcleo e xícara de especifica a quantidade de chá (Fig. 2): N’

N

N’

SP

xícara

N de

Figura 1: Núcleo: xícara

chá

N xícara de

chá

Figura 2 - Núcleo: chá

As duas análises não são possíveis na teoria X barra, porque é preciso haver apenas um núcleo. Como também não se pode recorrer à semântica, não existe a possibilidade de análises simultâneas. Em face de evidências como essas, Lakoff desistiu do modelo gerativo e da semântica formal, passando a dirigir sua atenção para pesquisas que pudessem apontar para um novo modelo semântico. Em 1975, organizou um simpósio em Berkeley para o qual convidou pesquisadores de áreas afins (linguistas, antropólogos, psicólogos, cientistas da computação, lógicos, etc.), cujas pesquisas estivessem voltadas, direta ou indiretamente, para a questão do significado. Delinearam-se aí os passos iniciais da LC e a constituição da semântica cognitiva, permitindo um tratamento inédito de questões semânticas a partir de uma cognição ancorada no corpo (embodied cognition). Para ilustrar a maneira como o corpo molda a estrutura conceptual, pode-se considerar o fenômeno denominado “projeção corporal”. Lakoff e Johnson (1999) exemplificam o fenômeno destacando o modo pelo qual os sentidos centrais das locuções “em frente a” e “atrás de” se relacionam ao corpo humano, que apresenta inerentemente as partes frente/trás. Os autores ressaltam que essa estrutura inerente é projetada em objetos: consideramos como frente da televisão o lado com o qual interagimos com o aparelho, também usando a nossa frente; consideramos como frente do carro a parte voltada para a direção associada ao curso do movimento. Já no caso de objetos estáticos,

sem frente inerente, como árvores e pedras, a frente pode ser considerada a parte voltada para o falante, como em português e inglês, , ou a frente pode ser considerada a parte voltada para a direção oposta ao falante, como na língua africana Haussá. Na seção a seguir, serão retomadas pesquisas que forneceram as bases fundamentais para o tratamento do significado como construção cognitiva ancorada na experiência corporal e sensório-motora.

4. Pesquisas fundadoras

As pesquisas que lançaram as bases para o estudo do significado nos moldes preconizados pela LC têm em comum o fato de fornecerem subsídios para o questionamento dos alicerces da teoria semântica clássica.

Essas pesquisas

demonstraram que o significado não se sustenta na relação entre símbolos e mundo, mas é definido pela interação do corpo com o ambiente físico e sociocultural. No âmbito da antropologia, a pesquisa de Berlin e Kay (1969) constitui um importante marco para o entendimento da categorização de cores. Esses pesquisadores demonstraram que a variabilidade dos termos para cores em diferentes línguas, preconizada por estudos antropológicos anteriores, era apenas aparente. As cores focais, tais como o verde-bem-verde, o azul-bem-azul, etc., tendem a ser percebidas da mesma forma por falantes de línguas diferentes, de modo que são codificadas por termos básicos (formados por apenas um item lexical). Investigando mais de noventa línguas, os autores descobriram que há em torno de doze termos básicos para cores, por razões fisiológicas. No caso da percepção de cores, a luz atinge cones na retina, ativando o circuito neural e dando lugar a uma experiência interna. Consequentemente, o céu não é azul em si mesmo; o azul resulta da relação entre o aparato perceptual humano e o céu5. A principal consequência desse estudo é questionar os fundamentos da teoria semântica clássica, que se sustenta na relação entre símbolos e mundo. Se não há cor no mundo, mas apenas na interação entre o mundo e o olho humano, como se pode tratar do

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Mais recentemente, o livro Action in Perception, do filósofo Alva Noë (2004), apresenta evidências, pautadas nas Ciências Cognitivas, de que a percepção não é algo que simplesmente acontece conosco, mas sim um modo de ação.

significado a partir da correspondência entre o termo para cor e a cor efetivamente presente no mundo? Ainda com relação à categorização, as pesquisas experimentais de Eleanor Rosch no âmbito da Psicologia confirmaram que os achados referentes ao espectro cromático eram válidos para os objetos em geral. Rosch e seus colaboradores (1973, 1976, 1978) demonstraram que categorias como aves, instrumentos, mobília, entre outras, eram organizadas em torno de um protótipo, que representa o melhor exemplar. Por exemplo, a gaivota é uma ave prototípica, porque tem todos os traços definidores da categoria (ex. voar, ter penas, bico, dois pés, etc); já o pinguim é um membro mais periférico, porque tem um número bem mais reduzido de traços definidores. Além disso, as pesquisas evidenciaram que certos níveis de categorização são cognitivamente mais básicos do que outros. Por exemplo, carro é cognitivamente mais básico do que veículo (nível superordenado) ou do que carro de passeio. O nível básico, em oposição aos níveis superordenado e subordinado, é o nível mais alto em que se tem uma imagem mental única e um programa motor específico, sendo definido pela interação do corpo com o mundo. Outra área de investigação que desempenhou papel fundamental no detalhamento da estrutura semântica diz respeito à codificação linguística de relações espaciais. As pesquisas fundadoras de Leonard Talmy (1985, 1988) sobre termos para indicar espaço, tais como preposições (ex: em, através, acima, abaixo), demonstram que, apesar da enorme variedade de termos espaciais nas línguas do mundo, é possível decompô-los em primitivos espaciais que são os mesmos em todas as línguas. Assim, primitivos como contêiner (ex. dentro-fora), sustentação (ex. sobre), verticalidade (ex. acima-abaixo), origem (ex. de), trajetória (ex. através), destino (ex. para), entre outros, passaram a ser reconhecidos como universais que se combinam de diferentes formas em línguas distintas, ou até em uma mesma língua. Em português, por exemplo, os termos espaciais acima e em cima envolvem o primitivo

VERTICALIDADE,

mas apenas o segundo requer

contato e sustentação (ex. o livro está em cima da mesa. / *o livro está acima da mesa). Em relação estreita com os primitivos espaciais, Talmy (1988) delimitou o conceito de dinâmica de forças, estabelecendo tipos de interações possíveis entre o corpo e o ambiente físico (ex. sustentar, empurrar, empurrar contra uma resistência, etc.). No que se refere à análise linguística, esse conceito abriu caminho para a interpretação dos

modais do inglês, de modo que a modalidade deôntica pôde ser mais bem compreendida ao ser relacionada à nossa experiência de força física agindo na presença ou ausência de uma barreira (ex: must, may, can). Posteriormente, os esquemas de dinâmicas de forças, também denominados esquemas imagéticos (LAKOFF, 1987; JOHNSON, 1987), puderam ser recrutados para a análise de modais epistêmicos e de atos de fala (SWEETSER, 1990). Por exemplo, o esquema imagético de

COMPULSÃO

(força que

compele um sujeito a uma ação) pôde ser associado ao modal must (‘dever’), e interpretado de diferentes formas para indicar força física, autoridade parental, pressão do grupo, ou pressão moral6. A importância dos conceitos relacionados à dinâmica de forças reside justamente em sua relação com o corpo humano. O que se tem é uma topologia cognitiva, que deriva de atividades como orientação corporal, força, esforço muscular, etc. Assim, para produzirmos uma sentença como ‘Há barracas na praia’, não é necessário que a praia esteja delimitada por algum tipo de cerca. O esquema imagético de contêiner, sinalizado pela preposição em, não é um dado do mundo real, mas é construído pela mente. Outra base importante para o desenvolvimento de uma semântica ancorada na experiência corporal foi estabelecida por Fillmore (1975, 1977, 1982), através da Semântica de Frames. Com o objetivo de caracterizar relações de significado, Fillmore definiu a noção de frame, detalhando-a em termos de papéis semânticos e cenários envolvendo sequencialidade temporal. Sua discussão clássica sobre Frame de Evento Comercial destaca os papéis semânticos de comprador, vendedor, mercadoria, dinheiro, suas relações e um cenário dividido sequencialmente em três partes: na primeira parte, o comprador tem o dinheiro e quer a mercadoria, o vendedor tem a mercadoria e quer o dinheiro; na segunda, comprador e vendedor trocam o dinheiro pela mercadoria; por fim, o comprador tem a mercadoria e o vendedor tem o dinheiro. Além disso, palavras como comprar e vender envolvem as ideias de posse, desejo, etc., indicando que o sistema de frames é baseado, em última instância, no corpo. Essa ideia foi desenvolvida por Lakoff (1987, 2007), que chamou atenção para o fato de que frames podem ser estruturados também por esquemas imagéticos. Assim, a ideia de que o vendedor transfere a mercadoria para o comprador está associada a um esquema de 6

Johnson (1987, p. 52 ) apresenta os seguintes exemplos: (1) You must cover your eyes; or they will be burned (força física); (2) Johnny must go to be; his mother said so (pressão parental); (3) He must help in the blood drive; or his friends won’t respect him (pressão do grupo); (4) She must give blood; it’s her duty.

dinâmica de forças, do qual faz parte o esquema imagético de origem-trajetória-destino (o comprador impõe força ao dinheiro, movendo-o para o vendedor). Para concluir, vale destacar que as noções fundadoras discutidas nesta seção – categorização e protótipos, primitivos espaciais, dinâmica de forças, esquemas imagéticos, frames – têm em comum a ancoragem da cognição no corpo, deixando claro que o significado não surge de uma relação entre símbolos e conjuntos existentes no mundo, mas resulta de nossas interações corporais e estruturas cerebrais que refletem essas interações. Nossas conceptualizações, portanto, não são reflexos da realidade externa, mas são crucialmente moldadas por nossos padrões perceptuais e sistema sensório-motor. Sob essa perspectiva, o mesmo sistema neural envolvido na percepção (ou em movimentos corporais, manipulação de objetos, etc.) exerce papel fundamental no modo pelo qual raciocinamos sobre o mundo. No que se refere à contribuição da LC para a elucidação das relações formafunção, a inclusão da semântica cognitiva possibilitou a própria constituição do campo e a interlocução do novo paradigma com as vertentes funcionalistas que sempre se ocuparam dessas relações. Por outro lado, a desatenção ao fenômeno da geratividade pode ter sido o ponto desfavorável nessa trajetória. Na seção, a seguir, essa questão será detalhada.

5. Da relação forma-função à capacidade gerativa

Conforme já argumentamos, a agenda de pesquisas do Funcionalismo linguístico parece remeter à noção saussuriana de arbitrariedade relativa. O raciocínio é o seguinte: se forma e função não estão desvinculadas, é razoável indagar quais são os fatores funcionais que motivam uma determinada forma. Com efeito, é essa indagação que se constitui como a questão teórica central da tradição funcionalista. Referida aqui como o problema da motivação funcional da forma linguística, essa questão pode ser formulada nos seguintes termos: quais são os fatores linguísticos (semântico-pragmáticos) ou extralinguísticos (ligados à estrutura conceptual, à experiência de uso ou às demandas de processamento) capazes de explicar a configuração formal de um padrão gramatical?

Por outro lado, a tradição gerativa assume de maneira radical o princípio da separação entre forma e função. Diante disso, é natural que o problema da motivação funcional sequer chegue a emergir. Em vez disso, como já se sugeriu (VAN TRIJP, 2013), a questão teórica que move a linguística formal é o problema da capacidade gerativa da linguagem humana, que pode ser expresso nos seguintes termos: como caracterizar o conhecimento linguístico subjacente de modo que ele possa gerar todas e apenas as sentenças possíveis em uma dada língua? Como já ficou dito, uma das principais inovações da LC consiste em abordar a relação forma-função com foco sobre a análise da estrutura conceptual. Nesse sentido, fica claro que ela se alinha à tradição funcionalista: seu compromisso é com a identificação de fatores de natureza funcional – em particular, arquétipos conceptuais e habilidades cognitivas gerais – capazes motivar a forma linguística. Ao mesmo tempo, como provável decorrência dessa filiação, é notável que as análises gramaticais de base cognitivista tendem a negligenciar o problema da geratividade. Essa crítica pode ser vista, por exemplo, em Boas (2013, p. 241): Although analyses couched within CCG7 provide stimulating alternatives to nonconstructional accounts assuming a modular architecture of grammar (e.g., Chomsky 1965, 1981), they often remain silent when it comes to detailing the specifics of how different constructions interact. […] As already discussed, fusion between verbs and Argument Structure constructions is possible once constructionspecific and more general constraints are met. However, comparatively little work has been done in CCG on the detailed conditions under which other types of constructions can combine to license more complex sentences […]8

Embora a ressalva de Boas seja endereçada especificamente ao modelo goldbergiano, ela pode, a nosso ver, ser estendida para os demais modelos de análise gramatical desenvolvidos na seara da LC (como a Radical Construction Grammar e a

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Sigla para Cognitive Construction Grammar, termo pelo qual é conhecido o modelo construcionista de Goldberg (1995, 2006). Tradução: “Embora as análises baseadas na GCC8 forneçam alternativas instigantes para o tratamento não-construcionista que assume uma arquitetura modular da gramática (cf. Chomsky 1965, 1981), elas frequentemente silenciam quando se trata de especificar, em detalhes, de que maneira as diferentes construções interagem. [...] Como já discutido, a fusão entre verbos e construções de Estrutura Argumental é possível apenas quando são satisfeitas certas restrições gerais ou específicas. No entanto, comparativamente, pouco se tem discutido na GCC acerca das condições detalhadas sob as quais outras construções podem se combinar para licenciar sentenças mais complexas [...]” 8

Cognitive Grammar, para citar apenas dois dos mais proeminentes). O ponto principal, como se observa, é a ausência de um tratamento sistemático dos mecanismos que regulam a combinação entre construções gramaticais. A relevância desse tipo de tratamento para a questão da geratividade é direta: sob uma ótica construcionista, é a integração entre construções que explica tanto a possibilidade de produzir enunciados inéditos quanto a restrição aos enunciados mal-formados (GOLDBERG, 2013). Assim, esclarecer quais são os princípios que licenciam ou bloqueiam essa integração equivale, em última instância, a fornecer uma explicação construcionista para o problema da capacidade gerativa da linguagem humana. Ao mesmo tempo, abster-se de detalhar tais princípios equivale a negligenciar essa questão. Diante disso, gostaríamos neste momento de propor uma autocrítica. Especificamente, dedicaremos o restante desta seção a desenvolver o seguinte argumento: não existe base teórica para que se exclua o problema da geratividade linguística na agenda cognitivista. Se o argumento for aceito, deve-se concluir que a questão da geratividade está para a LC assim como a sintaxe esteve para o descritivismo norteamericano: trata-se de um problema “AWOL” (“Absent Without Official Leave”), isto é, de uma questão teórica que, embora negligenciada, não tem sua ausência autorizada em termos epistemológicos9. Cabe ressalvar que a mesma crítica não se estende à exclusão do problema da motivação funcional no âmbito da tradição formalista. Neste caso, o princípio da autonomia da sintaxe, pedra-de-toque da linguística chomskiana, justifica plenamente a opção por buscar na própria forma a explicação para fatos formais. Como seria de se esperar, essa opção tende a incomodar linguistas de inclinação funcionalista (BYBEE, 2010; GOLDBERG, 2006; CROFT, 2001), para os quais a postulação de princípios formais pode funcionar como uma descrição apropriada de um fato linguístico (isto é, pode explicar como a língua funciona), mas não deveria contar como uma verdadeira explicação (isto é, não responde à curiosidade sobre por que a língua tem a forma que tem). Mas o ponto é que, sob uma ótica formalista, a pergunta referente ao porquê não tem qualquer interesse teórico, dada a premissa de que a forma gramatical é essencialmente arbitrária. Naturalmente, é possível questionar essa premissa – como tem

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A interpretação da sintaxe como “AWOL” no descritivismo norte-americano se deve a Harris (1993).

sido feito, basicamente, por toda a tradição funcional-cognitiva em linguística –, mas, uma vez que ela seja aceita, não é razoável acusar um linguista formalista de negligência por excluir de sua agenda teórica o problema da motivação funcional. A LC, contudo, não goza da mesma licença para evitar o problema da geratividade. Para demonstrar esse ponto, comecemos lembrando qual foi a guinada epistemológica que, na década de 1950, alçou esse problema à condição de questão teórica central da linguística hegemônica. A interpretação que propomos é a seguinte: essa mudança foi o resultado de uma alteração do próprio objeto da ciência linguística, que deixou de ser a língua, entendida como “a totalidade dos enunciados que podem ser produzidos em uma comunidade de fala” (BLOOMFIELD, 1926, p. 155), e passou a ser a gramática, definida como um “dispositivo que gera todas as sentenças gramaticais de [uma língua] L e nenhuma das sequências agramaticais” (CHOMSKY, 2002 [1957], p. 11). Com efeito, se o objeto de investigação passa a ser o mecanismo gerador de sentenças, faz sentido que seu objetivo seja o de caracterizar esse mecanismo em relação às suas potencialidades (a capacidade de produzir um número infinito de sentenças) e limites (o fato de que nem toda combinação de itens lexicais resulta em gramaticalidade). Diante disso, a pergunta que se coloca é a seguinte: qual é o objeto de estudo da LC? Trata-se de investigar os enunciados linguísticos concretos, como na abordagem bloomfieldiana, ou o conhecimento linguístico internalizado capaz de dar origem a esses enunciados, como na linguística chomskiana? Ao responder a essa pergunta, será possível compreender se a questão da capacidade gerativa se impõe ou não sobre a agenda teórica da LC. Neste ponto, porém, cabe uma ressalva: na condição de empreitada fortemente heterogênea (GEERAERTS; CUYCKENS, 2007), a LC acolhe, para além de análises gramaticais, também estudos de natureza discursiva – como os trabalhos sobre mesclagem conceptual e argumentação (COULSON, 2008) e a área que tem sido chamada de Análise do Discurso Guiada por Metáforas (CAMERON et alii, 2009). Diante dessa constatação, a pergunta do parágrafo anterior pode parecer despropositada: de fato, nenhum dos dois objetos captura apropriadamente o interesse de todos os pesquisadores identificados com a empreitada cognitivista. Por outro lado, torna-se possível estabelecer uma comparação entre a LC, de um lado, e os paradigmas estruturalista e gerativista, de outro, quando nos atemos ao modelo que tem sido

considerado a “parte gramatical” (GRIES, 2013, p. 93) do empreendimento cognitivista: a Gramática de Construções Baseada no Uso (GCBU)10. Aqui, pretendemos mostrar que, no que tange ao objeto de estudo, a GCBU está muito mais próxima do gerativismo chomskiano do que do estruturalismo de Bloomfield. Especificamente, argumentaremos que esse modelo se ocupa da representação mental do conhecimento linguístico que subjaz ao input concreto – e não do input propriamente dito. Nesse sentido, trata-se de uma teoria da competência (o conhecimento que licencia o uso linguístico), e não de uma teoria do uso (como é o caso da sociolinguística laboviana e da Análise da Conversa Etnometodológica). Se essa tese pode causar alguma estranheza, isso se deve à centralidade que se atribui ao uso nos modelos construcionistas de inclinação funcional-cognitiva. Essa centralidade baseia-se em dois pilares. Em primeiro lugar, assume-se que a experiência linguística do falante tem influência direta na representação cognitiva do conhecimento gramatical, podendo alterá-la continuamente em razão de fatores como frequência (BYBEE, 2010; BYBBE; HOPPER, 2001), recência (BYBEE, 2010; BYBBE; HOPPER, 2001) e alocação de recursos de atenção (GOLDBERG, 2006). Isso não implica, contudo, um abandono da distinção entre conhecimento (aquilo que o falante sabe sobre a língua) e uso (aquilo que o falante faz com a língua), assim como não implica a opção por tomar o próprio uso como objeto último de investigação. Na verdade, o que essas abordagens advogam é que “instâncias de uso impactam a representação cognitiva” (BYBEE, 2010, p. 14). Ora, uma afirmação como esta necessariamente pressupõe a existência de uma distinção entre “instâncias de uso” e conhecimento internalizado. Nesse sentido, é importante evitar a confusão entre uma teoria do uso linguístico e uma teoria do conhecimento linguístico que atribui importância decisiva ao uso na formatação desse conhecimento. Para todos os efeitos, a GC funcionalcognitiva se enquadra nesse segundo grupo.

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O termo Gramática de Construções Baseada no Uso (Usage-Based Construction Grammar) tem sido utilizado recentemente (DIESSEL, 2015; PEREK, 2015) para fazer referência ao modelo construcionista que resulta da confluência entre o Funcionalismo norte-americano e os estudos gramaticais em LC. Ao mesmo tempo em que abarca um amplo conjunto de modelos de inclinação funcional-cognitiva – como a Cognitive Construction Grammar (GOLDBERG, 1995; 2006), a Radical Construction Grammar (CROFT, 2001) e a Cognitive Grammar (LANGACKER, 2008) –, esse termo exclui todos os modelos construcionistas de inclinação formalista, como a Berkeley Construction Grammar (FILLMORE, 2013) e a Sign-Based Construction Grammar (BOAS; SAG, 2012).

Em segundo lugar, cabe lembrar que, em função do seu espírito materialista (GOLDBERG, 2003; BYBEE, 2013), as abordagens funcionais buscam eliminar a postulação de categorias vazias e níveis subjacentes de organização sintática. Como resultado, as representações propostas tendem a se manter mais próximas do input concreto do que aquelas tipicamente postuladas na tradição formalista. Na prática, isso significa que o conhecimento linguístico é povoado por um sem número de expressões cristalizadas, sequências pré-fabricadas, enfim, fragmentos de uso linguístico concreto, que são diretamente registrados pelo falante e fixados por obra da repetição. Isso, no entanto, não implica a equivalência entre input e representação cognitiva. Se, por um lado, a hipótese da proximidade entre conhecimento e uso é uma das posições mais produtivas da GCBU, representando uma reação aos níveis crescentes de abstração que marcaram a história da linguística gerativa, é inegável, por outro lado, que a representação mental de uma instância de uso será sempre mais abstrata do que a própria instância. Isso ocorre, em primeiro lugar, porque o falante atua cognitivamente sobre o input, por meio do processo conhecido como esquematização (LANGACKER, 1988; 2008) ou indução (SUTTLE; GOLBERG, 2011), que resulta na construção de padrões abstratos. Além disso, mesmo nos casos em que o falante armazena sequências concretas, sua representação mental dificilmente incluirá todas as propriedades presentes no input. Este último ponto é discutido por Goldberg (2006, p. 46): It is important to realize that exemplar-based models of categorization do not do away with abstraction completely. Generally attributes that are more relevant to the task at hand are more likely to be noticed. Any aspect of an exemplar that is not recorded because the learner failed to (unconsciously) notice it, is obviously not stored. This represents a degree of abstraction over the actual input: if a given stimulus, S, has attributes a, b...z, but the person witnessing S only records attributes a, b, c, and d, the resulting representation will be more abstract than S, in that it will not specify attributes e–z11.

Tradução: “É importante notar que modelos de categorização baseados em exemplares não abrem mão inteiramente da abstração. De modo geral, é mais provável que um indivíduo perceba atributos que são mais relevantes para a tarefa em pauta. Assim, se algum aspecto de um exemplar não for registrado porque o aprendiz (inconscientemente) não atentou para ele, então esse aspecto obviamente não será armazenado. Isso representa um grau de abstração sobre o input concreto: se um dado estímulo, S, tem os atributos a, b, ..., z, mas a pessoa que observa S apenas registra os atributos a, b, c e d, então a representação resultante será mais abstrata que S, na medida em que não especifica os atributos e-z”. 11

Como se vê, então, a GCBU se interessa primordialmente pelas representações mentais que emergem a partir da experiência do falante com o uso linguístico concreto. Essa constatação nos leva ao último passo da argumentação: se assumimos que o conhecimento linguístico é em alguma medida abstrato, emerge a necessidade de determinar precisamente o quão abstratas devem ser as representações propostas pela teoria. Mas que critérios devem ser utilizados para esse fim? Tradicionalmente, a linguística gerativa se atém a dois compromissos: a adequação descritiva e a adequação explicativa. A primeira diz respeito à necessidade de postular uma gramática que gere todas e apenas as sentenças gramaticais de uma dada língua; a segunda diz respeito à necessidade de postular uma gramática econômica o suficiente para que possa ser adquirida pela criança em um intervalo de tempo relativamente curto. No âmbito da GCBU, a “adequação explicativa” – pelo menos se entendida como um imperativo de realidade psicológica – tem sido evocada com muito mais insistência do que a adequação descritiva. A atitude construcionista, contudo, se afasta sensivelmente da posição gerativista clássica: se os linguistas chomskianos perseguem um ideal de economia teórica, motivados pela suposição de que uma gramática excessivamente complexa não seria adquirível, linguistas alinhados à GCBU não apenas aceitam como celebram a redundância teórica (LANGACKER, 1988), talvez motivados pela crença de que organismos vivos são inerentemente redundantes12. Seja como for, ambas as comunidades de linguistas estão perseguindo teorias que sejam biologicamente responsáveis – eles apenas têm ideias diferentes de quais são os pré-requisitos a que uma teoria deve atender para atingir esse ideal. Isso, porém, serve unicamente como um critério que permite selecionar entre duas análises descritivamente válidas. O que significa que, antes de verificar a validade empírica de uma proposta teórica, é preciso assegurar sua pertinência descritiva. Como se sabe, uma teoria científica é descritivamente válida quando ela produz previsões que se confirmam empiricamente. No caso de uma teoria da gramática, os dados empíricos

Interessantemente, essa possibilidade é reconhecida pelo próprio Chomsky (2004, p. 46): “talvez seja um erro fundamental a busca por elegância excessiva na teoria da linguagem, porque é possível que o desenvolvimento daquelas partes do cérebro tenha sido em parte acidental. Por exemplo, o que tem sido até aqui uma ideia muito produtiva – o esforço por eliminar a redundância – talvez seja o movimento errado, porque de fato os sistemas biológicos têm bons motivos para serem redundantes. [...] Seria uma pena. Eu não sei quanto aos outros, mas para mim o campo perderia muito do seu interesse”. 12

podem ser de duas naturezas: (i) ocorrência ou não ocorrência de determinado uso em corpora; (ii) aceitação ou não aceitação de determinado uso por parte do falante. Assim, teremos uma teoria descritivamente adequada (i) quando ela licenciar todos e apenas os enunciados que ocorram nos corpora ou (ii) quando ela licenciar todas e apenas as sentenças que sejam aceitas pelos falantes e nenhuma que não o seja13. Sob uma ótica construcionista, como já observamos, é o mecanismo de combinação de construções gramaticais que (i) assegura a geração de um número infinito de sentenças bem-formadas e (ii) inviabiliza as sentenças mal-formadas. Nesse sentido, quando quisermos estabelecer se uma dada construção foi representada em um nível verossímil de abstração, será preciso verificar se seu conjunto de especificações gramaticais permite realizar todas as combinações que resultam em sentenças gramaticais, ao mesmo tempo em que bloqueia todas as combinações que resultam em agramaticalidade. Se as representações propostas licenciarem sentenças impossíveis, concluiremos que o grau de abstração está excessivo; se, caso contrário, elas deixarem de licenciar sentenças possíveis, saberemos que o grau de abstração foi subestimado. A esta altura, a conclusão já deve estar clara: para verificar o grau apropriado de abstração no qual uma dada construção gramatical deve ser representada, é preciso enfrentar a questão da capacidade gerativa da linguagem humana. Não à toa, a proposta do parágrafo anterior pressupõe um tipo de prática analítica que é próprio da tradição gerativa: testar a viabilidade da estrutura gramatical sob análise em um amplo leque de contextos sintáticos, a fim de verificar se o resultado é uma sentença bem ou mal formada. Como observa Boas (2013), na citação apresentada mais acima, os trabalhos alinhados à GCBU não investem nessa estratégia – na melhor das hipóteses, eles discutem a combinação entre uma palavra individual e uma construção sintática. Aqui, no entanto, é possível apontar dois problemas: em primeiro lugar, mesmo as análises da interação entre item e construção abstrata têm se mostrado descritivamente inadequadas (BOAS, 2003; IWATA, 2005); além disso, resta o problema de que esses trabalhos não investigam as possibilidades de interação entre duas ou mais construções sintáticas. O ponto crucial, portanto, é que a GCBU não pode reivindicar o direito de negligenciar esse tipo de estudo. Nesse sentido, a situação dos linguistas cognitivistas é 13

Estamos apresentando a questão de forma dicotômica (usos que ocorrem X usos que não ocorrem; sentenças aceitáveis X sentenças inaceitáveis) apenas em nome da clareza de exposição. Como se sabe, a GCBU considera a boa ou má formação gramatical como um continuum.

mais desconfortável do que a dos gerativistas: se estes podem evocar o princípio da autonomia da sintaxe para justificar seu desinteresse pelo problema da motivação, aqueles não podem se apoiar em qualquer premissa teórica para justificar sua omissão em relação ao problema da geratividade. E, mais do que isso, o consenso de que a representação cognitiva será sempre mais abstrata que o input acaba por impor, sobre o programa de pesquisas da GCBU, um problema teórico (a questão da capacidade gerativa) e uma prática analítica (a avaliação de boa-formação gramatical em contextos sintáticos diversos) que estão historicamente excluídos do seu horizonte de interesses.

6. Considerações finais

Neste trabalho, procuramos recapitular e avaliar o desenvolvimento histórico da LC, ressaltando tanto as conquistas já alcançadas quanto seus desafios futuros. Especificamente, buscamos mostrar que a LC tem dado uma contribuição decisiva ao estudo da relação forma-função, com base no insight de que a forma gramatical pode ser motivada a partir de operações cognitivas gerais e de representações conceptuais prélinguísticas. Ao mesmo tempo, sugerimos que a ênfase sobre o problema teórico da motivação pode ter levado a uma relativa negligência quanto à questão da geratividade, a qual se apresenta, portanto, como desafio a ser enfrentado. Tudo somado, o saldo final é certamente favorável: nos últimos 35 anos, a LC tem se consolidado como um paradigma altamente produtivo, capaz de propor soluções originais e instigantes para alguns problemas clássicos de análise linguística. Dada a sua crescente popularização, é de se esperar que as próximas décadas sejam ainda mais estimulantes.

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