Forma, Fórmula, Formulação: Um Trajecto de Inversão

July 13, 2017 | Autor: João Luz | Categoria: History of Art
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Questões Teóricas da Arte Contemporânea – Professor António Pedro Pita

FORMA, FÓRMULA, FORMULAÇÃO: UM TRAJECTO DE INVERSÃO

por

JOÃO LUZ

MESTRADO EM ESTUDOS ARTÍSTICOS 2013 | 2014 Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Questões Teóricas da Arte Contemporânea – Professor António Pedro Pita

1. UM TRAJECTO – O rabo de Mona e o bigode de Salvador Ao lançarmos um olhar rasante sobre a conceptualização da arte desde 1750 1, articulando contextos, ideias, variações, podemos aferir cumulativamente as oposições que vêm accionando a motricidade histórica, e daí obter uma visão panorâmica sobre as principais forças diacrónicas. Se não caírmos na tentação de anularmos qualquer linha de pensamento seguida, ficaremos perante a mutabilidade dos fenómenos, numa revolução permanente, que é, afinal, síntese inevitável e contínua. A arte cinemática surge, aliás, como corolário desse movimento: ontologicamente, é mutação. Posto desta maneira, poderemos aceitar que não existe uma arte de transição, quase como impossibilidade aritmética, uma vez que tudo se expande a partir de qualquer coisa que está antes. Isto, porém, coloca um problema: que limites podem ser definidos quando se procede a uma conceptualização da arte? Ao lidarmos com a ideia positiva de finitude, damos uma possibilidade epistémica às coisas, categorizamolas, tornamo-las operacionais, passamos a ter uma cartografia do caos. Uma missão útil poderá, então, ser a de detectar pontos de descontinuidade, momentos de inflexão, de clivagem vertical, que marcam um fim, por sua vez, catalisador de um começo, que por sua vez é continuidade. Tem sido essa a missão de uma historiografia da arte, partindo de uma análise em dois eixos, bidimensional, plana, linear. Se lhe acrescentarmos um terceiro eixo, passaremos a ter uma análise volumétrica, espacial, relacional. Além destas, haveria, talvez, uma outra possibilidade de análise, diríamos, quântica, mas neste caso a ideia de finitude não seria operativa e ficaríamos a flutuar numa massa mutante de coisas. Fiquemos pela análise tridimensional, na qual espacializamos conceitos, ao invés de os dispor num plano, o que nos permite situar fenómenos que co-existem, ou coincidem, em vez de se substituirem ou anularem ao longo de uma linha temporal plana. Assim, as sucessivas expectativas de ruptura são mentalmente situadas correlativamente entre si. Por via da filosofia da arte, ou da produção artística, essas rupturas não são um corte, mas sim mais uma estirpe que deriva de uma mutação. A este respeito, Alain Badiou destaca o papel que as vanguardas têm nesse efeito de acumulação: “Toda a vanguarda declara uma ruptura formal com os esquemas artísticos anteriores. Apresenta-se como portadora de poder de destruição do consenso formal que, num dado momento, define o que merece o nome de arte. Ora, o que é admirável é que, ao longo do século, o que está em jogo permanece sem variar.”2 Existem, de facto, padrões pontuados por constantes, elementos de repetição que se dispõem nas ramificações genealógicas de um quadro conceptual cuja coerência e consistência parece hoje desagregar-

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Aponto esta data por ser o ano de publicação da obra “Estética”, de Alexander Baumgarten, que inaugura uma filsofia da arte. Badiou, Alain, O Século, Ideias & Letras, 2007, pág. 201

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se. Já aconteceu antes, seria imprudente considerar que não possa acontecer novamente. A categoria historiográfica “Renascimento” prova isso mesmo. Recuemos a este período precisamente para exemplificar aquilo que antes referi como “elementos de repetição”. Uma das obras de arte mais analisadas, mais vistas, mais disputadas, e mais interpretadas, é “Mona Lisa”3. A sua resistência ao tempo indicia uma continuidade, senão vejamos: em 1883, “Le Rire”, uma imagem de uma Mona Lisa fumando um cachimbo, desenhado por Eugène Bataille, foi exibido na mostra "Incohérents“, em Paris; em 1919, Marcel Duchamp assinou uma paródia a Mona Lisa feita a partir de uma reprodução impressa, onde desenhou um bigode e um cavanhaque; Salvador Dali pintou um auto-retrato como Mona Lisa, em 1954; em 1963, após a exposição da obra de da Vinci nos Estados Unidos, Andy Warhol produziu impressões serigráficas de múltiplas Monas Lisas; em 1978, Botero pintou a sua Mona Lisa, tal como Baskiat, em 1983, ou Banksy, recentemente, representando várias Monas em stencil, no cimento da urbe. Hoje, neste preciso momento, formam-se filas de pessoas que pagam pela admissão ao museu Louvre para poderem estar frente a uma moldura que contém uma tela com 77 cm x 53 cm, ali exposta desde 1797. O que aconteceu? A primeira e mais óbvia constatação é a de que esta linhagem expõe a noção de apropriação. A apropriação desloca o âmago da forma artística do sensível para o razoável, passando a ser menos uma experiência estética do que uma indução lógica, e isto parece delimitar duas maneiras de entender a arte, a menos que se queira intelectualizar o sensível, indo além dos constrangimentos, ou limites, que Kant levantou desde logo perante uma evental cientifização estética. Não é, porém, este aspecto que aqui me serve de motivo para que Mona Lisa seja exemplar. O que pretendo destacar são as forças mais vastas que movem o pensamento no seu todo, arrastando consigo a produção artística e disseminando o rizoma teórico que a sustenta. Economia, religião, política, ciência, e arte, aglomeram-se numa massa em revolução exponencial. A natureza dos seus factores materializa-se naquilo que é um determinado ciclo civilizacional, e Mona Lisa é um elemento de repetição que ainda não foi suprimido pela indiferença, como aconteceu, por exemplo, com a “Árvore Vermelha”, de Mondrian, mas que não aconteceu, por exemplo, com a sua “Composição com Amarelo”. Se a historiografia inventa e distribui categorias como forma de correlacionar tempo e espaço de acordo com padrões mais ou menos delimitados, uma história da arte que agrupe e compartimente determinadas constantes formais a partir do panorama artístico, segundo um critério tendencialmente sincrónico, deixará de lado todo um fluxo horizontal que muitas vezes não encaixa nas categorias propostas. Daí surgirem, contundentes, questões como: o que é o contemporâneo? (por Agamben), o que é o moderno? (por Giddens), o que é o fim da arte? (por Danto), o que é o fim da história? (por Fukuyama), o que é o fim do tempo? (por Barbour). O trajecto aqui proposto apresenta-se como redutor e volumétrico para que possamos, com alguma

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http://en.wikipedia.org/wiki/Mona_Lisa

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precisão, encontrar meridianos de análise. Ao caracterizar este percurso como uma “inversão” estou desde logo a ordenar probabilidades de coincidência, estabelecendo um certo alcance entre formas artísticas díspares, ou entre posições teóricas contraditórias. Pressupõe que haja uma “versão”, mas que não vai ser tida deliberadamente em conta, por ser desconhecida. Qual é a versão certa dada pela história de arte? Uma tentativa de resposta poderia passar pela análise dos discursos, embora estes, a partir de certo ponto, deixem de se centrar nas formas artísticas para se centrarem nas suas próprias oposições. Metaforicamente, é como um grupo de pessoas que se reúne à volta de um sapato vermelho abandonado no meio da sala de estar, começando a especular sobre a sua origem, e acabando cada pessoa num canto da casa e pensar como é difícil estar só, longe daquilo que fora o problema inicial. O conhecimento gerado no interior de cada uma daquelas forças motrizes - economia, religião, política, ciência, e arte –, tem vindo a expandir-se dialecticamente até atingir, hoje, um certo paroxismo, uma condição limite, em que as suas premissas deixam de estar ajustadas à sua síntese contínua, e passam a evidenciar sintomas de desfasamento. A apropriação em arte é disso um bom exemplo. Quando aquela massa chega ao seu ponto máximo de dilatação, dá-se a sua contracção. Eventualmente esse ponto de contracção terá sucedido em 1883, com o desenho de Bataille sobre um postal com uma imagem de Mona Lisa, exibido numa mostra de arte-anti-arte. A emergência da anti-arte, não sendo propriamente uma inflexão em contra-ciclo, veio ocupar um mesmo espaço, ou meio artístico, forçando oposições que criam novos problemas que supõem reflexão ou, na melhor das hipóteses, novas respostas ou fazeres artísticos. O que antecede o desenho de Bataille, num período de século e meio, é a fundação de uma filosofia da arte, dentro do quadro positivista que se tornou prevalecente, e que influenciou toda a produção artística subsequente. Já com a poética aristotélica acontecera o mesmo; há uma décalage temporal considerável entre a recepção das obras e a sua teorização. Antes de 1883, temos a “Estética” de Baumgarten (1750), as “Observações...” (1764) e a “Crítica...” (1790) de Kant, as cartas de Shiller (1794), as lições de Hegel (1835), e o “Manifesto Comunista” (1848), de Marx. Ao percebermos o que vem depois deste turbilhão teórico, será legítimo questionar se a filosofia da arte não esgota a própria arte, e não fica cada um a falar sozinho a um canto. A filosofia de arte, ao produzir uma trama discursiva a partir dos objectos sobre os quais se sustenta, prossegue gerando sucessivos pontos de não-retorno. O meio artístico confronta-se, assim, com uma “fuga em frente” auto-imposta, da mesma maneira que o ser humano se precipita para a frente, em desequilíbrio. Diz-se com perspicácia que caminhar é cair para a frente. O caminho seguido pelo fazer arte passou a dar-se como precipitação, queda para a frente, impondo-se a si mesma, por via dos discursos sobre arte, um primeiro limite: a irreversibilidade. Não há como voltar atrás, ou repisar por onde se veio. A origem está no futuro, não mais no passado: os manifestos, os movimentos, as vanguardas. Quando Alain Badiou avança que o século XX “tende a ser iconoclasta” recorre a uma noção que surge num contexto muito preciso, o religioso, mas que ela mesma foi apropriada pelo contexto artístico. O século passado é sobretudo isso: dissolução formal → desagregação conceptual. Ao contrário do que possa

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parecer, não foi um século de revoluções, ou de consideráveis rupturas, mas sim de crescente ambiguidade: económica, com o paradoxo do capitalismo de estado; religiosa, com o paradoxo das guerras entre deuses; política, com o paradoxo dos fascismos; científica, com o paradoxo da partícula de deus; artística, com o paradoxo da não-forma. Tal como Badiou se refere ao Quadrado Negro sobre Fundo Branco, de Malevich (1915), também José Gil procede à respectiva análise para chegar a uma ideia, a “não-forma”. Ao longo da sua análise, podemos encontrar um fio condutor que começa por ligar os discursos que se geram a partir das formas pictóricas, os quais têm como ponto de chegada uma formulação que, em última análise, tende para o esvaziamento da forma, a sua dissolução, e passa a incidir sobre aquilo que a antecede, bem como aquilo que a procede. Esta questão, creio, terá levado o pensamento sobre a arte, seja do ponto de vista de quem a produz, seja de quem a teoriza, a uma condição limite. Vimos isso também em Cage ou em Abramovic, mas ainda não sob uma qualquer proposta cinemática, talvez porque o cinema não terá ainda uma consciência de si – numa acepção sartreriana (primeiro a consciência, depois o eu) –, da mesma maneira que se observou nas restantes artes. Como não podia deixar de ser, a arte foi transformada pela filosofia, do mesmo modo que esta transformou o fazer arte ao ponto de se ter anunciado um certo fim: a não-forma. Gil afirma o seguinte a este respeito: “Segundo ele [Malevich], há uma excitabilidade do universo, que provoca acção e reacção, etc., que é originária e produtiva. O que temos de compreender é que dessa força do nada nascerão “coisas”, nascerão novas “formas”, que não são formas, e isto levanta um problema (…) O “nada libertado” é a força libertada, força de criação a partir do nada, que fará jorrar do nada uma “coisa”, ou melhor, fará nascer o que se pode chamar “não-formas”, porque, como veremos, não são formas de objectos ou seres.”4 Sobrepõem-se, aqui, dois níveis discursivos: o do artista, deambulante, delirante, empírico; o do filósofo, problemático, deambulante, académico. A estes podem ser acrescentados outros tantos, como o discurso crítico, muitas vezes conduzido por imperativos de utilidade, ou o discurso coloquial, mais ou menos esclarecido, plasmado no que comumente se diz sobre a arte ou objectos artísticos que sejam do conhecimento público. Todos eles, porém, evidenciam aquilo que tem sido um problema central na arte, que é o confronto entre a linguagem verbal e a linguagem dita artística, resumido por Gil desta maneira: “Começarei por dizer que existe uma ideia, para os que reflectiram sobre a expressão “linguagem artística”, uma ideia que é praticamente estabelecida

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Gil, José, A Arte como Linguagem, Relógio d'Água, 2010, pág. 24

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e aceite, que “linguagem artística” é uma metáfora de “linguagem verbal”. É uma expressão metafórica, sobretudo porque não há possibilidade de construir a dupla articulação da linguagem. Não há possibilidade de fazer da linguagem artística uma metalinguagem, uma linguagem que fale de si própria e que fale de outras linguagens, só há uma metalinguagem, que é a linguagem verbal, que fala de todas.”5 Não sendo este o problema que aqui tento tratar, a argumentação de Gil coloca em evidência uma sugestão de condição limite para a conceptualização da arte, que é a desadequação entre os discursos sobre arte e os objectos artísticos em si, começando pelo próprio artista, ou autor, e acabando no visitante de museu. A obra de arte dificilmente se encerra em modos discursivos, em linguagem verbal, uma vez que os seus constituintes, a sua substância mutante, transcendem a palavra. Esta, sendo resultado de um processo cognitivo, por mais consistente e lógica que seja a estrutura em que se articula, pode ser insuficiente para descodificar aspectos que se situam no domínio da emoção, da intuição, da sensação, os quais estão num plano anterior ao da cognição. Aquilo que poderemos designar por précognição surge como um conjunto de mecanismos sensoriais, perceptivos, que geram respostas emocionais antes de haver a sua congoscência, segundo alguns estudos de psicologia experimental, como, por exemplo, refere Robinson6. 1.1. FORMA – A ceia de Leonardo e a odisseia de Stanley A forma começa por ser preceito, regra, estrutura normativa que aponta para aspectos simples: harmonia, proporção (divina), simbolismo, evidência de um domínio irrepreensível de uma técnica. Com a filosofia de arte passa ser pensada como fonte de sensação; como origem da complicada noção de belo, ou de sublime, e ao ser dissecada começa a dar-se a sua dissolução. Contudo, não se pode dizer que desapareça – o que só parece ser concebível se pensarmos numa arte aformal, naquilo que seria um desenolvimento da ideia de “não-forma”, de José Gil –, mas sim que é secundarizada devido aos sucessivos problemas que se foram acumulando a partir do que levou a pensar. Se a forma procura o belo, e o belo é subjectivo, mas uma ciência das formas artísticas procura o geral, então a forma será apenas um pretexto, ou prova, para se iniciar uma reflexão que rapidamente passa para outro nível. Será neste ponto, talvez, que os discursos sobre arte se afastam daquilo que é substancial em arte: o que a torna visível. Enquanto uma eventual conceptualização da arte aformal não se estabelece, lidaremos forçosamente com a tangibilidade das formas artísticas, mediadas pelo interface sensorial, sendo este o último reduto do que ainda é uma experiência estética. Ao fazer uma ligação entre a obra de Leonardo e a de Stanley, pretendo destacar menos o extremo preceito que serve de fundação para a sua construção, do que o facto de se situarem em velocidades distintas num mesmo plano, isto é, se ambas são um exemplo crasso de um mesmo tipo de representação do visível – um real simbólico, perspectivado, centrado, mitológico –, estão

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Idem, pág. 10 Robinson, Jenefer, Deeper Than Reason, Oxford University Press, 2005, pág. 37

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separadas por um abismo de pensamento que se anula apenas se olharmos para a “Odisseia” não só como um correlato da “Ceia”, mas sobretudo como uma inevitável e consequente mutação do mesmo ser. Aqui, a feliz coincidência fonética é apenas um acaso linguístico, embora tenha servido como fáscia daquela relação. A imaturidade conceptual da arte cinemática, por compração à arte pictórica, ilustra bem os limites da forma. Ao confrontarmos a primeira com uma ideia de “não-forma”, entramos em queda livre para um espaço mais do que desconhecido; perdemos o lastro de integibilidade que garante um mínimo de reconhecimento, sob pena de inexistir como possibilidade artística. Por outro lado, seja o mais radicalmente iconoclasta que se pretenda, uma obra de arte aformal, que abdique de si própria como tangibilidade, coloca desde logo não o problema da sua concepção, mas o da sua percepção. Por mais localizado que um problema possa ser, dificilmente nos circunscrevemos somente à sua delimitação, tal é a abundância de implicação, complicação, e oposição dentro do tecido teórico que reveste a produção artística. Assim, entre a contínua e crescente reificação da arte durante o período de tempo aqui em análise, com as suas forças históricas em acção, e uma arte aformal, feita apenas de pensamento, formulação, retórica, estende-se toda uma volumetria conceptual que muito dificilmente se consegue, hoje, delimitar. Apesar disso, o esforço de actualizar constantemente uma taxonomia das formas artísticas será, por ventura, a maneira mais eficaz de traçar meridianos de compreensão. 1.2. FÓRMULA – O cavalo de Pablo e o cavalo de Bela Ao desafiar o estatuto exclusivista da forma, que aqui considero como elemento de validação ontológica da arte, os problemas colocados pela filosofia conduziram os artistas a apresentarem soluções que, em grande parte dos casos, são respostas por oposição, por contraponto: a antítese. A revolução que daqui emerge, a síntese, segue no sentido de serem dadas a conhecer obras que vão ao encontro de uma arché estilística, um padrão perfeitamente circunscrito a uma identidade entre indivíduo, obra, e contexto de produção. Todavia, face à perenidade da décalage entre fazer arte e pensar a arte, o risco de haver uma incapacidade de reconhecimento imediato de uma mutação é bastante elevado. A resposta artística, por sua vez, reage por exclusão de partes, por tentativa e erro, por intuição, por subversão, por delírio, até chegar ao absolutamente original que, por ser tão concentrado e intenso, no momento em que se torna comum deixa de poder ser continuado, de tal modo únicos que são os compenentes matriciais da sua fórmula. Por isto, o cavalo agoniado de Pablo é o mesmo de Bela, ambos fases terminais de uma fórmula, de uma maneira absolutamente original – no sentido mais restrito da palavra –, de fazer arte.

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A fórmula tem sobre si o peso da irrepetibilidade, condenando-se a si mesma como limite. É um fim de uma linha. Badiou conclui na seguinte maneira: “No auge da sua síntese, a arte do século [XX] – mas também, segundo os seus próprios recursos, todos os procedimentos de verdade – visa conjugar o presente, a intensidade real da vida, e o nome desse presente dado na fórmula que é sempre também a invenção de uma forma.”7 O fim do século XX é também o fim dos artistas e dos pensadores que construiram o século. O obituário é longo e ilustríssimo. Esta morte lenta traz a questão da sucessão. E agora o que fazer, quando poucos restam, e tanto deixaram? A teoria foi feita com base nos delírios deles e delas. Esgotou-se, tal como as suas vidas; levaram-nos aos limites da invenção possível, e abriram a porta a uma condição derradeira, que é a de uma arte aformal, feita de imaterialidade retórica. 1.3. FORMULAÇÃO – O cão de Luis e o cão de Guillermo O trajecto que a arte tem vindo a fazer, e que arrisco designar por inversão, traz-nos a este ponto de chegada: é o conceito, indissociável da retórica que o sustenta, que hoje se revela como forma. Esta deixa de ser material, tangível, substituindo-se o objecto por um referente mais ou menos aleatório. A forma física, convencional, e conceptualmente considerada –, é agora indexical, e essa forma indexicada é a base da formulação, na qual uma lógica positiva não é necessária nem essencial. As preocupações de Kant acerca da subjectivação do belo, que o levaram a manter muitas reservas quanto à especulação em torno de uma “ciência do sensível”, vieram, ironicamente, concretizar-se em paradigma; não só estão firmadas na discussão teórica mais recente, como constituem um postulado no processo criativo. Antes, o conceito era um ponto de partida, um detonador; agora é o que substancia formalmente a obra. Se logo depois de cortar a retina ao cão andaluz, Luis estivesse presente na galeria onde o cão faminto de Guillermo servia como protesto íntimo e pessoal contra a hipocrisia social, poderia no mínimo perguntar “onde está a obra?”, remetendo para os discursos que sustêm a proposta dita artística uma possível resposta, que é sobejamente conhecida, e mais ou menos aceite. Nesta tensão entre as duas obras que refiro, a arte pictórica simplesmente desapareceu do espaço expositivo, revelou-se uma espécia extinta sem qualquer probabilidade de mutação. A formulação situar-se-á, assim, num plano meta-artístico.

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Badiou, Alain, O Século, Ideias & Letras, 2007, pág. 222

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2. A MUTAÇÃO – O fim de Jean-François e o quase de Anthony À entrada do século XX o que se faz e o que se pensa em arte estão praticamente em sintonia, mas ao longo do século o pensar ultrapassou o fazer, não só antecipando-o como determinando-o. A teoria institucional da arte será um desses pontos de chegada. É aqui, precisamente, que se dá a inversão do sentido que vinha a ser seguido. A conceptualização da arte passou a não estar de acordo com o tempo em que o objecto artístico é recebido, adiantou-se-lhe, passou-se do “neo” para o “pós”. Como se pode pensar a arte de um tempo que se considera finalizado, ou melhor, ultrapassado? Aqui, estamos para além do que é anacrónico, podendo mesmo tratar-se de um fenómeno assincrónico. A discussão em torno da sucessão da Modernidade irá durar enquanto se mantiver a actual conjugação de forças motrizes – economia, religião, política, ciência, e arte –, as quais só apresentarão uma nova configuração quando houver a defnitiva substituição do modelo vigente, isto se adoptarmos um critério de periodização assente na hegemonia tecnológica. Poderíamos dizer, com alguma segurança, que estamos precisamente num período de transição entre eras, desta feita, de superação do tipo pelo dígito, mas cujo impacto na produção artística é ainda pouco prospectivo. O século XXI dará provavelmente início a um período escolástico. Demorar-se-á tanto ou mais tempo a compreender a herança dos dois séculos e meio que nos precederam, nas suas mutações, estirpes, derivações, pontos finais. É uma compreensão que nos obriga a distanciamento, talvez menos do ponto de vista analítico do que linearmente temporal. Há, de facto, que demarcar meridianos com a justeza de não nos adiantarmos ao próprio devir, ou de excluirmos a origem das ideias. Supôr um regresso ao dogmatismo, porém, pode ser uma conclusão precipitada, que não tem em conta a capacidade de retenção da memória. Nada impede um regresso da dimensão espiritual da arte, não interessando se de natureza religiosa ou não. O arco descrito pelo fazer e pelo pensar, em que se passou do divino-humano para o ideal-humano, veio culminar no mundano-humano, oscilando hoje entre o lúdico e o hermético, com pouco apreço pelo que está no meio. Os que ficam a fazer arte têm a vantagem de perceber o que se passou e continuar a mesma coisa, inventando formas que a escalabilidade técnica potencie, caso ainda haja algum tipo de crença na sensação.

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