Forma literária e processo social: semiperiferia do capitalismo na Literatura Brasileira e na Literatura Portuguesa

May 26, 2017 | Autor: C. Duarte Barreiros | Categoria: Literatura Portuguesa, Forma Literária E Processo Social
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Giochi di specchi Modelli, tradizioni, contaminazioni e dinamiche interculturali nei e tra i paesi di lingua portoghese a cura di

Monica Lupetti e Valeria Tocco con Valeria Carta, Sofia Ferreira Andrade, Mauro La Mancusa, Giuliana Paolillo

Edizioni ETS

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Volume pubblicato con il contributo dell’Ambasciata del Portogallo a Roma e del Camões, IP (Cátedra Antero de Quental - Pisa)

Contributi sottoposti a referaggio anonimo è di responsabilità esclusiva di ciascun autore (oltre, ovviamente, al contenuto del contributo) la scelta di seguire o meno l’Accordo Ortografico

© Copyright 2016 Edizioni ETS Piazza Carrara, 16-19, I-56126 Pisa [email protected] www.edizioniets.com Distribuzione Messaggerie Libri SPA Sede legale: via G. Verdi 8 - 20090 Assago (MI) Promozione PDE PROMOZIONE SRL

via Zago 2/2 - 40128 Bologna ISBN 978-884674536-1

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indice

Presentazione Monica Lupetti, Valeria Tocco

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I. Tra Italia e mondi di lingua portoghese

Rita Marnoto Relações culturais Portugal Itália: excentralidade, policentralidade 15 Davide Conrieri Sulle tracce della panthera redolens: variazioni attorno al dialogo tra Italia e Portogallo 33 Nunziatella Alessandrini A Língua e a Cultura Italiana em Portugal: uma visão de conjunto 37 Mariagrazia Russo O presente e o futuro da língua portuguesa na escola italiana 53 Sofia Ferreira Andrade A Embaixada de Agustina 69 Benedito Antunes O macarrônico na literatura brasileira do início do século XX 77 Patricia Peterle Ruínas Orme Manchas: às voltas com Murilo Mendes, Marco Lucchesi e Giorgio Caproni 87 Vera Lúcia de Oliveira Habitar Íntimo: a poesia de Eduardo Dall’Alba 97 II. modernismi

Silvano Peloso Fernando Pessoa e la quarta dimensione dell’arte e della mente 109 Filipa Freitas Fernando Pessoa e o espelho dos poetas 117

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Fabrizio Boscaglia Quem são os infiéis no Quinto Império de Fernando Pessoa? 129 Elisa Alberani Pessoa in Persona: il contributo italiano alla costruzione del “mito” letterario pessoano 151 Mauro La Mancusa La prosa onnivora della Engomadeira di Almada Negreiros 173 Valeria Tocco K4 e la geometria del nonsense 187 III. dialoghi intra e translusofoni

Sonia Netto Salomão Drummond revisita Camões: dos “olhos Gonçalves” ao “coração Mendes” 201 Giovanni Ricciardi Dal «suavíssimo Mondego» al «turvo» Ribeirão do Carmo: la poesia come conoscenza e costruzione sociale della realtà 211 Matteo Rei Olhando os longes: il desiderio della lontananza in Roberto de Mesquita e Camilo Pessanha 223 Duarte Barreiros Forma literária e processo social: semiperiferia do capitalismo na Literatura Brasileira e na Literatura Portuguesa 239 Danielle Corpas Guimarães Rosa e Dostoiévski: dois mestres na periferia do capitalismo 249 Marco Bucaioni Impossível Descolonização – Para um novo enquadramento das literaturas da África Lusofona: perspectivas críticas 259 Simone Celani Intertestualità lusofone: sulla lingua poetica di Rui Knopfli 273 Luca Fazzini Postmoderno e postcoloniale: nuova immagine di sé e dell’altro in Manuel Alegre e Pepetela 285

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Ada Milani Suggestioni lusotropicali: una rilettura di Gilberto Freyre in Africa. Il caso di Mário Pinto de Andrade e Amílcar Cabral 297 Marisa Mourinha O (im)possível regresso: As Naus de Lobo Antunes e O Retorno de Dulce Maria Cardoso 311 Roberto Francavilla L’inferno è più eterno del cielo. Una riscrittura del topos di Inês de Castro 321 Giorgia Casara António Pedro Lopes de Mendonça e a crítica literária moderna em Portugal 327 Federico Bertolazzi Teixeira de Pascoaes e Sophia de Mello Breyner Andresen – Un incontro di paesaggi 339 Elsa Rita dos Santos Contaminações interculturais: dois textos teatrais entre tradição e modernidade 349 Martina Matozzi Un asimmetrico gioco di specchi: Três Vidas ao Espelho di Manuel da Silva Ramos 361 IV. Transdisciplinarità

Caio Di Palma Por uma arquitetura do movimento poético na contemporaneidade 379 Rosa Maria Sequeira Jogo de espelhos no donjuanismo português 387 Roberto Bozzetti Samba e negror dos tempos: os diálogos de Paulinho de Viola nos anos de chumbo 399 Maria Caterina Pincherle Zucchero amaro, dolce inferno e le loro metamorfosi. Da António Vieira a Vik Muniz 411

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V. Traduzione

Andrea Ragusa «Essa aparição que transluz da matéria manufacturada»: sulla traduzione italiana di Frisos e Saltimbancos 429 Ivana Librici La traduzione portoghese de L’Annonce faite à Marie di Paul Claudel 437 Katia de Abreu Chulata Voci brasiliane nella costruzione di identità traduttive 451 Eleonora Ziller Em busca de um Dante à brasileira: a história de uma tradução 469 VI. lingua, lingue, linguistica

Marcos Bagno Por que uma gramática brasileira? 477 Roberto Mulinacci Uma gramática brasileira… e por que não? 489 Vanessa Castagna Opere letterarie e best-seller tra adattamento ortografico e traduzione intralinguistica 495 Cristina Gemmino I canti di capoeira: una ricerca sociolinguistica 505 Marilza de Oliveira Ênclise pronominal: um marcador social da elite política brasileira 523 Simone Gugliotta Paulo Freire & Dom Milani: breve análise textual de práticas pedagógicas revolucionárias 543 Gian Luigi De Rosa Luuanda no processo de elaboração do português angolano 551 Esperança Cardeira, João Paulo Silvestre, Alina Vilalva A especulação das cores 561 Monica Lupetti Teorie e prassi del portoghese nelle grammatiche per italiani, tra XIX e XX secolo 571

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Barbara Gori Gli pseudo riflessivi in PE: una questione di inaccusatività? 587 Arlindo Castanho Para a desambiguação do conceito de embodiment 599 appendice. memoria del congresso

Maida Del Sarto Sinossi di un congresso 619 Roberto Francavilla La storia portoghese di Fausto Giaccone 621 Dalia Ghilarducci Memoria e cinema 625 Andrea Bianchini Libri e memoria 627 Mauro La Mancusa Venti Garofani Rossi: omaggio a Tabucchi tra teatro, musica e romanzo 629 Intervista a Isabella Mangani e Simona Baldelli 630

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Forma literária e processo social: semiperiferia do capitalismo na Literatura Brasileira e na Literatura Portuguesa Carlos Rogerio Duarte Barreiros1

No Brasil, a pesquisa de Roberto Schwarz (1992, 1997, 1998) a respeito da obra de Machado de Assis pode ser considerada um momento decisivo para a investigação das relações entre forma literária e processo social. Em termos gerais, partindo do pressuposto formulado por Antônio Cândido – o de que «o processo por cujo intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em si mesma, como algo autônomo» (Cândido 2010: p. 9), chamado de redução estrutural –, Schwarz debruçou-se sobre a obra machadiana e encontrou, nos chamados cinco romances da maturidade, especialmente nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, a solução formal apresentada pelo autor à experiência brasileira: um narrador cuja volubilidade na condução e no tom do romance é homóloga à conduta ambivalente dos setores mais conservadores da classe dominante brasileira da primeira metade do século XIX, especialmente no que se refere às contradições entre a vida material – pontilhada das consequências da escravidão – e a vida ideológica – em que se verificava recepção distorcida do ideário liberal burguês a que a sociedade brasileira era permeável, dado o lugar periférico que ocupava no capitalismo. Ainda segundo Roberto Schwarz, a recepção e a abertura da sociedade brasileira a esse repertório que lhe era alheio acabaram por revelar não apenas o atraso brasileiro no que se referia aos termos da economia, da industrialização e dos direitos do homem, mas sobretudo às contradições e fissuras no conjunto pretensamente uniforme e coerente da ideologia liberal. Em termos simples, a aclimatação das ideias e práticas burguesas em país que era, em boa medida, adverso a elas acabou por limitar-lhes a força, os efeitos e a credibilidade. Brás Cubas recorre à liberdade individual, por exemplo, para justificar arbitrariedades profundamente violentas – conduta que, a um só tempo, remete ao capricho de quem dispõe gratuitamente da vida alheia e à formação acadêmica europeia. Do ponto de vista da forma literária, o defunto-autor conduz a narrativa aos sobressaltos, interrompendo-a por meio de digressões de toda ordem, sempre em campanha para chamar a atenção para si mesmo, de modo a impedir que o leitor tenha uma 1 Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Secretário do Grupo de Estudos de Literatura Portuguesa de Autoria Feminina da mesma universidade. Currículo disponível em http://lattes.cnpq.br/7106001019772355.

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visão de conjunto. Em suma: a forma literária é observada como «regra de composição narrativa» e como «estilização de uma conduta própria à classe dominante brasileira» (Schwarz 1998: pp. 17-18). Essa análise, evidentemente, não é unânime: Alfredo Bosi tem se dedicado a demonstrar que o liberalismo não era uma ideologia estranha, mas que, ao contrário, estava entranhado na vida econômica e política do Brasil do século XIX – é o que se verifica na análise de fôlego efetuada na segunda parte de Ideologia e Contraideologia (2010) e em Ideologias e contraideologias, da obra Entre a literatura e a história (2013), além de outros textos anteriores. Em termos gerais, Bosi avalia que a abertura dos portos brasileiros em 1808 marca a introdução do liberalismo econômico no Brasil, país em que esta ideologia acabou por integrar o regime escravista à ordem mundial (Bosi 2013: p. 256). Deixando a polêmica entre Bosi e Schwarz à parte, sem pretensão nenhuma de esgotá-la – diga-se de passagem, eis aí dos mais estimulantes debates contemporâneos a respeito da cultura e da história do Brasil, que merece pesquisa e análise específica – ou de reduzi-la a um consenso artificial e estéril, assumiremos aqui que, por mais que o liberalismo e o escravismo funcionassem em consonância na vida política e econômica no Brasil do século XIX, como afirma Bosi, parece ainda bastante legítimo afirmar que as práticas sociais concretas pautadas pelo mandonismo e pelo capricho – que tinham por lastro a escravidão e que repudiavam as ideologias burguesas de modo geral, e especialmente a ética do trabalho – tiveram largo alcance na vida material brasileira, como quer Schwarz, interferindo, mediatamente e em alguma medida, nas formas literárias. Afirmou-se acima, ainda, que, para formular essas hipóteses a respeito da obra machadiana, o mesmo Schwarz valeu-se da chamada redução estrutural proposta por Antônio Cândido. É perceptível, além disso, a contribuição dos chamados intérpretes do Brasil no conjunto da obra de Schwarz – especialmente as “formações” de Caio Prado Júnior (2000) e Celso Furtado (1971), além das Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1987), da Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (2013), e dos resultados do chamado Seminário do Capital – principalmente o Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, de Fernando Henrique Cardoso (1962), e Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), de Fernando Novais (1995). O que se pretende observar é que a proposta de Roberto Schwarz só pode ser compreendida no âmbito dessa tradição, cujos autores e obras, a despeito das diferenças, têm como denominador comum a tentativa de compreender os processos econômicos, sociais e culturais que levaram o Brasil ao lugar que ocupa, de modo que seja possível formular alternativas a partir da experiência brasileira, e não de soluções importadas. Nesse contexto, a obra de Machado de Assis contém uma solução formal radicalmente nacional, porque não rejeita a tradição do romance europeu – de que os escritores brasileiros eram e são inexoravelmente herdeiros –, mas sem

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adotar-lhe gratuitamente as formas. Ao contrário do que vem ocorrendo no Brasil desde o princípio do século XX, foi somente a partir da abertura política da Revolução dos Cravos que Portugal pôde debruçar-se sobre a própria experiência para além dos limites autoritários do Salazarismo. Para Boaventura de Sousa Santos (1990: p. 09), «a tutela repressiva a que foram sujeitas as ciências sociais antes de 1974 não permitiu a criação de uma tradição analítica sobre a sociedade portuguesa adequada a dar conta das suas especificidades sociológicas». Não se esperava, evidentemente, que se formasse em Portugal uma cadeia de obras e de pesquisadores que empreendessem a interpretação do país nos mesmos termos dos verificados no Brasil. Mas a carência que se observava no início da última década do século XX em Portugal, por mais que já tenha sido suprida, em boa parte, graças às pesquisas do próprio Boaventura de Sousa Santos, talvez ainda hoje peça uma abordagem escalavrada das conquistas metodológicas feitas no Brasil, acima descritas, inclusive no que lhes concerne aos passos por dar. Primeiramente, porque, embora seja claramente distinta da brasileira, a experiência portuguesa guarda com ela ao menos um ponto comum, que interessa investigar: a posição semiperiférica de Portugal também é privilegiada para a visada crítica das ideologias oriundas dos países centrais da Europa. Em outras palavras, aquela experiência – a portuguesa – também é adversa, em alguma medida, a estas ideologias, escancarando-lhes as contradições, especialmente no romance. Além disso, também é válido perscrutá-la por meio daquela tradição brasileira a fim de aferir-lhe o alcance e os limites – de modo que o horizonte a divisar seja o aprofundamento dos pressupostos teóricos e metodológicos de investigação das relações entre formas artísticas e processos sociais. Peço-lhes licença para apresentar aqui os resultados de minha pesquisa de doutorado (Barreiros 2013) desenvolvida no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), em que foi analisado o romance português Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, publicado em 1981, nos termos propostos acima. Tratava-se de investigar a obra desse romancista e flagrar o que pode ser chamado de “forma semiperiférica” do romance, correlata à experiência portuguesa, nos termos de Boaventura de Sousa Santos. Para ele, o «elemento estruturante básico da experiência coletiva portuguesa» é o fato de Portugal ter sido durante muitos séculos «o centro de um grande império colonial e a periferia da Europa» (Santos 2011: p. 22); a essa “nação semiperiférica”, defendia-se na pesquisa de doutorado, corresponderá uma forma literária específica, fronteiriça, precisamente porque, nos termos do mesmo autor, «a cultura portuguesa é uma cultura de fronteira. Não tem conteúdo. Tem sobretudo forma e essa forma é a fronteira, a zona fronteiriça» (Santos 2002: p. 25). As implicações dessa formulação permitiram observar no conjunto da

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obra de José Cardoso Pires o processo de redução estrutural proposto por Antônio Cândido – no nosso caso específico, verificou-se de que maneira a forma do romance cardosiano dava expressão à condição ambivalente de ser centro e periferia ao mesmo tempo. Em termos gerais, alcançou-se a conclusão de que, na obra de Cardoso Pires, a forma do romance de entretenimento era subvertida pela experiência de matriz portuguesa. O texto investigado repousava assim “no limite” entre as formas de mercado e outras, correspondentes à vida material na semiperiferia, que guarda traços sociais e culturais pré-capitalistas. Mais uma vez: por meio dessa solução formal, entrevia-se a força desse romance no sistema literário internacional, já que nele se propunha a experiência portuguesa como referente para a suspeita das formas literárias de mercado – o que certamente ganha importância no contexto da globalização e do neoliberalismo, que apenas ensaiavam os primeiros passos na época da publicação da obra, que assume também, assim, a feição de presságio da crise que Portugal vem experimentando desde 2008. A pesquisa de doutorado a respeito do romance cardosiano também revelou a persistência de resquícios pré-capitalistas na forma literária – o que não surpreenderá, se considerada a história econômica portuguesa. A bibliografia analisada (Castro 1987; Costa, Lains, Miranda 2011; Hirano 1988; Holanda 1987; Júnior 2000; Lains 2003; Novais 1995; Saraiva 2005; Sérgio 1978) permitiu a conclusão de que Portugal estacionou nas atividades e nas instituições associadas ao período do mercantilismo até o século XIX, em que as imposições do liberalismo e do capitalismo industrial se impuseram ao pequeno país ainda sustentado internamente pela agricultura e externamente pela circulação de mercadorias, que alcançou sobrevida significativa por meio da extração mineira do século XVIII. Em termos gerais, da mesma maneira que é possível verificar a justaposição de formas residuais da sociedade pré-capitalista na sociedade portuguesa contemporânea, também é possível aferir a persistência de formas literárias tradicionais (é precisamente a balada do título que abre as portas a essa interpretação) no romance português da segunda metade do século XX – o que se poderia estender, teoricamente, a diversas obras da Literatura Portuguesa desde o século XVII. Na pesquisa de doutorado, entretanto, não havia espaço senão para a análise da forma do romance cardosiano. Voltaremos a essa hipótese a seguir. Não será vão apresentar breves exemplos para esclarecer nossa hipótese. Pode-se afirmar que a Balada da Praia dos Cães está equilibrada, da primeira à última página, entre o facto e o ficto, isto é, que as referências factuais à crise experimentada pelo regime salazarista na passagem da década de 1950 para a de 1960 ganham veracidade na mesma medida em que são transpostas para o plano ficcional. Como se sabe, no romance acompanha-se a investigação da Polícia Judiciária a respeito do assassinato do Major Dantas Castro, enterrado na Praia do Mastro – crime ficcional, claro está, mas que

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remete a outro, realmente ocorrido na Praia do Guincho, em que foi localizado o corpo de José Joaquim Almeida Santos, em 31 de março de 1960, ponto de partida de José Cardoso Pires para a redação da Balada. O romance é iniciado pelo laudo do Cadáver de um desconhecido (Pires 2009: pp. 33-34), documento supostamente oficial coletado pelo narrador, cuja pesquisa teria servido de referência para a redação da obra. A esta ambiência repleta de referências factuais, opõe-se a da página seguinte, claramente literária, iniciada por uma sequência pontilhada que encerrara, igualmente, o laudo. A impressão geral do leitor é a de que os olhos passaram do documento à ficção numa folha – impressão que o seguirá até às últimas páginas, devido à presença insistente dos paratextos editoriais de que Cardoso Pires coalhou o romance. O laudo a que nos referimos acima, por exemplo, é grafado em itálico, como o são diversas outras passagens, cujo efeito, de forma geral, é o de aprofundamento da feição documental do romance ou de sua ancoragem na realidade concreta; há textos destacados entre colchetes, que contêm fragmentos de supostos documentos oficiais consultados para a redação da Balada; há reproduções de manchetes e de reportagens de jornal, que o narrador teria colecionado para utilizar no corpo da obra; há, finalmente, notas de rodapé, um apêndice e uma nota final – sempre alcançando, como apontamos acima, o efeito de manter a narrativa no limite entre os factos e a ficção. É precisamente a suspensão entre esses dois polos que faz da Balada da Praia dos Cães um romance semiperiférico, fronteiriço, isto é, figuração literária da experiência portuguesa descrita nos termos de Boaventura de Sousa Santos. Além dos paratextos editoriais, há, ainda, no romance de Cardoso Pires, o que poderíamos chamar de revisão crítica do romance policial de mercado. As referências a documentos supostamente analisados pelo narrador acabam por mergulhar o leitor num amálgama sinuoso e desconfortável de burocracia, arbitrariedade, falsificação de provas e tortura – em suma, um universo que escapa à racionalidade marcante do romance policial tradicional, amparado na ciência e na lógica, em que provas e indícios concretos levam sistematicamente à identificação do criminoso. Na Balada, o investigador tortura psicologicamente a principal suspeita, o que acaba por aproximá-lo, em última análise, do Major – que também a torturava, escalavrando-lhe as costas de queimaduras de cigarro – em espelhamento grotesco cujas consequências para a análise são muitas. Aqui, basta aludir a uma: Cardoso Pires parece apropriar-se da forma do romance de mercado exatamente para revelar-lhe a artificialidade no contexto português, porque a experiência portuguesa não corresponde nem pode corresponder às formas literárias oriundas do que se convencionou chamar de centro do capitalismo: em mais de uma passagem, o narrador se refere ao medo como sentimento predominante na Lisboa de Salazar, em que o olhar algo orwelliano do ditador sotopõe qualquer traço de autonomia, burocratizando a vida do cidadão médio, acanalhando-lhe a existência ao

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provincianismo marialva que insistia em um Portugal “orgulhosamente só”, radicalmente adverso à grande cidade cosmopolita em que se passa o romance policial. É o Chefe Elias, da Polícia Judiciária, a materialização desse corpo de Estado preguiçoso e burocrático, metonimicamente representado, ainda, no Lizardo, seu lagarto de estimação, que vive em aquário de temperatura controlada. Finalmente, se lembrarmos que a balada é uma forma popular de poesia, de autoria coletiva e anônima, então teremos, nos termos de Walter Benjamin (1994), uma forma industrial de narração – o romance – escovada a contrapelo por outra, tradicional, arrimada em ambiente adverso à primeira, num híbrido que, mais uma vez, revela o caráter semiperiférico do romance de Cardoso Pires. Outro desdobramento significativo dessa hipótese foi a formulação do conceito de perimorfose, vocábulo que foi tomado de empréstimo à zoologia e que se refere à transformação das larvas em crisálidas. Assumimos, inicialmente, que Portugal se pode caracterizar como nação intermediadora desde as fases iniciais do capitalismo e que aí estacionou desde então; assumimos ainda que o sustento desse país esteve associado ao comércio e à circulação de mercadorias, especialmente no período das navegações; e assumimos finalmente que os fluxos migratórios caracterizaram tradicionalmente a feição da população portuguesa. A viagem será, conseguintemente, figura recorrente na literatura produzida em Portugal, especialmente na de Cardoso Pires, não apenas no sentido literal do trajeto de um lugar a outro, mas em outro, mais abstrato, de translação incessante, como se fosse o próprio moto-contínuo o sentido mesmo do país. Maria Lúcia Lepecki (1977), uma das maiores estudiosas da obra de Cardoso Pires, já reconhecia esse processo na obra do romancista, cuja coerência interna sempre esteve arrimada sobre essa experiência histórica concreta. Experiência formal do limite, híbrido de romance de mercado e formas tradicionais e a figura recorrente da perimorfose: eis aí os termos nos quais foi analisada a obra de Cardoso Pires. Talvez se possa, a título de conclusão, sugerir-lhes a reiteração em outras obras. Pensemos, inicialmente, na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. Trata-se de obra de difícil classificação exatamente pelo hibridismo formal, entre a literatura de viagens e o livro de maravilhas, ou, se quisermos, a sátira. Essa obra alcançou dezenove edições em seis línguas apenas no século XVII, depois do qual o interesse pela obra declinou (Catz 1978: p. 77), exatamente devido à percepção do público de que, apesar da feição documental, a obra continha muitas passagens ficcionais, ou ainda: estaria repleta de incongruências, isto é, repousava no limite entre o fantasioso e o real; há, por exemplo, diversos lugares supostamente visitados por Fernão Mendes Pintos que jamais foram localizados. O título evidentemente alude à viagem empreendida pelo autor, ocorrida exatamente no momento em que se delineava a feição econômica a que nos referimos acima e que determinaria,

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em boa medida, a sociedade portuguesa: a da circulação dos produtos. Observemos rapidamente um fragmento do capítulo 114, intitulado Do número da gente que vive nas casas de el-rei da China, e dos nomes das dignidades supremas que governam o reino, e das três principais seitas que há nele: Desta sua cegueira e incredulidade lhes nascem os grandes desatinos e a grande confusão de superstições que têm entre si, em que têm muitos abusos e cerimónias diabólicas, e usam de sacrifícios de sangue humano, os quais oferecem com diversidade de fumos cheirosos e com grandes peitas, que dão aos seus sacerdotes para que lhes segurem grandes bens nesta vida, e na outra riquezas de ouro infinitas, os quais sacerdotes lhes dão para isso uns escritos como letras de câmbio a que o comum chama cuchimiocós, para que lá no céu, em eles morrendo, lhes deem a cento por um, como se eles tivessem lá correspondentes. E nisto estão estes miseráveis tão cegos que muitas vezes deixam de comer e prover-se do que lhes é necessário, para terem que dar a estes sacerdotes de satanás, havendo esta veniaga por boa e muito segura (Pinto 1975: pp. 414-415 – grifo meu).

O leitor atento observará no trecho destacado em itálico uma crítica mordaz à venda de indulgências na Europa, conquanto a descrição se refira a sacerdotes chineses. Interessa notar, portanto, que a crítica é revestida de relato de viagem de um português à China – e principalmente que é por repousar entre a literatura de viagens e a literatura fantástica que o texto corresponde à análise que vimos empreendendo. Mais interessante é verificar que, repousando numa instância entre o documento e a ficção, o narrador da Peregrinação se vê numa perspectiva privilegiada para fazer a crítica apontada acima. Em outras palavras, a descrição, no primeiro plano, dos hábitos religiosos dos chineses guarda em si um espelhamento, mais uma vez, grotesco da experiência portuguesa. Sem preocupação de localizar uma obra inaugural da cadeia de obras literárias portuguesas que estamos analisando, talvez esteja na Peregrinação o ponto de partida dessa instância narrativa privilegiada a partir da qual alguns autores da Literatura Portuguesa constituem suas obras: uma instância narrativa intermediária, entre a periferia e o centro; um ponto de vista privilegiado, a partir do qual é possível entrever frestas, descontinuidades e contradições no discurso aparentemente coerente das ideologias dominantes. Saltemos, a seguir, para as Viagens na Minha Terra, de Garrett, no século XIX e lembremo-nos do fragmento em que o narrador alude às suas próprias obras anteriores, fazendo vibrar mais uma vez a corda do limite entre facto e ficto. Nesse trecho, cria-se a receita irônica para escrever um romance convincente, em que as modas francesas e inglesas figuram entrecortadas do português arcaico: Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eugène Sue, de Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul – como fazem as raparigas inglesas aos

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seus álbuns e scrapbooks; forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminam-se… (estilo de pintor pinta-monos). E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original (Garrett 1973: p.44).

É sem dúvida uma página de crítica mordaz à interferência da vida ideológica liberal na tibieza do meio econômico e social português, cujos resultados estão imbricados nos destinos das personagens, como todos sabem. Também já terão chamado a atenção dos leitores as Viagens do título, em alusão mais uma vez à perimorfose a que se fez referência anteriormente. Já no século XX, deixando de lado muitas obras, talvez as Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa (1975), sejam o exemplo mais assombroso de obra cuja forma repousa rigorosamente no limite a que venho me referindo: obra em processo, de autoria coletiva, caracteriza-se pelos saltos de uma carta à outra, no terreno movediço do hibridismo formal: metatextos, em que os princípios formais e os temas centrais da obra são investigados; poemas; cartas ficcionais, em diálogo com as Cartas Portuguesas, de Sóror Mariana de Alcoforado; reproduções de textos técnicos, e mais. É impossível classificá-las – e a obra convida precisamente à multiplicidade do gênero, inscrita em seu próprio corpo, que aponta para a experiência de ser mulher em Portugal. É evidente que esse sobrevoo não dá conta dos desafios de cada uma das obras citadas anteriormente. Mas o que importa é notar que a recorrência dos temas permite sustentar a hipótese de que a matéria histórica que subjaz a elas está nelas inscrita, por meio do processo de redução estrutural. Cada uma delas contém soluções formais para o limite, especialmente por meio de algum hibridismo formal, cujo traçado sinuoso aponta para a perimorfose. Cabe avaliar o contexto específico em que essas soluções foram propostas e relacionálas. Também é conveniente, aqui, evitar determinismos, especialmente o de lineamentos econômicos, risco bastante grande quando se trata da investigação das relações entre forma literária e processo social. Em outras palavras, é preciso evitar a relação fácil e gratuita que propõe a sociedade como determinante das formas. Trata-se de aferir em que medida estão inscritas nas formas as contradições centrais da sociedade em que foram compostas, de modo que se possa avaliar aquelas soluções no contexto em que estão inseridas. Para concluir, acreditamos que a pesquisa de Literatura Portuguesa nesses termos terá muito a ganhar exatamente porque será possível identificar em sua história algumas linhas de força, nos termos da acumulação literária, ainda pouco investigadas, como aquela que tivemos a pretensão de sugerir acima, em linhas gerais. Nos termos de Antônio Cândido, teremos a chance de encontrar, no próprio conjunto da tradição literária portuguesa, encadeamentos de temas e imagens nos quais está cifrada, em palimpsesto, a própria experiência portuguesa de ser centro de um império colonial e periferia

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da Europa, lugar privilegiado para observar e escovar a contrapelo as ideologias do centro do capitalismo.

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