FORMAÇÃO DE PROFESSORES COMO UM PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE DIREÇÕES DE INTERLOCUÇÃO

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES COMO UM PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE DIREÇÕES DE INTERLOCUÇÃO João Pedro A de Paulo Universidade Estatual Paulista – Rio Claro [email protected] Eixo temático: Formação de professores que ensinam Matemática Modalidade: Comunicação Científica Categoria: Aluno de pós-graduação Resumo O interesse central deste texto é analisar a formação de professores como um processo de constituição de direções de interlocução. Tomando como fundamentação teórico metodológica o Modelo dos Campos Semânticos, procurou-se analisar recortes da dissertação de mestrado do autor com o objetivo de dar visibilidade a características que corroboram com a discussão proposta. Ao analisar os trechos da história de Judite, o autor tece comentários sobre as direções de interlocução constituídas pela entrevistada, bem como apresenta o que considera a respeito da formação de professores e ainda, ao final apresenta uma perspectiva de sala de aula (de matemática).

Palavras-chave: Modelo dos Campos Semânticos; Sala de aula de Matemática; Estranhamento; Descentramento.

Introdução O presente artigo apresenta uma análise de recortes da dissertação 1 de mestrado do autor. Tem-se aqui o objetivo de, a partir destes recortes, apresentar uma perspectiva da formação de professores que ensinam Matemática – nos termos do evento – apresentando a partir daí a perspectiva do autor de sala de aula. A pesquisa de mestrado, bem como este artigo, teve como referencial teórico metodológico o Modelo dos Campos Semânticos (MCS) (LINS, 1999; 2012). Os dados foram produzidos por meio de entrevistas semiestruturadas, que tiveram por objetivo conhecer a história de formação dos entrevistados, e foram desenvolvidas com alunos concluintes de um curso de Licenciatura em Matemática. O processo de análise deu-se a partir da composição de histórias em uma direção de interlocução que o autor julgou legítima após a análise das entrevistas. Estas histórias tiveram o objetivo de por em evidencia as relações que os entrevistados 1

Contando uma história: ficcionando uma dissertação sobre a relação entre professor e aluno. Disponível em

acreditavam ter influenciado sua formação 2, evidenciando também, as crenças – no sentido adotado segundo nosso referencial o MCS – do pesquisar em relação à formação de professores. Esta não pode ser pensada exclusivamente, ou prioritariamente, nos cursos de formação inicial bem como, a formação que acontece neste espaço, não pode ser pensada desvinculada dos outros contextos. Neste artigo selecionou-se trechos de uma das entrevistas com o objetivo de por em evidência aquilo que acredita-se apoiará a discussão sobre a sala de aula que é proposta. A partir destes recortes fez-se uma análise sobre a formação de professores como a constituição de um repertório de direções de interlocução e falou-se sobre a impossibilidade de pensar que a formação, a partir desta perspectiva, se dá exclusivamente, ou prioritariamente, nos cursos de formação inicial. Daí, expande-se também a concepção de sala de aula. A história de Judite No primeiro trecho, traz-se a introdução da história como um recorde das considerações de Judite à respeito de sua primeira professora e sua primeira sala de aula: Judite morava em uma longínqua cidade do interior com sua avó Emília. A pequena casa onde apenas as duas moravam, estava localizada aos arredores daquela cidade pequena. Emi, como Judite chamava sua avó, trabalhava lavando roupas para manter as despesas da casa. Como não tinha eletrodomésticos para trabalhar, vovó Emi lavava as roupas em um córrego que ficava a cerca de um quilômetro da casa onde moravam. Sempre que ia ao córrego para trabalhar Emi levava Judite consigo, pois sabia que a pequena gostava de estar sempre por perto. Naquela época, Judite ainda se recuperava de uma doença que a impossibilitava de frequentar a escola regularmente e estar com as outras crianças. Enquanto sua avó estava nas pedras da margem, Judite

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A escrita do trabalho apresenta a noção de ficção como um processo de teorização em Educação Matemática. Ficção é entendida como a utilização de direções de interlocução e justificações não legítimas na cultura acadêmica para falar aos acadêmicos. O objetivo de lançar mão deste recurso é, ao utilizar de direções de interlocução outras, desnaturalizar aquilo que é natural à academia e, que, por assim ser, não é visto. A forma de escrita da dissertação é entendida como ficcional dentro da acadêmica, porque dá aos dados produzidos na entrevista, um tratamento que comumente não é utilizado, não é legítimo.

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buscava uma pedra na sombra para se sentar. Ficava espiando a avó e esperando que ela desse início à aula. Sempre que estavam no córrego, Emi dividia a sua atenção entre o trabalho e as perguntas de Matemática que fazia para Judite. Ela perguntava lá da margem e Judite respondia lá da sombra onde estava. A vovó sempre sabia se estava certo ou não, apesar de ter frequentado apenas as quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, ela era muito boa em contas de cabeça. – Duas vezes um? O ambiente de estudos de Judite era o córrego com sua avó. Emi, na maior parte das vezes, nem olhava para Judite, mas sempre conversava, falava e não parava. Quando a resposta estava errada ela corrigia, sempre prestando atenção nas respostas da neta. Judite ficava sentada rabiscando alguma coisa. Ela ficava admirada com as contas que a avó fazia, e ela queria muito aprender tudo aquilo, então sempre que Emi fazia uma pergunta ela se esforçava para acertar. – Dois! Emi ensinou primeiro a Matemática. O Português, Judite aprendeu na escola. Então, antes mesmo de aprender a escrever seu nome ela já sabia contar. Após aprender a escrever, Judite continuou gostando mais dos números. Ela não gostava de ficar escrevendo seu nome em todos os lugares, o bom mesmo era contar as páginas dos livros, escrever de um a cem, fazer todas aquelas coisas de Matemática (PAULO, 2016, p. 70). A interação com a avó Emília possibilitou à Judite ver o diferente, a avó falava coisas que ela ainda não podia falar. Judite queria pertencer àquela cultura matemática que sua avó pertencia, por isso, constituiu direções de interlocução na expectativa que sua avó aceitasse o que ela dizia. Quando fala-se em processo de constituição de direções de interlocução, falase em um processo cognitivo. Segundo o Modelo dos Campos Semânticos o processo comunicativo se dá entre um sujeito biológico, aquele que enuncia, e um sujeito cognitivo, uma direção na qual se fala, acreditando que o que está sendo dito pode ser dito e será aceito. Esta direção de interlocução não coincide com outro sujeito biológico, por mais que se esteja falando com alguém que está à sua frente. 3

Estas direções de interlocução para as quais se fala, vão internalizando o sujeito da enunciação ao longo de suas relações sociais. Vão internalizando porque o sujeito da enunciação quer ser aceito por aquela comunidade, então ele se esforça para falar como eles falariam e assim fazer parte da comunidade. Por exemplo, Judite se esforçava para “acertar” as perguntas que a sua avó fazia, ou seja, ela tentava responder algo que, ela acreditava, a sua avó responderia. Processo similar acontece nas escolas formais, os alunos tentam falar como o seu professor falaria e neste processo de tentativa e erro vão constituindo uma direção de interlocução que fará parte de seu repertório de coisas que podem ser ditas. Este repertório também é constituído por coisas que podem ser feitas, por exemplo, o modo de agir, gestos, expressões faciais, tudo aquilo que o aluno acredita ser uma enunciação (tudo aquilo para o qual o aluno produz significado). Traz-se também trechos que mostram a relação que Judite cria neste ambiente formal com as pessoas que estavam envolvidas. Entre elas a relação com professores e um aluno: Judite gostava da rigidez desta professora [Ana Concórdia, professora de Judite na 4ª série do Ensino Fundamental]. As aulas dela eram um desafio. Ana era um exemplo de professora para Judite. Não só de professora, pois Ana era uma mulher guerreira que criou os filhos, sozinha. Era uma professora muito rígida, mas falava bem e, além de cobrar, sempre incentivava seus alunos. Ana foi uma influência para Judite em relação à leitura. A professora sempre fazia indicações de livros extracurriculares para ela. Depois conversavam sobre os livros. Judite também indicava livros para a professora. Ela os lia e, em muitas vezes, conversavam sobre as histórias. A dinâmica das aulas da professora Ana era muito boa. Judite à achava muito rígida, porém muito competente, por isso ela podia exigir tanto dos alunos. Judite gostava de estar de acordo com as exigências da professora, e se esforçava bastante para isso (PAULO, 2016, p. 71-72). Judite começou a trabalhar ainda no segundo ano do Ensino Médio, como professora particular. Quando terminou o Ensino Médio, seu primeiro trabalho foi como professora em uma escola particular da cidade onde morava. Este emprego foi uma indicação de seus professores do colégio. Após este primeiro emprego, Judite conseguiu 4

um contrato para trabalhar como professora temporária na rede pública de ensino. Ela dividia seu tempo entre dois empregos e a faculdade no período noturno (PAULO, 2016, p. 72). Um de seus alunos, chamado Raí, disse certa vez que quando chegou ao nono ano ele não tinha percepção nenhuma de Matemática. Ele fazia aquela Matemática básica, mas que os outros professores o ajudava interpretando os problemas para ele e depois ele executava os cálculos. Mas isso em uma prova externa, como a que ele realizaria no final daquele ano, seria impossível. Ele então solicitou que Judite o ajudasse com exercícios extras de Matemática. Judite deu aula para Raí durante seis meses, quando ele já cursava o nono ano. Além das aulas de Matemática, Judite sempre era escalada para substituir as aulas vagas. A direção da escola já pensava nos resultados das provas externas, por isso aulas de Matemática eram importantes e, quanto mais, melhor. Ir para a sala de aula é uma coisa que Judite gostava muito. Ela amava estar na frente de uma sala de aula. Estar lá, explicando e todos prestando atenção no que ela falava era bom, era gratificante. Ela também gostava de elaborar exercícios, sempre buscou incluir os nomes de seus alunos nas atividades. Utilizava coisas do cotidiano deles e incluía o conteúdo que estava sendo trabalhado. Raí, após as aulas de Judite, disse para ela, que os exercícios elaborados por ela o ajudaram a desenvolver a interpretação, especialmente no que se refere à parábola, uma ideia que, para ele, era muito difícil. Judite em um primeiro momento acreditava que este reconhecimento, esta forma de agradecimento do aluno, fosse algo normal do exercício da profissão. Mas, seis meses após ela parar de dar aula na escola onde ele estudava, Raí a procurou para comentar sobre o resultado de uma avaliação externa que ele participou (PAULO, 2016, p. 72-73). Judite dizia. – Aquilo foi importante para mim, porque eu que construí a cabeça dele. Aproveitei o que ele sabia e construiu algo a mais. Para mim, é muito importante viver a profissão e são esses resultados que a tornam gratificante (PAULO, 2016, p. 73). Considerando a formação como um processo de constituição de direções de interlocução, não é possível pensar que a formação acontece em um único espaço, ou 5

apenas quando se fala em determinadas direções – ao falar com os professores formadores – cabe aos cursos de licenciatura se constituírem como um espaço de discussão destas formações. Com isso, o professor passaria “a se ver 'em processo', já que tem consciência de que situações novas para ele são parte da profissão, e não são resultado de uma preparação inadequada” (LINS, 2003, p.14). Neste espaço, formação inicial de professores que ensinam Matemática, os processos de explicitação e discussão destas direções de interlocução e justificações, constituídas nos diversos espaços de formação, ganhariam lugar. Alunos e professores se questionariam e julgariam a pertinência e legitimidades das direções de interlocução quando colocadas em contraste com os contextos culturais para os quais, ou a partir dos quais, se pretende falar. Justificações aqui são entendidas segundo o MCS. Elas não são uma explicação para o que se diz, mas como aquilo que o autor da enunciação acredita o autoriza a falar. Uma justificação pode ser, por exemplo, juntar dois dedos mais três dedos para afirmar que dois mais três é igual a cinco. Uma outra justificação para essa mesma afirmação seria: porque segundo os axiomas de Peano... Lins (1999). Diferentes justificações para uma mesma afirmação constituem, segundo o MCS, conhecimentos diferentes. Por isso explicitar e discuti-las é importante. E traz-se ainda um recorde onde Judite faz considerações à respeito de sua formação: Judite se considerava ainda muito inexperiente, apesar de ter lido muito, apesar de já ter trabalhado. Ela acreditava que a experiência vem, realmente, com os pés no chão da sala de aula, mas tinha a intenção aprender muito ainda. Ela era aberta a assistir aula de outros professores e gostava de analisar metodologias. Judite gostava de estudar metodologias. Não só estudar, mas utilizá-las em suas aulas. Para aqueles professores, colegas de trabalho que diziam para ela que isso era animação de início de carreira, ela sempre questionava. – Não fazem comida e não esperam que o prato esteja bonito? Também quero que minhas aulas sejam bonitas. – Ela pensava que os problemas que teve que enfrentar com professores que não tinham domínio de sala, ou que só olhavam para o quadro-negro, esses problemas, seus alunos não deveriam enfrentar. Ela deveria oferecer o melhor para eles. Judite sempre tentava fazer que esses problemas não se repetissem em suas aulas (PAULO, 2016, p. 74-75). 6

A perspectiva de Judite, parece se aproximar do que Lins (2003) propõe como modelo de formação de professores. Para Lins (2003) não se forma os professores dos nossos sonhos por dois motivos; primeiro é que ao saírem da graduação os professores trabalharão com alunos reais, cada um deles com uma história de vida, escolar e não escolar. Em segundo que lidar com essa diversidade exige maturidade, adquirida somente com atividade profissional, reflexão e ampla capacidade de tomar decisão frente as situações do cotidiano. No caso de Judite, a possibilidade de trabalhar e ao mesmo tempo iniciar o curso de licenciatura houve a possibilidade do desenvolvimento, em certo grau, desta maturidade, apesar de não haver uma articulação, por parte da universidade, entre sua prática e sua formação acadêmica. A universidade não reconheceu esta oportunidade de construção, evidencia disto é que na disciplina de estágio a experiência de Judite foi desconsiderada, e ela teve que desenvolver todas as etapas propostas para alunos que não haviam trabalhado. A formação inicial, acredita-se, deve assumir um caráter de “educar o olhar do professor para ver a diferença e lidar com ela” Lins (2003, p. 14). O meio para lidar com essa diferença é constituído pelos estudos, pedagógicos e da Matemática. Eles não devem ser vistos nos cursos de formação inicial como fins, mas como meios de proporcionar essa formação. Conclusões Ao trazer estes recortes da história de Judite teve-se a intenção de subsidiar os apontamentos feitos à respeito da formação de professores que ensinam Matemática e a partir disso constituir uma concepção de sala de aula. Apresentou-se então, a formação como um processo de constituição de direções de interlocução, que se dá durante as interações sociais e, não está restrita aos cursos de formação inicial. A partir desta perspectiva, tem-se a proposta de que os cursos de formação inicial se constituam em um momento de educar o futuro professor a lidar com a diferença (LINS, 2003), mediante a explicitação e discussão de justificações e direções de interlocução constituídas em outros espaços. A sala de aula então, é um lugar de estranhamentos e descentramento. O professor proporciona aos seus alunos situações que eles se perguntem: E agora, o que 7

eu faço? Situações em que eles consigam ver o diferente. Diante deste tipo de situações os alunos poderão tomar pelo menos duas atitudes, deixar de lado e não se importar ou tentar o descentramento, ou seja, “sair de você como centro e tentar ir para o lugar onde o outro está no centro. Nisso aparece a questão da diferença, ou seja, o que eu vou fazer com isso?” (VIOLA DOS SANTOS, 2012, p.195). Ao responder essa questão o aluno terá ampliado o seu repertório. Ele terá outras justificações e outras direções de interlocução. Se aluno de licenciatura ele terá um repertório maior para lidar com os estranhamentos que seus alunos – Educação Infantil, Ensinos Fundamental e Médio – terão ao se depara com uma Matemática que para o licenciando já é natural. Se aluno da Educação Infantil, do Ensino Fundamental ou Médio, ele poderá agora utilizar de justificações e direções de interlocução legítimas a cultura do professor de matemática e do matemático. Referências LINS, R. C. Por que discutir Teoria do Conhecimento é relevante para a Educação Matemática. In: BICUDO, M. A. V.; BORBA, M. C. (Orgs.) Pesquisa em Educação Matemática: concepções e perspectivas. Rio Claro: Editora Unesp, 1999. p. 75-94 LINS, R. C. A formação exige prática. In: Nova Escola, ano XVIII, n. 156, p. 14, set, 2003. LINS, R. C. O Modelo dos Campos Semânticos: estabelecimentos e notas de teorizações. In: ANGELO, C. L. et. al. (Orgs.). Modelo dos Campos Semânticos e Educação Matemática: 20 anos de história. São Paulo: Midiograf, 2012. p. 11-30 PAULO, J. P. A. Contanto uma história: ficcionando uma dissertação sobre a relação entre professor e aluno. 2016, 134 p. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista. Rio Claro, 2016. VIOLA DOS SANTOS, J. R. Legitimidades possíveis para a formação matemática de professores de matemática (ou: assim falaram Zaratustras: uma tese para todos e para ninguém). 2012, 360 p. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2012.

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